quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

DEUS

LUIZ FELIPE PONDÉ
Deus não é necessário para matarmos
milhares de pessoas,
basta uma "boa causa"
NATAL E fim de ano, Deus está no ar, em meio à fúria do consumo e das expectativas.
Mas antes de falar coisa séria, uma palavrinha: adoro a inércia do fim de ano. As pessoas ficam preguiçosas, sem pressa. Escorregam lentamente para a praia ou o campo, ou para a cidade que se esvazia. Época de sexo fácil e solidão em grandes quantidades.
O que antes era eficácia e ambição perde a forma e vira imprecisão, sono, bebida e comida, horas a fio sem objetivo. Este colunista que vos fala está com o que a sabedoria popular chama de "uma gripe do cão".
A cabeça pesando quilos, febre, tosse, espirros, enfim, com todas as vantagens que uma gripe nos dá: contemplação do teto e das paredes, noites mal dormidas, o direito honradamente adquirido de fazer nada e de demandar tudo da mulher apaixonada pelo doente. Um presente de Natal.
A doença não implica necessariamente incapacidade. Pelo contrário, a desordem fisiológica pode abrir portas para percepções incomuns. As religiões antigas bem o sabem, com seus jejuns, poções "mágicas", mantras, orações intermináveis, música, vigílias no deserto e na solidão. Tudo visando estados alterados de consciência. Há uma dimensão da vida que está distante da banalidade cotidiana, e isso nada tem a ver com essa coisa barata chamada "espiritualidade quântica".
Tem gente que jura que Deus morreu. Tentativas de matar Deus foram feitas, e por gente muito capaz. Nietzsche tentou nos convencer que quem crê em Deus tem medo da vida. Ressentimento é a palavra. O horror cósmico faria de nós covardes. E mais: Deus nos tiraria o Eros, o desejo pela vida. Mas você pode ser um brocha diante da vida e ser ateu. Freud quis provar que crer em Deus revela o retardado assustado que vive no adulto. Mas Freud bem sabia que ateus e crentes retardados desfilam pelas ruas em busca dessa coisa superestimada chamada "felicidade". Marx jurou que ganham dinheiro com a fé em Deus. Mas se ganha dinheiro com tudo, amor, sexo, ódio, arte, basta dar sorte, enganar os outros ou trabalhar com afinco.
Infelizmente, há muita teologia que ajuda a matar Deus. Deus me livre da teologia de vanguarda. Se, na arte, a "vanguarda" serviu pra justificar quem não sabia pintar, escrever ou fazer filmes, na teologia, serviu para fazer de Jesus um personagem de novela das oito. Nada contra a teologia, ao contrário, julgo-a uma disciplina essencial para nos ensinar a ver o invisível. Mas, como disse Heine em relação aos teólogos de sua época, "só se é traído pelos seus".
Fernando Pessoa, em seu desassossego, diz que não aderiu ao culto da Humanidade, essa mania dos modernos, porque sendo ela, a humanidade, nada além do que uma espécie animal, adorá-la é adorar um conjunto de corpos humanos com cabeça de bicho. Portanto, uma reles forma de paganismo. Dizia o poeta que sendo Deus improvável, adorá-lo é sempre menos ridículo.Outro grande escritor português disse recentemente que a Bíblia é um livro ruim e que não deve ser lido. Bobagens desse tipo, cheias de glamour, são repetidas ao sabor da ignorância comum. Mas devemos ter paciência com ele, afinal ninguém precisa entender de tudo.
Mesmo em pessoas inteligentes, Deus se mistura com todo tipo de trauma infantil ou raiva do pai ou da mãe ou do patrão.
Muita gente grande fica com cara de criança brava e mal amada quando se fala de Deus. No fundo é a velha carência humana gritando contra a indiferença cósmica se revelando em "crítica a Deus" e não em "fé em Deus", como diriam os nietzschianos de plantão. Outro erro comum: Deus faz os homens matarem. Mentira: matamos porque gostamos de matar. O século 20 provou de modo cansativo que Deus não é necessário para matarmos milhares de pessoas, basta uma "boa causa".
A teologia feminista diz que "a Deusa" existe para punir o patriarcalismo. A teologia bicha (Queer Theology) se pergunta: por que Jesus viveu entre rapazes, hein? Alguns latino-americanos vêem Nele um primeiro Che, hippies viam um primeiro Lennon, outros, um consultor de sucesso financeiro. Ufólogos espíritas dizem ser Ele um extraterrestre carinhoso.
Prefiro o cristianismo antigo (prefiro sempre as religiões velhas). Um Deus que sente dor e morre por amor a quem não merece é um maravilhoso escândalo ético. O Cristo antigo é um clássico.
Melhor do que essas invenções da indústria teológica de vanguarda, feitas para o consumo moderno.

Os acontecimentos de 2008 e sua evolução em 2009

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Os últimos quatro meses foram muito reveladores dos dois mundos em que o mundo está dividido, o mundo dos ricos e o mundo dos pobres, separados mas unidos para que o mundo dos pobres continue a financiar o mundo dos ricos. Muito do que se desencadeou em 2008 vai continuar, sem qualquer solução de continuidade, em 2009 e mais além. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos analisa algumas destas continuidades.

Tudo leva a crer que o ano de 2008 não termine em 31 de dezembro. O tempo inerte do calendário cederá o passo ao tempo incerto das transformações sociais. Muito do que se desencadeou em 2008 vai continuar, sem qualquer solução de continuidade, em 2009 e mais além. Analisemos algumas das principais continuidades.
Crise financeira ou o baile de gala da finança?
Os últimos quatro meses foram muito reveladores dos dois mundos em que o mundo está dividido, o mundo dos ricos e o mundo dos pobres, separados mas unidos para que o mundo dos pobres continue a financiar o mundo dos ricos. Dois exemplos. Fala-se de crise hoje porque atingiu o centro do sistema capitalista. Há trinta anos que os países do chamado terceiro mundo têm estado em crise financeira, solicitando, em vão, para a resolver, medidas muito semelhantes às que agora são generosamente adoptadas nos EUA e UE.
Por outro lado, os 700 billhões de dólares de bail-out estão sendo entregues aos bancos sem qualquer restrição e não chegam às famílias que não podem pagar a hipoteca da casa ou o cartão de crédito, que perdem o emprego e estão a congestionar os bancos alimentares e a “sopa dos pobres”. No país mais rico do mundo, um dos grandes bancos resgatado, o Glodman Sachs, acaba de declarar no seu relatório que neste ano fiscal pagou apenas 1% de impostos. Entretanto, foi apoiado com dinheiro dos cidadãos que pagam entre 30 e 40% de impostos. À luz disto, os cidadãos de todo o mundo devem saber que a crise financeira não está a ser resolvida para seu beneficio e que isso se tornará patente em 2009. Na Europa, os jovens gregos foram os primeiros a dar-se conta. É de prever que não sejam um caso isolado.
Zimbabwe: o fardo neocolonial
A crise do Zimbabwe é a melhor prova de que as contas coloniais estão ainda por saldar. A sua importância reside no fato de a questão que lhe subjaz - a questão da terra - pode incendiar-se proximamente noutros países (África do Sul, Namíbia, Moçambique, Colômbia, etc.). À data da independência (1980), 6.000 agricultores brancos possuiam 15.5 milhões de hectares, enquanto quatro milhões e meio de agricultores negros apenas detinham 4.5 milhões de hectares, quase toda terra árida. Os acordos da independência reconheceram esta injustiça e estabeleceram o compromisso de a Inglaterra financiar a redistribuição de terras. Tal nunca aconteceu.
Mugabe é um lider autoritário que suscita muito pouca simpatia e o seu poder pode estar chegando ao fim, mas a sua sobrevivência até agora assenta na ideia de justiça anti-colonial, com o que os zimbabwianos estão de acordo, mesmo que achem os métodos de Mugabe incorretos. Recentemente falou-se de intervenção militar, uma questão que divide os africanos e onde, mais uma vez, a mão dos EUA (African Command, recém-criado) pode estar presente. Seria um erro fatal não deixar a diplomacia africana seguir o seu curso.
Sessenta anos de direitos pouco humanos.
A celebração, em 2008, dos 60 anos da Declaração Universal, deixou um sabor amargo. Os avanços tiveram lugar mais nos discursos do que nas práticas. A esmagadora maioria da população do mundo não é sujeita de direitos humanos; é antes objeto de direitos humanos, objeto de discursos por parte dos reais sujeitos de direitos humanos, dos governos, fundações, ONGs, igrejas, etc. Será preciso um muito longo 2008 para inverter esta situação.
Cuba: o começo da transição?
Apesar de só no próximo ano se celebrarem os cinquenta anos da revolução cubana, falou-se muito de Cuba em 2008. A doença de Fidel levantou a questão da transição. De quê? e para quê? Vai ser um outro tema do longo 2008 e mais importante para o futuro do mundo do que se pode imaginar. É que se é possível dizer que a Europa e a América do Norte seriam hoje o que são sem a revolução cubana, já o mesmo se não pode dizer da América Latina, da África e da Ásia, ou seja, das regiões do planeta onde vive cerca de 85% da população mundial.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Estamos usando mais de uma Terra

Rose Marie Muraro*



Segundo recente pesquisa do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), a humanidade está gastando hoje em consumo e desperdício 1,3 Terra. Isto é, estamos estressando a nossa mãe Terra em mais de 30% do que aquilo que ela nos pode dar, o que é absolutamente espantoso.


Fico pensando na China. Esse país hoje consome mais recursos básicos do que os EUA, com exceção do petróleo. Seu consumo de carne é o dobro do registrado nos EUA e o de aço é o triplo. O que acontecerá se a China alcançar os EUA em consumo per capita?


Vamos, por um exercício de futurologia, ao ano de 2031. Se o crescimento chinês se reduzir a 8% ao ano, em 2031 sua renda per capita será a mesma dos EUA. Imaginemos que os chineses tivessem o mesmo padrão de consumo que os americanos nesse ano. A população então, em termos conservadores, subindo para 1,5 bilhão de habitantes, consumiria o dobro da atual produção de papel e teria cerca de 1,1 bilhão de carros. Em todo o mundo hoje, o número de carros não passa de 800 milhões e o consumo mundial de petróleo é de 85 milhões de barris por dia. Na situação citada, só a China consumiria 99 milhões de barris por dia.


Isso tudo, colocado em conjunto, nos mostra que na terceira década deste século não usaríamos apenas uma Terra mais 30%, e sim, no mínimo, 2,5 Terras, também em termos conservadores, porque temos que considerar a Índia (cuja população, então, será maior que a da China) e outros países periféricos a quem foi empurrado goela abaixo o sonho de consumo americano. E o que isso nos ensina? Simplesmente que o modelo econômico ocidental centrado em combustíveis fósseis, no uso de minérios e no desperdício, não vai mais funcionar no mundo. Já hoje há mais de 3 bilhões de pessoas nos países em desenvolvimento, e se não reestruturarmos a partir de agora a economia mundial, o crescimento econômico será insustentável.


A esses números, que extraímos de Lester Brown, provavelmente o maior ecologista da atualidade e autor da série The State of the World, publicada anualmente pela ONU, acrescem-se números opostos, desta vez da Food and Agriculture Organization (FAO) sobre a fome no mundo. Depois da inflação no preço das commodities em 2008, o número de pessoas famintas no mundo, que já era de 824 milhões de pessoas, ganhou mais 100 milhões. E isso não foi pelo fato de os chineses e indianos se alimentarem mais, mas porque os países mais pobres empobreceram ainda mais. Até os anos 1960 eles podiam saciar a fome porque sua agricultura era pesadamente baseada na agricultura familiar, e a partir desses anos eles foram obrigados pelas dívidas que tinham com o FMI a transformar suas multiculturas em grandes monoculturas para a exportação. Assim, com a sua fome, aumentavam o excesso de alimentação dos países mais ricos. Foi esse o efeito mais perverso da globalização.


Só o modelo baseado na solidariedade, no desestímulo ao consumo supérfluo, na descentralização econômica, tal como se usava nos tempos primitivos em que as comunidades geriam os pré-estados, é que poderemos pensar em uma sobrevida para a humanidade. Mas é muito difícil sairmos de um modelo de poder político e econômico centralizados, de uma competição cada vez mais violenta, para um modelo realmente democrático em que as populações tenham influência sobre os destinos do Estado, tal como já está acontecendo hoje, por exemplo, na Europa nórdica, onde a corrupção das elites é menor, inclusive pelo grande número de mulheres existentes nos primeiros escalões dos governos. Segundo informações do Banco Mundial, há uma correlação estatística significativa entre o aumento das mulheres nos primeiros escalões e a diminuição da corrupção, o que faz com que os fluxos de dinheiro governamental sejam realmente alocados às populações que dele mais necessitem.


Não podemos mais aceitar um mundo em que nos anos 1990 o PIB cresceu 134% e a miséria 1000%. É essa ganância dos mais ricos, que distorceram todas as estruturas de poder, que está matando a humanidade. Crises como a que estamos vivendo tendem a repetir-se e acelerar-se cada vez mais, tais como os furacões se aceleram quando o clima foi desequilibrado.


Estamos chegando à hora do impasse final, em que os senhores do dinheiro estão sendo confrontados com uma força maior do que a sua, a de nossa mãe Terra, que não quer ser assassinada. Ou mudamos todos ou acabaremos.

*Escritora
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 25/12/2008

CARTÃO DE NATAL

João Cabral de Melo Neto

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno, f
resco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:


que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.

http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 25/12/2008

Adoráveis vampiros

CONTARDO CALLIGARIS*
O adolescente é uma espécie de
lobisomem
que sonha com a
sublime compostura dos
vampiros
O S VAMPIROS estão conosco há séculos, mas eles entraram mesmo na cultura popular jovem no início dos anos 1980, com a onda "dark" e a cena "gótica".
Logo, filmes e seriados inventaram o vampiro abstinente ou "vegetariano", que luta contra seus semelhantes e protege os humanos. Com isso, o vampiro deixou de povoar nossos pesadelos e se tornou objeto de sonhos e desejos.
Mas por que especialmente uma adolescente gostaria de amar ou, quem sabe, de ser um vampiro? Para responder, basta ler a maravilhosa saga escrita por Stephenie Meyer, que já conquistou milhões de leitores pelo mundo afora. Os dois primeiros volumes, ""Crepúsculo" e "Lua Nova", já existem em português (ed. Intrínseca); o terceiro ("Eclipse") e o quarto ("Amanhecer") não vão tardar.
Também, na semana passada, estreou no Brasil a versão cinematográfica de "Crepúsculo" (gostei, embora menos do que dos livros).
Enfim, só para lembrar: a saga conta a história de Bella, uma adolescente que se apaixona por Edward, um colega de classe que é diferente dos demais- entre outras coisas, como ela descobre, por ele ser um vampiro. Claro, os amores entre humanos e vampiros são complicados. Por exemplo, os transportes da paixão podem ser perigosos (em português, ninguém duvidará que, à força de desejar, um dos amantes possa chegar a comer o outro). Isso, sem contar o descompasso pelo qual o vampiro permanecerá jovem para sempre, enquanto o humano envelhecerá. E uma pergunta para a qual não encontrei resposta: será que vampiro e humano podem se reproduzir sexualmente? Qual é o resultado do cruzamento?
Os românticos lerão na saga uma linda história em que o amor ultrapassa diferenças extremas e, por isso mesmo, deve transformar radicalmente os dois amantes. Outros pensarão nas situações em que um amante abnega seu amor e se separa pelo bem do amado ou da amada (se é que esse desprendimento é possível no amor, será que alguém pode aceitar ser abandonado pelo seu próprio bem? Questão abstrata? Nem tanto: pense nos casos em que um dos dois se descobre portador de uma doença transmissível e potencialmente letal).
Pergunta: Edward tem muito charme, mas por que uma adolescente se apaixonaria por um vampiro e ambicionaria se transformar, ela mesma, em vampiro? Há uma longa lista de razões pelas quais um humano, e sobretudo um adolescente, poderia gostar de ser vampiro, mas a mais óbvia é que os vampiros conseguem crescer, acumular experiência, viver intensamente a eternidade inteira, tudo isso sem ser escravos de um corpo que, além de mortal, é sempre, por assim dizer, excessivo- um pouco asqueroso.
O adolescente, empurrado para a bulimia por seu crescimento desordenado, se fecha na anorexia (ou tenta vomitar o que comeu) porque a perspectiva de ter um dia um corpo adulto lhe inspira repulsa: os corpos adultos são vulgares, com seu cheiro, seus roncos de barriga e de sono, suas bocas abertas mastigando e, na hora do desejo, a vontade de enfiar mãos e órgãos nos suores entre pernas e orifícios, ou mesmo de misturar línguas, salivas e bocas. Convenhamos: uma mordida no pescoço seria muito mais elegante.
Os lobisomens (que chegam no segundo volume da saga de Meyer e, portanto, estarão no próximo filme) devoram seus alimentos, desmaiam na hora de dormir e estão sempre próximos de perder o controle de si.
O adolescente é um lobisomem que sonha com a compostura dos vampiros, os quais, ao contrário, não comem, não precisam respirar nem dormir, exalam um cheiro e um hálito sublimes porque, gélidos, eles não carburam, não apodrecem, não defecam (aliás, será que urinam?).
Em suma, o vampiro é livre das indignidades dos organismos vivos, ele não precisa daqueles envergonhados "momentos humanos" em que Bella se esconde de Edward para cuidar de seu corpo (carcaça?).
Não sei se Bella se tornará ou não um vampiro (saberemos, imagino, no fim da saga). Mas estou convencido de que muitos (adolescentes e adultos) estão contemplando essa possibilidade.É que faz bastante tempo que a gente procura um jeito de não ser "apenas" um corpo mortal, vulgar e malcheiroso. Já experimentamos de tudo: desde a fé na existência autônoma da alma até a depilação a laser, o desodorante e o fio dental três vezes por dia. Por que não o vampirismo? Poderia ser um propósito para o ano novo.
*Psiquiátra e escritor.
ccalligari@uol.com.br - http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2512200828.htm

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Escute o Natal

MARTHA MEDEIROS

Cada pessoa se prepara de um jeito para o Natal. Eu costumo cumprir os rituais inevitáveis que a época exige, como montar a árvore, comprar presentes e providenciar um jantar especial para receber a família. Mas, como neste período minha emoção fica sempre à flor da pele, me condiciono a algo mais íntimo: seleciono uma trilha sonora adequada ao meu estado de espírito.
Quando se pensa em música de Natal, muitos recorrem a Assis Valente: “Amanheceu/ o sino gemeu/ e a gente ficou/ feliz a rezar...”. Feliz? “Já faz tempo que eu pedi/ mas o meu Papai Noel não vem/ com certeza já morreu...” Eu era criança e achava desolador que o Papai Noel só estivesse vivo para alguns. Desde então, passei a fazer meu próprio playlist natalino.
Gosto de intensidade sonora, fui criada a guitarra. Ainda que aprecie gêneros mais tranqüilos e sofisticados, não adianta: o rock e o blues sempre falaram mais alto aqui em casa. Mas assim que entra a contagem regressiva para o Natal, entro em jejum de qualquer batida mais compassada, tiro de cena todos os Stones e seus discípulos, e abaixo o volume. Juro, sumo até com os Beatles, e sou capaz de cometer assassinatos em série quando escuto “So this is Christmas/ and what have you done....” do John Lennon. Massacrante. Quem ainda agüenta?
Retirada a sonzeira, abro espaço para gêneros que casam perfeitamente com o astral do momento. Jazz tradicional ou jazz moderno: por exemplo, não consigo parar de ouvir Amy Winehouse cantando Love is a Losing Game. Minha Assis Valente deste Natal 2008.
E clássicos. Chopin, Schubert, Mozart.
Coral também é uma pedida. Perdi a conta dos Natais em que ouvi um coral do Harlem chamado Mount Moriah e que enchia a casa com o ritmo gospel.
E música lounge, que me transporta para a beira de uma praia paradisíaca.
E música popular brasileira cantada quase em silêncio, com ternura, sem agressividade, letras amorosas, leves, confortantes.
Eu falei em silêncio?
O barulho das folhas ao vento e os passarinhos que acordam sempre mais cedo que nós, isso ainda dá para se ouvir na cidade (quando o pessoal não está buzinando – por que se buzina tanto nos dias que antecedem o Natal?).
Mas pra quem tem a sorte de estar em algum lugar menos concreto, benditas sejam as ondas do mar quebrando na areia, o barulho de alguma cachoeira escondida no meio do mato, o espocar imaginário de cada estrela que vai surgindo no céu – trilha sonora do Natal.
Hoje, o que eu desejo para todos, além de receberem um abraço que não seja protocolar como tantos que se recebem durante o ano, é que a gente escute o Natal. Que o som dessa noite apazigüe a alma, que sinos toquem dentro de nós, que ninguém levante a voz, que tudo seja suave e que o silêncio transmita todos os votos vindos de longe, daqueles que não puderam estar juntos.
Ivete Sangalo? Melhor deixar pro Réveillon.

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2346106.xml&template=3916.dwt&edition=11371&section=1006

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Decálogo do diálogo sobre Bioética

A Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII da Espanha
publicou no sítio Religión Digital, 20-12-2008,
uma declaração sobre os problemas da
que aqui publicamos na íntegra.
A tradução é de
Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII quer se unir ao movimento de diálogo interdisciplinar da Bioética na busca comum de valores compartilhados, mas sem se dar o direito de intromissão para ditar normas de moralidade à sociedade civil. Cremos que a Teologia deve se somar a tal diálogo para ajudar a transformar, tendo-se em vista os novos dados, alguns de seus paradigmas e conclusões; mas sem impor exclusivamente interpretações de sentido sobre a vida e a morte, a dor, a saúde ou a doença.
No terreno da bioética, é necessário distinguir três tipos de questões: as científicas, as filosóficas e as religiosas. A intervenção no debate sobre as questões científicas corresponde aos especialistas em tais matérias. Nas questões filosóficas, existe uma ampla pluralidade de concepções. No terceiro tipo de questões, as religiões estão em seu legítimo direito de expor suas concepções, mas não podem exigir o seu cumprimento a toda a sociedade, como se fossem as únicas válidas. No contexto da sociedade plural e secular, os fiéis podem participar no debate público sobre bioética, conjugando sua própria fé com o empenho do diálogo em meio a situações interculturais e inter-religiosas.

Com esse espírito de diálogo, propomos o seguinte Decálogo:

1. Unimo-nos ao movimento de diálogo interdisciplinar da bioética como conversação pública para buscar, em comum, respostas aos desafios que o cuidado da vida na era da biotecnologia propõe. Cremos que, para as ciências e as humanidades, vale o programa emblemático. Em vez de enfrentar as éticas ou as crenças contra as ciências e as tecnologias, convém fomentar sua integração mediante a educação, a colaboração dos meios de comunicação e o debate cívico sem crispação.

2. Para convergir em uma ética autenticamente global, queremos escutar as diferentes perspectivas mediante o diálogo intercultural sem exclusões nem hierarquias prévias. A aliança de civilizações e o diálogo de religiões são imprescindíveis para fomentar uma cultura da vida.

3. Desejamos e esperamos que as diversas religiões se unam a essa busca em comum de valores frente ao futuro da vida e da humanidade. Respeitaremos a pluralidade, unindo-nos à busca comum de convergências em valores para garantir, responsavelmente, o futuro da vida e da humanidade. “Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um...” (Gálatas 3, 28). As diversas crenças deverão passar pelo crivo da autocrítica para se livrar de seus respectivos exageros, por exemplo, a homofobia, os maus-tratos às mulheres ou a discriminação das vidas mais desfavorecidas.

4. As atitudes aprendidas no evangelho de Jesus nos motivam especialmente para apoiar uma ética da gratidão responsável no cuidado de toda vida. Proporemos, sem impor, alternativas para o cuidado da vida a partir da perspectiva do evangelho de Jesus, para fazê-lo no momento oportuno e com tolerância construtiva. Mas, ao contribuir com um diálogo plural a partir de perspectivas evangélicas, não centraremos a contribuição dessa tradição em citações de documento eclesiásticos oficiais. Partiremos da palavra de Jesus: “Eu vim para que tenham vida e para que a tenham em abundância” (João 10, 10), para exortar com linguagem positiva e esperançosa, que anime a viver e a vivificar-nos mutuamente.

5. A acolhida responsável do processo humano de nascer deve realizar-se no marco do respeito à dignidade e dos direitos da mulher com relação à reprodução. Reconhecemos a necessidade de revisar a fundo a própria tradição, no que se refere aos enfoques sobre gênero, sexo e relações humanas, para superar os limites de uma teologia muito condicionada por pessimismos, maniqueísmos, estoicismos ou puritanismos. “Vós me tecestes no seio de minha mãe” (Salmo 139, 13) é um texto programático que convida a respeitar o processo constitutivo de uma nova vida – caminho e não momento instantâneo –, acompanhando-a com o processo humano de acolhê-la responsavelmente, de acordo com a graduação de tal exigência de respeito segundo as fases de sua formação. Sem levar a sério a educação sexual integrada – incluídas a anticoncepção e a intercepção responsáveis –, carecerão de credibilidade os esforços pela proteção do feto.

6. O acompanhamento responsável do processo humano de morrer inclui o respeito ao direito de decidir como viver a fase final desse processo digna e autonomamente. Teremos que redescobrir e reapreciar elementos esquecidos da própria tradição terapêutica corpóreo-espiritual; por exemplo, assumir a morte e tomar autonomamente as rédeas do processo de morrer. Mas teremos presentes as deficiências da própria tradição, no que se refere às cisões dualistas entre o ser humano e a natureza ou entre o corporal e o psíquico; para poder recriar uma teologia da criação capaz de valorizar e libertar a terra, o corpo e a vida. “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11, 25). A tradição da moral teológica católica ajuda a discernir situações de limitação do esforço terapêutico, legal, ética e teologicamente correta.

7. Não se deve fazer da dor um ídolo. Deve-se fomentar seu alívio e assegurar o acesso igual aos cuidados paliativos. “Ainda que exteriormente se desconjunte nosso homem exterior, nosso interior renova-se de dia para dia” (2 Coríntios 4, 16). Não se deve fazer da dor um ídolo, que temos direito a aliviar, incluída a sedação oportuna, medicamente indicada e devidamente consentida e protocolizada. A tradição católica ajuda a evitar criminalizações injustas, como, por exemplo, a das irresponsáveis acusações do caso Lamela vs. Leganés [1].

8. É responsabilidade ética apoiar a investigação científica para curar, melhorar e proteger a qualidade do viver. Reconhecemos a necessidade de soltar o lastro da própria tradição, para que uma teologia, que durante muito tempo desvalorizou a tecnociência, não naufrague. Cultivar a terra, sem ficar de braços cruzados esperando o dom do céu, é o começo da tecnologia, missa do ser humano, para quem é natural modificar artificialmente a natureza com a tecnologia, desde uma atitude de respeito à natureza. A teologia da criação fomenta o diálogo para aprender da ciência.

9. Admirando e agradecendo pelos avanços científicos, fomentaremos as aplicações da investigação ao serviço da terapia. Mas o cuidado da vida deve se estender ao conjunto dos seres vivos e dos ecossistemas. “Esperamos novos céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça” (2 Pedro 3, 13). A Bioética inclui a Ecoética. Não basta ter passado do paternalismo à autonomia; deve-se globalizar e ecologizar a ética da justa distribuição dos recursos da vida.

10. O cuidado da vida deve incluir também a responsabilidade com as gerações futuras. Por isso, teremos sempre presentes as perguntas motrizes do movimento bioético: “É responsável e vale a pena fazer o que for possível fazer tecnicamente? Para quem serão os benefícios?”. Assim, enfocaremos qualquer problema bioético, captando seu aspecto social. Jesus repartiu o pão da vida, mas para todos e todas. Essa ética global da justiça é, por sua vez, ética da vida. Para nós, estão unidos o não à guerra, ao assassinato e à pena de morte, o não às interrupções injustas do processo de nascer e o não às prolongações injustas do processo de morrer, assim como o não à destruição do ambiente e à dilapidação dos recursos da vida. Esse quer ser o nosso compromisso como cidadãos, como fiéis e como teólogos e teólogas, em colaboração com todos os profissionais, grupos sociais e organismos humanitários que trabalham para melhorar as condições de vida e aliviar o sofrimento da humanidade e da natureza.

Notas:
1. Após denúncia anônima, uma comissão de especialistas, nomeada pelo conselheiro de saúde Manuel Lamela, identificou 73 casos suspeitos de sedação inadequada no hospital Severo Ochoa, de Leganés, na Espanha, entre setembro de 2003 e março de 2005. O trabalho identificou uma relação direta entre a administração irregular de sedativos e a morte desses 73 pacientes.
(O texto é do IHU/Unisinos, 23/12/2008.)

O PRESÉPIO


RUBEM ALVES
A contemplação de uma criancinha
amansa o universo.
O Natal anuncia
que o universo é o berço de
uma criança


MENINO, LÁ EM MINAS , eu tinha inveja dos católicos. Eu era protestante sem saber o que fosse isso. Sabia que, pelo Natal, a gente armava árvores com flocos de algodão imitando neve que não sabíamos o que fosse. Já os católicos faziam presépios.

Os pinheiros eram bonitos, mas não me comoviam como o presépio: uma estrela no céu, uma cabaninha na terra coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis e anjos numa mansa tranqüilidade, os campos iluminados com a glória de Deus, milhares de vaga-lumes acendendo e apagando suas luzes, tudo por causa de uma criancinha. A contemplação de uma criancinha amansa o universo. O Natal anuncia que o universo é o berço de uma criança.

Até os católicos mais humildes faziam um presépio. As despidas salas de visita se transformavam em lugares sagrados. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços, peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida e beijar a fita.

Nós fazíamos os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante.Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celulóide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava o dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam, nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila.

Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes, que se fazia com um pedaço de espelho quebrado. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena "naif". Um presépio verdadeiro tem de ser infantil.

E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranqüila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro da cena. (Não é possível estar dentro da árvore!).

Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores.Será que essa estória aconteceu de verdade? Foi daquele jeito descrito pelas escrituras sagradas? As crianças sabem que isso é irrelevante. Elas ouvem a estória e a estória acontece de novo. Não querem explicações. Não querem interpretações. A beleza da estória lhes basta. O belo é verdadeiro. Os teólogos que fiquem longe do presépio. Suas interpretações complicam o mundo.

O presépio nos faz querer "voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Estamos encantados. Adivinhamos que somos de um outro mundo." (Octávio Paz )

Seria tão bom se os pais contassem essa estória para os seus filhos!
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2312200804.htm

NATAL: isso é grego para mim

Deonísio da Silva*

Papai Noel, este sim,
é uma excrescência
de exclusivos fins comerciais

Os pais de Jesus viviam em Nazaré, mas ele nasceu em Belém, na Judéia, então uma província do Império Romano, entre os anos 4 e 6 a.C., por força de um erro de calendário perpetrado por Dionísio, que fixou no ano 1 o nascimento do Nazareno. Quando é condenado à morte, a maior autoridade romana ali é Pôncio Pilatos.

Bem qualificado, como qualquer funcionário romano do alto escalão, Pilatos era poliglota e falava e escrevia fluentemente em latim e em grego. Foi parar no Credo dos Apóstolos, dando origem à expressão "como Pilatos no Credo", pois a citação de seu nome é só para fixar a existência de Jesus na História, identificando a época dos graves eventos ali narrados, quando foi crucificado entre dois ladrões: Gestas, o mau, e Dimas, o bom, que, aliás, deu mote ao Padre Vieira para o Sermão do Bom Ladrão.

Às vezes, porém, Pilatos se atrapalhava nos idiomas. Dialogando em grego e não em latim com José de Arimatéia, este lhe pede o soma (corpo) de Jesus, e Pilatos entende que pediu o ptoma (cadáver).

Esta é uma das explicações profanas da retirada de Jesus da cruz e de seu desaparecimento, depois de medicado e não sepultado no túmulo do próprio Arimatéia, de onde, clandestino, teria seguido para a casa da discípula mais amada, Madalena, e dali para a Índia ou para a Europa, segundo versões ainda mais controversas.

Estão documentados os três anos que antecedem a execução de Jesus, marcados por intensa pregação na Judéia. Os 30 anos anteriores dependem dos relatos solitários dos Evangelhos e assim mesmo não de todos eles, apenas de quatro considerados oficiais. Foram documentados dezenas deles, depois considerados apócrifos, mas é provável que existissem centenas de relatos semelhantes.

O mais simples e mais objetivo é o de São Mateus, que escreve seu Evangelho em aramaico. Foi traduzido depois para o grego e para o latim. Ele narra deste modo o Natal: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindo do Oriente, que perguntaram: ‘onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’. Ao ouvir isso o rei Herodes perturbou-se e toda Jerusalém com ele”.

Ainda assim, séculos depois os magos foram fixados em três ­ chegaram a ser oito nos primeiros séculos. Eram reis; um era preto, um branco, outro amarelo. E tinham nomes: Baltazar, Gaspar e Merquior. E em 1164, vindos de Milão, seus restos mortais foram parar num dos altares laterais da Catedral de Colônia, na Alemanha, onde estão até hoje.


Os relatos continuaram controversos com outras figuras. Pôncio Pilatos, cuja mulher se chamava Claudia Procula, sucedeu a Valério Grato depois da deposição de Arquelau ­ no tempo do imperador Tibério César ­ e lavou as mãos na morte de Jesus.

Mas não pôde fazer o mesmo quando, mobilizados por messias anônimo, milhares de samaritanos subiram ao Monte Garazim à procura dos vasos de ouro do tabernáculo que Moisés teria enterrado ali. Para dissuadir a multidão, as tropas romanas perpetraram um massacre, pois, ao contrário de cronistas cristãos que quiseram fazer média com as autoridades romanas, pondo a culpa nos judeus, Pilatos era um homem cruel e sanguinário, segundo os relatos de Fílon.


Vitélio, que governava a Síria, delatou Pôncio Pilatos a Tibério César, que chamou o governador a Roma para explicações do morticínio. Mas o imperador morreu nesse ínterim, e Pilatos, destituído, foi banido para Viena, onde se suicidou no rio Reno.

A presença mais controversa do Natal é, porém, outra: a do Papai Noel, este sim, uma excrescência de exclusivos fins comerciais. O verdadeiro Natal é o do Menino Jesus.

Deonísio da Silva - escritor e Professor - É vice-reitor de Cultura da Universidade Estácio de Sá http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatextoorig.asp?pg=jornaldobrasil_117625/102797- 23/12/2008

domingo, 21 de dezembro de 2008

Sempre é possível reinventar a existência

Pois o homem é o criador de tudo,
diz Nietzsche na obra
A Vontade de Poder
Regina Schöpke*



O conceito nietzschiano de vontade de poder (ou de "potência", para alguns intérpretes) não deixa de ser uma resposta à idéia de "vontade de vida" de Schopenhauer. Nietzsche que, na juventude, foi um entusiasta das idéias desse filósofo, acabou chegando a um pensamento não só diferente, mas contrário, em muitos aspectos, ao de seu "mestre espiritual". De fato, nada é mais oposto à concepção nietzschiana de uma afirmação integral e profunda da existência do que a idéia schopenhaueriana de cessação da vontade, de supressão dos desejos e das paixões. Com relação à "vontade de vida" ou de "viver", como algo inerente a todo ser, Nietzsche a considera um contra-senso, já que o vivo não pode "desejar viver". Não se trata, para ele, de um desejo, de uma ânsia de vida, mas de plenitude, de potência. E potência, aqui, diz respeito a uma vontade vigorosa, a uma vontade que produz, que inventa a própria vida.
Mas, para além do contraponto com Schopenhauer, a vontade de potência é realmente um conceito polêmico. Aliás, é duplamente polêmico. Primeiro, porque ele nos remete a uma obra que nunca chegou a ser escrita por Nietzsche. Segundo, porque essa idéia é profundamente mal compreendida por aqueles que insistem em interpretar esse conceito de uma forma baixa e banal, isto é, como um desejo de dominação, como vontade de obter e de exercer poder sobre os outros.
Com relação à polêmica do livro, é verdade que os fragmentos e os aforismos encontrados na obra intitulada A Vontade de Poder (que está sendo lançada, em uma bela e criteriosa edição, pela Contraponto, com tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e José Dias de Moraes) são mesmo da autoria de Nietzsche. No entanto, não se pode dizer que se trata de uma obra genuinamente nietzschiana. Afinal, não foi o próprio Nietzsche quem selecionou e organizou os escritos e, assim, não podemos saber que partes ele teria desenvolvido melhor ou até mesmo excluído dos inúmeros fragmentos que deixou. O que sabemos realmente é que Nietzsche vinha trabalhando havia alguns anos nessa que era, para ele, a sua obra fundamental, o coroamento de toda a sua filosofia. Infelizmente, ela foi interrompida precocemente pela doença e pela morte.
É claro que isso não quer dizer que os escritos selecionados pela irmã de Nietzsche e por seu amigo Peter Gast (que foram publicados primeiramente em 1901) sejam desprovidos de interesse e de valor filosófico para aqueles que desejam conhecer o pensamento do filósofo alemão. Pelo contrário, do ponto de vista histórico, esse livro é fundamental, até por ter sido responsável por tantas interpretações "ilegítimas" (dentre elas, a de Martin Heidegger, que busca nessa obra - e, sobretudo, no conceito de eterno retorno que o próprio Nietzsche não chegou a sistematizar em profundidade - a confirmação da sua idéia de um "Nietzsche metafísico"). De qualquer modo, não se pode perder de vista que a obra em si, como diz Mazzino Montinari, não existe.
Quanto ao caráter polêmico do conceito, a questão é um pouco mais complexa, porque, de certo modo, contra o próprio Nietzsche, é possível afirmar que não existe uma única maneira de interpretar os fenômenos e as idéias. Nesse caso, é certo dizer que tudo depende das forças que se apoderam dos conceitos e lhes conferem um sentido. A questão, porém, é que todo conceito é datado, é assinado pelo seu criador, como nos mostra bem Gilles Deleuze. Assim, ainda que toda leitura seja - no fundo - uma interpretação, é preciso, quando se deseja compreender como um filósofo pensou seus próprios conceitos, que essa leitura não "desfigure" demais o seu pensamento. E desfigurá-lo, nesse caso, é fazê-lo servir a forças que ele não serve; é fazer o filósofo dizer o que ele não disse ou não poderia dizer sem comprometer todo o seu pensamento.
Entender, por exemplo, a vontade de potência como "vontade que quer o poder'' é desfigurar o pensamento de Nietzsche, já que por esse conceito ele entendia uma força criadora suprema, uma força plástica que imprime, que dá forma, que cria o mundo. Dizer que todo ser é vontade de potência, é dizer que ele é uma força capaz de criar a si mesmo e a sua existência. O próprio mundo é visto como uma grande vontade de potência, que está continuamente se recriando. Não se trata, portanto, de uma vontade que deseja o poder, mas de uma "vontade como poder", como efetuação profunda de si mesma. Nesse caso, o super-homem nada mais seria do que aquele que efetua sua existência de forma plena e vigorosa, e não aquele que deseja dominar os outros ou o mundo.
Indo mais fundo na compreensão dos fragmentos, vemos um Nietzsche realmente disposto a levar às últimas conseqüências o seu projeto de "transvaloração de todos os valores" - o que não se pode dar, como ele próprio afirma, sem uma vitória definitiva sobre a metafísica e o niilismo. Nesse ponto, Nietzsche é categórico: é preciso ir além dessa "vontade de nada" e desse "nada de vontade" que têm sido a expressão da vida humana. É preciso superar, ultrapassar o próprio "homem". E ultrapassar o homem quer dizer curá-lo do seu grande cansaço, dessa doença profunda chamada "niilismo", doença que nasce da impotência, da fraqueza diante da vida (que é exuberante, mas também sombria em muitos aspectos). Na ficção criada pelo próprio homem, ele se acredita senhor da natureza e acima de suas leis, mas diante da crueza do real, ele sucumbe ao desespero e procura se refugiar nos ideais que criou para lhe garantirem alguma esperança. "É preciso proteger os fortes dos fracos", diz Nietzsche, mas os fortes não são os ricos e os poderosos, como interpretam os marxistas, mas aqueles que afirmam a existência, que a desejam tal como ela é, no que ela tem de melhor e de pior.
Em A Vontade de Poder, o niilismo é aprofundado e apresentado em todos os seus matizes: um niilismo que destrói os ídolos, que faz ruir todos os valores superiores, que coloca a existência frente a si mesma, desnuda, esvaziada de um sentido religioso, metafísico, teleológico; mas também um niilismo que leva ao extremo a idéia de que a vida, uma vez perdendo seu sentido superior, não tem mais valor nenhum, não tem importância, não significa nada. Na verdade, a superação do niilismo encontra-se no próprio niilismo, na sua exacerbação, em função do próprio absurdo de a vida chegar a negar a si mesma e a querer o nada.
Para Nietzsche, é preciso recuperar o "sentido da terra", e isso quer dizer simplesmente recuperar o sentido da existência. Para tal, é preciso terminar com a duplicidade dos mundos, é preciso fazer do mundo aparente o único mundo real. É preciso entender que a felicidade está na força e no poder de ação e de criação, e não nas quimeras e nos sonhos delirantes. O homem como o inventor de si mesmo, como o inventor do seu mundo. "O homem como poeta, como pensador, como Deus, como amor, como poder." Se há algo de sublime no homem, diz Nietzsche, é que ele criou todas as coisas e ocultou de si mesmo a lembrança disso. É por isso que é sempre possível reinventar a vida. Aliás, mais do que possível, é necessário e urgente criar novos valores para uma nova existência: uma existência mais forte, mais íntegra, mais digna, mais "real".
*Regina Schöpke, filósofa e historiadora, é autora dePor Uma Filosofia da Diferença (Contraponto)Conceitos Nietzschianos - (Texto do ESTADÃO, domingo, 21 de dezembro de 2008)
VONTADE DE PODER (OU VONTADE DE POTÊNCIA): Impulso fundamental de todo ser, força plástica que cria e recria a si própria e o mundo. Uma aspiração por um "plus" de potência; é desejo e ânsia, não de vida, mas de plenitude, de poder de ação, de afirmação máxima da existência.
SUPER-HOMEM: É o próprio sentido da terra, a encarnação da vontade de poder e dos valores vitais. O super-homem surge com a "morte" do homem, com a superação dos valores reativos e negativos que estão na base da moralidade humana.
ETERNO RETORNO: Teoria dos estóicos gregos (extraída provavelmente de Heráclito, mas já presente em filósofos anteriores e em outras culturas) que defende que tudo sempre se repete, sendo o tempo cíclico e circular. Mas a repetição, em Nietzsche, não é a do mesmo mundo, mas das forças que o engendram. Entende o mundo como devir, como movimento criador contínuo.
NIILISMO: Em Nietzsche, esse conceito diz respeito a uma falsa e ignóbil moral que tira do homem o sentido da vida, que o faz se esconder nas ilusões e nas mentiras enfraquecedoras.
É o nada elevado à condição de existência. R.S.

O ANJO PORNOGRÁFICO

Não sei explicar (quem sabe Freud!?) o porquê as frase irreverentes de NRodrigues chamam a minha atenção e fazem que as divulgue com gosto e sabor... Assim começo o domingo de dezembro. O calor, que também me fascina, já envolve o dia...

"O mundo é a casa errada do homem.
Um simples resfriado que a gente tem, um golpe de ar,
provam que o mundo é um péssimo anfitrião.
O mundo não quer nada com o homem,
daí as chuvas, o calor, as enchentes e toda sorte de problemas que
o homem encontra para a sua acomodação, que, aliás, nunca se verificou.
O homem deveria ter nascido no Paraíso"
(Nel son Rodrigues )

sábado, 20 de dezembro de 2008

Ética é solução para o enlouquecimento do mercado?

Jung Mo Sung *
Adital –
Thomas Friedman, articulista do New York Times, no artigo "A grande explicação desse emaranhado" (publicado pelo O Estado de São Paulo, no dia 19/12/08), diz que a grande crise financeira que explodiu nos Estados Unidos e atingiu a economia de todo o mundo se assemelha muito ao "golpe da pirâmide" aplicado pelo "ex-respeitado" financista Bernard Madoff, que provocou uma perda de cinqüenta bilhões de dólares em todo mundo. Para ele, o golpe de Mardoff "foi apenas ligeiramente mais vergonhoso do que o esquema ‘legal’ que Wall Street conduziu, alimentado pelo crédito barato, parâmetros medíocres e uma enorme ganância".

Após reconhecer que os EUA não aplicou internamente os remédios prescritos para outros países e lamentar a perda do respeito e do prestígio do mercado financeiro norte-americano frente ao mundo, Friedman faz uma afirmação interessante: "Enquanto o capitalismo salvou a China, o fim do comunismo parece ter perturbado os EUA que perdeu os dois maiores concorrentes ideológicos: Pequim e Moscou. Quando o capitalismo americano não precisou mais se preocupar com o comunismo, parece ter enlouquecido".

Não vou discutir aqui a discutível tese de que "o capitalismo salvou a China", mas sim a constatação por parte de um defensor do sistema de mercado livre de que o capitalismo "despreocupado", isto é, sem preocupações que o obrigasse a um certo auto-controle, acabou enlouquecendo. Eu penso que o diagnóstico dele é bastante pertinente, pois uma das causas ou sintomas de loucura é exatamente a perda da diferença entre a realidade e a fantasia, a perda da noção consciente do limite que separa o mundo real e do mundo do desejável ou da fantasia. Noção essa que está na base do auto-controle ou auto-disciplina.

O que nos mantém salvos da loucura é o reconhecimento de que a resistência que o mundo objetivo - o mundo que existe para além da minha imaginação - coloca aos nossos desejos, ambições, ganâncias ou fantasias é, em parte, saudável. Não querer aceitar o princípio da realidade e "tocar os negócios" ou fazer política buscando somente realizar a ganância ilimitada ou poder sem limite é o primeiro passo para neurose e outras insanidades. O problema é que nós preferimos viver somente de acordo com os nossos desejos ilimitados.

Esse modo de viver traz consigo a fé ou falsas certezas de que ao final tudo acabará bem. Na base dessas atitudes ou políticas "despreocupadas" com o futuro encontramos os mitos religiosos ou seculares que dão segurança e tranqüilidade sobre o futuro.

Friedman reconhece que a existência dos países socialistas e a disputa ideológica serviram para manter o capitalismo dentro de um grau de sanidade que evitou grandes loucuras financeiras. Porém, ele não tira disso a conclusão de que a economia global dirigida por uma única lógica econômica, a capitalista, sempre estará em risco destas loucuras. Porque no fundo, ele não pode ou não quer aceitar que este problema de "enlouquecimento" é estrutural ao sistema capitalista de mercado livre; pois, a "missão" de todo empresário é conseguir o máximo de lucro para a sua empresa e os seus acionistas, e a dos executivos é maximizar os seus salários e bônus através da maximização imediata dos lucros.

Como não pode reconhecer o problema estrutural do capitalismo sem concorrentes político e ideológico, ele diz que "não precisamos de um pacote de ajuda financeira; precisamos de uma ajuda ética, restabelecer o equilíbrio básico entre nossos mercados". Parece que está na moda pedir ajuda à ética ou propor ética como caminho de soluções para crises econômicas e ambientais.

Apelar para ajuda ética não soluciona problemas estruturais, mas serve para maquiar algumas reformas e manter o sistema estruturalmente intacto. Isto é, apelando para ética, ele desvia atenção das reformas estruturais necessárias para a sustentabilidade social e ecológica da economia mundial. Além disso, este tipo de discurso consegue atrair a simpatia dos setores da sociedade e das igrejas que reduzem tudo a uma vontade ou reforma ética; sem perceber que problemas estruturais não são solucionados somente com bons desejos ou boas intenções éticas.

* Professor de pós-grad. em Ciências
(Autor, entre outros, de "Se Deus existe, por que há pobreza?", Ed. Reflexão).
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=36609 - 19/12/2008.

Nascendo de novo numa era mortal

Aos 70 anos, Leonardo Boff ainda se inquieta
com caráter descuidado e egoísta da atualidade
Cristine Gerk e Marsílea Gombata
"O ser humano está descuidado e sem visão de totalidade." Ao completar 70 anos, Leonardo Boff se inquieta mais do que nunca com o rumo que o planeta segue no início deste século. Autor de mais de 60 livros, nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, esse defensor dos direitos humanos de fama internacional diz se ver mais próximo de concluir seu processo de nascimento com o passar do tempo, diferentemente da maioria, que se sente mais perto da morte. Nesta entrevista ao Idéias, o professor da Uerj mostra suas impressões sobre a atualidade e alerta: "Não temos como ganhar a guerra que estamos travando contra a Terra".

O que falta para a humanidade conseguir orquestrar filosofia, ética e ecologia? Para qual direção estamos caminhando? ­
Para responder a esta questão devemos ir à raiz do problema, que reside no fato de que a humanidade perdeu o sentido de totalidade, o sentimento de que nós, seres humanos, pertencemos a um todo maior: primeiro à natureza, depois à Terra, por fim ao cosmos. Essa era a visão dominante na história da humanidade e ainda presente nos povos originários, como os indígenas. Estes se sentem filhos e filhas do Sol e da Lua, parte da natureza, em comunhão com as energias das águas, das montanhas, do fogo e de outros elementos naturais. Vivemos num mundo compartimentado, fruto da leitura científica moderna, nascida com Descartes, Galileu Galilei, Francis Bacon, Newton, entre outros. Eles separaram o que está sempre unido e matematizaram as relações com a natureza no afã de melhor dominá-la. Perdemos aquilo que as religiões sempre nos deram: o sentido da religação de tudo com tudo e com a Fonte de todos os seres. O oposto à religião hoje não é o ateísmo ou a arreligião, mas a falta de conexão com a realidade e a perda da capacidade de identificar o fio condutor que une e re-une todos os seres para formarem um cosmos e não um caos. Eis o efeito da razão instrumental-analítica que operou em nós uma espécie de lobotomia. Não sentimos mais as coisas, não captamos a mensagem que nos vem da luz, da noite, do céu estrelado, do olhar inocente da criança, da mão estendida do faminto, do olhar suplicante do ancião abandonado na rua. Para resgatar o sentido de totalidade, precisamos enriquecer a razão calculatória com a razão sensível e com a razão cordial, que constitui a dimensão mais profunda de nossa realidade humana e que nos faz sensíveis a valores e nos devolve a percepção do sagrado do mundo e do respeito a cada ser, especialmente ao ser humano. O excesso de razão produz a irracionalidade, que pode provocar o colapso da espécie e do projeto planetário humano.

Que tipos de cuidado o homem está deixando de ter? ­
Há uma carência generalizada de cuidado no mundo. Se partimos da concepção filosófica de que o cuidado é parte essencial do ser humano e mesmo da estruturação do universo (a calibragem sutil de todas as energias e elementos primordiais que permitiram que o mundo chegasse ao que hoje é), então estamos sofrendo um estado altamente desumanizado de relações em qualquer campo. Mais que tudo, não temos cuidado para com a vida em todas as suas formas.

Na verdade, não amamos mais a vida, pois a submetemos a tantos riscos, a manipulamos em função da acumulação e dos negócios nos mercados e ofendemos tão duramente sua dignidade intrínseca que nos tornamos cruéis e sem piedade. Temo que Gaia, a Terra entendida como um superorganismo vivo, se defenda de nós, eliminando-nos, como eliminamos uma célula cancerígena. Pois é isso que nos tornamos em relação a todas as demais espécies. Estamos em guerra declarada contra Gaia, atacando-a em todas as suas frentes. E não temos condições de ganhar esta guerra. Gaia poderá existir sem nós, como existiu durante quase toda a sua existência de 4,5 bilhões de anos.

Com quais olhos você vê o futuro da humanidade?
Com pessimismo ou otimismo? ­ - Sinto-me perplexo face às contradições da realidade, especialmente agora que estamos no coração de uma crise que atingiu os fundamentos do sistema e da cultura do capital. Gastamos de US$ 3 a 4 trilhões para salvar o sistema financeiro, especialmente os bancos, que nos enganaram, prometendo-nos ganhos que se mostraram agora ilusórios. E se gasta apenas alguns milhões, no máximo 2 a 3 bilhões para enfrentar o aquecimento global e salvar o planeta. Continuamos sob o domínio da irracionalidade e da insanidade, que nos levarão a situações de sofrimento e de pena para o sistema da vida, especialmente para os pobres. Concordo com Hegel, que escreveu: da História aprendemos que não aprendemos nada da História, mas que aprendemos tudo do sofrimento. Iremos ao encontro de grandes padecimentos. Quando a água chegar ao nosso nariz, saltaremos como loucos para nos salvar. E nos salvaremos, mesmo pagando alto preço pela falta de cuidado. Mas prefiro crer em Santo Agostinho, que dizia: aprendemos sim do sofrimento, mas muito mais do amor. Pois esse nos transforma e nos faz inventar mil meios para estar junto da pessoa amada. Então, acho que devemos amar o mais que pudermos a Mãe Terra, cada de seus seres, para sofrer menos e criar condições de futuro a todos.

Qual o papel da teologia hoje? ­
Há dois tipos de teologia: uma para cristãos e outra para pagãos. Para os cristãos, trata-se de aprofundar a proposta da revelação bíblica aceita pelos crentes, usando a razão, imbuída de afeto e amor. Eles têm direito de conferir racionalidade e expressão arquitetônica a sua fé para que ela possa ser internalizada e feita projeto de vida. Para os pagãos, trata-se de mostrar, também com o recurso da razão, sensível às boas razões presentes na proposta bíblica, como ela representa sentido para a vida humana, junto a outros portadores de sentido, e também como ela fortalece o princípio de esperança atuante em cada pessoa, pois todos somos feitos de utopias, ideais. Como a maioria dos cristãos não conhece sequer minimamente os conteúdos de sua fé, é dominante hoje a teologia para os pagãos-cristãos e para os pagãos-pagãos. No seu sentido mais direto, cabe à teologia pensar a presença de Deus na história humana e testemunhar que Deus não é somente o mistério insondável que de fato é, mas um mistério pessoal para o qual não é indiferente que os oprimidos se libertem, os famintos comam, os injustamente condenados recebam sua justiça e todos vejam realizado o desejo radical do ser por uma vida sem fim. Igrejas e religiões são mediações para que isso aconteça e espaços nos quais se pode fazer essa reflexão e não instituições com fins em si mesmas que tentam substituir Deus com ritos e manter presos fiéis nos limites de seu mundo.

O senhor fez 70 anos. Como encara o desafio da "velhice"? ­
Com 70 anos sou oficialmente velho. Mas não entendo a velhice como um fenômeno meramente biológico, um lento colapso do capital vital, mas como a última chance que a vida me dá para continuar a crescer, a melhorar e finalmente acabar de nascer, já que um dia comecei, continuei a nascer e agora importa concluir esse processo. Meu fim biológico será o começo de meu completo nascimento. Vejo com serenidade o pouco futuro que me resta. Anseio pelo encontro com a Suprema Realidade, que tranqüilizará meu coração e responderá a tantos porquês para que não encontrei resposta e que só Ele pode responder, porque conhece o sentido secreto dos bilhões de anos de lenta e penosa evolução rumo a um Reino no qual tudo será amoroso, transparente, verdadeiro, justo, belo e prazeroso.

>> Perfil
Nascido em Concórdia (SC), em dezembro de 1938, doutorou-se em teologia, filosofia, em 1970, em Munique. Foi ameaçado por autoridades de Roma, em 1992, renunciou às atividades de padre e se auto-promoveu ao estado leigo, o que chama de "mudar de trincheira para continuar a mesma luta".
Professor da Uerj, Boff é também doutor `honoris causa' pela Universidade de Turim, na Itália


http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatextoorig.asp?pg=jornaldobrasil_117622/102565 20/12/2008

POESIA: tem quem não goste

Leandro Konder

A POESIA CORRESPONDE a uma profunda necessidade humana. Sempre podem ser encontradas pessoas que, em nome do bom senso e do saudável espírito pragmático, declaram que não têm interesse algum pela poesia. Devemos respeitar-lhes o mau gosto, a falta de sensibilidade. Com paciência, entretanto, talvez seja possível dar-lhes uma leve idéia do que estão perdendo.

Em seus primeiros desenvolvimentos, a linguagem dos caçadores da idade da pedra refletia a necessidade de movimentos coletivos. Nossos remotíssimos antepassados dependiam de ações sincronizadas para enfrentar animais grandes ou velozes. Podemos supor, então, que a linguagem deles era orientada pela busca de uma objetividade cada vez maior.

Sabemos, porém, que a dimensão subjetiva do medo e o esforço de superação das limitações individuais estava lá desde o início. As "almas" das pessoas não tinham como subestimar as criações coletivas, os valores do "grupo", venerado como um ser superior, transcendente, uma força pertencente à esfera do divino. Quando se defrontavam com essa transcendência, os caçadores, os pescadores davam passos importantes na direção de mudanças na linguagem.

A linguagem pragmática do mundo do "trabalho" cedia espaço à linguagem simbólica da religião. As artes e a literatura não só registraram essa modificação como participaram ativamente dela. Na Grécia antiga, a religião (a mitologia) foi posta no palco. O teatro em Atenas falava a linguagem da poesia. Os gregos viveram mais intensamente do que os seus contemporâneos a descoberta de que não existe ­– nem pode existir ­– uma linguagem única, capaz de abranger toda a inesgotabilidade da nossa condição humana. Uma linguagem comprometida com a objetividade, com a exatidão científica, é imprescindível a nosso conhecimento do mundo e de nós mesmos. Uma coisa, porém, é a secura de um informe, o levantamento de dados de um acidente ou de um assassinato. Outra coisa é o uso de recursos artísticos, literários, para aproximar o interlocutor do que foi vivido e arrebatadoramente sentido pelo outro.

Esse é o desafio enfrentado pela poesia. Os poetas escrevem textos que não poderiam ser escritos de outra forma. Há 2500 anos, em Antígona, Sófocles escreveu um poema irretocável. Peço licença para traduzí-lo. (Tenho em algum lugar de casa uma tradução feita por Millôr Fernandes, mas não consegui encontrá-la):

"Há muitas coisas maravilhosas no mundo, mas nenhuma é maior do que o ser humano. Ele sabe atravessar o mar cinzento, aproveitando o vento sul e passando pelos abismos de ondas gigantescas. Rasga e atormenta a mais venerada das deusas, a Terra. Eterna e incansável, ela suporta seus arados e ele, além da colheita, com suas redes, captura os peixes. O ser humano é um inventor engenhoso; domesticou o animal selvagem; o cavalo de longa crina e os touros da montanha. Com a palavra, seu pensamento é veloz como o vento. A se proteger do temporal e do granizo, que castigam rudemente os que não têm outro teto que não o céu. Bem armado contra tudo, menos contra a morte. Nunca terá o poder mágico de escapar dela. Se bem que ele já conseguiu descobrir remédios contra algumas doenças, as mais pertinazes.

Esse poema, para mim, não é só um manifesto humanista, daqueles que são suspeitos de pecar por otimismo, mas acabam nos despertando simpatia. Vejo na tragédia de Antígona, filha de Édipo, contada por Sófocles, a serena confiança do poeta no futuro da poesia.

Desconfio que a poesia teve, na história da humanidade, dois momentos de glória incontestável. O primeiro ­– que o historiador inglês Gordon Chillde chamou de "revolução neolítica" ­– na passagem da pré-história à história, a invenção da agricultura, o fim do nomadismo, o início do trabalho com metais, as mudanças na linguagem.

O segundo momento é, digamos, recente: é a revolução industrial, a consolidação do domínio burguês. A organização da vida social em torno do mercado gerou um clima de hipercompetição. Uma onda de violência começou a varrer a Europa e o mundo. Poesia rebelde (e rebeldia poética) participarão decisivamente da batalha final. Os que não gostam de poesia ficarão com a leitura dos discursos dos que não riem e estão sempre ocupados em convocar suas "tropas" para ­ prosaicamente ­ atacar a esquerda. Tem gente que gosta.

Madonna e madonas medievais

JOAQUIM ZAILTON BUENO MOTTA


A famosa cantora e atriz Madonna está circulando pela América Latina. Em São Paulo, faz hoje o penúltimo show.

Aos 50 anos recentemente completados, prossegue como figura polêmica e impactante, pois acessa alguns núcleos de conflito moralista onde quer que se apresente.

Nas nações sul-americanas, o maior reflexo reacionário foi o do Chile. Semana passada, logo que desembarcou no solo andino, foi criticada por dom Jorge Medina, cardeal emérito chileno e ex-presidente da Congregação da Doutrina da Fé do Vaticano. Como elevada autoridade religiosa, o eminente clérigo tem opinião importante e decisiva para a maioria católica da América do Sul.

Textualmente, a mídia divulgou o comentário do cardeal, realizado durante uma missa: “Estes dias estão bastante agitados em nossa cidade porque está chegando essa mulher que, com um atrevimento incrível, provoca um entusiasmo louco, que é um entusiasmo de luxúria. Os pensamentos de luxúria, os pensamentos de impureza (...) são uma ofensa a Deus e uma mancha, uma sujeira no nosso coração”.

Essa observação lembra as lendas do súcubo, demônio em forma de mulher que seduzia os homens (especialmente monges) e revive toda a tradição católica impregnada de moralismo e machismo que associa a mulher a uma pecadora carnal.

Também nos remete para a Baixa Idade Média, período compreendido entre os séculos 11 e 15, em que a sociedade era dominada pela Igreja Católica — os bens culturais que restaram na Europa ficavam sob a guarda dos monastérios.

O clima medieval se sustentava pela Inquisição e sua forte repressão sexual. A ciência e a arte seguiam atreladas a essa castração.

No início do século 16, esboçava-se o Renascimento. A Europa fervilhava de iniciativas e novidades que repercutiriam decisivamente mais tarde, já na aproximação do século 17. Mas o domínio católico persistia: naquela época, um súcubo esculpido no exterior de uma estalagem indicava que o estabelecimento funcionava também como um prostíbulo.

O pintor italiano Rafael alcançava o auge de seu trabalho enquanto surgia o Renascimento. Uma das suas obras maiores foram as madonas (uma delas é muito usada em santinhos). Leonardo da Vinci, seu contemporâneo mais influente, legou-nos a sua: a extraordinária Mona Lisa, terminada em 1507.

Saltando meio milênio, deparamos com Madonna apresentando um show impecável, de apurada tecnologia artística. Profissionalmente forte e talentosa, ela tem vários sucessos da música pop e um prêmio no cinema como Evita.

Aliás, em Buenos Aires, há uma quinzena, os argentinos a saudaram freneticamente, esquecidos de que muitos não concordavam que ela interpretasse a madona peronista.

Se realmente ela pretende polemizar, se porta um crucifixo combinado com lingerie como provocação, se um dos seus irmãos fez uma biografia vingativa, se é uma celebridade conhecida em todos os cantos do mundo, o que importa?

Hoje, o conceito de pessoa célebre é esdrúxulo e tolo. Idolatrar alguém, acompanhar seus passos para registrar fofocas, valorizar qualquer coisa que ela diga não passa de bobagem.

Por outro ângulo, quando vemos condutas reacionárias e conservadoras, especialmente das religiões, não há como concordarmos, só podemos respeitá-las como opiniões.

A verdadeira decência não está na castidade ou nas roupas vestidas. Estas, muitas vezes, favorecem as máscaras da hipocrisia e a impostura.

Os verdadeiros pecados não são sexuais. Só a pedofilia e o estupro merecem tal condenação, bem como a corrupção, o crime, a mentira, os exageros do capitalismo selvagem.

O sexo adulto, consensual, seguro e o erotismo artístico são virtudes humanas próximas do amor.

A arte de Madonna não se eternizará como a de um renascentista, mas ela criou uma “santa malícia”, ressuscitando a sexualidade do mundo sagrado, prestando enorme favor à humanidade.
Na Antiguidade, indica Georg Feuerstein, os templos eram também palcos do amor erótico.

Boas festas aos leitores!


Interajam no GEA (Grupo de Estudos sobre o Amor) através do site: http://www.blove.med.br/.

*Joaquim Zailton Bueno Motta é médico psicoterapeuta e sexólogoE-mail: jzmotta@uol.com.br
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.aspnoticia=1612398&area=2190&authent=82034C4FD67332BA9174DDEEE10A28/20/12/2008

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Idade e Alienação


Pouca idade nem sempre significa alienação
É privilégio, ou possivelmente maldição, de cada nova geração ser diferente da anterior. Mas poucas vezes uma linha divisória entre gerações foi tão perceptível quanto a que separa as pessoas com 20 e poucos anos e os nascidos na explosão de natalidade após a Segunda Guerra Mundial.

Essa é a tese de Don Tapscott, professor de administração na Universidade de Toronto e autor, há uma década, de "Growing Up Digital: the Rise of the Net Generation". Em seu novo livro, ele argumenta que os administradores empresariais precisam buscar compreender a "geração internet", agora um fato concreto..

Com muita freqüência, diz ele, a geração que cresceu com a internet é menosprezada por empregadores, por que seria mal informada, sem foco, pouco lida e narcisista. Mas com uma pesquisa - que consumiu US$ 4 milhões e envolveu milhares de entrevistas com jovens de 16 a 19 anos em 12 países -, e programas de entrevistas comparativas com gerações anteriores, Tapscott e sua equipe chegaram a uma visão diferente.

A geração internet, observa ele, foi alimentada com uma dieta de mídia muito mais diversificada do que seus pais, que, nos Estados Unidos, assistia em média a 22 horas de televisão por semana em sua juventude. A geração internet, diz ele, tem acesso a tantas mídias concorrentes, que é mais provável que passe seu tempo em casa diante de computadores, interagindo simultaneamente com diversas telas, ao mesmo tempo que conversam ao telefone, ouvem música, fazem sua lição de casa e lêem.

Essa geração "tudo em um" não pode ser definida como participante de aprendizagem passiva. "Eles são ativos criadores, colaboradores, organizadores, leitores, escritores, autenticadores e até mesmo estrategistas. Não apenas observam, como participam. Questionam, discutem, argumentam, jogam, fazem compras, criticam, investigam, ridicularizam, fantasiam, buscam e informam".

A informática está moldando suas mentes de uma maneira distinta, escreve Tapscott. Diferentemente de suas antecessoras, que absorvem informações seqüencialmente, a geração internet "brinca" com informações - clicando, cortando, colando e criando vínculos a material interessante. "Eles desenvolvem mentes hipertexto", nas palavras de William Winn, diretor do Centro de Aprendizagem no Laboratório Tecnológico de Interface Humana da Universidade de Washington.

Esses comportamentos, escreve Tapscott, significam que essa nova geração está bem equipada para operar com informações. Ele cita pesquisas realizadas pela dupla de cientistas, pai e filho, dedicados ao estudo do cérebro, Stanley e Matthew Kutcher, para quem as práticas de "escaneamento" dos jovens estão desenvolvendo seu potencial para o pensamento analítico.

Henry Jenkins, diretor do programa de estudos comparativos de mídias no Instituto de Technologia de Massachusetts (MIT), também é citado. Ele acredita que a denominada "imersão digital" pode estar estimulando uma nova forma de inteligência que é fortalecida por meio de colaboração com outras pessoas e máquinas.

Contestando a metodologia do currículo escolar convencional, Tapscott argumenta que, embora continue sendo importante que as crianças tenham um bom conhecimento básico, certos detalhes são menos importantes numa época em que podem ser acessados instantaneamente na web. Essa é uma tese controvertida, com conseqüências de largo alcance para a maneira como os jovens são ensinados e empregados. Mas o livro visa atacar frontalmente os preconceitos contra a internet.

Sua conclusão é de que "a garotada está bem". Os melhores administradores e educadores compreenderão que há muita coisa que podem aprender com esse segmento populacional, e vice-versa. Devem, inclusive, "repensar a autoridade", permanecendo abertos para ouvir os jovens. Outras recomendações incluem incentivar os funcionários a escrever blogs e evitar interdições ao acesso a sites de redes sociais. Em vez disso, os administradores deveriam desenvolver maneiras de domar essas tecnologias para promover melhor colaboração.

O livro é uma perspicaz antítese à arraigada, e por vezes alarmista, oposição a comportamentos influenciados pela internet. É para ler ao lado do computador, escaneando, fotografando e anotando-o, como adição ao conhecimento via internet que está revolucionando nosso mundo.
O Livro: "Grown Up Digital - How the Net Generation is Changing Your World" - Don Tapscott. McGraw-Hill. 384 págs. US$ 27,95

(Tradução de Sergio Blum)
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?tit=Pouca+idade+nem+sempre+significa+alienação&dtmateria=18/12/2008&codmateria=5327129&codcategoria=91

Madonna e a Cabala


Moacyr Scliar
“Madonna não estava sozinha nessa escolha:
acompanhavam-na o então marido, Guy Ritchie,
a cantora Britney Spears,
a atriz Demi Moore”

Apesar da crise, um fim-de-ano para ninguém botar defeito: Ronaldo no Corinthians, Roberto Carlos e Rita Lee juntos no palco e, claro, Madonna, uma turnê mais esperada que a de Frank Sinatra, que durante anos prometeu vir ao Brasil (e no final veio mesmo). É a glória dos veteranos, sobretudo a glória de Madonna que, aos 50 anos, não cessa de surpreender os fãs. Isto aconteceu inclusive quando ela aderiu à Cabala, corrente mística judaica que inclui uma peculiar concepção do universo e uma curiosa numerologia, baseada no fato de que, no hebraico antigo, havia uma correspondência entre letras e números. Assim, o número 18 era um número da sorte porque corresponde às letras que formam a palavra “hai”, vida.
Num caso, ao menos, a regra não funcionou. Estou falando do tradicional Esporte Clube Cruzeiro (de Porto Alegre, não de Minas) um time pequeno que tinha, segundo o folclore porto-alegrense, 18 torcedores (incluindo este colunista e seu pai). Apesar do número da sorte, o Cruzeiro nunca ganhou um campeonato, para desgosto dos 18. De qualquer modo, a Cabala sempre teve adeptos, sobretudo, como observa Gershom Scholem, grande estudioso do tema, no fim da Idade Média, quando a modernidade bagunçou velhas crenças e estruturas. É nesse momento que a ciência se associa à magia; astrologia e astronomia estão juntas, bem como a química e a alquimia. A Cabala difundiu-se enormemente, tanto entre judeus como entre cristãos.
É difícil dizer por que Madonna tornou-se crente da Cabala, mas ela o fez para valer, doando enormes quantias para uma “casa de acolhimento” de adeptos da Cabala em Londres e para uma escola cabalista. Começou a usar um bracelete que supostamente funcionaria como amuleto e a freqüentar um centro cabalista na Califórnia, um estado que, como se sabe, tradicionalmente atrai cultos e seitas os mais estranhos. Segundo rabinos praticantes da Cabala, o centro não passaria de vigarice.
Madonna não estava sozinha nessa escolha: acompanhavam-na o então marido, Guy Ritchie, a cantora Britney Spears, a atriz Demi Moore. Aliás, é antiga a associação de Hollywood com movimentos místicos e religiosos. John Travolta, Lisa Marie Presley (filha de Elvis), Isaac Hayes, Tom Cruise e outros fazem ou fizeram parte do “Centro de Celebridades”, ligados à Cientologia, uma “filosofia religiosa” criada pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard e que inclui crença em vidas passadas e na imortalidade (nada a ver com a ABL).
Pergunta: o que leva pessoas ricas e famosas a procurar apoio em práticas, digamos, heterodoxas? Talvez isso resulte de uma inquietude espiritual; talvez, como mencionam matérias publicadas na mídia americana, seja até uma forma de promoção pessoal. Mais provavelmente, porém, trata-se de insegurança pura e simples. Fama é uma coisa tão inconstante como a Bolsa de Valores, cujas cotações, em matéria de segurança, nunca chegam aos pés dos números cabalísticos. A insegurança quanto ao futuro — quem hoje está por cima amanhã pode estar por baixo, quem hoje faz manchetes amanhã talvez esteja olvidado — faz com que pop stars agarrem-se a qualquer crença, a qualquer guru. Mais que isso, precisam trocar essas crenças e esses gurus como quem troca de roupa. Ou de bracelete, cabalístico ou não.

*Moacyr Scliar, escritor ecolunista quinzenal/Correio Braziliense
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 19/12/2008

Sacerdotisa, cardeal e bispos


Gaudêncio Torquato
Sob pesadas nuvens que escondem seus contornos, os horizontes de 2010 costumam ganhar o alcance da vista todas as vezes que os oráculos dos tempos modernos — as pesquisas de opinião pública — levantam os véus do futuro para satisfazer a insaciável sede do ser humano de saber se os deuses deixarão mais aberta ou mais fechada a rota de seu destino.
Para provar que não temos nada a dever aos gregos antigos, o País acaba de ver entronizada sua profetisa, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, elevada ao templo de Oráculo pelo senador José Sarney, que, debaixo do fardão de imortal da Academia Brasileira de Letras, usa a prerrogativa da liberdade poética para batizá-la como “sacerdotisa do governo”.
Para entender melhor a nova qualificação da ministra, candidata in pectore de Lula à sua sucessão, lembremos que, nos idos da Grécia antiga, a sacerdotisa, mulher de vida irrepreensível, era escolhida para se comunicar com os deuses e trazer respostas aos consulentes sobre seu futuro, o da sua família ou da sua pátria. Sem sabermos por que o senador Sarney preferiu nomear Dilma pitonisa, em vez de guerreira, como Joana d’Arc, ou mulher do Brasil Nação, como é conhecida Anita Garibaldi, importa, agora, analisar as retas e curvas no caminho da ministra. Vale lembrar que a pesquisa Datafolha da semana passada a colocou num espaço de 7% a 12%. Trata-se de uma pontuação até desejável. A tendência recorrente em disputa eleitoral é de crescimento lento e gradual de quem está atrás e declínio de quem está muito na frente, quando a foto flagra pré-candidatos em ocasiões distantes do pleito.
Voltemos à simbologia grega do senador Sarney. A região do templo de Delfos era dominada por uma monstruosa cobra Píton, que impedia alguém de passar. Mas Apolo, desafiando a serpente, derrotou-a em vigoroso combate, depositando seus ossos no solo abaixo do Oráculo. Ora, há uma Píton — que recebeu de Lula o nome de “marolinha” — a impedir que a ministra Dilma chegue ao templo de Delfos, ou melhor, ao Palácio do Planalto, um dos lugares cobiçados pelos também pré-candidatos tucanos José Serra e Aécio Neves. Digamos que Lula, no papel de Apolo — encenação que toparia fazer com gosto —, domine o bicho, mesmo que este seja tão impetuoso como a “pororoca”. Sob esses louros, a premonição lulista de que fará o sucessor poderá não dar com os burros n’água, como ocorreu com a promessa de eleger Marta Suplicy prefeita de São Paulo.
Há, porém, um cardeal de reza forte que pretende orar no templo do Planalto. José Serra carrega densidade conceitual maior que a da sacerdotisa Dilma, fruto de experiência política e administrativa longa e profícua, e perfil em elevação pelo desempenho à frente do Estado mais poderoso da Federação. É evidente que as ondas (da marolinha ou da pororoca?) puxarão seu corpo para cima ou para baixo das águas eleitorais. Se a crise acarretar estragos, a ponto de mexer com o bolso dos consumidores, o clima de desconforto social deverá ampliar o eco do discurso oposicionista. Quanto menos devastação a crise provocar, Apolo e sua pré-candidata terão melhores condições de ensaiar a ópera da grandeza brasileira, cantando a letra cívica de que não se mexe em time que está ganhando. Serra simbolizaria mudança nas regras do jogo e, com a trombeta do antilulismo/petismo, poderá canalizar energias e mobilizar platéias adormecidas. O desafio que tem é o de segurar o alto índice de 41% que a pesquisa hoje lhe confere.
Aécio Neves e Ciro Gomes são outros nomes aferidos pelo mesmo levantamento. Como bispos da missa presidencial — e não entra aqui juízo de valor, apenas um registro semântico/simbólico em comparação com os outros —, sua participação na cerimônia dependerá do processo de seleção dos candidatos da situação e da oposição. Aécio carrega a leveza da jovialidade, a fala da convergência, administrando com sucesso o segundo maior colégio eleitoral do País. Ciro figura na planilha alternativa de Lula, sendo mais uma interrogação do que afirmação. É, por enquanto, um bispo sem diocese. Quanto a Heloísa Helena, essa, sim, com jeito de Joana d’Arc, o que se pode prever é uma performance confinada aos parcos recursos e ao estreito palco de seu PSOL.

* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1612154&area=2190&authent=4CEDA2611ABFF2747F9AF3222DCAE6

O brilho da esperança


IVO LIMA
Você pode ser luz no fim do túnel
Aerosmith

O cenário mundial nos oferece inúmeras razões para desacreditarmos numa vida melhor, cuja armadura seja revestida de amor, justiça e compreensão entre homens e mulheres, superando o muro das desigualdades; o preconceito torna a convivência humana muito difícil, espalhando atitudes e ações que só fazem aumentar as agressões verbais e físicas entre as pessoas, por causa da cor de sua pele ou por outras razões.
Enquanto bilhões de dólares continuam sendo investidos para dar seqüência aos processos de guerra, os efeitos colaterais da estupidez dos homens gera uma crise que se alastra mundo afora e o ônus é de todos os países, penalizando, como sempre, as nações com maiores dificuldades econômicas, fruto de suas trajetórias que remontam a décadas de sofrimento e muita luta para conquistarem sua independência e soberania.
A natureza continua varrendo violentamente muitas regiões do Planeta, com furacões, tempestades, seca arrasadora, deixando para trás um rastro de destruição e de calamidade pública, desafiando as autoridades e cada ser vivente do planeta Terra. Esses fenômenos soam como um sinal de alerta de que está apenas começando o drama que a humanidade começa a enfrentar na sua relação com a natureza.
Os estudos referentes às agressões ao ambiente comprovam, sem sombra de dúvida, que o resultado de muitos problemas que estamos enfrentando é também em função das modificações que o próprio homem está fazendo com a natureza, a partir do paradigma: devastação, desenvolvimento, lucro, ambição e descompromisso com o Planeta e com as futuras gerações. O “deus” lucro não leva em conta as sementes das tragédias que ele semeia mundo afora, porque seu objetivo é tirar o máximo proveito possível das riquezas que a terra oferece, e não conta se são riquezas naturais renováveis ou não.
É nesse cenário, pintado com as cores da guerra, com uma crise de grandes proporções, que já mostra seus efeitos terríveis pelo mundo, de intolerância, de violência urbana e rural, que aterroriza a todos, da natureza que reage como fera ferida, nivelando ricos e pobres, países desenvolvidos aos mais atrasados da face da Terra, que as luzes do Natal começam a brilhar novamente, trazendo no horizonte um raio de esperança em meio à escuridão que cega a humanidade num mar de ignorância, sofrimento e desencanto.
Por onde andamos, vemos as pessoas investirem algum dinheiro no campo e na cidade, para tornarem o ambiente mais iluminado, porque, atrás dessa luz, o ser humano parece gritar desesperadamente por paz, justiça, um mundo de amor e compreensão entre seus habitantes que, seduzidos pelo egoísmo, aliados à indiferença, adeptos da inveja e da ambição, tornam a convivência entre os povos uma verdadeira Torre de Babel e “salve-se quem puder”.
Independentemente da opção religiosa ou não, classe social, cor da pele, profissão, o que podemos aprender nesse período de festas que se aproxima? Além de nos tornarmos consumidores vorazes, atordoados pelas vitrinas sedutoras, imaginando como será a mesa farta que vamos preparar, os presentes que vamos dar ou receber, a viagem que estamos planejando, é importante ter em vista a realidade que nos cerca e nos coloca frente à frente, porque o “eu que sem o outro não se vê” jamais sonhará com um mundo melhor, ou seja, um mundo possível.
Se não ficarmos só contemplando a beleza das luzes, usar os enfeites das festas natalinas só para manter as aparências, esbanjar euforia vazia de humanidade, o período das festas de final de ano vai nos trazer alegria — verdadeira felicidade — aproveitar a oportunidade para, além do tradicional balanço do ano, depositar nossa gratidão no altar da vida, porque soubemos repartir aquilo que temos e o que somos.
Com esses sentimentos de gratidão e partilha, quero saudar cada profissional e leitor deste jornal, que me acompanharam durante este ano, e desejar:
feliz Natal e próspero ano novo.

*Ivo Lima é professor de Filosofia e escritor, autor do livro O Recheio que Faltava em Sua Vida. Correio Popular, Campinas, SP, 19/12/2008

Sonho de Natal

José Sarney

O calendário marcado pelos dias gloriosos do ano e a vida cotidiana ajuda os cronistas. Como fugir dos sinos do Natal, que têm os sons das lembranças de todos os natais, tantos quantos a nossa vida? São memórias que vão desde a infância, nas sombras cinzas das lembranças daquele interior perdido nos campos verdes do Maranhão, quando íamos à igreja louvar o nascimento de Deus, seu filho, cujas sandálias João Batista dizia ser indigno de desatar, até a madurez da reza em comum com a família, lendo o Evangelho de São Marcos, que descreve o que aconteceu na manjedoura de Belém.

Não me recordo de Papai Noel em Pinheiro, onde nasci, nem em São Bento, onde vivi a minha infância, quando descobri as cores e meus olhos viram desde os pássaros voando em bando sobre os campos de arroz brabo até o corredor dos retratos, onde aqueles velhos barbudos e senhoras de vestidos rodados contavam a decadência da família Araújo.

Depois, a primeira lembrança de Papai Noel, quando ele me enganou. Minha irmã convencera-me de que ele ia trazer um cavalo e ele me deixou debaixo da rede um tambor pintado em xadrez preto, vermelho e branco e um pedaço de pau para tocá-lo, levando-me a azucrinar os ouvidos dos meus avós e fazendo-me mais feliz do que se no meu quarto estivesse o mais belo poldro alazão.

Mas o Menino deitado em palha de arroz com os braços abertos e olhinhos castanhos sempre me trouxe a mensagem de ser meu amigo e irmão, filho de minha mãe e neto de minha avó, que chamava Madona.

Novos natais eram de reza, chocolate e bolo de mandioca. Fiquei horrorizado quando, já homem, soube que existia em Ax-les-Thermes um Evangelho das Rocas que era lido por um ancião letrado “durante as longas noites de inverno entre o Natal e a Candelária; era um livro sobre sexos, casos de amor, relações entre marido e mulher, superstições”. Século 15 e as mulheres em volta repetiam a leitura em voz alta, com grande alegria. A Inquisição levou à fogueira muita gente desse divertimento tido como pecaminoso, embora Jesus não tenha tido tempo para tratar dessas coisas menores, entregue a César, como o dinheiro. Ele não viu pecado na carne. Foi São Paulo quem inventou estar o Diabo na saia das mulheres.

Fiquei com a crença de que esse velho antigo, que lia evangelhos apócrifos e eróticos para aquelas pudicas velhas que fiavam rocas, podia ser Papai Noel.


Outro dia, um amigo meu quis testar minha capacidade de crer e perguntou-me se eu acreditava que os americanos iam sair do Iraque enquanto existisse ali uma gota de petróleo. Respondi que sim. ­
-E em Papai Noel? ­
- Mais ainda. ­
E o que é Papai Noel?
É um sonho de solidariedade que o homem construiu e, como diz Borges, só há uma coisa eterna, é o sonho.

*Ex-Presidente da República, escritor.
http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/zomm.asp?pg=jornaldobrasil_117621/102288