domingo, 31 de maio de 2009

De excrementis diaboli

Rubem Alves*
Segundo os que acreditam em vidas passadas, eu já devo ter sido papa ou cardeal. E isso porque, vez por outra, sinto um impulso irresistível para escrever encíclicas. Pois o tal impulso irresistível para escrever encíclicas está me atacando de novo, e já tenho pronto o esboço da próxima, intitulada De excrementis diaboli.
Tudo começou num piquenique com um bando de amigos na serra do Japi. O Adriano, biólogo que nos conduziu, ia explicando as maravilhas que os olhos dos leigos não sabem decifrar. Foi uma experiência de espanto inteligente, isto é, espanto que faz pensar.
Mas quando nos preparávamos para voltar encontramo-nos com uma coisa triste: o lixo, sacos de plástico, alumínio, garrafas que alguns turistas haviam deixado como testemunho da sua visita.
Nas zonas rurais antigas lixo não existia. As bananeiras e outras plantas eram revitalizadas pelos excrementos humanos, e os porcos, galinhas e cachorros tratavam de reciclar todas as sobras orgânicas de comida sendo que, naqueles tempos, nada havia que se assemelhasse a plástico, garrafas, latas de refrigerantes e pneus.
O lixo estava integrado à vida.O lixo se tornou um problema nas cidades. Sem moitas de bananeiras e similares e sem os recicladores animais, as fezes, a urina e as sobras se transformavam em montanhas, tornando-se morada de ratos, baratas, moscas e de todos os tipos de pragas microscópicas.
Hoje o problema do lixo assume proporções apocalípticas e infernais. As toneladas de fezes e urina produzidas pelos milhões que moram nas grandes cidades são impensáveis — e vivemos na ilusão de que uma descarga de água na privada tem o poder de fazê-las desaparecer magicamente.
O problema fica infinitamente mais grave quando pensamos nos novos e fantásticos materiais produzidos pela ciência e pela indústria. Os plásticos, os pneus, as garrafas, as latas de refrigerantes, o papel, para onde vão?
Para mim essa era uma questão puramente acadêmica, embora dolorosa. Mas aí, eu vi. Havia na Unicamp um dia em que a universidade ficava aberta à visitação dos jovens que sonhavam com uma carreira acadêmica e científica. Pois no day after à visita desses produtos acabados da nossa educação, o campus parecia o Armagedon depois da batalha: o lixo espalhado por todos os lados teria sido motivo para uma tela infernal de Bosch. E o meu amigo professor Hermógenes, diretor do Horto da universidade (que morreu debaixo de uma árvore) contava-me que era preciso plantar árvores novas para substituir as jovens e tenras que haviam sido quebradas pelos visitantes.
Aposentei-me. Esqueci-me. Mas aí as visões apocalípticas do lixo me voltaram quando visitei Caruaru, cidade de povo gentil e artesãos maravilhosos. Pois o que mais me impressionou não foi a sua monumental feira de artesanato, mas o lixo espalhado por toda parte. Disse, para mim mesmo, que se eu fosse prefeito daquela cidade, meu primeiro ato seria convocar um mutirão de todo mundo, eu na frente, para catar o lixo. Aproveito a ocasião para passar a sugestão aos prefeitos...
O tempo passou. Novamente me esqueci. Aí visitei Aparecida do Norte, santuário da bendita Virgem, padroeira do Brasil, amada por todos. Pois o lixo que se acumulava ao redor da Basílica era ainda maior. Fiquei horrorizado porque pensava que quem ama a Virgem deve amar e cuidar da limpeza de sua casa. Pois é certo que a casta mãe do Salvador devia amar a limpeza. Caso contrário não teria sido escolhida.
Dei-me conta, então, de que nunca ouvi nem padre, nem pastor, nem guru, nem vidente, nem missionário, nem bispo, pregar sermão contra o lixo. Pois o lixo está para esse mundo de Deus da mesma forma como o pecado está para as almas. Se é preciso limpar as almas, é preciso também limpar o mundo.
Foi então que me surgiu a idéia da encíclica De excrementis diaboli. Compõe-se de três partes:
Na primeira anuncia-se a criação de uma nova ordem, à semelhança dos dominicanos, franciscanos, camilianos, jesuítas etc. Será uma ordem que se dedicará a um serviço humilde e necessário: a catação do lixo. Será comovente ver os frades saindo diariamente com seus sacos de aniagem (não de plástico; o plástico polui) pelas ruas, praças, feiras, pelos mercados, pátios de basílicas, parques, catando o lixo. Vale, sobretudo, o seu exemplo.
Na segunda parte a encíclica estabelece que o ato de jogar lixo é pecado mortal. Assim, nas confissões, esgotados os adultérios, furtos e mentiras, o confessor perguntará: “E quanto ao lixo, meu filho? Fale sobre os lixos que você tem jogado neste mundo de Deus...”
Finalmente, a encíclica estabelece um novo tipo de penitência. As penitências comuns, sob a forma de repetições de rezas, encorajam os pecadores à reincidência, posto que podem ser cumpridas de forma mecânica, sem sofrimento. As penitências serão transformadas em sacos de lixo. Mentiras, cinco sacos de lixo cheios. Infidelidade, quinze sacos de lixo cheios. Violência, cinqüenta sacos de lixo cheios. E assim por diante. A absolvição só será dada depois da entrega dos sacos de lixo.
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1636300&area=2220&authent=235403310473022376031304510201

Lições de Susan Boyle

* Tom Coelho
“Duvidar de tudo ou acreditar em tudo
são duas soluções
igualmente convenientes;
ambas dispensam
a necessidade de reflexão.
(Henri Poincaré)
É muito provável que você tenha ouvido falar de Susan Boyle. Trata-se de uma senhora escocesa que virou celebridade mundial após apresentar-se num programa de calouros na Inglaterra. De aparência descuidada, foi inicialmente menosprezada e ridicularizada pelo júri e a plateia até entoar de forma admirável, por alguns minutos, trecho de um musical, com direito a lágrimas e aplausos.
Em tempos de internet, o vídeo de sua apresentação correu o mundo, sendo acessado mais de 100 milhões de vezes ao longo de duas semanas. Ganhou verbete na Wikipédia, entrevistas em talk shows, contrato para gravação de um CD e cerca de 30 milhões de links no Google.
O sucesso ofuscou caso idêntico ocorrido dois anos antes, no mesmo programa, com o galês Paul Potts, que em circunstâncias similares cantou uma ária de ópera, sagrando-se posteriormente vencedor daquela edição da competição.
Ambos os episódios nos legam alguns ensinamentos e reflexões. Em princípio, sobre a necessidade singular de críticos em aplicar rótulos. Assim, houve quem se emocionasse a ponto de eleger os cantores como exemplos de superação, por demonstrarem elevada resiliência ao suportar a animosidade inicial da plateia, encantando-os em seguida. Mas houve também quem qualificasse tudo como uma farsa, haja vista que os produtores já deveriam conhecer previamente a capacidade dos candidatos.
Do ponto de vista motivacional, os eventos são, sim, louváveis, pois o inconsciente coletivo ganha refúgio em cada um destes personagens por representarem uma aspiração social comum à maioria das pessoas diante da iniciativa de se expor, do enfrentamento do medo de falar em público, do receio de ser hostilizado, da confrontação da baixa auto-estima e, por fim, da conquista do reconhecimento.
Se formos tomar os eventos como produções forjadas para enaltecer os espectadores, mérito de seus organizadores por identificarem os talentos, dar-lhes a oportunidade, construírem um cenário favorável, agradarem os presentes e conseguirem uma exposição na mídia digna de inveja aos maiores comunicadores.
Todavia, que não se obscureça uma verdade irresoluta. Vivemos uma ditadura da imagem que age como um filtro na vida em sociedade. Continuamos a ser julgados pela embalagem antes mesmo de ser possível apresentar seu conteúdo. Esta é a regra, não a exceção, tanto que a própria Susan Boyle apareceu dias depois com visual repaginado, ostentando novo corte de cabelo e trajes bem alinhados.
Que fique uma última lição para o mundo empresarial. Não cabe a recomendação do “seja você mesmo, ainda que tenha um estilo excêntrico, sem se importar com o que pensam os demais”. Nos dias atuais, isso seria suicídio corporativo. Deve-se evitar, é claro, a perda da autenticidade, mas em termos de marketing pessoal, vale lembrar as palavras do publicitário Ckuck Lieppe que dizia: “Aparentar ter competência é tão importante quanto a própria competência”.

Tom Coelho, com formação em Publicidade pela ESPM, Economia pela USP, especialização em Marketing pela Madia Marketing School e Qualidade de Vida no Trabalho pela USP, e mestrando em Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente pelo Senac, é consultor, professor universitário, escritor e palestrante. Diretor da Infinity Consulting, Diretor Estadual do NJE/Ciesp e VP de Negócios da AAPSA.

Beleza e verdade

MARCELO GLEISER*
Einstein defendia o belo como critério de verdade em teorias científicas

Em 1819, o poeta inglês John Keats, um dos expoentes do movimento romântico, escreveu: "a verdade é bela e a beleza, verdade. Isso é tudo o que precisas saber em vida; tudo o que precisas saber". (Perdoem-me pela tradução amadora.)
Apesar das várias críticas argumentando que essas linhas são inocentes e que até estragam o poema (como escreveu T. S. Eliot, outro grande poeta), a fama delas ultrapassa os comentários negativos. Tanto que viraram até nome de livro, como no caso da recente obra do matemático Ian Stewart, onde ele conta a história da busca por simetria (que ele equaciona com beleza) na matemática e na física teórica.Historicamente, a matemática é extremamente eficiente na descrição dos fenômenos naturais. O prêmio Nobel Eugene Wigner escreveu sobre a "surpreendente eficácia da matemática na formulação das leis da física, algo que nem compreendemos nem merecemos". Toquei outro dia na questão de a matemática ser uma descoberta ou uma invenção humana.
Aqueles que defendem que ela seja uma descoberta creem que existem verdades universais e inalteráveis, independentes da criatividade humana. Nossa pesquisa simplesmente desvenda as leis e teoremas que estão por aí, existindo em algum meta-espaço das ideias, como dizia já Platão.
Nesse caso, uma civilização alienígena descobriria a mesma matemática, mesmo se a representasse com símbolos distintos. Se a matemática for uma descoberta, todas as inteligências cósmicas (se existirem) vão obter os mesmos resultados. Assim, ela seria uma língua universal e única. Os que creem que a matemática é inventada, como eu, argumentam que nosso cérebro é produto de milhões de anos de evolução em circunstâncias bem particulares, que definiram o progresso da vida no nosso planeta. Conexões entre a realidade que percebemos e abstrações geométricas e algébricas são resultado de como vemos e interpretamos o mundo.
Em outras palavras, a matemática humana é produto da nossa história evolutiva. Claro, civilizações que se desenvolverem em situações semelhantes (na superfície de um planeta rochoso com muita água e vegetação, sob um sol irradiando principalmente na porção visível do espectro eletromagnético etc.) poderão obter uma matemática semelhante: a matemática reflete as mentes que a criam.
Mas qual a relação da matemática com a beleza? Matemáticos e físicos atribuem beleza à teoremas e teorias, criando uma estética da "verdade". Os mais belos são aqueles que conseguem explicar muito com pouco.
Quando possível, os teoremas e teorias mais belos são também os mais simples; dadas duas ou mais explicações para o mesmo fenômeno, vence a mais simples. Esse critério é conhecido como a "lâmina de Ockham", atribuído a William de Ockham, um teólogo inglês do século 14. Einstein, dentre outros, era um defensor da beleza como critério de verdade em teorias científicas: uma teoria tem que ser bela para estar correta. E, sem dúvida, muitas dela são, ao menos de acordo com critérios de elegância e simplicidade na matemática.
Para os que creem na matemática como linguagem universal, essa estética leva à existência de uma única verdade. Acho isso preocupante, pois me soa como ecos de um monoteísmo judaico-cristão, uma infiltração religiosa, mesmo que sutil e metafórica, nas ciências. Melhor é defender a matemática e a beleza como nossa invenção. Criamos uma linguagem para descrever o mundo, que não podemos deixar de achar bela.
À memória de meu pai, Izaac Gleiser (nascido em 31 de maio de 1927)

*MARCELO GLEISERé professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Harmonia do Mundo" - Folha de São Paulo, 31/05/2009

sábado, 30 de maio de 2009

O desejo do contemporâneo

ANTONIO CICERO*
As pessoas que só desejam estar "up to date"
acabam por jamais ler os clássicos

O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".
Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.
Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo.
Quem idolatra o contemporâneo faz pouco caso do passado. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel).
E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.
Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".
Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu".
Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.Isso significa que não tem sentido que eu -seja quem eu for- me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu".
Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que as coisas ou pessoas só são contemporâneas, sem mais, exatamente na medida em que são contemporâneas de mim e, nessa mesma medida, eu já sou contemporâneo delas.Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.
E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.
*Escritor, colonista da Folha de São Paulo.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3005200922.htm - Folha de São Paulo, 30/05/2009.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

"Deus estará sempre na moda"

José Casanova*,
afirma que os homens e mulheres modernos
encontraram formas de ser religiosos
em ser religiosos e
que Deus sempre
estará na moda.


Eis a entrevista.
O que é espiritualidade?
Como sociólogo posso falar naquilo que as pessoas acreditam o que é a espiritualidade. Umas das conseqüências da globalização da secularização é a rejeição às instituições religiosas e à busca de alternativas. E aqui entramos no terreno da espiritualidade.
Logo...
A espiritualidade é a forma que tem cada individuo de expressar sua religião pessoal. Vai para além da religião.
Em que sentido?
No sentido de que incorpora outros aspectos: o simbólico, o místico, o estético, os discursos da arte moderna, o movimento de proteção ao meio ambiente... Assim se expressa a religiosidade moderna. Transcende as religiões tradicionais, é muito mais aberto e vem do Oriente.
Algum exemplo?
O ioga. O ioga é uma criação moderna, da Índia. Eles se confrontam com o colonialismo europeu que tem duas vertentes: a ciência moderna (a superioridade científica) e o cristianismo. O ioga surge como uma reação da cultura desse país ao colonialismo.
Tão poderosa é a ioga?
Sim. O ioga é uma forma de pensar cientificamente e, ao mesmo tempo, espiritualmente. Tão científico como a ciência européia, mas mais espiritual. E melhor que a religião, porque é espiritual como o cristianismo, mas mais científico.
O homem moderno, que quer se desprender da religião, encontrou novas formas de ser religioso sem ser religioso.Como isso está afetando as religiões tradicionais?
Está-se formando um sistema global de grupos religiosos que já não tem uma raiz territorial, ainda que cada religião insista em sua unicidade.
Com que palavras resumiria todas as religiões?
Amor, esperança e fé.Também em épocas de crise?
Especialmente em tempos de crise. As pessoas querem encontrar um sentido para a vida que não esteja baseada no êxito material. Por outro lado, a sociedade necessita repensar a estrutura de sua solidariedade. Obviamente as religiões sobreviverão à crise...As religiões são formas de pensar que têm durado séculos, que têm sobrevivido e mostraram sua efetividade em diferentes modos de produção econômica. O cristianismo sobreviveu ao modo de produção antigo, feudal, burguês, pós-industrial... e tem sido capaz de repensar o seu pensamento moral para adaptar-se a cada etapa histórica.
Alguma religião tem resposta para a crise?
Nenhuma religião tem uma resposta pronta para a crise e não pode dar soluções. O que as religiões podem dar são recursos morais como pensar em comum sobre o bem comum. Sem serem dogmáticas, porque, quando se é dogmático, como aconteceu às vezes com a Igreja católica pensando que tinha solução para tudo, fracassou. O que é interessante hoje em dia é que todos os problemas são globais e nenhuma tradição religiosa pode ter soluções únicas.
De onde podem vir as soluções então?
As soluções têm que vir do diálogo comum de todas as tradições religiosas e do pensamento filosófico secular. Precisamos buscar recursos de qualquer lugar que seja possível.Salvador Pániker (1) afirmou que Deus não está na moda.
Deus é um camaleão que morre continuamente e ressuscita.
Deus é um símbolo, e cada um projeta nele o que quer. Deus estará sempre na moda, porque é uma forma simbólica de expressar o desejo da transcendência humana.
Nos Estados Unidos, uma grande parte da população acredita em anjos.
Nos Estados Unidos é mais amplo do que na Europa, a crença em diferentes formas de transcendência. É interessante observar como uma sociedade moderna como a norte-americana, tão materialista e hedonista, sempre tem uma dimensão transcendente. Tem os pés no chão, mas são transcendentes.
E os anjos?
No que diz respeito aos anjos, o monoteísmo, com a idéia de um Deus muito longínquo que parece muito difícil, precisa-se que se busquem intermediários mais próximos. A Virgem está mais próxima e os anjos também, porque estão ao nosso lado.Na Europa, as pesquisas dizem pouca coisa sobre os anjos.Na Europa, as pesquisas mostram um declínio na fé em Deus, mas um crescimento por parte das gerações mais jovens, da crença em outra vida. Tem-se uma rejeição a um Deus todo poderoso, mas continua-se mostrando uma necessidade da transcendência.
*O sociólogo e teólogo da Universidade de Georgetwon. A entrevista foi publicada por El Periódico, 27-05-2009. A tradução é do Cepat e foi reproduzida no IHU/Unisinos.
_______________Notas:1 - Salvador Pániker nascido em Barcelona em 1927, é filósofo, engenheiro, escritor e editor. Doutor em engenharia e filosofia é professor de metafísica e de filosofia na Universidade de Barcelona. Fundador e diretor da editoria Kairós e colaborador habitual na imprensa escrita. Também é presidente da Associação de Amigos da Índia em Espanha e presidente da Associação Pró Direito a Morrer Dignamente (DMD) da Espanha.

Pensamento da manhã...

Da observação
Mário Quintana

Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio….

http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 28/05/2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

"Consenso despolitiza sociedade e coloca Lula à direita de FHC

Francisco de Oliveira o Chico de Oliveira*
Entrevista.

Valor: Qual a avaliação que o senhor faz do governo Lula, já em seu penúltimo ano? O senhor rompeu publicamente com o PT em 2003, mas depois declarou voto pela reeleição de Lula em 2006...
Francisco de Oliveira : A minha declaração de voto em 2006 foi uma atitude política. Lula estava sob ataque de forças opositoras naquele momento e havia a esperança, uma palavra que nem gosto de usar, de que um segundo mandato fosse promotor de mudanças, mas hoje podemos ver que não houve nenhuma mudança e essa chance passou. O governo de Lula, concretamente, não demonstrou nenhum avanço social no plano dos direitos. Do ponto de vista da condução econômica é uma administração medíocre, que pensou que se salvaria da crise global e percebe-se que não tem nenhum domínio da situação. Economicamente o governo Lula é um barco à deriva, que se as ondas forem boas chega a um bom porto, e caso contrário, não.

Valor: Que comparação pode-se fazer com o governo FHC?
Oliveira: Lula está à direita de Fernando Henrique [Cardoso] ao não recompor as estruturas do Estado e não avançar na ampliação de direitos. O presidente tenta se legitimar promovendo consensos que passam pela cooptação dos mais pobres. O Bolsa Família não é um direito, mas uma dádiva. Neste sentido, vivemos na gestão dele uma regressão política, porque no governo Lula houve uma diminuição do grau de participação popular na esfera pública. E quando se projeta o cenário de 2010 percebe-se como Lula resulta regressivo. Com a força perdida pelo PT e a ausência de alternativas de Lula, uma vez que a doença de sua candidata mostra sinais de gravidade, aparece o terceiro mandato.

Valor: O senhor acha que o governo está criando um caldo de cultura para o terceiro mandato?
Oliveira: Sim, porque Lula aparece, para os olhos de determinados segmentos do meio político e popular, como o homem providencial. E neste sentido a possibilidade de um terceiro mandato é perigosa. Getúlio [Vargas] ensaiou isso com o queremismo, em 1945. Agora, pode muito bem surgir um queremismo lulista: o povo ir às ruas para pedir a continuidade do governo.

Valor: E o senhor acha que o povo irá às ruas?
Oliveira: Não digo o povo, uma categoria imprecisa, mas o PT e a CUT ainda têm capacidade para promover barulho, e barulho é o que é decisivo em uma questão como essa.

Valor: Porque no campo da esquerda nem o P-SOL, nem outras siglas conseguiram se firmar como alternativas a Lula?
Oliveira: Nada surgiu porque, ao tornar-se um mito popular, Lula tornou-se infuso à política. Ele produz um consenso de forças sociais, que estão todas muito contentes com o governo, e assim torna impossível ao eleitorado fazer escolhas reais. Isto explica porque Heloísa Helena, apesar do apelo popular que teve e tem, não se tornar uma alternativa. Vivemos um consenso conservador, no sentido de não se transformar nada, mesmo com a presença das massas populares neste consenso.

Valor: Ao romper com o PT, o senhor disse que o partido poderia ter o mesmo destino do peronismo, tornando-se uma força política que não consegue ter referências ideológicas e prende-se ao espólio de uma liderança...
Oliveira: Se fiz esta aproximação, foi um equívoco meu. A mídia brasileira por vezes passa uma ideia equivocada do que foi [Juan Domingo] Perón na Argentina. O Perón não despolitizou o país. Sob o vezo do autoritarismo, em seu período se produziu uma ampliação de direitos tal que a tradicional oligarquia argentina jamais se recuperou. No caso de Lula, está ocorrendo exatamente o contrário, a diminuição do espaço da política na sociedade.

Valor: O governo Lula não investiu na inclusão de minorias nos espaços de poder, por meio de políticas de ação afirmativas para negros e mulheres?
Oliveira: Ele tomou os vestígios de um discurso sociológico fajuto para negar o conflito de classes. Veja, com a análise da questão das classes se mata as charadas no Brasil. Quando a gente pensa a sociedade por meio destas clivagens de gênero e raça, não se mata charada nenhuma. O problema do Brasil é de uma grande maioria, virtual totalidade mulata, e não pode ser resolvido por políticas afirmativas étnicas, diferentemente do que ocorre na Bolívia e na Venezuela, onde a chave étnica é decisiva. Para resolver os problemas de exclusão social no Brasil, é preciso enfrentar problemas de classe. A política de cotas só faz reafirmar a exclusão. Qual as chances concretas que um negro com grau universitário obtido graças às cotas ampliação de direitos combatem a discriminação.

Valor: O senhor analisa o governo Lula como o autor de uma guinada conservadora, mas, com instrumentos como a Carta ao Povo Brasileiro, Lula já não se elegeu sob este signo?
Oliveira: Pelo contrário, Lula foi eleito em um processo de força popular crescente de um movimento político, que acumulou energia de eleição em eleição desde os anos 80. Não foi um episódio que se resume à crônica de 2002, foi um processo longo. Lula foi eleito com uma base progressista. Não houve nenhuma chancela do eleitorado para o que ele faria a seguir.

Valor: Além de sua gestão econômica até certo ponto surpreendente, o primeiro mandato de Lula foi marcado pelos escândalos na área ética, dos quais o do mensalão foi o mais emblemático. Por que a ressonância popular destes problemas foi zero?
Oliveira: Há uma tendência popular de nivelar a todos. Historicamente, a questão ética só estigmatiza políticos de estatura menor, como os exemplos recentes de [Paulo] Maluf e [Orestes] Quércia. Gostaria que tivesse sido diferente, mas este fator jamais foi decisivo em eleições brasileiras e não será na próxima.

Valor: Qual o balanço que o senhor faz da oposição brasileira nestes últimos sete anos?
Oliveira: Que crítica a oposição pode fazer ao governo Lula? Objetivamente nenhuma. Os governadores José Serra e Aécio Neves estão do mesmo lado. Em termos concretos, já há tempos a oposição deixou de existir. Isto porque a política no Brasil perdeu a capacidade decisória.

Valor: Que diferenças o senhor identifica entre Serra e Aécio?
Oliveira: Rejeito ambos por motivos diferentes. Aécio parece mais um político superficial que se faz sob a herança política familiar. Nunca vi uma opinião dele que impressionasse. Serra é uma surpresa. Faz um governo gerencial e até reacionário, ao lidar com o funcionalismo e com a universidade pública. É um político que gradualmente se converteu, quando vemos o passado dele e o local onde atua agora. É o grande líder conservador.

Valor: Sob que signo será disputada a eleição presidencial do próximo ano?
Oliveira: A eleição de 2010 será despolitizada e regionalista. Vejo agora a articulação entre São Paulo e Minas. Antes era o café com leite, hoje talvez seja o café com leite de um lado, a cana e a indústria do outro... a eleição caminha para ser uma disputa entre a confluência de São Paulo com Minas em contraposição à confluência do Nordeste e do Norte. É uma disputa que se dá em termos regionais, sem nenhum ponto político, nenhuma discussão de concepção propriamente política. Ao criar um consenso, Lula foi fortemente despolitizador. É uma dinâmica diferente do tempo de Fernando Henrique. Fernando Henrique buscou subjugar as forças contrárias, Lula as desmobiliza.

Valor: E que papel jogam atualmente os movimentos sociais?
Oliveira: Os movimentos sociais estão apagados, porque tratam-se em sua maioria de articulações em torno de objetivos pontuais, o que tornam limitadas as possibilidades de crescimento. O mais importante deles, que é o MST, busca saídas para a sobrevivência.

Valor: Esta desmobilização política não é um fenômeno global?
Oliveira: Ela é um fenômeno mundial. A França elegeu [Nicolas] Sarkozy, um direitista que se disfarça. Nos Estados Unidos, temos [Barack] Obama, que está recuando de suas posições iniciais. Na Alemanha, Ângela Merkel faz uma conciliação que junta sociais democratas e conservadores. E na Rússia, há um florescer do autocratismo. Todo mundo está convergindo para um ponto médio, que é uma espécie de anulação das posições. Mas no Brasil é mais grave, porque aqui a desigualdade é muito maior.
*Intelectual historicamente identificado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo sido filiado ao PT até 2003, o professor aposentado de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Francisco de Oliveira tornou-se ao longo do atual governo um dos mais cáusticos críticos à esquerda do lulismo. Para este ano, o acadêmico pernambucano de 75 anos, conhecido como Chico de Oliveira, prepara um livro que irá retratar a construção de uma hegemonia às avessas. Ou seja: como um líder popular carismático trabalharia no sentido contrário aos interesses da base que o elegeu. Reportagem de CÉSAR FELICIO, de Belos Horizonte para o Valor Econômico, 27/05/2009

Em primeiro lugar, a sustentabilidade

Em primeiro lugar,
a sustentabilidade Leia entrevista,
realizada pela Agenda Sustentável,
com Professor de Empreendedorismo no MIT Sloan School of Management
e professor do departamento de Ciência Política do MIT:
Richard M. Locke*.

Agenda Sustentável: Para líderes e gestores, o que você acha que significa "sustentabilidade"?
Richard Locke: Nós não temos uma definição comum sobre isso ainda. Ouço duas definições diferentes, nos círculos em que convivo. Uma delas é de fãs da sustentabilidade, em termos ambientais: dizem que temos de preservar e conservar o ar, a água e recursos naturais ou estaremos em desequilíbrio, minando a capacidade terrestre em suster a vida humana.
A outra concepção é realizada por pessoas que pensam basicamente da sustentabilidade como uma ameaça - geralmente uma iminente ameaça de regulamentação fiscal do carbono. Então, muitas dessas pessoas pensam na sustentabilidade apenas como algo que será mau para os negócios, em vez de pensar nela como uma oportunidade de negócio. Algo que tenho certeza que é.

AS: Então, você acha a definição importante – precisamos estabelecer um consenso sobre o que falamos, quando abordamos sustentabilidade?
RL: Sim. Temos de ter certeza que, se nos preocupamos com o meio ambiente, estamos também atentos às pessoas e à dimensão social da sustentabilidade. Eles devem andar de mãos dadas, e não apenas nos países industriais avançados, mas especialmente no mundo em desenvolvimento. Se você não combinar as duas coisas, é um problema.

AS: O que desencadeará um novo foco nas estratégias de gestão relacionadas à sustentabilidade, nas organizações? Muitas vezes vemos todos os tipos de mudanças impulsionadas apenas porque um CEO torna aquilo uma religião – isso acontecerá, nesse caso?
RL: Bem, além da pressão governamental por causa de regulamentações, haverá a pressão dos consumidores. Todas as pesquisas e experiências em bens de consumo, quer trate de certificação de fair trade, parecem sugerir que as pessoas realmente valorizam essas coisas.
Penso que haverá grande pressão também de dentro das próprias empresas – não de um CEO missionário, mas de alguns dos gerentes funcionais. Minha teoria é que serão alguns grupos da periferia, geralmente de nível médio, que encontrarão a solução para problemas reais. Eles mostrarão que a sustentabilidade funciona, e então podem começar a difundi-la. E então será acatado pelo conselho. Eu acho que raramente esta é uma ação do topo para a base.

AS: É possível correlacionar sustentabilidade e vantagem competitiva?
RL: Claro. Eficiência (custos unitários mais baixos), qualidade, confiabilidade – geralmente esses atributos "positivos" das empresas caminham lado a lado, dirão os gestores. Agora pense sobre sustentabilidade. Se as empresas são boas no desenvolvimento de sistemas que lidam com saúde e segurança, e/ou no tratamento de resíduos e água, e/ou na concepção de formas inovadoras para reduzir o consumo de energia, e assim por diante, costumam agir em conjunto com a sua forma de fazer negócios. Em outras palavras, as empresas precisam pensar profundamente sobre como estabelecer diferentes sistemas de gestão que promovam práticas empresariais sustentáveis mais eficientes e inovadoras ou que diferencie seus produtos e serviços no mercado.
A sustentabilidade torna-se um agente para a gestão da qualidade. Esta é uma maneira rápida de outros, sejam clientes ou potenciais parceiros, obterem informações sobre fornecedores ou qualquer outro parceiro da cadeia de valor e que tipos de sistemas possuem. E isso faz sentido para mim, completamente.

AS: Quais são os impedimentos para avançar? O que as empresas e os gestores têm de ultrapassar para “fazer acontecer” na área da sustentabilidade?
RL: A primeira coisa a combater são os seus próprios pressupostos, seu próprio modelo mental, pensar se adotar esta causa será um custo extra ou um impulso nos negócios. Especialmente agora, durante esse período de crise financeira e diminuição de demanda, podem dizer: "Olha, já temos dificuldades para manter nossos números. Não nos peça para fazer qualquer investimento."
Mas agora é um ótimo momento para que as empresas revejam sua forma de encarar a sustentabilidade e no que estão fazendo, para ver as oportunidades de redução no consumo e mudar a maneira como fazem as coisas. Será a economia de custos que os impelirá para o próximo esforço de crescimento. No final, penso que os esforços para agir na direção a questões de sustentabilidade serão o verdadeiro estímulo para a inovação – este é um impacto que vejo claramente, no curto prazo. Mas os líderes e gestores ainda precisam ser convencidos de que é possível.
*Richard M. Locke, professor de empreendedorismo no MIT Sloan School of Management e professor do departamento de ciência política do MIT, ajudou a liderar o desenvolvimento do Laboratory for Sustainable Business (Laboratório de Negócios Sustentáveis - S-Lab) do MIT Sloan, que investiga em sala de aula questões de gestão sustentável, bem como coloca os alunos dentro de empresas que estão abordando desafios em sustentabilidade em todas as frentes. Sua própria investigação atual centra-se na melhoria das normas ambientais e trabalhistas nas cadeias de fornecimento globais.

[Esse artigo é o último de uma série de entrevistas do Sloan Management Review"s Sustainability Initiative do MIT, publicadas na GreenBiz.com. É uma adaptação de "Sustainability as Fabric — and Why Smart Managers Will Capitalize First" (Sustentabilidade como Tecido - e Por quê gestores inteligentes terão retorno primeiro) que apareceu originalmente no MIT Sloan Management Review, na edição de Janeiro de 2009. ]© Massachusetts Institute of Technology, 2009. Todos os direitos reservados.]
Fonte: Agenda Sustentável (
http://www.agendasustentavel.com.br/)
HSM Online - 27/05/2009
http://mail.live.com/default.aspx?wa=wsignin1.0

A educação e os comics: instantâneos brasileiros

Olgária Mattos*
A imprensa divulgou a notícia de que as escolas públicas de São Paulo, a fim de “estimular a leitura e a escrita” no aprendizado da língua portuguesa, haviam adotado, para crianças entre oito e nove anos, histórias em quadrinhos. A publicação foi considerada imprópria por conter palavrões que, como se sabe, portam conotação sexual. Considere-se, também, além do estilo do desenho, a dificuldade de leitura de seus balões, que se deve ao traçado das letras, desenho e letras plenamente adequados ao gênero.

Assim, a questão não é a história em quadrinho, mas a adoção, pelas escolas, de uma expressão literária de distração “para adolescentes e adultos”, uma vez que a árdua tarefa da educação é introduzir a criança no universo do conhecimento, formando-lhe a sensibilidade e o pensamento, para que ela possa apropriar-se, progressivamente, de um repertório mais amplo e diverso daquele de que dispõe por sua inserção social e pela cultura de massa.

Confundindo educação e entretenimento, cedendo à adaptação da escola ao gosto das mídias, esta escolha não foi circunstancial, pois expressa o núcleo da ideologia contemporânea, que considera que “a verdadeira cultura é inacessível à grande massa”. Adorno escrevia nos anos 1940 que a mídia determinou uma cisão entre “cultura de elite” e “ cultura popular”, protagonizando a cultura média midática, que difunde um conhecimento medíocre para a grande massa. Para ele, a indústria cultural seria, então, produzida “para os ignorantes”. Em seguida, seria levada a cabo “pelos ignorantes”, por equipes técnicas que não estabelecem nenhum contato ou contato apenas episódico com o mundo da cultura. Acrescente-se o ideário de que a dificuldade em alfabetizar, bem como em despertar interesse pelos saberes escolares, devem-se ao pressuposto de a escola não estar adaptada ao universo do “ educando”. Na verdade, talvez a crise esteja em a escola ter-se adaptado à carência do status quo , que corresponde à indigência das próprias elites educacionais.

Em sua obra "A revolução da escrita e suas conseqüências culturais na Grécia Antiga" , Havelock indica a maneira pela qual o advento da educação formal e o ensino da gramática foram de grande eficácia, pois qualquer sistema de escrita que reproduzisse apenas a língua falada estaria sujeito a flutuações e variâncias que acabariam por comprometer sua função social de comunicação e clareza, e por isso exigia um alto grau de convenção. Também Adorno em suas "Minima Moralia" alertava para as dificuldades das relações humanas na sociedade industrial produtivista,uma vez que esta se encontra sob o domínio da razão instrumental, movida pelo culto da eficiência e dos resultados, por um lado, pelas razões econômicas, de outro. Na educação, trata-se, antes da pergunta sobre o que ensinar e seus métodos, de refletir sobre o “tipo de indivíduo que se procura formar com a educação.” Por visar o indivíduo compassivo com seus próximos e solidário na sociedade, a educação não se pautava pelas necessidades do mercado. Valia-se, pois, no ensino da língua, de narrativas exemplares em que a elaboração literária era essencial. Por isso,associava-se o ético ao prazer estético.

A adaptação da escola ao social é comandada pelo fetiche da facilidade que comanda, por sua vez, as transformações dos programas educacionais, definindo comportamentos intelectuais. Esta mutação do caráter civilizacional da educação escolar não é acontecimento isolado de São Paulo, mas se expande por todo o sistema de ensino. Que se pense na indústria dos livros para-didáticos e sua discutível qualidade, recomendados em estabelecimentos de ensino.

Desde suas origens gregas, a educação formal visava desenvolver saberes e habilidades a fim de reunir escola e vida. Diversamente daquelas aptidões que se aprendem sem necessidade de instrução, pela experiência e pelo hábito, a escola foi o lugar de adoção de uma identidade coletiva com valores e conhecimentos comuns e compartilhados. Lembre-se que “aluno”, em francês, se diz “ élève”, porque a educação eleva a criança e sublima o povo.

Independentemente de sua utilização, o fato de este material ter sido cogitado para as escolas públicas indica de que maneira o Estado produz intensivamente a exclusão, educando os mais pobres para permanecerem na pobreza.. Elitista, o Estado impede o acesso dos despossuídos à cultura formal, tornando-a privilégio de uma elite. “Genocídio cultural”, na expressão de Pasolini.
*Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo. Acesso 24/05/2009
Carta maior http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=35&cod_noticia=12525

A doutrina cristá e a consciência histórica de hoje

Luiz Alberto Gómez de Sousa*
Frequentemente vemos confundir doutrina – prescrições feitas num tempo dado – com o núcleo duro da Fé, que são os dogmas, bem menor do que se crê. O teólogo Newman, convertido ao catolicismo, feito cardeal por Leão XIII para mostrar distância de seu antecessor Pio IX que não o tolerava, escreveu, em 1845, um alentado livro sobre o desenvolvimento da doutrina no tempo. Ela permanentemente deve adequar-se às mudanças na consciência histórica de uma época. Se não o fizer, fica defasada e não corresponde às demandas dos fiéis. É o aggiornamento, posta em dia, a que se referiu João XXIII. Bento XVI acaba de lançar um livro, Elogio da consciência, com seus textos dos tempos de teólogo e ali alude a Newman, ao qual várias vezes tem declarado admirar. E cita o teólogo inglês, que escreveu que se devesse brindar, o faria primeiro à consciência e apenas depois ao papa. Só que Ratzinger, numa interpretação restritiva e paradoxal, considera que o papa é o responsável quase exclusivo pela memória e pela consciência cristãs.

Voltando a Newman, em célebre artigo para a revista The Rambler, (julho de 1859) indicou que, no século IV, a maioria dos bispos era ariana – negando a divindade de Jesus – e o próprio papa Libério parecia inclinar-se nessa direção. A ortodoxia foi salva pelo “consenso dos fiéis” (e pela reflexão dos teólogos, completaria mais tarde o Pe. Congar). Se isso aconteceu diante de um dogma tão central na Igreja, muito mais certo será quando se tratar de preceitos doutrinários ou disciplinares que tem de ser revistos quando mudam os tempos. Deixar de fazê-lo é ficar para trás e não responder às novas sensibilidades e às exigências emergentes. Não se trata de oportunismo, mas de estar à escuta dos “sinais dos tempos”.

Quando Leão XIII, em 1891, referindo-se ao que se chamaria depois a doutrina social, falou de “coisas novas” (Rerum Novarum) , elas o eram no mundo católico. Entretanto o leigo Ozanam, em 1848, quase meio século atrás, ano do Manifesto Comunista, profeticamente lançara seu “passemos aos bárbaros”, isto é, a classe operária e a democracia, sem ter sido levado em conta pelo magistério. Tratava-se porém de um tema antigo para um socialista francês, cujo pai lutara na comuna de Paris, o avô estivera nas barricadas de 1848 e o bisavô nas lutas sociais de 1830.

Durante o Vaticano II, João XXIII retirou da pauta o tema da reprodução e nomeou uma comissão para estudar o assunto. Paulo VI a ampliou para mais de sessenta membros, incluindo mulheres e um casal. A maioria, contra apenas três, foi favorável ao uso amplo de anticoncepcionais. O papa, depois de muitas dúvidas e sofrimento (papa hamletiano, como o chamaram), ficou com a minoria, onde se encontrava o cardeal Otaviani, para não contradizer o que dissera Pio XI na Casti Connubii nos anos trinta. Como se hoje tivéssemos de obedecer aos anátemas do Syllabus de Pio IX contra as liberdades modernas e contra a democracia. Ou manter o furor antimodernista dos tempos de Pio X, posto de lado logo depois por Bento XV. As conseqüências da Humanae Vitae de 1968 são negativas até hoje.

Em nossos dias, há um consenso crescente na sociedade e entre os fiéis, em sua prática cotidiana, em temas de sexualidade e de reprodução, não levando em conta uma doutrina oficial cada dia menos seguida. Também em voz baixa, mas de maneira crescente, sacerdotes e mesmo bispos se insurgem contra o celibato obrigatório, fonte de tantas deformações, como nos Estados Unidos e agora indicado em recente relatório na Irlanda. Além disso, frente à escassez de sacerdotes e diante de uma exigência de prática eucarística, sobe a demanda da ordenação de homens casados e de mulheres das próprias comunidades. Estamos assim frente à necessidade de um novo agggiornamento. Um teólogo escreveu, em 1990, que vivíamos um inverno na Igreja. Ele se mantém e mesmo se agrava.

Não será o momento, num próximo futuro, de uma nova inesperada primavera, como disse o papa João do Concílio Vaticano II? Quando o Vaticano I proclamou isolado o dogma do primado do papa, Newman indicou a um amigo angustiado (carta de 3 de abril de 1871): “Pio (IX) não é o último dos papas. Um novo papa ou um novo concílio polirão a obra”. O problema, como chegou a proclamar o jovem Ratzinger durante o Vaticano II, é que a cúria tem “uma negação quase neurótica com tudo o que é novo”.

*Luis Alberto Gómez de Sousa, sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes.
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_Canal=38&cod_noticia=12521

terça-feira, 26 de maio de 2009

O Direito ao Corpo

RUBEM ALVES
Tenho pensado naqueles que,
por sua condição, prefeririam que a
morte tomasse a vida no seu colo e a
fizesse dormir


PARA provar uma ideia que todos consideravam louca, ele atravessou o oceano Pacífico, do Peru até a Polinésia, numa balsa semelhante àquelas que são usadas ainda hoje no lago Titicaca.
A tecnologia usada na construção da balsa tinha de ser aquela disponível em tempos pré-colombianos, pois a ideia louca que Thor Heyerdahl queria provar era que era possível que, em tempos imemoriais, os homens tivessem migrado pelo Pacífico usando os recursos de que dispunham.
Essa aventura fantástica tomou o nome de expedição Kon-Tiki, partiu da costa do Peru no dia 28 de abril de 1947 e chegou à ilha Raroia 101 dias depois, tendo navegado 4.300 milhas.Aos 84 anos, quando estava com sua família gozando férias em sua casa na Itália, Thor Heyerdahl foi diagnosticado como tendo um tumor cerebral. Ele parou de comer e de tomar remédios até partir em sua última expedição pelo Grande Mar desconhecido...Era comum que os médicos de antigamente tivessem, na sala de espera de seus consultórios, a tela de Samuel Luke Fildes "O Médico". Lembro-me de tê-la visto pela primeira vez num consultório, enquanto esperava que o médico me atendesse. A tela me impressionou tanto que eu, menino de sete anos, sai da poltrona onde estava assentado e me aproximei da tela para ver os seus detalhes. Nunca esqueci. Cheguei a escrever um texto sobre ela. Ela representa a fantasia romântica do médico de antigamente que, com armas frágeis, lutava sozinho contra a morte.
Ele vivia fora do tempo. Era um médico de antigamente. Com sua velha maleta, ia pelos bairros da periferia de Campinas para atender os pobres. Meu afeto por ele cresceu quando vi, na sua casa, uma reprodução de "O Médico".
Já bem velho, com câncer, consultando seu corpo e sua alma, concluiu que não fazia sentido lutar uma batalha perdida. O certo seria que vida e morte seguissem seu caminho. Parou de comer e de tomar remédios. E foi assim que ele partiu...
Esses dois casos me vieram à mente quando, provocada por circunstâncias, minha imaginação pensou a terrível possibilidade de um AVC que me condenasse a uma vida sem sentido, sem saídas, humilhante, um peso para as pessoas que me amam e impotente, vida que se resumiria numa espera do fim.
Eu deixaria de ser dono do meu próprio corpo e não teria mais o poder para tomar as providências para a aventura pelo Grande Mar desconhecido...
Lembro-me de uma paciente que me contou que o seu pai, homem religioso que rezava diariamente, começou a rezar o Pai Nosso de uma maneira diferente: passou a omitir a súplica "o pão nosso de cada dia dá-nos hoje". Do jeito dele, ele também tomou a decisão...
Tenho estado pensando nas pessoas que, por sua condição física de dor ou humilhação, prefeririam que a morte tomasse a vida no seu colo e a fizesse dormir. O desejo de morrer é uma oração, um suspiro da vida que deseja voar.
Acho que Bach concordaria comigo. Foi para esses que suspiram e desejam voar, ele mesmo inclusive, que ele compôs o seu comovente coral "Vem doce morte". Ouvindo esse coral, a partida fica triste, bela e calma...
Agora me pergunto, eu gostaria de saber: se Thor Heyerdahl e esse médico anônimo de Campinas estivessem num hospital, ser-lhes-ia permitido bater suas asas?
Publicado na Folha de São Paulo, 26/05/2009

A "tecnoangústia" do quanto é necessário saber

Renato Bernhoeft*

Uma das avaliações que em muitas circunstâncias se torna provocativa ao longo da vida é o quanto podemos, e devemos, saber. Com o crescimento da velocidade dos meios que nos dão acesso às informações foi criada, inclusive, uma expressão para caracterizar este sintoma. Ela tornou-se conhecida como a "tecnoangústia."

O excesso de informação provoca a angústia típica dos tempos atuais e leva à conclusão de que, às vezes, saber demais é um problema.

Como curiosidade vale registrar que uma edição de fim de semana do jornal "New York Times" contém mais informação do que uma pessoa comum poderia receber durante toda a vida na Inglaterra do século XVII. Todos os anos são produzidos 1,5 bilhão de gigabytes em informação impressa, filmes ou arquivos magnéticos.

Atualmente existem mais de 2 bilhões de páginas disponíveis na internet. Até o início dos anos 90 a televisão brasileira tinha menos de dez canais. Hoje há mais de 100 emissoras no ar, em diversas línguas, com especialidades diferentes.

Por trás desses elementos, há um fenômeno mais geral. Países, empresas, escolas e famílias estão se rearticulando em outros modelos numa velocidade nunca vista. Mudar é um inferno para a maioria das pessoas. Mais infernal ainda é a sensação de que o mundo está girando mais rápido do que podemos acompanhar.

Segundo o escritor americano Wayne Luke "o mal estar de nosso tempo é a inadequação, o sentimento opressivo de que as outras pessoas estão fazendo as coisas certas, lendo os livros que contam e usando os computadores e programas mais modernos enquanto nós estamos ficando para trás na carreira ou nos relacionamentos."

Aos 65 anos, o americano Richard Saul Wurman -que é arquiteto por formação, construiu prédios, foi empresário, organizou eventos e durante muitos anos foi cartógrafo, mas considera que só atingiu o sucesso quando resolveu criar sua própria profissão, a de arquiteto da informação. Desde então escreveu mais de 75 livros sobre os mais variados assuntos, de medicina ao mercado financeiro; sobre animais de estimação e turismo.

Diz ele que seu segredo é não saber absolutamente nada em relação ao tema sobre o qual vai escrever. Assim, tudo que descobre é o que interessa à maioria das pessoas. Para ele "num mundo em que as pessoas são cercadas de informações por todos os lados, não saber nada sobre certos assuntos pode ser tão importante para a saúde mental quanto o silêncio o é para a música."

Mas não são apenas as pessoas que nunca usaram um computador que podem ficar ansiosas com os efeitos das mudanças tecnológicas. As notícias frequentes sobre os incríveis avanços da tecnologia provocam ansiedade entre todos nós.

Em certas áreas, os conhecimentos de uma pessoa podem ficar ultrapassados em seis meses. E um dos setores mais atingidos por estes avanços tecnológicos é o da própria tecnologia. Esta área não apenas usa tecnologias para desenvolver produtos e serviços, mas também investe pesadamente em pesquisa e desenvolvimento. O aspecto mais difícil da "tecnoangústia" consiste em aceitar o fato de que precisamos mudar. Depois disso, será preciso encontrar maneiras de superar os medos que nos impedem de realizar as mudanças que nos permitirão ter êxito com a tecnologia -e não apesar dela.

Segundo os estudiosos do tema esta não é a primeira vez que o mundo vira de "cabeça para baixo" como resultado da evolução da tecnologia. A transição da sociedade agrícola para a sociedade industrial, no início do século XIX, resultou em avanços tecnológicos. Um exame das cartas, diários pessoais e jornais, escritos e publicados na época, mostra que, a cada onda de mudanças, as pessoas ficavam mais e mais ansiosas.

Primeiro, houve o êxodo rural com a entrada das novas tecnologias no campo, pois estas reduziam a necessidade de mão-de-obra agrícola. O trabalho nas fazendas foi desaparecendo à medida que novas indústrias, como a têxtil, criavam empregos nas cidades.

Posteriormente alguns empregos urbanos também iam desaparecendo na medida em que as novas indústrias criadas pela tecnologia descobriam maneiras novas e mais eficientes de produzir bens. Mas hoje, ao analisarmos o resultado final -que é a melhoria do padrão de vida dos países industrializados -dificilmente poderíamos dar total razão àqueles que eram contra as mudanças tecnológicas.

Caso este tema lhe provoque interesse, examine e reflita sobre as questões abaixo, elaboradas como sintomas típicos de quem está sofrendo a angústia da informação, extraídas do livro "Ansiedade da Informação", de Richard Wurmann. " Por mais esforço que faça, não consegue sentir-se atualizado com o mundo a sua volta. Sente-se culpado cada vez que olha para a pilha de jornais, revistas e o volume de e-mails recebidos que não conseguiu ler. Fica abatido quando uma pesquisa na internet resulta num documento de dezenas de páginas, pois acredita que, se não ler todas elas, não saberá tudo o que deve sobre o assunto. Acena afirmativamente, sem convicção, sempre que alguém menciona um livro, um filme ou uma notícia que você, na verdade, nunca ouviu falar. Acha que o problema é seu e não do fabricante quando percebe que não consegue seguir as instruções para montar um aparelho que comprou. Cerca-se de aparelhos digitais na esperança de que a simples presença deles a sua volta ajude a torná-lo uma pessoa mais adaptada à alta tecnologia. Sente-se envergonhado quando tem de dizer 'não sei', mesmo que a pergunta se refira à sucessão no Nepal ou ao novo programa de correio eletrônico da Microsoft."
Enfim, aqui estão mais algumas reflexões sobre um dos fatores que pode aumentar a ansiedade e estresse das pessoas. Pense, reflita e analise. Caso algumas destas questões possam ter utilidade, não se constranja em usá-las.

Pensamento da noite

Novo analfabetismo

"Os analfabetos do século 21
não serão aqueles
que não conseguem ler
e escrever,
mas sim aqueles
que não conseguem
aprender,
desaprender
e reaprender."
- Alvin Toffler -

domingo, 24 de maio de 2009

Se tempo é dinheiro, estamos ficando duros

Carlos Eduardo Novaes*


Meu Deus! Mal terminei o café da manhã do último Réveillon e já estou a caminho das festas juninas. Logo estaremos dando de cara com Papai Noel na televisão. O tempo voa – em supersônicos – nesta era da globalização. Lembro que na minha época de colégio uma semana custava quase um mês para passar. Hoje a impressão é a de que a semana se vai em três dias (isso quando não há um feriado no meio!).

É certo que continuamos consumindo os mesmos minutos que nossos avós para despertar, lavar o rosto, fazer xixi, escovar os dentes, mas daí para frente tudo se desdobra em um alucinante ritmo de discoteca. Enquanto meu avô tomava sua média com pão e manteiga de manhã espiando as nuvens pela janela ("Será que saio de galochas e levo o guarda-chuva?") e batia a porta de casa – sem trancas nem ferrolhos – para pegar seu bonde, eu, sem tempo para olhar o céu, me mando para os congestionamentos enfiando o paletó e, não raro, no trabalho percebo que estou com uma meia azul e outra branca.

Meu avô, com certeza, experimentou a sensação de ter vivido muito mais do que seu neto pós-moderno. Curtiu sua existência sem pressa e, desse modo, mais atento e sensível à passagem do tempo. Aposto que alguns dias lhe pareciam intermináveis. Hoje, 24 horas atravessam nossos relógios feito um cometa. Tangidos por compromissos e obrigações sem fim, seguimos desatentos ao tempo e somos sempre surpreendidos quando a mulher nos informa que o filho mais velho vai fazer 38 anos (e ainda mora com os pais!).

Nossa existência está cada vez mais fora de nós – se é que me entendem – reduzida a uma espécie de motorzinho de popa que nos mantém em constante movimento. Os dias transformaram-se em uma gincana e a vida, em uma agenda.

Mas se o tempo é apenas uma convenção – e os antigos calendários estão aí para provar – por que não mudamos as regras do jogo? Em 1583 o papa Gregório XIII reuniu alguns astrônomos católicos para reformar o calendário juliano – que vinha da Roma de Julio César (101 a.C. - 44 a.C.) – e criar um novo tempo. Era uma época em que mais dias, menos dias não faziam falta e o papa então estabeleceu que, depois da quinta-feira 4 de outubro viria a sexta-feira 15 de outubro. De uma penada sumiu com 11 dias – imaginem isso hoje! – e instituiu o calendário gregoriano que vigora até nossos dias.

Agora me responda: como é que uma divisão do tempo feita há mais de 400 anos pode continuar servindo ao homem e ao mundo contemporâneos?

Pelas minhas contas atualmente precisamos de, no mínimo, 32 horas diárias – o Unibanco já chegou a 30 – para tocarmos a vida com alguma folga, em velocidade cruzeiro. É angustiante pensar que permanecemos cativos de um calendário da época em que o Brasil era pouco mais do que um terreno baldio.

Se fomos capazes de inventar o avião, o despachante, o álcool combustível; se conseguimos reduzir a inflação, pagar os juros da dívida e descobrir as mazelas do Senado, por que não acrescentamos às reformas do país a do calendário? Não importa que os demais países continuem se orientando por essa velharia gregoriana (Lula não é o cara?). Na época da decisão do papa Gregório, muitas nações não católicas também custaram a aceitar o novo calendário. A Inglaterra só o adotou no século 19, a China em 1912, a Turquia em 1927 e nem por isso o mundo deixou de girar.

A frase final é obvia, mas nem por isso menos verdadeira: já é tempo de mudar o tempo.

*Escritor

sábado, 23 de maio de 2009

Amor laico

Joaquim Zailton Bueno Motta*
Costumamos indicar o amor como o mais importante valor humano, mas isso não sai da teoria.
Declaramos a necessidade de nos amar muito, de expandir a solidariedade, reforçar as boas amizades, auxiliar e ensinar os carentes, mas poucos praticam ações suficientes para isso.
Também apontamos para a demanda de qualificar o erotismo, interromper a banalização do sexo, combater preconceitos sexistas, mas aí também pouco efetuamos.
O discurso que teoriza o amor, mas não o exerce, simula pregações do marketing das religiões. Os pastores de má fé berram nos microfones das rádios e tevê, nos palcos dos templos, nos púlpitos das igrejas que “Deus é amor”, que “Deus é fiel”, arrebanhando féis, mas o nível precário e desqualificado do afeto permanece (quando não piora). Há denúncias frequentes na mídia sobre trapaças e lucro extraordinário dessas seitas, manipulação da fé de incautos, mas as repercussões não interrompem a impostura e a hipocrisia perversas.
Para sair do impasse, caberiam duas alternativas: a primeira, seguir um clero probo, de boa fé; a segunda, desenvolver um amor humano, independente de fé religiosa.
Escolher os sacerdotes confiáveis fica por conta do leitor. Alternar para um amor secularizado é um caminho que posso sugerir.
Um anarquista francês, Sébastien Faure, criado em família burguesa e conservadora, estudou em estabelecimento religioso. Os jesuítas do colégio detectaram nele inteligência e vocação para seguir o “caminho de Deus”. Aos 17 anos, entrou no noviciado. Foi noviço exemplar, até o pai adoecer e morrer. Voltando à vida laica para sustentar a família, foi questionando os referenciais religiosos e passou a combatê-los energicamente. No início do século passado, sentenciou: “O melhor testemunho de amor que Deus poderia oferecer às criaturas seria uma prova de sua inexistência”.
Realmente, isso facilitaria bem a nossa trajetória.
O homem precisa ampliar o espaço e o tempo do amor. Através desse modelo habitual que destaca as virtudes do amor divino, não temos conseguido algo realmente significativo. É essencial que trabalhemos as nossas dificuldades e perspectivas amorosas dentro do limite humano, nas fronteiras da realidade. Temos que melhorar o intercâmbio amoroso no contexto do nosso mundo. Insistir no padrão divino é nos condenar a um distanciamento insuperável.
O amor divinal é perfeito, teórica e praticamente indiscutível, não admite revisões ou acertos. O amor humano será eternamente imperfeito, sempre admitindo reflexões e consertos. Evitando o modo divino de amar, procuraremos em nós mesmos as causas e efeitos do amor parco, inexpressivo, do erotismo minguado, que temos trocado.
De modo geral, é fácil encontrar interação amorosa medíocre. Por outro lado, ainda que raros, há exemplos de amor humano dignificante, de esplendorosa nobreza espiritual. Se alguns seres humanos conseguem, por que outros não?
A minoria capaz pode dar mais uma demonstração de sua potencialidade amorosa: ensinar a maioria. Uma combinação de empenho racional com dedicação emocional, o equivalente de uma “inteligência amorosa” poderia nos auxiliar bastante. Concentrados em evoluir no amor humano, nós nos encorajaríamos a combater pontos perigosos e perversos do amor divino, como fez Mikhail Bakunin. Ele sugeriu que a existência de Deus implica necessariamente a escravidão de tudo abaixo dele. Assim, só haveria um meio de servir à liberdade humana: seria o de Deus deixar de existir!
No Diálogos Criativos, Domenico De Masi escreve: “para Frei Betto, Deus criou o homem por um ato de infinita bondade; segundo minha concepção, o homem inventou Deus por um esforço de infinita esperança”.
Amar a Deus tem sido tarefa contraditória e concorrente às chances de nos amar. O amor ao Ser Perfeito é desigual, ardiloso, implica uma desproporção de interesses que tende a satisfazer apenas o lado humano: uma pessoa precisa reivindicar muita coisa de Deus, mas nada tem a oferecer para Ele.
Correio Popular, 23/05/2009

Juventude contemporânea

HU On-Line – Como a senhora definiria a juventude contemporânea?
Maria Lucrécia Zavaschi – A juventude contemporânea tem tarefas excessivas: precisa crescer, se adaptar a uma nova vida, dar conta da sua independência financeira e da independência da família. No entanto, o adolescente encontra um mundo altamente competitivo, que não está adequadamente preparado para oferecer posições na sociedade. Além disso, há uma sociedade de alto consumo, que tende ao narcisismo, ao hedonismo, que dá muita importância à aparência, às relações mais descartáveis. Então, as relações genuínas são extremamente necessárias e, às vezes, o adolescente não encontra essas relações mais profundas, as quais ele busca. Parece que falta a ele uma causa, um ideal. Minha geração, dos anos 1960, teve oportunidade de participar de causas políticas, sociais, o que também favorecia o adolescente, pois ele imediatamente encontrava motivos para lutar. Hoje, ele se depara com essa sociedade de consumo desmedido, que superficializa as relações humanas. Então, considero que nosso adolescente não tem encontrado na sociedade de adultos um ambiente acolhedor, necessário. Isto é, ele tem necessidade ser ouvido, mas em muitos momentos isso não acontece.
(A definição é da médica psicanalista MARIA LUCRÉCIA ZAVASCHI, médica graduada pela Universidade Federal do Rio Grande o Sul (UFRGS), com especialização em Child Psychiatry Research Fellow pelo Mount Sinai Hospital. Excerto da entrevista feita pelo site IHU/unisinos, 23/o5/2009.)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

APONTAMENTOS

Hoje quis ler Adélia Prado. Fiz com muito desejo um passeio pelas páginas do seu livro O homem da mão seca, e anotei:

“Deus me cansa,
pois me pede incessantemente
o que não sou capaz de
oferecer-Lhe” (fl.8).
“Eu não quero, ter coragem me dá pavor” (Id).

“O inferno é o lugar dos gritos” (fl.11).

“Pequena ruindade, como um grão de areia,
teima em subsistir, uma coisa enciumada (fl.12)”.

“Sua fé não era ainda, nem a dos místicos
nem a dos seguidores,
mas a de quem procura cheia de arrancos e de sombras e, aí,
sem perdão (fl.17)”.

“... as vezes, calar algo é mais valioso que o mais rigoroso jejum (fl.19)”.

“Que a minha alma cuide do que eu não posso (fl.24)”.

“Todas as vezes que explico muito uma coisa,
querendo facilitar a vida das pessoa,
elas não entendem, passa do ponto (26)”.

“... a cara é a guarda do corpo (fl.30)”.

“Deus não me quer longe do seu colo, fica me treinando com o medo (fl.34)”.

“Sou poderosa porque não sou deus (fl.35)”.

“Tão bonito que parece de mentira (fl.43)”.

“Só o rigorosamente necessário é espontâneo (fl.45)”

“Ah, não se é capaz de morrer,
é tão impossível morrermos
por nós próprios
quanto nascer.
Que grande medo
nascer e morrer (fl.46)”.

“Da carne para o espírito.
Ate hoje fiz
o inverso (fl.71)”.

(PRADO, Adélia. O homem da mão seca – São Paulo: Siciliano, 1994.)

Sob o turbante de Simone

Universo de ícone do feminismo
ganha vida nova
com relançamentos
de suas obras e peça


Uma pergunta trivial, mas sutil, resume o mistério que sempre envolveu a escritora francesa e feminista Simone de Beauvoir (1908-1986). O que ela escondia com seu famoso turbante? A jornalista parisiense Madeleine Chapsal escreveu, certa vez, que duas coisas definiam Simone: seu turbante e seu ar de enfado. Por que usava aquele turbante? "Seria para parecer menos feminina ou para melhor realçar a sua bela testa de intelectual?", Madeleine pergunta. Que significado tinham os cabelos que ela se recusava a exibir?

Quando lançou, em 1949, o célebre "O Segundo Sexo" - cuja reedição inaugura série de nove relanaçamentos da autora pela Nova Fronteira-, Simone afirmava que as mulheres viviam uma situação de esquartejamento, incapacitadas de conciliar os vários aspectos de sua vida diária. Era um massacre. Como se elas jamais pudessem despir o uniforme feminino. Talvez o turbante fosse uma estratégia de Simone para rebelar-se contra esse uniforme.

Escreveu seu livro na esperança de que as mulheres parassem de "fingir que eram elas mesmas" - isto é, se limitassem a encenar, como num palco, o papel que os homens lhes destinavam. A mulher, para Simone, não passava de um personagem do misticismo masculino, de uma invenção do homem. Era dessa invenção que ela devia se despir para, livre do olhar do outro, chegar a si. Mas Simone também recusava a mística feminina - aquela que vê a mulher como especial ou sensível. Queria-a simplesmente humana. Parte desse universo beauvoiriano é reconstruído pela atriz Fernanda Montenegro no espetáculo "Viver sem Tempos Mortos", baseado em cartas e textos da escritora, em cartaz em São Paulo.

O turbante de Simone não era, portanto, algo que a encobria, ou sob o qual se escondia. Ao contrário, era o sinal de uma diferença, um ato (e não um peso). Simone de Beauvoir partia do princípio de que as mulheres estavam encurraladas. Viviam para cumprir papéis, para desempenhar scripts - não lhes sobrava espaço para cultivar segredos. São os segredos que definem a singularidade, que fazem alguém existir. No máximo, elas podiam dedicar-se aos melosos "diários femininos". Maneira tola de encenar o misticismo feminino que Simone, firme, sempre recusou.

Na vida de Simone de Beauvoir o sentimento feminista aparece no mesmo momento em que o encanto pela religião declina. O primeiro esboço desenhou-se quando, ainda jovem, passou a ler, secretamente, livros destinados "aos homens" - Emile Zola, Guy de Maupassant, Anatole France -, autores considerados perigosos para uma mulher. Notável percurso: para chegar ao feminino, Simone teve, primeiro, que se desviar dos rituais do feminino. Aí, talvez, o turbante - ornamento que, entre os hindus reforça as convicções e a força interna - comece a fazer sentido.

O desejo de escrever surgiu aos 15 anos. Era uma vontade de salvação, "substituía Deus", disse. Escrever tornou-se, desde cedo, uma maneira de existir, e não uma profissão. Logo começou a ler Claudel, Valéry, Proust, Gide. Começou, também, a escrever um "diário íntimo", muito diferente das confissões aguadas das mocinhas; um diário no qual a escrita era resistência. Para não ser a mulher que estava destinada a ser, Simone precisava escrever. Desde cedo, vida e escrita se entrelaçam.

Quando começou a estudar filosofia, Simone logo se incomodou com a "voz impessoal" da maior parte dos filósofos. Também Jean-Paul Sartre - com quem ela viveu uma relação amorosa que durou 40 anos - reclamava que quase nunca conversavam com ele sobre literatura. Sartre admirava Flaubert, para ele uma prova de que a literatura era, antes de tudo, "uma feroz tomada de posição". Influenciada pelo companheiro, Simone de Beauvoir fez da escrita uma maneira de viver e, da vida, um caminho para as palavras.

Para Simone, escrever era falar pessoalmente aos outros - como se estivesse em uma mesa de bar ou em um banco de jardim. Era assim que lia os grandes escritores: como se eles redigissem mensagens exclusivamente a ela destinadas. A ideia de escrever "O Segundo Sexo" veio-lhe no dia em que percebeu que, sempre que lhe perguntavam quem era, se sentia obrigada a dizer: "Sou uma mulher". Homens não se apresentam dizendo: "Sou um homem". Para Simone, ser mulher mudava tudo, pois a elas se destinava outro tipo de formação; delas se esperava, também, que habitem outro imaginário - como se vivessem em outro mundo. Ainda assim, bastou que lançasse seu livro para que a acusassem de ressentimento contra os homens.

Simone nunca separou a vida da escrita. Disse certa vez: "Quando me vem uma ideia, escrevo um ensaio". Por certo, quando escrevia um ensaio, algo em sua vida também se modificava. Essa sincronia se tornou não só um estilo, mas uma concepção da existência. Muitos consideram, em consequência, que a literatura de Simone é excessivamente pessoal; que, no fundo, ela escondia um culto do eu e não passava de uma manifestação de vaidade. Ela não transigia: "Escrever sobre mim é a maneira que mais me convém para falar aos outros sobre eles próprios".

Também a criticaram porque, apesar das teses feministas, teve sua vida misturada à de Sartre. Dizia-se que Simone o consultava em excesso e se submetia. Ela se defendia. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações." "O Segundo Sexo" provocou reações furiosas de muitos homens. Diziam que o livro mostrava que ela não passava de uma diluidora do existencialismo sartriano. Os mais insensíveis o leram como um "Sartre para moças".

Simone criticava, com contundência, a naturalização do corpo masculino. O mundo seria "naturalmente" masculino, enquanto a mulher - com seu grande furo - não passaria de uma desviante. Simone jamais deixou que essas ideias a paralisassem; ao contrário, com elas - fazendo do veneno alimento - fortaleceu-se. Seu livro fundou o feminismo moderno. Logo a acusaram de glacial, ninfomaníaca, lésbica, frígida. No avesso desses ataques, a força do livro se evidenciou.

Mulher, desejou desvendar, em "O Segundo Sexo", as particularidades da condição feminina. Idosa, em "A Velhice", livro de 1970, enfrentou os clichês do envelhecimento. Suas inquietações pessoais se tornaram, sempre, reflexões gerais. Escrever, para Simone, não era, em definitivo, o reino do eu. Um de seus grandes temas sempre foi a ambiguidade, que desenvolveu em "A Moral da Ambiguidade". Não seria o turbante justamente a marca do ambíguo? Que cabelo ali se escondia? Feminino? Masculino? O turbante não cobre o rosto, mas o cérebro. É da ambiguidade do pensamento que Simone de Beauvoir sempre tratou.

Fez da literatura uma forma inventiva de autobiografia. Quando falamos de Simone de Beauvoir, de qual Simone falamos - da que existiu ou da que escreveu? Deixou-nos uma resposta: "Escrever é seguir o ditado de uma espécie de ditafone que todos carregamos dentro da cabeça".

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Estado para o século 21

MARCIO POCHMANN*
A presença renovada
do Estado se faz necessária.
Mas seria equívoco tratar
o Estado com as mesmas premissas
do século passado

A VISÃO do Estado atuando em contraposição às forças de mercado se tornou anacrônica diante dos desafios das nações neste começo do século 21.
Pela globalização, por exemplo, diversos países voltaram a se especializar no uso intensivo dos recursos naturais e da produção de contido custo do trabalho, comprometendo o avanço de projetos nacionais capazes de incluir a totalidade de suas populações nos frutos da modernidade.
No Brasil da última década, a prevalência da premissa de que menos Estado representaria mais mercado teve convergência com o modelo de sociedade para poucos. E a contenção do Estado produziu o encolhimento do próprio setor privado nacional (bancos e empresas não financeiras), cada vez mais dominado por corporações estrangeiras.
Com a redução dos bancos públicos, acompanhada da brutal diminuição dos bancos privados nacionais, e o esvaziamento das firmas nacionais entre as maiores empresas no país, parcela crescente da riqueza deixou de ser compartilhada com a nação.
Hoje, pelo menos dois quintos dos brasileiros são analfabetos funcionais, afora um enorme déficit econômico e social. Obstáculos como esses enfraquecem o estabelecimento de um novo padrão civilizatório contemporâneo dos avanços do século 21.
As forças de mercado, embora imprescindíveis na geração de oportunidades, mostram-se insuficientes para garantir o acesso a todos. Não há dúvidas de que, neste contexto, a presença renovada do Estado se faz necessária. Mas que Estado? Um equívoco seria tratar o Estado com as mesmas premissas do século passado.
Neste século, cuja sociedade eleva sua expectativa média de vida para além dos 80 anos, a parcela dos idosos deve superar o segmento infantil e as ocupações geradas passam a depender fundamentalmente do setor terciário, que já responde por três quartos do total dos postos de trabalho.
Sem a garantia do pleno e equivalente direito de oportunidades a todos, o princípio da liberdade de iniciativa individual e coletiva permanece no plano da retórica. Em síntese: a prevalência do reino da desigualdade e da exclusão sediada no Brasil.
O Estado necessário do século 21 precisa incorporar novas premissas fundamentais.
A primeira passa pela reinvenção do mercado, capaz de fazer valer a isonomia nas condições de competição.
Em qualquer atividade econômica, predomina hoje um conjunto de práticas oligopolistas de formação de preços e domínio do mercado, o que exclui parcela significativa dos empreendimentos empresariais da livre competição.
A mudança na relação do Estado com o mercado é urgente e inadiável, com a adoção de políticas que apoiem a igualdade de oportunidades por meio de condições de competição e cooperação só oferecidas ao circuito superior da economia, como o acesso ao crédito, tecnologia e assistência técnica, entre outras.
Uma segunda premissa compreende a mudança na relação do Estado com a sociedade, especialmente quando as políticas universais de saúde, educação, trabalho e transporte não apresentam a eficácia global esperada. Isso porque a complexidade dos problemas atuais requer ação totalizante, por isso matricial e transdisciplinar no plano territorial.
Uma política de assentamento urbano, por exemplo, dificilmente terá êxito sem superar a lógica das caixinhas contida no compartilhamento do Estado brasileiro. Além da especificidade do assentamento, é necessária para a eficácia global a adoção de políticas complementares e articuladas, como educação, saúde, transporte e saneamento, entre outras.
Por fim, uma terceira premissa deve convergir para a mudança na relação do Estado para com o fundo público. De um lado, o avanço na tributação progressiva, capaz de deslocar a base tradicional de incidência (produção e consumo) para o patrimônio e novas formas de riqueza. De outro, a renovação do sistema de financiamento da agenda socioeconômica do século 21 (postergação no ingresso no mercado de trabalho, trajetória ocupacional diversificada, educação para a vida toda). O uso do fundo público comprometido com os novos desafios não precisa ser estatal, podendo ser comunitário.
Tudo isso, contudo, dificilmente poderá ser desenvolvido sem a renovação do Estado para o século 21.

*MARCIO POCHMANN , 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy). Postado pela Folha de São Paulo, 20/05/2009