segunda-feira, 31 de maio de 2010

Provérbio Chinês


"Se houver clareza na alma, haverá beleza na pessoa.

Se houver beleza na pessoa, haverá harmonia na casa.

Se houver harmonia na casa, haverá ordem na nação.

Se houver ordem na nação, haverá paz no mundo".
Provérbio Chinês
 
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Fonte: http://eticaglobal.blogspot.com/2010/05/proverbio-chines.html

A cultura do tédio veloz

Paulo Ghiraldelli*
“Vamos direto ao ponto” – quem não pronunciou uma expressão como esta? Há problema nisso? Depende. A frase pode estar dirigida à cobrança de objetividade na ação. Todavia, não raro, a frase esconde um segredo (de Polichinelo) de nossa época: a cultura da não-reflexão. No limite, essa cultura fomenta o ódio aos que se dedicam a um trabalho específico, intelectual e político, a saber, o da filosofia e o da democracia liberal.

A filosofia faz a tomada das perspectivas em jogo em uma situação problemática e, concomitantemente, promove uma ponderação relativamente acurada sobre cada narrativa que essas perspectivas envolvem. A democracia liberal põe na mesa, ao menos no ponto de partida, a legitimidade política de todas as perspectivas que se apresentam e a garantia de que elas serão objetos de debate livre, cada uma ganhando um bom representante em tal debate. “Vamos direto ao ponto”, não raro, é fórmula pela qual esse debate é atropelado ou dispensado e o modo como o exame reflexivo é colocado como desnecessário. Não é propriamente “a pressa” que é o que se estabelece; é a prática de um longo aprendizado social (e escolar) que se instaurou no contexto da revolução industrial e da urbanização, e que é um tipo de reflexo do tédio que essa forma de sociedade fomenta dentro de sua aparente hiperebulição.

As sociedades modernas se apresentam em nosso imaginário por meio das cenas das grandes metrópoles onde indústria, comércio e setor bancário se acotovelam para se expressar em shopping centers avassaladores. Tudo caminha em velocidade e, no entanto, tudo corre sempre igual para uma boa parte das pessoas, de modo que o melhor represente disso é o globo da morte: o motociclista gira em alta velocidade, mas confinado ao mesmo minúsculo espaço e dentro das únicas rotas possíveis. Há a aparente excitação. Na verdade, dentro dessa agitação, a rotina do tédio se instaura. É o tédio moderno, o tédio em alta velocidade. Nessas sociedades os que são capazes de dizer, com aparente segurança, “vamos direto ao ponto”, são os heróis de todas as horas.

É claro que a morosidade e a falta de capacidade para o simples, quando o simples é possível, não é mérito para ninguém. Mas, o problema é que justamente nas sociedades modernas, a reclamação contra a morosidade se faz indiscriminadamente. Já que a burocracia é morosa, e ela, como Weber deixou bem notado, impera na modernidade, então começamos a jogar a nossa reclamação contra esse tipo de atitude para todo e qualquer lado. Atingimos, assim, setores que iriam melhor se não decepassem elementos trazidos pelas práticas da filosofia e da democracia. O “vamos direto ao ponto” torna-se não uma frase boa para atravessar a burocracia, pois nada a atravessa, e cai no lado mais fraco da modernidade, sua capacidade de reflexão e sua vontade de deliberação. A filosofia demanda o tempo da reflexão e a democracia o tempo da discussão. Juntas, filosofia e democracia podem fazer bons serviços, mas não milagre. Mas, uma sociedade desencantada – ainda para lembrar Weber – como a nossa sociedade moderna, parece se ressentir de não poder mais cultivar milagres. Então, o milagre aparece na ponta da língua daquele que saca o seu “vamos direto ao ponto”. Ele promete, enfim, uma decisão.

Quem se lança à frente prometendo o fim do que classifica como pantomima desnecessária de intelectuais e liberais ganha as palmas dos cansados do tédio em alta velocidade. Abortam pensamentos, forçam decisões, empurram-nos para a burrice e para o autoritarismo.

Essa cultura do “vamos direto ao ponto” atinge todas as nossas instituições. Quanto mais nos burocratizamos, mas tendemos a aplaudir os que tomam nossa voz de vingança e, com a energia delas, pronunciam o feroz e ilusionista “vamos direto ao ponto”. Ilusionista? Em certo sentido, sim. Pois, quando se diz “vamos direto ao ponto”, já não se pergunta mais qual é o ponto, indica-se o ponto único, sacado do bolso do colete como o mágico tira a pomba.

Em uma sociedade moderna, ressentida porque aboliu do horizonte a legitimidade dos mágicos e sacerdotes místicos, aquele que aparece tirando coelhos de cartolas e pombas de lenços ganha uma força enorme se abre seu show dizendo “vamos direto ao ponto”. Ninguém mais quer discutir qual ponto, o que é o tal ponto e como que se vai direto ou indireto para ele. Todos estão entediados na velocidade e parecem poder descansar, como na frente da TV em um fim de semana, segundo o alucinógeno “vamos direto ao ponto”.

“Vamos direto ao ponto”. Quando pronunciarem isso diante de você, cuidado, pois não se irá direto ao seu ponto, mas ao ponto alheio. No ponto alheio, você pega o bonde errado.

Na prática escolar e educacional em geral o “vamos direto ao ponto” tem rebentos bem específicos. Os professores mesmos incentivam a vida desses rebentos. Alguns exemplos refrescam bem nossa memória sobre esse tipo de prática no ambiente de ensino.

Primeiro exemplo. Os professores dão notas por pedaços executadas de tarefas que, feitas por partes, perdem o sentido e a razão de existência. Como é possível se dar nota por alguém ter aprendido 70% dos tempos dos verbos? Não se pode pular tempo verbal. No entanto, há vários escolas tidas como boas em que a avaliação é feita, indiscriminadamente, por porcentagem do que se executou em uma tarefa.

Segundo exemplo. A prática de professores de pedirem a resenha que, enfim, nem síntese é, mas se transforma em resumo ou “fichamento”. A idéia vem já da escola fundamental através da esdrúxula ordem: “leia e tire as idéias principais”. Assim, ensina-se que todo intelectual, que todo autor, escreve mais que o necessário e que o serviço de aprendizado e pegar algumas idéias, pois o conteúdo do escrito, o estilo, o uso da linguagem e a argumentação são “blá-blá-bla”.

Terceiro exemplo. Não são poucas as universidades em que as disciplinas pedagógicas ou de humanidades, quando oferecidas para engenheiros e outros de áreas das ciências naturais são tomadas como “perfumaria”. Pode-se falar de tudo em educação, pois ali é o campo da completa falta de objetividade – essa avaliação não é desmentida veementemente pelos professores das próprias humanidades.

Quarto exemplo. Os órgãos de fomento à pesquisa tratam os filósofos e outros pesquisadores em humanidades como que tendo de se enquadrar em fichas, documentos e prazos dado por padrões de áreas em que o tempo de maturação das idéias, a vivência, é secundário. Criam-se também os modelos de currículos (como plataformas eletrônicas) unificados – corta-se a criatividade do professor em se apresentar, moldando-o a um folha padronizada em que todo e qualquer scholar é visto segundo uma lógica da má equalização.

É claro que em cada um desses exemplos, a reflexão amadurecida e a discussão democrática, por mais que sejam enaltecidas em documentos e falas, não ganham nenhuma preponderância sobre a flecha mortal do “vamos direto ao ponto”.

O resultado dessa cultura, principalmente em países como o nosso, em que as tradições de filosofia e de democracia não são as mesmas da Europa e dos Estados Unidos, ficando aquém do desejado, é algo perverso. Já podemos sentir isso em nossos scholars e em nossos políticos. Os primeiros têm se transformado no que Weber chamou de “especialistas sem inteligência e hedonistas sem coração”, quando quis qualificar o homem moderno em geral. Os segundos ficam semelhantes a meros advogados de porta de cadeia, sempre prontos a rascunharem petições aqui e ali, embora não consigam saber qual o objetivo maior em que estão envolvidos no trabalho do executivo ou do legislativo. Não conseguem promover a cidadania, mas a confundem com a capacidade de ludibriar e modificar rapidamente as leis que impedem sua ação particular, privada, desconhecendo metas históricas do país.

Daqui alguns dias nós encontraremos até mesmo filósofos dizendo “vamos direto ao ponto”. Pois, enfim, políticos já estão dizendo isso. Pois há os que nem mais querem que as eleições se decidam em segundo turno, eles cassam companheiros concorrentes, pois tudo tem de ser feito rapidamente, antes da hora que o próprio jogo previa. Na educação escolar e na educação política, não se combate a morosidade por meio da eficiência e, sim, se elimina a reflexão e o expediente político democrático liberal como se isto fosse o que, enfim, cria a morosidade e nos joga no tédio veloz. Parar isso nos parece, às vezes, impossível. Mas não é! Desde que tenhamos clareza que em certos momentos nós embarcamos no “vamos direto ao ponto”, ferindo nossos próprios interesses maiores, podemos agir requisitando de volta a prática liberal e reflexiva.
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*2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Democracia e Estado

J. B. Libanio*



O papel do Estado pertence aos temas centrais de uma campanha política. Os pontos realmente nodais da questão aparecerão nos discursos políticos sob várias tonalidades. Já circulam eslogans no jogo da disputa dos partidos, sobretudo sobre a questão de um Estado mínimo ou encorpado. Posto sob essa disjuntiva, os afeitos antes ao neoliberalismo defendem de unhas e dentes o Estado mínimo.

Batem na tecla da incompetência, da inoperância da máquina estatal. Julgam-no como fonte de empreguismo, de corrupção, de apadrinhamento. Embarcam na sensibilidade generalizada do povo contra os políticos, considerados, na grande maioria, desonestos e exploradores. Os escândalos reais estendem a todos a mesma nódoa.

Que caminho político tomar? Privatizar o Estado, terceirizar para o setor privado o máximo de serviços que ele até então cumpria. Esquece-se, porém, que, em muitos casos, a burra que financia tal terceirização se alimenta do dinheiro público. A terceirização frequentemente camufla a realidade toda vez que não se analisa com agudeza como acontece o processo privatizante. A privatização corre o risco de passar para grupos privados o gerenciamento e a apropriação de capital e de trabalho que o Estado acumulou durante anos em nome de maior eficiência administrativa.

O dilema básico não se põe respeito ao seu tamanho nem à extensão. A verdadeira alternativa se desloca para a sua função em relação ao povo. Só o Estado tem chance, no capitalismo, de assumir os serviços à população de menor poder aquisitivo nos campos da saúde, da moradia, da educação, da pequena propriedade, da economia solidária. Aí ele cumpre função insubstituível. Quanto mais regular tais atividades mais defende o povo das ambições de grupos econômicos privados.

Cabe-lhe a função de indutor do crescimento do conjunto da nação, favorecendo os setores menos aquinhoados e não de defensor do capital. Este recorre a ele, em contradição com sua ideologia, como na crise de 2008, para salvar os próprios interesses. Naquele momento não lamentou a ação estatal, antes suplicou por ela para salvá-lo do caos econômico que ele produziu por conta da sofreguidão de lucros gigantescos. Simbolizou tal desmando a figura do megaespeculador americano Madoff.

A crise do Estado brasileiro não lhe vem fundamentalmente de seu tamanho, mas do fato de privilegiar o pagamento das dívidas ao mundo financeiro em vez de investir massiçamente no campo social e de estimular os pequenos produtores, a economia popular e solidária. Praticamente as grandes economias fizeram, um dia, a reforma agrária e o Estado brasileiro com tal gigantesco continente de terra produtiva não ousou fazê-la. O Estado não existe para privilegiar os melhores produtores, os maiores capitais, nem mesmo distribuir equitativamente os recursos, mas para fazer pender para o lado dos carentes, necessitados, com menos chances, o prato da balança do seu poder econômico.
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*Teólogo.
Fonte: http://www.jblibanio.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=594  

A saudade do servo na velha diplomacia brasileira

Leonardo Boff *

O filósofo F. Hegel em sua Fenomenologia do Espírito analisou detalhadamente a dialética do senhor e do servo. O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo. A mesma dialética identificou Paulo Freire na relação oprimido-opressor em sua clássica obra Pedagogia do oprimido. "Com humor comentou Frei Betto: "em cada cabeça de oprimido há uma placa virtual que diz: hospedaria de opressor". Quer dizer, o oprimido hospeda em si o opressor e é exatamente isso que o faz oprimido". A libertação se realiza quando o oprimido extrojeta o opressor e ai começa então uma nova história na qual não haverá mais oprimido e opressor, mas o cidadão livre.

Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em "suicídio diplomático" (24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais: "Sucursal do Império", pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, têm seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.

As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.

O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições.

O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.

A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula.
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* Teólogo, filósofo e escritor. Leonardo Boff, junto com Mark Hathaway, escreveu o livro The Tao of Liberation. Exploring the Ecology of Transformation, N.Y. 2009.
Fonte: Adital online, 31/05/2010

Fezes humanas alimentam o mundo

Daqui saem grandes ideias.

As fezes humanas já alimentam boa parte do mundo. E podem alimentar bem mais. De quebra, elas também são uma alternativa de energia (hum...) limpa. E se prepare: ainda existe um verdadeiro pré-sal de cocô a ser explorado!

Leia matéria da Superinteressante sobre “Ecocônomia”, do repórter Maurício Horta:

“Merda de Artista. Contém 30 gramas”, dizia o rótulo das 90 latinhas nas quais o dadaísta Piero Manzoni embalou o próprio cocô em 1961. Quatro décadas depois, as latas estão expostas em alguns dos mais importantes museus do mundo – da Tate Modern, de Londres, ao Centro Georges Pompidou, em Paris – e são disputada nos leilões da Sothesby’s por lances de até 124 mil euros – R$ 10 mil o grama. Mas não precisa ser de artista para o cocô humano valer dinheiro.

De toda a comida do mundo, 10% são produzidos pelos 200 milhões de camponeses que usam esgoto cru para irrigar e fertilizar suas plantações, principalmente na Ásia, segundo estudo do Instituto Internacional de Gerenciamento de Água (IWMI, na sigla em inglês).

Não fosse pelo esgoto, o preço de vegetais em países pobres aumentaria tremendamente. Cada tonelada de fezes humanas tem até 6 quilos de nitrogênio, 2,5 quilos de fósforo e 4,2 quilos de potássio, e cada 1 000 litros de urina, até 70 quilos de nitrogênio, 9 quilos de potássio e 400 gramas de fósforo. “Com essa constituição, fica claro o valor fertilizante dos dejetos humanos tanto para uso em pequena como em grande escala”, diz o engenheiro agrícola Antonio Teixeira de Matos, da Universidade Federal de Viçosa.

Claro que nem ele nem ninguém defende que comer um legume cultivado nas fezes de desconhecidos é uma boa ideia. Um grama de cocô é uma bomba com 10 milhões de vírus, 1 milhão de bactérias, 1 000 cistos de parasitas e 100 ovos de vermes. É a água contaminada por esses organismos que causa 80% das doenças relacionadas à diarreia, que matam uma criança a cada 15 segundos. Ou seja: comer desses cultivos é quase tão perigoso quanto não comer nada.

O potencial de verdade, então, está no esgoto tratado contra micro-organismos nocivos. “A tecnologia para limpá-lo [como tanques de estabilização de dejetos e outras técnicas de baixo custo] já é bem pesquisada e documentada. A questão é apenas aplicá-la onde for necessário”, diz a engenheira ambiental Liqa Raschid, do IWMI.

Os países desenvolvidos já fazem isso, inclusive. Eles processam grande parte dos dejetos, produzindo de um lado água potável e, de outro, o lodo de esgoto – tratado contra bactérias e parasitas. E esse lodo é a base de muitos cultivos. No Reino Unido, por exemplo, 70% do lodo vai para a agricultura, e, nos EUA, só a empresa Synagro fatura US$ 320 milhões coletando lodo de esgoto para vender a fazendeiros do país todo. Só não dá para substituir todo o fertilizante artificial por cocô porque não o produzimos o suficiente.

O tratamento é fundamental para usar esgoto como adubo, mas não é tão necessário se os dejetos forem aplicados em culturas não comestíveis, como fibras, madeira e combustíveis, segundo Matos. “Se a aplicação for feita em doses adequadas, para não contaminar o solo nem as águas subterrâneas, o risco é mínimo. E o aproveitamento deve ser incentivado”, conclui. Resultado: o produto interno bruto do seu intestino vai direto para o do país! Você estará contribuindo para o crescimento econômico cada vez que sentar no trono. Mas isso é só o começo.

PROBLEMA DE GASES

Outro fim economicamente interessante pode ser dado ao cocô: produzir energia. Afinal, as fezes têm gás combustível de montão. Some a criação de animais domesticados do mundo – 1,34 bilhão de vacas, 1,8 bilhão de cabras e ovelhas, 941 milhões de porcos e 18 bilhões de galinhas. Se você pegar só a metade do que essa bicharada solta em um ano, poderá produzir em gás o equivalente a 2,28 bilhões de barris de petróleo por ano, ou 8% do que o mundo consome. Juntando isso à produção intestinal dos 6,9 bilhões de seres humanos… bem, as chances energéticas parecem ilimitadas.

Ainda assim, a produção de gás de origem biológica (o biogás) está engatinhando. É que um biodigestor comum precisa de em média 30 litros de matéria orgânica por dia para se tornar viável, enquanto uma pessoa faz cerca de 250 gramas de cocô e 1 litro de urina nesse período. Não dá grande coisa em biogás. Para manter acesa uma única lâmpada de 100 W, por exemplo, só com a produção diária de 10 pessoas.

Mas com uma forcinha dos animais a coisa funciona. Uma vaca produz 30 quilos de estrume por dia. Juntando isso com a porção humana, já dá para conversar. Tanto que, hoje, 15 milhões de lares na China rural conectam suas privadas a um biodigestor – e, poucas horas depois de terem dado a descarga, podem acender o fogão e cozinhar o almoço. Com 1,6 bilhão de pessoas, o país conseguiu então estampar mais um título autoatribuído de grandeza: o de país que aproveita mais energia do cocô. Num vilarejo-modelo na província de Shaanxi, todo cocô, humano ou animal, é aproveitado para produzir energia. A Índia segue o mesmo caminho, com seus 283 milhões de vacas. Mas é o Nepal o país com mais biodigestores per capita. Com 83% da população no campo e constante falta de combustível, 4% dos nepaleses usam o biodigestor a cocô de vaca. O Brasil vai devagar, mas São Paulo e Mato Grosso já têm fazendas com biodigestores de fezes de porcos.

Esse tipo de iniciativa pode fazer toda a diferença para o bolso dos criadores de animais. E para o seu. Por exemplo: se todas as criações de frango aproveitassem a quantidade mastodôntica de titica que produzem, a carne poderia ficar 4% mais barata no supermercado, segundo um estudo de Julio César Palhares, pesquisador da Embrapa. Isso corresponde ao custo do aquecimento elétrico, uma necessidade dos criadouros. E a energia da titica, sozinha, daria conta de eliminá-lo.

Mas nem sempre é necessário criar animais para que os biodigestores sejam viáveis. Em lugares de população grande e concentrada o sistema pode vingar. Foi o que aconteceu nas prisões Ruanda. O genocídio de 1994 inflou a população carcerária do país, bombando tanto os gastos com lenha para cozinha quanto a produção de fezes, que acabava nos rios. O cocô dos presos tinha virado um problema nacional! A solução? Cozinhar a comida deles com biogás feito de suas próprias fezes. Pronto. Desde então, esse combustível humano permite uma economia de 60% nos gastos com lenha – gastos que chegariam a US$ 1 milhão por ano.

Os europeus também já podem entrar no banheiro e sair com a consciência ambiental mais limpa. A Alemanha transforma 60% de suas fezes em energia, e a Inglaterra deve fechar 2010 passando a marca de 75%. Na Suécia já há carros funcionando, indiretamente, à base de cocô. A cidade de Linköping transforma todo o esgoto de seus habitantes (e mais o cocô de porcos e bois) no biogás usado nos 64 ônibus do lugar e no primeiro trem movido a cocô do mundo, que tem autonomia para percorrer 600 quilômetros. Enquanto isso, 12 postos abastecem os carros locais, economizando 5,5 milhões de litros de gasolina. Com isso, 9 toneladas de CO2 deixam de ser lançadas no ar por ano.

Mesmo assim, ainda existe um pré-sal de cocô a ser explorado. Simplesmente porque quase todo ano ele é desperdiçado por falta de saneamento básico. No mundo, 2,5 bilhões de pessoas não contam com esse luxo. Não é que não tenham acesso ao esgoto. Eles não possuem sequer uma fossa: vão para campos abertos de defecação, linhas de trem, florestas… E em algumas favelas, partem para o toalete-helicóptero: fazem num saquinho e jogam no telhado do vizinho.

Inspirador, não? Bom, para o empresário sueco Andrés Wihelmson foi. Primeiro ele viu saquinhos de cocô voando em favelas do Quênia. Depois, constatou que esses lugares tinham bastante espaço livre que poderia ser usado para plantar. Aí ele juntou as duas coisas numa ideia só: fazer saquinhos-privada biodegradáveis e com produtos químicos que matam os germes do cocô. Depois de se aliviar, você enterra a caca e ela vira adubo. Andrés já testou a coisa na África e deve começar a produção neste ano. A intenção não é fazer caridade, mas vender os saquinhos pelo equivalente a R$ 0,05. Com lucro. Pois é: com cocô não se brinca.

Mercado de m...
Nem só de adubo e de bioenergia vive a indústria do cocô.

CAFÉ
O Luwak, um tipo de sagúi asiático, é tão fresco que só come os melhores grãos de café arábica da Indonésia. Depois de sair de seu ânus, os grãos produzem o mais caro café do mundo - até US$100 a xícara. Seleção natural!

PAPEL
Um elefante descarrega pelos  intestinos fibra suficiente para produzir 115 folhas de papel por dia. Uma agenda de cocô de elefante tailandês sai por US$15. Já um par de cartões de visita de cocô de panda sai por US$8.

INCENSO
Na Índia tudo o que vem dos 250 milhões de vacas é sagrado - inclusive o 1,25 milhão de toneladas de cocô que fazem por dia. Ele é usado como incenso. Os mais devotos usam a fumação para defumar queijo.

CARVÃO
Nas casas pobres indianas é comum ver no quintal mulheres amassando estrume e transformando em bolachas - para secar e guardar e usar como combustível para o fogo. Ou como enfeite nas paredes.

SABONTE
Feito com estrume de vaca hare krishna, o sabonete Angarag (R$0,60) é um must. Ele vem de uma fazenda mantida por monges. Aproveite e leve o Netra Jyotri (15ml): um colírio à base de urina de vaca, por R$,080.

BATOM
A ideia vem da empresa de tratamento de esgoto de Londres, Thamas Water. Rico em gorduras (4% do cocô são lipídios), o lodo de esgoto pode ser fonte de matéria-prima para fazer cosméticos.

PRIVADA
É como fechar um ciclo, hehe. A designer Virginia Gardiner criou uma privada descartável feita de 90% de cocô de cavalo. Depois de usar, você pode colocar a privada inteira num biodigestor para produzir energia.

Para saber mais:

Poop Culture, David Praeger, 2007. Editora: Feral House.
The Big Necessity, Rose George, 2008. Editora: Metropolitan Books.
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Fonte:Revista Superinteressante, maio/2010- pg.80/83

A Curva dos Olhos D’Água

L. F. VERISSIMO*


Já contei como foi meu primeiro encontro com o Latim na escola. Não houve encontro. Quando descobri que o Latim fazia parte do currículo no novo ano letivo decidi que aquilo não era para mim e fugi. Troquei as aulas de Latim por passeios perto da escola. Até hoje não sei como nunca fui pego gazeando as aulas. Ainda se diz “gazear”? A escola ficava no alto de um morro e no pé do morro ficava o Jockey Club de Porto Alegre, o Prado. Na hora do Latim, eu descia o morro e ia ver os cavalos treinarem. Fui um frequentador tão assíduo destes exercícios matinais que um dia me vi até segurando um balde para um treinador que escovava seu cavalo. Depois subia o morro e voltava à escola. No exame oral de fim de ano, o professor de Latim apertou minha mão e disse “Muito prazer”, pois só me conhecia de nome. Tive que repetir o ano, claro.

Infelizmente, minha frequência nos bastidores do hipódromo não me transformou num expert em cavalos e corridas. Só o que aconteceu foi que passei a acompanhar o noticiário do Jockey, que naquele tempo ocupava bastante mais espaço nos jornais e nas rádios do que hoje, pelo menos em Porto Alegre. E gostava de ler a descrição das corridas nos jornais ou ouvi-las sendo narradas no rádio. A primeira curva da pista do Prado depois da reta de chegada era chamada de Curva dos Olhos D’Água. Eu achava bonito aquilo: Curva dos Olhos D’Água. Nunca descobri se havia mesmo vertentes atrás da curva, para justificar o nome. Preferia pensar que a razão do nome era puramente poética. Como a que inspiraria, anos depois, o Chico Buarque a compor a sua “Morena dos olhos d’água” , a única outra referência literária à expressão que eu conheço. Quando o Jockey Club mudou de lugar, fizeram um parque no local e, que eu saiba, não encontraram olhos d’água no terreno. Talvez fosse mesmo apenas literatura.

Cheguei a pensar que se um dia escrevesse um livro sobre aquele garoto que fugia do Latim e ia ver os cavalos, o título seria “A Curva dos Olhos D’Água”. Significando nada, apenas para não desperdiçar o nome. Como o livro não sairá, vai uma crônica mesmo.
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*Escritor. Cronista.
Fonte: ZH online, 31/05/2010

A infinidade de amores na dor de existir

Dossiê: A tradição psicanalítica de compreensão do amor
Paradoxo do amor: o que falta ao amante é justamente o que o amado não tem

Nadiá Paulo Ferreira

O discurso psicanalítico, ao investigar os fundamentos do amor, apresenta, de forma sistematizada, o que os poetas já sabiam: o encontro da verdade com o saber não decifra toda a verdade.

O desejo de saber o que o amor é esbarra com algo indizível. Assim, o que não pode ser dito e escrito converte o amor em “um mal, que mata e não se vê”, em “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei por quê” (Camões). Amar e saber o que é amar são coisas diferentes. Amar é um acontecimento que nunca se esquece; é inventar sentidos para a existência no mundo. Saber o que é amar é impossível, porque “quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe por que ama, nem o que é amar” (Fernando Pessoa).

Diante da impossibilidade de saber toda a verdade, fala-se de amor. Isso é o que vem sendo feito há séculos. Platão, em O Banquete, retrata os lugares do discurso: o do amante e o do amado. Jacques Lacan (1901-1981) baseia-se no amor grego para articular o par amante-amado com a estrutura do amor. Aquele que experimenta a sensação de que alguma coisa lhe falta, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de sujeito do desejo (amante); aquele que sente que tem alguma coisa, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de objeto (amado). O paradoxo do amor reside justamente no fato de que o que falta ao amante é precisamente o que o amado não tem. Se Eros nasce de uma aspiração impossível, que é de dois fazer um, o ser humano inventa o mito do amor, sustentado na promessa de felicidade. E, enquanto isso não vem, o bem se transforma em mal, inaugurando uma escola de amor infeliz.

Freud e a teoria da sexualidade humana

Em O Mal-estar na Civilização, Sigmund Freud (1856-1939) adota a versão do amor que se encontra no poema “Sobre a Natureza”, do filósofo grego Empédocles (490-430 a.C.): Eros é uma força que tende para a unificação. Em As Pulsões e Suas Vicissitudes (traduzido em português por Os Instintos e Suas Vicissitudes), Freud cria o conceito de pulsão para construir uma teoria da sexualidade humana: as pulsões são os representantes psíquicos de estímulos internos, situando-se no limite entre o psíquico e o somático, e apresentam-se divididas em pulsões sexuais e pulsões do eu (pulsões de autoconservação).

As pulsões sexuais (oral, anal e genital), constituídas por quatro elementos (impulso, fonte, alvo e objeto), passam por quatro processos de transformação: reversão a seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, recalque e sublimação. A reversão a seu oposto caracteriza-se pela transformação do amor em ódio. Essa metamorfose se refere a um tempo arcaico, regido pelo autoerotismo (narcisismo primário), o qual é dividido em duas fases. Na primeira fase, as pulsões do eu e as pulsões sexuais têm o mesmo alvo, porque ainda não se separaram: é a satisfação autoerótica. Sob o domínio do princípio de prazer, constitui-se um eu primitivo, interessado pelo que lhe dá prazer e desinteressado do que lhe dá desprazer. Essa indiferença, nomeada de “repúdio primordial do eu narcísico”, inaugura o ódio.

Na segunda fase, o eu da realidade, transformado em eu do prazer purificado, realiza a distinção entre o fora e o dentro pela via da fantasia: o que causava desprazer e era odiado é expulso do próprio corpo, passando a constituir, então, o campo dos objetos; o que causava prazer passa a ser amado e, como tal, incorporado ao próprio corpo (eu do prazer). É importante ressaltar que a precedência do ódio sobre o amor está diretamente ligada às suas fontes: o ódio nasce sob o domínio do princípio de prazer e o amor inaugura-se no momento em que se constitui a pulsão. Do acoplamento do amor ao ódio resulta a marca primordial do amor, a ambivalência (amor/ódio).

Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud aborda o amor a partir da escolha de objeto. Todo ser humano tem dois objetos sexuais: ele mesmo e aqueles que desempenham as funções de alimentação e de proteção. Em função disso, temos duas escolhas: narcísica e anaclítica. Na escolha narcísica, ama-se o que se é, o que se foi ou o que se gostaria de ser. Aqui, o objeto é amado com a mesma intensidade que outrora o eu do prazer fora amado no autoerotismo. Na escolha anaclítica, ama-se a parte do eu que foi renunciada e transferida para o objeto, fazendo com que o objeto seja revestido das funções materna e paterna: a mulher que alimenta ou o homem que protege.

Freud retoma, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a escolha do objeto amado pelos mecanismos de idealização e de identificação. A idealização caracteriza-se pelo engrandecimento do objeto e a identificação pela forma mais arcaica de laços afetivos com o objeto. Na idealização, o intenso investimento do eu no objeto implica não só o empobrecimento desse eu, mas também a sua ligação com o objeto, mesmo depois da perda ou do abandono.

A separação é vivida como dilaceração, fazendo com que o eu experimente a dolorosa sensação de que uma parte de si mesmo foi arrancada para sempre. Por sua vez, na identificação, a perda ou o abandono do objeto conduz à incorporação de suas propriedades pelo eu. Assim, na idealização, o objeto é colocado no lugar do ideal do eu, e, na identificação, o objeto é colocado no lugar do eu. Na idealização, ingressamos no reino da paixão, onde o amante, encantado pelo objeto amado, é levado à servidão sem limite. Na cegueira da paixão, o enamorado pode inclusive ser arrastado ao impulso do crime. A perda do objeto da paixão converte o amor em ódio, fazendo com que o desejo de posse se transforme em desejo de destruição.

Lacan e o amor como paixão e dom ativo

Lacan, em seu projeto de retorno à obra de Freud, faz questão de enfatizar que é preciso distinguir entre o amor como sentimento da paixão e o amor como dom ativo. O amor como paixão inscreve-se no plano das relações imaginárias, nível das relações especulares, em que as imagens do eu e do outro se confundem. O amor como dom ativo inscreve-se no plano das relações simbólicas, dimensão da palavra, cujo registro é o da verdade, da mentira, da equivocação e do erro. A paixão visa ao outro como objeto e o amor visa ao outro como sujeito.

Na paixão, exigem-se provas de amor. Mesmo que as provas sejam dadas, nunca o apaixonado se dá por satisfeito, porque não se trata de ser amado, mas, sim, de querer ser amado do modo pelo qual se imagina que se deva ser amado. Qualquer particularidade do outro amado tem de ser apagada para que se mantenha a fantasia de que de dois se faz um. Lágrimas são derramadas pelo que deveria ter sido e não foi. O fracasso de um sonho torna-se a causa do sofrimento de amor, o qual se transforma em ódio de si mesmo e do outro. Na paixão, amar é querer enviscar-se no objeto, capturando-o; odiar é querer desvencilhar-se do objeto, aviltando-o. Lacan afirma inclusive que “o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário”.

Não basta o exílio, a prisão, o assassinato; é preciso a injúria para denegrir o ser do outro odiado. Se não se pode eliminar a existência do outro odiado na linguagem, o caminho da difamação é a via pela qual se tenta associar um nome à indignidade e à vilania. Um terceiro elemento é acrescentado ao par amor-ódio: a ignorância. O desejo de não querer saber está para a paixão assim como o desejo de querer saber está para o amor. O amor como dom ativo está para além da fascinação imaginária, porque se dirige ao ser do outro em sua particularidade. Trata-se de um amor que se inscreve no regime da diferença, onde dois não fazem um, mas dois.

No Seminário 4: a Relação de Objeto, Lacan aborda outra modalidade do amor, aquele concebido como recusa do dom e situado em torno do que o objeto amado não tem. Três elementos entram em cena: amante, objeto amado e para além do objeto. O que se ama está para além do objeto. E o que estaria nesse além senão a própria falta? Justamente por isso, Lacan diz que o dom dado em troca não é nada: “o nada por nada é o princípio da troca”. Na dialética da recusa do dom, o sujeito sacrifica-se para além daquilo que tem. Então, amar é dar o que não se tem, e o acento está no amor, não no objeto amado. Esse acento comparece no amor cortês (o trovadorismo dos séculos 12 e 13), na concepção barroca de amor, em Fernando Pessoa etc. O que se ama é o próprio amor.

Lacan introduz, ainda, no Seminário 11, o conceito de sujeito-suposto-saber (SsS) no amor de transferência: “Desde que haja em algum lugar o sujeito-suposto-saber, há transferência”. A introdução de um sujeito-suposto-saber no amor de transferência não modifica a sua estrutura, que é a mesma da paixão. Por isso, ao amar alguém, suponho um saber; ao odiar a alguém, suponho um não saber (o saber que está em jogo é um saber sobre o desejo).

Há uma infinidade de amores. Mesmo assim, o amor não é a panaceia para a dor de existir, inclusive porque, como nos ensina um poema do século 16 atribuído a Camões (“Amor É Fogo que Arde sem Se Ver”), como se pode esperar paz, harmonia e felicidade nos corações humanos, “se tão contrário a si é o mesmo amor”?
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/05/a-infinidade-de-amores-na-dor-de-existir/

Heloisa

LUIZ FELIPE PONDÉ*


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Um dos males da época brega em que vivemos hoje
é achar que todo mundo seja capaz de amar
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MUITAS LEITORAS me perguntam se acredito no amor romântico. Sim, e vou dizer como. Adianto uma diferença: uma coisa é o amor no sentido do que dá "liga" no convívio de longa duração e outra coisa é o amor romântico (pathos), e os dois não são "parentes".

O amor no sentido de "liga" é cristão: doação, esforço cotidiano, construção de vínculos. O amor romântico é da ordem da tragédia.

Não farei uso de nenhuma pretensa sociologia do amor ou história do beijo. Essa afetação científica não me interessa. A minha descrença nas ciências humanas está além da possibilidade de cura. Parafraseando Pascal (séc. 17), quando se refere a Descartes (séc. 17): acho as ciências humanas incertas e inúteis.

Tampouco sofro da afetação das neurociências. Aqui, o amor seria apenas uma sopa com mais ou menos serotonina. Pouco me importa qual lado do cérebro acende quando amo. Ambas nos levariam a conclusões do tipo: o amor romântico seria uma invenção a serviço da ideologia burguesa e patriarcal ou alguma miserável conjunção de neurônios, como num tipo de demência senil.

Falo como medieval extemporâneo que sou. Acho a literatura medieval melhor para falar do amor romântico (como achava o mexicano Otavio Paz). Em matéria de ser humano, confio mais nos medievais do que nos homens modernos.

Segundo André Capelão (séc. 12) em seu "Tratado do Amor Cortês", o amor é uma doença que acomete o pensamento de uma pessoa e a torna obcecada por outra pessoa, criando um vício incontrolável que busca penetrar em todos os mistérios da pessoa amada: suas formas, seu corpo, seus hábitos.

Trata-se de um anseio desmedido, uma visão perturbada que invade o coração dos infelizes. Tornam-se ineficazes e dispersos. Esses infelizes deliram em abraçar, conversar, beijar e deitar-se com o ser amado, mas jamais conseguem fazê-lo plenamente (por várias razões), e essa impossibilidade é essencial na dinâmica do desejo perturbado. Corpo e alma estremecem anunciando a febre da distância.

O amor romântico é uma doença. Nada tem a ver com felicidade. Por isso sua tendência a destruir o cotidiano, estremecendo-o.

Ou o cotidiano o submeterá ao serviço das instituições sociais como família, casamento e herança patrimonial, matando-o.

Por isso, os medievais diziam que o amor não sobrevive ao cotidiano. O cotidiano respira banalidade e aspira à segurança (irmã gêmea da monotonia, mas que a teme ferozmente), e a paixão se move em sobressaltos e abismos. Uma pessoa afetada pela paixão não pensa bem.

Nem todo mundo sofrerá da "maldição de amor", como diziam os medievais. Muita gente morre sem saber o que é essa doença.

Um dos males da época brega em que vivemos é achar que todo mundo seja capaz de amar como se este fora um direito do cidadão. Com a idade e o estrago que o cotidiano faz sobre nossas vidas e suas demandas de acomodação dos afetos (e a instrumentalização a serviço do sucesso material), a tendência é nos tornarmos imunes ao "vírus".

O século 12 conheceu a triste história do filósofo Abelardo e sua amada Heloisa. As semelhanças dessa história com os contos de amor cortês como Tristão e Isolda ou Lancelot e Guinevere é grande. Nesses contos, há sempre um impeditivo ético à paixão.

Um dos amantes é sempre casado com alguém virtuoso ou um porá em risco a vida do outro devido ao ódio ou a inveja de um terceiro (por isso, se forem virtuosos, devem abrir mão do amor). O desejo se despedaça contra o fogo da virtude, mas não morre, apenas arde em agonia.

Daí a grande sacada dos medievais: quando desejo e virtude se contrapõe, a "maldição de amor" assalta a alma. Sentir-se pecador (e por isso não merecedor da beleza do amor) destrói a alegria, atiça o desejo e piora a doença. A melhor rota é fugir do amor, porque uma vez ele instalado, a regra é a dor.

Abelardo morreu castrado pelo tio da Heloisa. Ela, triste, foi trancada num convento. Na idade média, a Igreja recebeu muitas mulheres desesperadas, vítimas dessa doença, muitas vezes, fatal. Como diz o livro Cântico dos Cânticos na Bíblia, texto inspirador da literatura cortês: "Não despertem o amor de seu sono..., pois ele é um inferno".
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*Filósofo
ponde.folha@uol.com.br  
Fonte: Folha online, 31/05/2010

O ''biólogo doméstico'': um especialista indispensável



Começa em 375 dólares uma primeira visita do "home biology consultant", o biólogo doméstico. O protetor da saúde contra as agressões invisíveis que sofremos entre as paredes de um apartamento: exalações químicas, ondas eletromagnéticas e outros venenos escondidos na água da torneira, na despensa, nos detergentes e nos cosméticos.

Em Manhattan, basta entrar no site healthydwellings.com ("casassaudáveis.com") e marcar uma visita com Matthew Waltezke. 35 anos, triatleta, fanático convicto pela saúde. Waltezke estudou na Flórida, no Institute for Bau-Biologie & Ecology, que executa experiências-piloto nascidas na Alemanha. Waltezke se apresenta nas casas com um arsenal que lembra os "Ghostbusters", os caça-fantasmas armados com misteriosos aparelhos eletrônicos. Mas os fantasmas que ele caça são reais.


Ele usa uma medidor multidirecional de frequências de rádio, um gasômetro, uma espécie de compasso eletrônico para o magnetismo, um medidor de umidade. "Contrariamente ao senso comum – explica o biólogo –, também em uma megalópole imersa na poluição como Nova York, a poluição das ruas é 50% inferior à que respiramos dentro das paredes de casa". Justamente onde acreditamos estar mais seguro, estamos cercados.

"Slow Death by Rubber Duck", ou seja, a morte lenta por meio do patinho de plástico, é o título irônico de um estudo publicado por dois cientistas ambientais canadenses. Subtítulo: "O perigo escondido nos objetos cotidianos". Do forno de micro-ondas à tela de TV ultraplana, do detergente para pisos até o banheiro: tudo parece programado para nos matar.

O primeiro exame do biólogo é dedicado aos eletrodomésticos. Até a geladeira emite radiações. As suas radiações, por sorte, se atenuam assim que nos afastamos 30 centímetros dela. O micro-ondas, ao contrário, continua bombardeando-nos a dois metros e meio de distância. Waltezke acrescenta as radiações dos celulares e telefones sem fio, aparelhos hi-fi, computadores, até os interruptores de luz que hoje estão mais na moda, aqueles com regulação de intensidade luminosa.

"Entre os aparelhos eletrônicos domésticos, do automóvel, as antenas nos tetos dos arranha-céus – explica um outro especialista em bioconstrução, Louis Seslin –, a espécie humana é a cobaia de um gigantesco experimento biológico à base de tempestades elétricas".

Outros inimigos são menos hi-tech. O medidor de mofo revela essa praga escondida dentro das paredes, principalmente perto de banheiros e cozinhas: o percentual de pessoas afetadas por alergias, asmas e outros distúrbios respiratórios ligados ao mofo cresce de modo exponencial. E a água que bebemos? Os ambientalistas contestam a mania das águas minerais, que enche o planeta de garrafas de plástico e aumenta as emissões de CO2 (por causa do transporte). Mas a celebrada "água do prefeito" que sai da torneira não é tão pura como gostaríamos. Em Nova York, ela contém flúor, cloro e até traços de arsênico.

O biólogo doméstico Waletzke esvazia o armário do banheiro para revistar os assassinos que nós mesmos introduzimos: cosméticos embutidos de substâncias químicas mortais, como os ftalatos no xampu mais comum. Também não se salvam os produtos New Age que associamos a um bem-estar zen: "Fora com as velas aromáticas – ordena Waletzke –, tudo o que exala fumaça envenena, não importa se é perfumada".

Por 375 dólares, a sua primeira visita no apartamento dura três horas. Ela termina com um diagnóstico preciso, oito folhas, incluindo um elenco de prescrições. "O meu objetivo – explica o biólogo doméstico – é identificar todos os elementos físicos de alto potencial estressante, os alimentos contaminantes, os plásticos cancerígenos, os detergentes tóxicos. Vocês não podem controlar a poluição do planeta que lhes agride assim que saem lá fora. Pelo menos dentro das paredes de casa, vocês têm essa opção".

Por exemplo, repintar todas as paredes com tinta de carbono, cor preto lúcido, que absorve até 97% das ondas eletromagnéticas. Uma alternativa menos custosa: cobrir as paredes com papel de parede de cânhamo natural. Para a água, são obrigatórios os filtros (Oliver Stone tem um consultor específico só para isso, o "biólogo das águas domésticas", que fatura mil dólares por intervenção).

Existem também os remédios "pobres", ao alcance de todos, como as janelas abertas. Um verdadeiro elixir é redescobrir o uso que as nossas avós faziam do vinagre: detergente quase universal, sem contraindicações. Salvo o cheiro que não é um Chanel Nº. 5...

O biólogo doméstico, porém, não quer nos dar outro estresse: "No final do check-up da sua casa – diz Waletzke –, indico uma série de intervenções facultativas, em ordem decrescente de urgência. É preciso ter uma hierarquia de prioridades também nas angústias".
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*A reportagem é de Federico Rampini, publicada no jornal La Repubblica, 29-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 31/05/2010

Feminista diz em livro que movimento ecologista oprime as mães

Capa do livro "O Conflito - A Mulher e a mãe", que será lançado no Brasil ainda em 2010

Imposição sobre amamentação e uso de fraldas de pano contribuiria para a 'regressão do papel da mulher'

Um livro escrito pela filósofa e feminista francesa Elisabeth Badinter, que será lançado este ano no Brasil, está causando grande polêmica na França por acusar os movimentos ecologistas de contribuir para a regressão do papel da mulher na sociedade ao "impor" a amamentação, o uso de fraldas de pano e a necessidade de alimentar os bebês somente com produtos naturais, preparados em casa.

O livro Le Conflit - La Femme et la mère (O Conflito - A Mulher e a mãe, em tradução literal - o título da edição brasileira, que deve ser lançada pela Editora Record até o final do ano, ainda não foi definido) já vendeu mais de 150 mil exemplares e está na lista de best-sellers na França desde seu lançamento, em fevereiro.

Atualmente na 11ª posição global, segundo o ranking da revista Livres Hebdo, o livro chegou a ser número um de vendas e ocupou durante várias semanas consecutivas o segundo ou terceiro lugares.

Segundo a autora, o discurso ecologista está limitando as mulheres ao papel único de mãe ao exigir uma série de comportamentos e deveres que tornam a maternidade um "trabalho em tempo integral".

'Tirania da mãe perfeita'

Na prática, para Badinter, o movimento naturalista incitaria as mulheres a ficar em casa para cuidar dos filhos.

"Estamos assistindo a uma verdadeira mudança radical, que está ocorrendo de forma subterrânea. Há um aumento incrível dos deveres maternos. A natureza se tornou um novo Deus, com critérios morais que culpam quem não seguir o discurso", disse Badinter em entrevista à BBC Brasil.

A filósofa afirma que "há uma tirania da mãe perfeita" e que "uma boa mãe", nos dias de hoje, segundo as teorias ecologistas, é "aquela que amamenta durante pelo menos seis meses, não coloca o filho em creches tão cedo porque deve existir uma relação de fusão com a criança, não usa fraldas descartáveis nem alimentos industrializados".

"Os potinhos para bebê se tornaram um sinal de egoísmo da mãe, então voltamos para os purês preparados em casa", afirma.

"Em nome desta ideologia naturalista, nos países escandinavos quase não há mais anestesia peridural nos partos, ela até mesmo é fortemente desaconselhada", diz Badinter.

Amamentação

Para Badinter, esse modelo de maternidade, com teorias "ecológicas moralizadoras, que fazem a natureza passar na frente das mulheres, torna impossível a igualdade entre os sexos".

A escritora diz que a necessidade da amamentação se tornou o centro dos deveres maternos e também demonstra o fortalecimento do discurso naturalista que começou nos Estados Unidos, com a Liga do Leite, e no norte da Europa.

Badinter afirma no livro que o "direito de amamentar" está se tornando uma obrigação, reforçada pela Organização Mundial da Saúde, para todas as mulheres, o que também provocou críticas na França de pessoas que apontam os benefícios do leito materno.

"Não critico a amamentação. Só não quero que seja um modelo imposto. Nos hospitais, há pressão para que as mulheres façam isso. Mas a mamadeira também é boa para a criança. Não somos todas iguais, como chimpanzés. Há mulheres que não gostam de amamentar", afirma.

A França registra a segunda maior taxa de natalidade da União Europeia, após a Irlanda, segundo a Eurostat (agência europeia de estatísticas).

Revolta

Na França, o livro suscitou inúmeras críticas de pediatras, políticos e até mesmo feministas, além de pessoas ligadas a movimentos ecologistas, que se autodenominaram "verdes de raiva" em relação ao livro em discussões na internet.

"Tornar a ecologia responsável pelas carências herdadas do mundo patriarcal europeu é algo errado e estéril", diz Cécile Duflot, secretária-geral do Partido Verde francês.

"Elisabeth Badinter deveria questionar as diferenças salariais entre homens e mulheres e o problema da divisão das tarefas domésticas."

Duflot acrescenta, em resposta ao livro, que apesar de ela ser ecologista, em sua casa é seu marido quem toma conta dos filhos.

Badinter também já havia criado grande polêmica na França com outro livro, lançado há 30 anos, no qual afirma, baseada em fatos históricos, que o instinto materno não existe.
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BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
Fonte: Estadão online, acesso 31/05/2010

domingo, 30 de maio de 2010

Blogueiro mistura fragmentos de textos para criar novas obras

RIO DE JANEIRO - Todo mundo já se acostumou com a ideia de um DJ se apropriar de uma música e recriá-la misturando-a com outras. Na literatura, contudo, a prática do remix e do mashup ainda é rara. Com o blog Mixlit (http://mixlit.wordpress.com/ ), o tradutor e colaborador editorial carioca Leonardo Villa-Forte aventura-se em um território quase inexplorado. Em cada post, seleciona trechos de diferentes escritores, combinando, sem fazer uso de hierarquia, passagens escritas por cânones e novatos, famosos e desconhecidos.

– Cada texto fica bem diferente do outro – avalia Villa-Forte. – A semelhança entre todos é que são curtos e se concentram em uma situação ou personagem. Alguns ficam mais secos e diretos, focados na ação, outros mais poéticos e evocativos, e outros mais lúdicos e metafóricos. Cada um depende dos autores que uso e do encaixe que faço entre eles.

A ideia veio num dia em que Villa-Forte lia deitado, rodeado por vários outros livros espalhados pela cama. Em algum momento, fechou um romance e abriu outro que estava ao seu lado. O gesto foi se repetindo sucessivamente, fazendo o blogueiro perceber que algumas passagens de um livro poderiam se encaixar com as de outro.

– A continuação desse trabalho ainda é algo bastante recente, mas posso ver seus resultados correndo por algumas vias – sustenta Villa-Forte. –Primeiro, na formação de um espaço em que textos de vários estilos conversam entre si, criando um ambiente de multiplicação de sentidos e interpretações. Segundo, a possibilidade de uma apreciação diferente que se pode fazer de cada autor.

Para o autor, o blog mostra o quanto a literatura é algo em movimento, que não é estática ou intocável.

– Ela produz efeito no mundo, tem desdobramentos para além do ponto final que se coloca num conto, romance ou poesia.

Villa-Forte acredita ainda que a iniciativa também ajuda a ressaltar o lugar do leitor na criação de sentido sobre aquilo que escolhemos ler.

– Acentuo a liberdade que temos na parceria que firmamos com a leitura.

O blogueiro, no entanto, pondera que, ao contrário do que defende David Shields em Reality hunger, existem diferenças claras entre criar e recriar, entre um texto inteiramente novo e uma reprodução literal. Por isso, indica ao fim de cada texto todos as obras que surrupiou.

– Quem escreveu as palavras foram os escritores, e se não houvesse seus romances, contos e poesias, seria impossível a criação de um remix – justifica Villa-Forte.

Para ele, a ideia de se apropriar de passagens de um texto já escrito sem fazer menção ao autor e ao texto original remete, sim, ao que se chama “plágio”.

– Se é para fins de exposição, divulgação ou até consumo, penso não ser honesto reproduzir algo literalmente sem qualquer declaração sobre a fonte de onde foi tirado. Estou falando de reprodução literal – ressalta. – Feita a declaração, dada a nota, a coisa muda de figura e aí se pode perceber a autoria de uma obra que reconhece suas bases em outras, o que não é problema nenhum. A noção de autoria seria a mesma, as diferenças são na autoria de o quê. Ser autor de um romance, de uma música, de um filme, ou ser autor de um remix, de uma colagem. Há uma diferença de procedimento entre os dois processos. E os dois são válidos e legítimos.
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Reportagem: Bolívar Torres, Jornal do Brasil

Fonte: JORNAL DO BRASIL  - 29/05/2010

Ele foi na busca do sonho

Brasileiro novato na moda estampa maior painel de NY


RIO DE JANEIRO - Thiago Santos tem 19 anos e apenas um ano e cinco meses de carreira, com desfiles do porte de Christian Dior, mas fez sua estréia em terras brasileiras no Fashion Rio, primeiro no desfile da R.Groove, depois no da Redley e ainda fará Totem. Quem passeia pela Times Square, em New York, vai se deparar com Thiago no maior painel de LED da cidade, sobre a loja da marca American Eagle. Lá também a brasileira Aline Webber.

Mes tão em evidência, ele diz que seu refúgio no mundo pé uma "ilha secreta", ao lado da Ilha Porchat, em São Vicente. O garoto, que pega dicas de culinária com seu pai e sempre passou os perfumes da mãe e do tio (aí incluídos alguns frutais da Natura e o da Calvin Klein), queria ser modelo desde os 14 anos. Chegou a ir a uma agência com sua irmã. Mas o pessoal pediu para ele esperar mais um pouco, porque ainda estava em crescimento. Durante um período, estudou moda junto com o segundo grau e quando o chamaram de novo aqui no Brasil, resolveu ir para o Texas, morar com o tio. Era um sonho desde os 9 anos. E lá estava sua sorte.

Uma semana antes de voltar ao Brasil, participou de um concurso de modelos. Passou e foi para Nova York. Fotografou para o perfume da marca Pink, da Victoria´s Secret. Acabou voltando ao Brasil para terminar os Estudos e, no começo de 2009, fez seus primeiros desfiles.

Mais uma vez o destino estava traçado. Foi para Paris fazer casting. Sem saber direito a importância da grife, pulou o de Dior. "Minha agente ficou louca da vida e ligou para a marca para ver se dava tempo." Deu. Foi num dia que não tinha mais concorrente algum e acabou fechando exclusividade com a grife famosa e com a marca própria do estilista da Dior Homme, Kriss Van Asshe. Fez três entradas no da Dior: abriu, fechou e ainda uma no meio.

Confira algumas ideias de Thiago sobre a carreira e a vida.

"Meu primeiro cachê dei para minha mãe. Não vou falar quanto foi, mas deu para fazer umas reformas em casa que estava precisando"

"Uma coisa que curto no Brasil é um lugar que eu chamo de ilha secreta. Fica ao lado da Ilha Porchat, em São Vicente. Meu avô é de lá e sempre me levava quando era pequeno. Hoje, quando estou em Santos, vou lá mesmo sozinho, fico umas três horas, pensando relaxando. É meu esconderijo."

"Hoje digo que moro no Planeta Terra. Não tenho mais residência fixa. Em 2009 passei apenas quatro meses no Brasil, mas não de forma contínua. Minha vida é Estados Unidos, Paris, Brasil..."

"Faço curso on-line pela BFV (Bolsa de Valores Imobilíários) para aprender investir na bolsa. Quero fazer uma faculdade dessa área para saber como aplicar meu dinheiro. Modelo pode ganhar muito e se isso acontecer comigo, não quer gastar tudo."

"Goste de comer arroz, feijão e bife. Nem sempre dá. Quando cozinho, peço dicas pro meu pai, que cozinha muito. Eler me ensinou, por exemplo, a não colocar toda a água no arroz de uma vez, para ir provando até chegar no ponto."

"A última coisa que comprei foi um videogame da Playstation."

"Adoro música, curto eletrônica e bossa-nova."

"Nos Estados Unidos, a gente ganha muita roupa quando desfila, por isso nem penso em comprar tanto. E não ligo muito para marca na hora, se gostei, compro mesmo sem ser famosa."

"Não compro perfume, uso da minha mãe, de frutas da Natura, e do meu tio, da Calvin Klein. Acho que um dia vou comprar o da Calvin Klein."
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Reportagem de Rosângela Espinossi, Portal Terra
Fonte: Jornal do Brasil - 28/05/2010

Consumo: o novo alvo?

Jung Mo Sung *

Por conta do tema da Campanha da Fraternidade, eu participei de vários eventos que debateram o tema da fé cristã e economia ou da economia e vida e, assim, pude entrar em contato com diversos grupos e ler diversos textos e cartilhas. Nesses contatos eu pude perceber que há uma posição que está tomando força: a crítica ao consumo.

Até recentemente, as críticas ao capitalismo ou à situação de injustiça social tinha como o alvo principal o neoliberalismo e a idolatria do mercado. Muitas vezes as pessoas confundiam a crítica à idolatria do mercado (a absolutização ou a sacralização das leis do mercado que leva a justificar sacrifícios e sofrimentos de vidas humanas em nome do mercado) com a crítica do mercado como tal. Isto é, não percebiam que a crítica teológica feita por autores como Hugo Assmann e Franz Hinkelammert ao sistema de mercado capitalista não era uma crítica ao mercado em si, mas à sua sacralização, à lógica do sistema que vê o mercado como algo sagrado.

Recentemente, em um pequeno curso dado em Vitória, ES, um jovem começou a sua pergunta falando do caráter idolátrico do mercado. Eu tive que lhe explicar que o mercado não tem um caráter idolátrico, pois o mercado é o espaço de trocas de bens econômicos e existe há muitos séculos, bem antes do capitalismo e existirá mesmo depois do fim do capitalismo. O problema é que o sistema capitalista produz a idolatria do mercado, assim como outros grupos sociais ou sistemas transformam ou podem transformar algo ou alguma instituição em algo sagrado, um ídolo. Assim, por ex., podemos ter idolatria do mercado, a idolatria do Estado socialista ou a idolatria da Igreja.

Ultimamente, com a crise do neoliberalismo, as críticas que alguns setores do cristianismo fazem ao sistema econômico capitalista foram se dirigindo a um novo alvo: o consumo. Eu penso que isso se deve, pelo menos em parte, a dois fatores: a) o capitalismo criou a cultura de consumo e a obsessão do consumismo; b) a consciência ecológica está criticando fortemente essa obsessão do consumo por causa do seu caráter destrutivo do meio ambiente. Porém, eu penso que é preciso ter cuidado para não confundir a crítica à cultura de consumo, com a sua espiritualidade de consumo, com a crítica ao consumo como tal.

Quando falo da espiritualidade de consumo, quero dizer que uma das forças que move a vida das pessoas e da sociedade, dá sentido de vida - e com isso o senso de direção nas decisões concretas- e serve de critério para classificar a dignidade ou o valor das pessoas ou o processo de humanização é o desejo de consumo. As pessoas constroem a sua auto-imagem e classificam hierarquicamente os grupos sociais pela sua capacidade de consumo e por o que consume. Para quem acha muito estranho falar de espiritualidade em campo econômico, não podemos esquecer que já Max Weber tinha diagnosticado que o capitalismo é movido pelo espírito capitalista.

Entretanto, a crítica a essa espiritualidade de consumo (com a apresentação de outro tipo de espiritualidade realmente humanizadora) não pode significar a crítica ao consumo como tal. Pois, consumir faz parte do viver humano. Não conseguimos viver sem consumir alimentos, bebida, habitação, vestimentas, etc. E para celebrar amizades precisamos também de boa comida e boa bebida, em torno do qual nos reunimos. Mais importante é que a nossa luta em favor dos mais pobres é para que essas pessoas possam consumir melhor e mais.

Se confundirmos a crítica à espiritualidade de consumo do sistema capitalista com a crítica ao consumo como tal, não poderemos nos alegrar quando os pobres usufruem melhor as suas vidas também porque conseguem consumir mais e melhor. Uma crítica nascida de boa intenção (a de criticar a injustiça social e a obsessão pelo consumo) pode gerar em nós uma atitude negativista frente à vida. Sobre isso, Hugo Assmann, no seu último texto inacabado, escreveu: "Em vez de alegrar-se com uma certa difusão da renda e do poder aquisitivo, os negativistas anti-mercado despejam o seu moralismo contra o que me dá enorme alegria, ver o povo comprando e fruindo do prazer de comprar".
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* Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres", Paulus
Fonte: Adital online, 30/05/2010

Gol de traseiro

Rubem Alves*
Disse Álvaro de Campos que “a vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos...” Disse certo porque a feira e os saltimbancos já estão armados: futebol, o grande circo que faz parar tudo, até os bancos... Não há nenhum outro esporte que provoque tanta paixão, tanta alegria, tanta tristeza. O futebol dá sentido à vida de milhões de pessoas que, de outra forma, estariam condenadas ao tédio. É remédio para a depressão. É o assunto nas manhãs de segunda-feira em bares, escritórios, fábricas, táxis, construções, possivelmente confessionários, pelos pecados que a paixão faz cometer... O futebol é a bola que se rola no jogo das conversas. O futebol faz esquecer lealdades políticas, ideológicas, religiosas, econômicas, raciais. É a grande religião ecumênica. Acabam as diferenças. Todos são iguais, são torcedores de futebol. No mundo inteiro.

Nesse circo, eu sou o palhaço. Os palhaços são aqueles que transformam as coisas sérias em coisas engraçadas. Em tempos antigos, quando os reis se reuniam com seus ministros graves e sérios, havia a ministro do riso, chamado bobo da corte. O bobo da corte tinha direitos que nenhum dos ministros sérios tinha. Ele tinha permissão para fazer piadas do próprio rei. Conta-se que numa grave reunião dos ministros de um reino o rei se embaralhou dando explicações esfarrapadas para uma pequena corrupção de seu filho caçula. Reis e presidentes estão sempre a fazer besteiras e a dar explicações esfarrapadas. Todos os ministros concordavam graves e sérios, com medo de serem demitidos. Menos o bobo que interrompeu a arenga do rei e disse: “Majestade, há explicações que são piores que uma ofensa”. O rei ficou danado. “O senhor tem até o fim do dia para explicar-se, sob pena de passar uma semana no calabouço...” O bobo deu uma risadinha e saiu da sala. Ao fim do dia, terminada a reunião, o rei se dirigia sozinho para os seus aposentos mergulhado em seus pensamentos, caminhando por corredores desertos, cheios de colunas. Atrás de uma dessas colunas o bobo estava à espera de sua caça. Quando o rei passou ele saiu detrás da coluna que o escondia e agarrou com força as nádegas murchas do rei. O rei deu um berro enfurecido e o bobo disse: “Perdão Majestade, eu pensei que fosse a rainha...”

Por vezes há mais sabedoria no traseiro que na cabeça. Pelo menos é isso que pensa a psicanálise. Um psicanalista é uma pessoa que não acredita na cara. O que lhe interessa são as partes escondidas, vergonhosas. O rei, ao sentir seu traseiro apertado pelo bobo teve uma experiência espiritual, Zen: ficou iluminado.

Contaram-me, não sei se é verdade. O atacante burlou toda a defesa e avançava veloz para fazer o gol. O goleiro, vendo o gol certo, tratou de antecipar-se. Não esperou. Avançou para o atacante para fechar o ângulo. Aconteceu, entretanto, que a bola rolou mais veloz que o atacante. O goleiro chegou à bola e se preparou para o chute que a mandaria para o meio do campo. O atacante, temeroso de que a bola o atingisse em suas partes sensíveis, virou de costas para o goleiro e abaixou-se para proteger a cabeça. O goleiro chutou. Pois não é que a bola bateu no traseiro do atacante, tabelou, voltou, passou pelo goleiro e entrou no gol? Essa é uma preciosa lição de política: com o traseiro também se fazem gols...

Assim eu faço. Agarro o futebol pelo traseiro e faço meus gols... O futebol não merece ser levado tão a sério. Ele deve ser levado a riso. (O Futebol Levado a Riso, Editora Verus).
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 30/05/2010

sábado, 29 de maio de 2010

Cientista e showman


Craig Venter, da célula sintética,
desperta ódio e paixão
entre seus pares.

O físico Freeman Dyson captou todo o leque do sentimento acadêmico em seu seco elogio: "Este experimento é canhestro, entediante, nada original. Do ponto de vista da estética e da elegância intelectual, é um mau experimento. Mas é, não obstante, uma grande descoberta... a capacidade de projetar e criar novas formas de vida marca um ponto de virada na história de nossa espécie e de nosso planeta".

(...)

Seu ego e a opção pelo financiamento privado de seus experimentos
o afastam do establishment acadêmico.


Steve Jones -  professor de genética no University College de Londres -  é cético sobre o exagero das manchetes. "A ideia de que isto é 'brincar de Deus' é simplesmente tola. O que ele fez em termos genéticos seria análogo a pegar um programa do Mac da Apple e fazê-lo rodar em um PC, e então dizer que você criou um computador. Não é trivial, mas são totalmente absurdas as alegações que estão sendo feitas a esse respeito".
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Íntegra da Reportagem por TIM ADMAS (The Observer) na revista CARTA CAPITAL - ed.598 - 02 de junho de 2010, pg.58/59.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Alfredo Bosi - Entrevista

Preces de resistência
O pensador lança livro em que traça uma história
dos interesses particualares apresentados como gerais e
diz que o populismo
foi mal necessário no Brasil.
Rosane Pavam

A ampla casa de Cotia onde mora o professor emérito da Universidade de São Paulo Alfredo Bosi assistiu a momentos cruciais da história brasileira. No final dos anos 70, por exemplo, o terraço da casa abrigou reuniões fraternas com padres de esquerda, sindicalistas e intelectuais que resultariam na criação do Partido dos Trabalhadores. Desde algum tempo, portanto, o autor de Ideologia e Contraideologia (Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58) dedica-se, como o partido em seu início, a contestar o status quo.
A nova obra de Alfredo Bosi surge como um dos mais importantes estudos sobre o combate à dominância ideológica. Para realizá-lo, o historiador descreve seis séculos de história do pensamento. Analisa, entre outras, as obras de Francis Bacon, Montesquieu, Condorcet, Hegel, Simone Weil, Antonio Gramsci, Celso Furtado, Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Bosi os vê como opositores às idéias que construíram a escravidão, a pobreza, a incultura, o stalinismo, a estupidez. Com elegância e síntese, o professor demonstra nas entrelinhas do livro os mecanismos de sua própria resistência intelectual.


Carta Capital: Que estudos motivaram este livro? Como ele lhe surgiu?
Alfredo Bosi: O tema da ideologia e da contraideologia já aparece de outras maneiras na minha História Concisa da Literatura Brasileira, de 1970. Durante a ditadura, eu estava motivado pela ideia de que a nossa tinha uma cultura oprimida desde a colonização. Ao longo de 400 anos de história, eu encontraria exemplos de narrativas, eu encontraria exemplos de narrativas resistentes ao lado daquelas conformistas. Não foi difícil achar, às vezes em um mesmo texto, ambas as posições. Ao estudar os anos 30, época de ouro do romance brasileiro, verifiquei graus de tensão diferentes entre o autor e seu universo. Nos momentos de acomodação, detectei algo que denominei tensão mínima. No outro extremo, havia narrativas conflituosas, de tensão máxima, como as de Graciliano Ramos. Percebi, concomitantemente, momentos de conformismo, de reprodução da ideologia dominante, e de resposta negativa, de interrogação. A monumental História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux me ensinou a ver assim. Por sua formação dialética na Alemanha pré-nazista, Carpeaux tinha sensibilidade para as diferenças internas dos períodos. Um segundo momento de gênese da minha pesquisa foi aquele em que escrevi O Ser e o Tempo da Poesia, em meados dos anos 70. Ainda havia ditadura. Consagro o capítulo Poesia e Resistência às formas de resistência que a poesia, sobretudo a lírica, desenvolveu. Quando os ensaios marxistas voltaram à baila, a partir dos anos 80, favoreceram a eclosão dos trabalhos sobre ideologia, contraideologia e utopia na literatura. Meu livro se situa nessa trajetória e tem motivações na realidade nacional.

CC: Que distinção o senhor faz entre ideologia e contraideologia?
AB: Ambas se articulam como um conjunto de ideias e valores. A diferença é que a ideologia generaliza interesses particulares e os dá como se fossem universais. Por exemplo, a ideologia da competitividade corresponde à luta econômica que a burguesia trava nos meios do poder financeiro e industrial. Mas os ideólogos do capitalismo procuram demonstrar que a competição é uma necessidade universal, até fundada na biologia, em Darwin. Para convencer os seus destinatários retoricamente, já que se trata de uma arte de persuadir, os ideólogos criam um discurso justificador universal para esconder seus interesses. Os editorias dos grandes jornais e das revistas de grandíssimas tiragens são peças ideológicas perfeitas. No caso da contraideologia, a intenção é o bem comum. O escritor contraideológico, que combate a ideologia da competitividade, por exemplo, procura demonstrar que ao lado do que seria o instinto competitivo existe uma tendência solidária. O discurso contraideológico visa ao bem-comum, não particulariza interesse.

CC: O título de seu livro exclui a designação utopia. Esta é uma palavra condenada?
AB: A origem do termo, significando o não lugar, remete a um ideal extremo, que seria o posto do lugar onde estamos. É uma forma extremada de contraideologia. Mas a contraideologia, tal como a concebo, pode ter aspectos reformistas. O economista Celso Furtado, por exemplo, tinha propostas reformistas sólidas. Defendia a reforma agrária, a intervenção do Estado na economia. Ele estudava as coisas da maneira como estavam e procurava remover as causas a médio prazo. Falava em repartição de rendas, em imposto progressivo, algo que se realizou nos países escandinavos. O pensamento reformista é também o do historiador e político Joaquim Nabuco, que mesmo dentro do liberalismo percebia a insuficiência daquele modelo e lutava contra a escravidão. Seu liberalismo já propunha leis de reforma agrária no século XIX. Nabuco pensava ser possível a união pelas leis sociais. Essas leis vieram ao Brasil somente depois da Revolução de 30, com Lindolfo Collor, um grande homem sem qualquer relação com seu desastrado neto. Como ministro do Trabalho, percebeu ser preciso outorgar leis trabalhistas como as europeias. Essas leis foram contrastadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, que não queria a implantação do salário mínimo em 1934. A contraideologia crítica, que muitas vezes nos parece pouca coisa, requer luta.

(...)

CC: O senhor vê uma ação contraideológica do pensador Antonio Gramsci em relação ao partido que ele ajudou a fundar, o Partido Comunista Italiano?
AB: Gramsci entra em meu livro na sua aproximação com a socialista francesa Simone Weil. Ela defendia que o operário tivesse cultura para reivindicar não só melhor salário, mas outro estilo de vida e participação política. Ela era informada sobre o comunismo russo de 1933, por isso acreditava que o país não faria uma revolução do operariado, mas à custa dele. Gramsci não a conheceu, embora já dissesse que todo homem era um intelectual. Mostro, no livro, a semelhanças de seu projeto com o de Weil. Ela seria mais radical, quase utópica, ao passo que ele tinha os pés no chão. Fez a universidade popular de Turim e dava aulas para operários.

CC: Gramsci era um herético marxista?
AB: Ela ia além do marxismo. Achava que a militância, o proselitismo político, não deveria se dissociar da formação cultural operária. Outra ideia dele era que a educação não fosse muito especializada em seu início. Receava que, atuando como especialista na fábrica muito cedo, o jovem não tivesse a chance de dialogar com outras pessoas em termos de cultura. A ideia de uma formação anterior à especialização técnica é uma conquista de Gramsci. Ele contrariava a ideia capitalista de que a divisão do trabalho deveria ser feita de forma absoluta.

(...)

CC: O senhor pode dar um exemplo de posições ideológicas e contraideológicas que tenha observado recentemente?
AB: Posso citar aquelas em torno da luta ambiental. Quando a expansão capitalista se tornou ameaçadora para a natureza, surgiu a contraideologia que propunha limites à expansão industrial. Celso Furtado, nos anos 70, hesitou em aderir o ambientalismo. Como economista do desenvolvimento, teve dúvidas quanto á ideia de um crescimento com limites. Convenceu-se ao ver a violência contra a natureza aumentar. O ambientalismo, que era uma contraideologia extremada para ele, passou a ser visto como uma contraideologia racional. E ele aderiu à ideia do desenvolvimento sustentável. Hoje, fico preocupado ao ver, por parte da oposição ao atual governo e dentro dele, esses defensores do desenvolvimento econômico puro e duro colocarem em descrédito a luta ambientalista.

(...)

CC: Por que usamos indistintamente os termos moderno e contemporâneo para designar certas tendências do pensamento?
AB: “Contemporâneo” tem uma denotação cronológica, não diz nada do ponto de vista teórico, ao passo que o termo “moderno” se enriqueceu, sobretudo, depois da Revolução Francesa, com conteúdos ligados à emancipação das ideias feudais e dogmáticas. O moderno tem pelo menos duas conotações, de crítica ao passado e da libertação. Nós continuamos usando as duas palavras, porque suas conotações nos interessam de perto.

CC: Como o senhor vê a literatura moderna ou contemporânea?
AB: Gosto de Ferreira Gullar. Reconheço em seus poemas uma força crítica em relação aos males do presente e uma análise profunda do sentimento do homem comum. Ele verbaliza sua angústia. Mas,veja, estou falando do poeta, não do cronista, nem de suas ideias políticas.

"O moderno tem pelos duas conotações,
de crítica ao passado e
de libertação"

CC: Há alguma ficção internacional contemporânea que lhe interesse?
AB: A de Julio Cortázar. Ele tem uma força dramática que não há em Jorge Luis Borges, um contemplador irônico do mundo, um homem de grande erudição. Mas o drama, que me interessa de perto, o conflito entre os personagens, Cortázar mostra de maneira experimental, como um grande escritor contemporâneo, eu diria.
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OBS.: A  íntegra da reportagem na revista CARTA CAPITAL -  
edição impressa nº 598 - 02 de junho de 2010, pp.62/66.