domingo, 31 de outubro de 2010

500 anos esta noite [homenagem a Dilma]

Hamilton Pereira - Pedro Tierra *
De onde vem essa mulher
que bate à nossa porta
500 anos depois?
Reconheço esse rosto estampado
em pano e bandeiras e lhes digo:
vem da madrugada que acendemos
no coração da noite.

De onde vem essa mulher
que bate às portas do país
dos patriarcas em nome
dos que estavam famintos
e agora têm pão e trabalho?

Reconheço esse rosto
e lhes digo:
vem dos rios subterrâneos da esperança,
que fecundaram o trigo e
fermentaram o pão.
De onde vem essa mulher
que apedrejam, mas
não se detém,
protegida pelas mãos aflitas dos pobres
que invadiram os espaços de mando?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem do lado esquerdo do peito.

Por minha boca de clamores e silêncios
ecoe a voz da geração insubmissa para contar
sob sol da praça
aos que nasceram e aos que nascerão,
de onde vem essa mulher.

Que rosto tem, que sonhos traz?
Não me falte agora a palavra que retive
ou que iludiu a fúria dos carrascos
durante o tempo sombrio
que nos coube combater.

Filha do espanto e da indignação,
filha da liberdade e da coragem,
recortado o rosto e o riso como centelha:
metal e flor, madeira e memória.

No continente de esporas de prata
e rebenque,
o sonho dissolve a treva espessa, recolhe os cambaus, a brutalidade,
o pelourinho, afasta a força que sufoca e silencia
séculos de alcova, estupro
e tirania e lança luz sobre o rosto dessa mulher
que bate às portas do nosso coração.

As mãos do metalúrgico,
as mãos da multidão inumerável
moldaram na doçura do barro
e no metal oculto dos sonhos
a vontade e a têmpera
para disputar o país.

Dilma se afarta da luz
que esculpiu seu rosto
ante os olhos da multidão
para disputar o país,

para governar o país.
Nasce uma nova aurora:

BOM DILMA!!!

 
Pedro Tierra

Brasília, 31 de outubro de 2010.
_____________________
* Ministério do Meio Ambiente
Fonte: Adital, 31/10/2010

Desafios para a Presidenta Dilma Rousseff

Leonardo Boff *

Imagem da Internet
Celebramos alegremente a vitória de Dilma Rousseff. E não deixamos de folgar também pela derrota de José Serra que não mereceu ganhar esta eleição dado o nivel indecente de sua campanha, embora os excessos tenham ocorrido nos dois lados. Os bispos conservadores que, à revelia da CNBB, se colocaram fora do jogo democrático e que manipularam a questão da descriminalização do aborto, mobilizando até o Papa em Roma, bem como os pastores evangélicos raivosamente partidizados, sairam desmoralizados.
Post festum, cabe uma reflexão distanciada do que poderá ser o governo de Dilma Rousseff. Esposamos a tese daqueles analistas que viram no governo Lula uma transição de paradigma: de um Estado privatizante, inspirado nos dogmas neoliberais para um Estado republicano que colocou o social em seu centro para atender as demandas da população mais destituida. Toda transição possui um lado de continuidade e outro de ruptura. A continuidade foi a manutenção do projeto macroeconômico para fornecer a base para a estabilidade política e exorcizar os fantasmas do sistema. E a ruptura foi a inauguração de substantivas políticas sociais destinadas à integração de milhões de brasileiros pobres, bem representadas pela Bolsa Familia entre outras. Não se pode negar que, em parte, esta transição ocorreu pois, efetivamente, Lula incluiu socialmente uma França inteira dentro de uma situação de decência. Mas desde o começo, analistas apontavam a inadequação entre projeto econômico e o projeto social. Enquanto aquele recebe do Estado alguns bilhões de reais por ano, em forma de juros, este, o social, tem que se contentar com bem menos.
Não obtante esta disparidade, o fosso entre ricos e pobres diminuiu o que granjeou para Lula extraordinária aceitação.
Agora se coloca a questão: a Presidenta aprofundará a transição, deslocando o acento em favor do social onde estão as maiorias ou manterá a equação que preserva o econômico, de viés monetarista, com as contradições denunciadas pelos movimentos sociais e pelo melhor da inteligentzia brasileira?

"A ética somente será resgatada se houver
total transparência nas práticas políticas e
não se repita a mercantilização das
relações partidárias("mensalão")."

Estimo que, Dilma deu sinais de que vai se vergar para o lado do social-popular. Mas alguns problemas novos como aquecimento global devem ser impreterivelmente enfrentados. Vejo que a novel Presidenta compreendeu a relevância da agenda ambiental, introduzida pela candidata Marina Silva. O PAC (Projeto de Aceleração do Crescimento) deve incorporar a nova consciência de que não seria responsável continuar as obras desconsiderando estes novos dados. E ainda no horizonte se anuncia nova crise econômica, pois os EUA resolveram exportar sua crise, desvalorizando o dólar e nos prejudicando sensivelmente.
Dilma Rousseff marcará seu governo com identidade própria se realizar mais fortemente a agenda que elegeu Lula: a ética e as reformas estruturais. A ética somente será resgatada se houver total transparência nas práticas políticas e não se repita a mercantilização das relações partidárias("mensalão").
As reformas estruturais é a dívida que o governo Lula nos deixou. Não teve condições, por falta de base parlamentar segura, de fazer nenhuma das reformas prometidas: a política, a fiscal e a agrária. Se quiser resgatar o perfil originário do PT, Dilma deverá implementar uma reforma política. Será dificil, devido os interesses corporativos dos partidos, em grande parte, vazios de ideologia e famintos de benefícios. A reforma fiscal deve estabelecer uma equidade mínima entre os contribuintes, pois até agora poupava os ricos e onerava pesadamente os assalariados. A reforma agrária não é satisfeita apenas com assentamentos. Deve ser integral e popular levando democracia para o campo e aliviando a favelização das cidades.
Estimo que o mais importante é o salto de consciência que a Presidenta deve dar, caso tomar a sério as consequências funestas e até letais da situação mudada da Terra em crise sócio-ecológica. O Brasil será chave na adaptação e no mitigamento pelo fato de deter os principais fatores ecológicos que podem equilibrar o sistema-Terra. Ele poderá ser a primeira potência mundial nos trópicos, não imperial mas cordial e corresponsável pelo destino comum. Esse pacote de questões constitui um desafio da maior gravidade, que a novel Presidenta irá enfrentar. Ela possui competência e coragem para estar à altura destes reptos. Que não lhe falte a iluminação e a força do Espírito Criador.
__________________
* Teólogo, filósofo e escritor
Fonte: Adital, 31/10/2010

STEFANO DOMENICALI - Entrevista

CHEFE DA EQUIPE ITALIANA DIZ
QUE PROBLEMA DE MASSA
 NÃO É SÓ PNEU E QUE EM 2011,
MESMO COM O PARCEIRO CAMPEÃO,
DISPUTA COMEÇA DO ZERO

A fala mansa e o jeito amistoso podem até enganar à primeira vista. Mas, após atravessar uma das maiores crises da Ferrari nos últimos anos ao inverter as posições de Felipe Massa e Fernando Alonso no GP da Alemanha, Stefano Domenicali, 45, mostrou estar preparado para lidar com situações difíceis.
Como Schumacher,
Alonso está deixando a Ferrari
do seu jeito


Bastante criticado, o italiano diz que não se preocupa com o que dizem. "Se fosse me incomodar com o que falam, não estaria neste cargo", disse Domenicali à Folha na Coreia do Sul, antes da vitória que deixou Alonso na liderança do Mundial de F-1 e perto de faturar o título em seu primeiro ano como piloto do time de Maranello.
"Fernando se parece muito com o Michael [Schumacher] em várias coisas. Em pouco tempo, já está deixando a equipe como ele gosta."

Folha - Mesmo que a Ferrari não ganhe nenhum título, considera este um bom ano?
Stefano Domenicali - Temos que ser realistas. Considerando a situação deste ano e o fato de a Red Bull ter feito um grande carro, para mim, é um milagre que estejamos aqui lutando pelo título. Na Ferrari, se tivéssemos um carro como o deles, o campeonato já teria terminado. Tivemos uma parte difícil no ano, com muitas críticas, muita pressão, mas o mais importante é reagir, manter as pessoas concentradas no trabalho, e esta recuperação rápida significa muito.

Isso tem alguma relação com a chegada do Alonso?
Quando falamos em equipe, todo mundo é importante para o sucesso. Dos engenheiros aos mecânicos, os pilotos, cada um tem que fazer sua parte para o time vencer. Já conhecíamos muito bem o Felipe, sabíamos de sua força e conhecíamos no papel a força do Fernando. Ele nos mostrou do que é capaz e estamos muito satisfeitos. Queríamos mostrar para ele como funcionamos como time e conseguimos. Temos muito o que melhorar ainda, mas ele já entendeu que a atmosfera aqui na Ferrari é única.

Você trabalhou com o Schumacher. Como compara o Alonso com ele?
Vejo duas coisas muito parecidas nos dois. Eles são muito focados na vitória, e o desejo de vencer é muito grande. Em pouco tempo, Fernando está deixando a equipe como ele gosta. Ele tem passado muito tempo em Maranello com os rapazes, está fazendo o possível para se integrar, não só profissionalmente mas também em um nível pessoal, o que também é importante.

Por outro lado, o Massa não teve um grande ano. Ele diz que o problema são os pneus. É isso ou há mais coisas?
Conheço o Felipe há muito tempo. Confio plenamente nele e quero deixar claro que ele é um grande jogador de equipe, um grande piloto. Quando fui criticado pela situação na Alemanha, disse que ninguém mais do que eu havia mostrado confiança nele, apesar de muitos me dizerem para me livrar dele, que ele não tinha capacidade para estar na Ferrari. Acho que em algum momento, quando não se tem uma temporada perfeita, você tem de olhar para você e reagir. Felipe sabe que o time está com ele. Sabe que estamos aqui para que ele seja o melhor piloto que ele pode ser. Mas não acho que [seu desempenho] esteja só relacionado aos pneus. É preciso colocar todos os elementos na sua frente e tentar entender quais os motivos para ter tido um ano que não é dos melhores.

Mesmo que o Alonso seja campeão, em 2011 ele e o Massa começam o ano zerados?
Sim, assim como neste ano. Os pilotos têm que saber qual é o interesse do time. Confirmo que o Felipe vai poder começar do zero em 2011, mas sempre sabendo que a Ferrari é o mais importante.

Espera algum tipo de reação no Brasil depois do que aconteceu no GP da Alemanha?
Não espero. Acredito muito nos brasileiros e espero que torçam pela Ferrari. Claro que mais pelo Felipe. Mas não espero nada negativo, porque, se isso acontecer, mostrará que as pessoas não são maduras o suficiente para entender o esporte. Mas não acho que será o caso.

Muita gente comparou o que aconteceu em Hockenheim com a Áustria, em 2002, com Schumacher e Barrichello...
São situações totalmente diferentes. Não quero entrar em detalhes, mas vou dar dois fatos. Daquela vez estávamos falando da última curva, da última volta. O terceiro carro estava quase uma volta atrás. Na Alemanha, ainda faltava 18 voltas para o fim da corrida, o terceiro carro [de Sebastian Vettel] estava se aproximando e o segundo [Alonso] era mais rápido que o primeiro. É uma situação completamente diferente.

Você foi duramente criticado neste período. Chegou a pensar em desistir?
Não, isso é parte da nossa mentalidade, nunca desistir. Em 2007, faltando duas corridas, o Kimi [Raikkonen] estava 17 pontos atrás. Tínhamos que torcer para um milagre para ficar com o título. Mas ganhamos. Você tem que fazer o máximo e acreditar. Se os outros forem melhores, paciência. Se alguém for melhor, é preciso aceitar, reagir e tentar melhorar no ano seguinte. Não somos maduros o suficiente no nosso esporte, no futebol também, e, para mim, temos a responsabilidade de desenvolver a mentalidade das pessoas.
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Reportagem por TATIANA CUNHA DE SÃO PAULO

Ron Wood, o mais subestimado dos Stones, fala ao 'Estado'

Aos 63 anos, guitarrista dos Rolling Stones
lança um disco estelar, Slash e Eddie Vedder estão nele

Primeiro, as más notícias: só saberemos em dezembro se os Rolling Stones farão uma turnê mundial em 2011, e se virão ao Brasil mais uma vez. Eles têm um encontro agendado em dezembro para discutir sua agenda comum. Agora, as boas notícias: Ron Wood, segundo guitarrista dos Stones, fez um disco solo maravilhoso, I Feel Like Painting (ST2/Eagle), e virá mostrá-lo no Brasil, e pode ser mais rápido do que a gente imagina - falta só uma oferta sensata. Melhor ainda: a mitológica banda sessentista The Faces também poderá vir ao Brasil.

Divulgação
 Ron, que está apaixonado pela brasileira Ana Araújo,
fala de uma possível vinda ao Brasil

Tudo isso é sério, palavra de stone: o Estado entrevistou Ron Wood anteontem com exclusividade, e antecipa as boas novas em relação à maior banda de rock do planeta.

Entre seu último álbum solo, Not for Begginers, e este agora, passaram-se 7 anos. O que acha que há de diferente entre aquele e este disco?
Acho que esse é um álbum mais quente. Minha vida sofreu uma poderosa mudança desde aquele último disco. Esse trabalho é como uma viagem com novos acompanhantes, uma viagem até certo ponto acidental. Eu não queria, inicialmente, fazer um novo disco. Entrei no estúdio com alguns amigos apenas para gravar Spoonful, composta por Willie Dixon. Eu pensei que era uma boa época, por conta de meu espírito renovado, de arriscar uma leitura dessa canção, que nasceu com uma bateria enérgica, uma marcada percussão, um vocal rascante. Aí, fui resgatando coisas que compus nesses últimos anos, como 100%, Tell me Something, Fancy Pants, Sweetness my Weakness. Foi tudo muito rápido, muito espontâneo. Agora eu quero sair com esse disco por aí, excursionar, fazer shows.

Keith Richards disse à revista Stern que os Rolling Stones devem fazer uma turnê em 2011.
Nós não sabemos. Temos um encontro marcado em dezembro para definir o que faremos, qual o próximo passo. Nada está definido no momento. Charlie (Watts) está excursionando com sua banda de jazz, eu tenho meus planos, Richards está com seus projetos.

Seus planos incluem excursionar antes com seu disco solo?
Farei uma turnê curta ainda antes do Natal. Tenho um show já agendado em Nova York. Talvez a gente vá depois até o Brasil, estamos tentando fazer Brasil e Argentina. No próximo inverno, farei shows com o The Faces, tocamos juntos recentemente em Randers, Dinamarca, e há mais alguns shows marcados pela Europa. Vamos ver, tudo é possível.

Esse disco novo tem 5 guitarristas convidados: Slash, Billy Gibbons (ZZ Top), Bobby Womack, Waddy Watchel. É mais que uma guitar band. O que pretendia?
Eu sempre me diverti tocando guitarra. Quando Billy Gibbons veio a Los Angeles, eu e ele resolvemos fazer um som no estúdio. Tudo muito espontâneo. É bom ter várias cores de guitarra num trabalho,

Falemos sobre as músicas do seu disco. O reggae Sweetness my Weakness, por exemplo. Como surgiu?
É um tipo de homenagem ao Gregory Isaacs. Parece brincadeira, mas não é. O Bernard (Fowler, vocalista de apoio dos Stones) chegou no estúdio dizendo essa frase, de brincadeira: Sweetness my Weakness. Eu adorei, e nós fomos fazendo uma música dela. Quando estava pronta, eu disse: parece Gregory Isaacs. Aí, ficou como uma homenagem a ele (Isaacs morreu essa semana). Eu adorava a voz do Isaacs, era um esteta do reggae, tinha muita alma e paixão naquela voz.

De todas as músicas, em minha opinião, a que mais parece uma música dos Stones é I Don’t Think So. Estou errado?
Não, está certo. Aquele riff é muito Stones. Acho que eu estava tentando alguma coisa mais Motown, mas saiu Stones. Aí eu pensei: por que não? Partimos de uma dessas frases muito ditas para chegar a uma música. De qualquer forma, é preciso dizer que eu tenho muito apoio da banda dos Stones, os vocais, o baixo, os técnicos. Quando soa como se fosse algo do nosso time, é genuíno.

Você já leu a nova autobiografia do Keith Richards?
Não, ele me enviou uma cópia só ontem. Mas nós não fazemos livros coordenados, ele vive as coisas dele separadamente. Ainda bem (risos).

Ele disse, no livro, que às vezes se sente como uma "paródia de si mesmo". Você também tem essa sensação?
Sim, às vezes. Nos Rolling Stones a gente se sente assim como paródias andantes. É muito louca essa sensação, de que seu corpo às vezes está fora de tudo, olhando para o mito. É muito difícil não ter essa sensação na banda.

E como foi compor com Eddie Vedder, do Pearl Jam?
É um homem adorável. Poderíamos fazer discos inteiros juntos, mas ele não podia. Aí eu disse: me ajude aqui com essa canção. Super gentil, super inteligente. Hey, quando eu estiver aí, venha nos ver. Minha namorada é do Brasil.

Sim, a Ana. Por falar nisso, como está o namoro?
Bom, quente. Venha nos ver.

Vou tentar. Tenho uma curiosidade: o Keith sempre deixou clara sua ligação com o blues americano, mas não sei quando começa sua ligação com esse gênero. Como foi seu primeiro contato?
Eu tinha uns 10 anos. Meus irmãos mais velhos ouviam o blues, ouviam jazz, Louis Armstrong. Eu comecei a ficar fissurado em Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Bo Diddley, Chuck Berry, Buddy Guy. Muitos anos depois eu vim a conhecer e tocar com o Buddy Guy, um homem elegante, um grande artista. Eu ouvia de tudo: Big Bill Broonzy, Little Walter, John Lee Hooker. Será uma influência para sempre.

Pérolas do disco

Why You Wanna Go and Do A Thing Like That For
Dylanesca, essa folk song com o baixo de Flea, a guitarra de Slash e Ivan Neville, dos Neville Brothers, nos teclados, é uma das canções do ano.

Spoonfull
A composição de Willie Dixon é uma obra fundadora do rock. Ronnie a reinventou.

I Don’t Think So
Stoniana, essa canção faz a gente pensar que Ronnie devia ter mais protagonismo em seu grupo principal. É gênio.

Sweetness my Weakness
Reggae vitaminado, com Slash de novo na guitarra (toca em cinco canções do disco), é a diversão inglesa em cima do ritmo jamaicano elevada à onésima potência.

Lucky Man
Coisa de louco: tem Bobby Womack (compositor de It’s All Over) nos vocais de apoio, é composta por Eddie Vedder e tem Bob Rock, ex-produtor do Metallica, na guitarra, além de Ian McLagan nos teclados.
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Reportagem POR Jotabê Medeiros - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão online, 30/10/2010

O espiritismo. Um “neocristianismo”?.


Entrevista especial com Marcelo Ayres Camurça

“O imaginário espírita-mediúnico da comunicação e a influência (benéfica ou maléfica) dos espíritos dos mortos por sobre a vida cotidiana, a crença na reencarnação e na relação determinante entre um ‘plano espiritual’ e a vida e o destino das pessoas está disseminada na população brasileira, inclusive nos adeptos das religiões majoritárias (em alguns casos em conflito com suas doutrinas) ou em indivíduos que não pertencem a um credo, se dizendo ‘espiritualistas’”. A observação é do antropólogo Marcelo Ayres Camurça, que concedeu por e-mail a entrevista que segue à IHU On-Line.
Segundo ele, o imaginário espírita promove um “encantamento do mundo” “onde seres espirituais e planos espirituais convivem e envolvem a dinâmica terrena, para em seguida operar um ‘desencantamento’ ou ‘desobrenaturalização’ desta realidade espiritual, ordenando-a a partir das ‘leis’ e padrões ético-morais, onde um ‘espírito’ é um indivíduo ‘encarnado’ ou ‘desencarnado’ que vive sua existência ora no plano material, ora no plano espiritual em direção ao seu aperfeiçoamento”.
E conclui: “onde outras religiões veem fatalidade e mistério, o espiritismo modernamente busca, na sua ontologia, nexos causais, ética e merecimento”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual o lugar do espiritismo dentro do campo religioso brasileiro hoje?
Marcelo Camurça - Segundo as estatísticas do último Censo de 2000, o espiritismo figura como a terceira religião brasileira (e o quarto agrupamento em termos de crença) atrás dos católicos com 73,8%, dos evangélicos com 15,45% e dos “sem religião” com 7,3%. Situando-se bem mais abaixo desta faixa mais representativa das adesões religiosas, ele conta com 2,3 milhões de adeptos, representando 1,4% da população. No entanto, sua influência e seu prestígio no universo de crenças e práticas religiosas dos brasileiros ultrapassam de longe sua presença numérica. O imaginário espírita-mediúnico da comunicação e a influência (benéfica ou maléfica) dos espíritos dos mortos por sobre a vida cotidiana, a crença na reencarnação e na relação determinante entre um “plano espiritual” e a vida e o destino das pessoas está disseminada na população brasileira, inclusive nos adeptos das religiões majoritárias (em alguns casos em conflito com suas doutrinas) ou em indivíduos que não pertencem a um credo, se dizendo “espiritualistas”. A frequência de indivíduos aos centros espíritas, em busca de aconselhamento e tratamento espiritual, ultrapassa em muito o número daqueles que declaram formalmente professar a doutrina espírita.

IHU On-Line - Como o espiritismo se situa dentro da perspectiva de religião e modernidade?
Marcelo Camurça - O espiritismo surge no século XIX em meio a correntes, como os esoterismos e a Teosofia, que buscavam conciliar religiosidade e cientificismo. Visava coletar provas científicas e racionais para a vida além da morte física. Sua cosmologia e sua teodiceia - o sentido da vida, do ser e do sofrimento - estão marcadas pelo evolucionismo científico, o darwinismo, e por “leis deterministas” como a da ação-reação, pelas quais o espírito imperfeito evoluiria para condições morais superiores.
É interessante notar como a revelação espírita (segundo a doutrina, a 3ª, depois da mosaica e da crística) é manifestada por um método científico e indutivo. Kardec, o codificador da doutrina (um pedagogo de formação), prepara um questionário de mil e dezoito perguntas aplicadas aos “espíritos” por intermédio de diversos médiuns e através de testes de acerto-erro, de provas e contraprovas, chegando-se às respostas verdadeiras e sábias dos espíritos superiores que vão compor o pilar da doutrina, o Livro dos Espíritos. O imaginário espírita promove um “encantamento do mundo” onde seres espirituais e planos espirituais convivem e envolvem a dinâmica terrena, para em seguida operar um “desencantamento” ou “desobrenaturalização” desta realidade espiritual, ordenando-a a partir das “leis” e padrões ético-morais, onde um “espírito” é um indivíduo “encarnado” ou “desencarnado” que vive sua existência ora no plano material, ora no plano espiritual em direção ao seu aperfeiçoamento.
Por isso, concordo com Anthony D’Andrea quando classifica o espiritismo como um “reencantamento racionalizado”. O espiritismo traz também outra característica da modernidade, que é a iniciativa do sujeito, o chamado individualismo moderno, pois através da noção de livre arbítrio o indivíduo encarnado no seu mundo terreno “de expiação e provas”, apesar do determinismo de sua “programação espiritual”, pode, através de suas ações, retardar ou avançar seu “progresso espiritual”. Enfim, onde outras religiões veem fatalidade e mistério, o espiritismo modernamente busca, na sua ontologia, nexos causais, ética e merecimento.

IHU On-Line - Qual a diferença entre catolicismo e espiritismo quando o assunto é caridade? O que motiva a ação social de católicos e de espíritas?
Marcelo Camurça - A caridade enquanto prática religiosa disseminada pelo catolicismo desde a Idade Média foi assumida como aspecto crucial da doutrina espírita com a consigna criada por Kardec: “fora da caridade não há salvação!” Numa concepção da caridade enquanto desprendimento, doação de si para o outro desvalido, penso haver uma afinidade entre catolicismo e espiritismo, assim como uma distinção em relação à ideia protestante da crítica às “boas obras”, e da necessidade da “justificação pela fé” e do seguimento do “reto caminho” como uma via de salvação mais individualizante. Ainda nesta questão da doação ou autoaperfeiçoamento, no caso do espiritismo, penso haver uma conciliação entre a instância individual de autoaprimoramento e uma relação de doação para com os necessitados, pois, ao praticar a caridade (material ou moral), o espírita, mais que ajudando o outro, está somando bônus para seu próprio processo evolutivo.

Para o espiritismo, Jesus Cristo é
um “espírito superior”,
o “governador” do planeta Terra,
responsável pela evolução dos seres
que por essa instância passam em direção
a outros mundos espirituais mais evoluídos,
e muitos dos seus “milagres”
teriam uma explicação científica
na chave dos padrões energéticos,
vibratórios e mediúnicos.

IHU On-Line - O que fundamenta o espiritismo como uma religião cristã?
Marcelo Camurça - Essa é uma boa pergunta, que permite dirimir uma falsa ideia propalada por um certo “senso comum douto” que afasta o espiritismo de uma matriz cristã, apesar dele, à sua maneira, é certo, se reivindicar como tal, tendo inclusive entre suas obras doutrinárias um “Evangelho segundo o Espiritismo”.
Esta confusão, penso, deve-se ao fato do espiritismo enquanto “religião mediúnica” ser associado àquelas de matriz africana, ou por ter a ideia da reencarnação de origem hindu-budista entre suas crenças centrais, ou ainda pela acusação vinda da Igreja Católica no século XIX de que a “comunicação com os mortos” era prática de quiromancia, logo contrária à doutrina cristã. No entanto, no que tange à questão ético-moral, a doutrina espírita se baseia totalmente no Evangelho, e seus adeptos possuem uma “cultura do Evangelho” semelhante a dos protestantes, citando passagens e trechos deste nos seus estudos, aconselhamentos espirituais, assim como tomando-os como orientação para sua vida.
Para o espiritismo, Jesus Cristo é um “espírito superior”, o “governador” do planeta Terra, responsável pela evolução dos seres que por essa instância passam em direção a outros mundos espirituais mais evoluídos, e muitos dos seus “milagres” teriam uma explicação científica na chave dos padrões energéticos, vibratórios e mediúnicos. Por isso, seguindo a linha de Wulfhorst e Dahmman e seu conceito de “movimentos neorreligiosos” como de “caráter reinterpretativo, inovador, completivo e atualizante da religião clássica”, classifico o espiritismo como um “Neocristianismo” pela sua capacidade de ressignificar um “veterocristianismo” (católico, ortodoxo, protestante), introduzindo nele conteúdos do léxico cientificista e evolucionista (energias, padrões vibratórios; a “alma” como “perispírito” etc.).
É sobre a religião cristã pré-existente que o espiritismo vai empreender sua reinterpretação, compreendendo-se como uma revelação que esclarece o cerne da mensagem do Cristo, o que o estágio anterior não era capaz de fazer. Através desse movimento reinterpretrativo, a história sagrada e as figuras santas do catolicismo, como São Luís, Santo Agostinho, etc., ou, no caso do Brasil, o padre Manuel da Nóbrega, são reapropriados pelo espiritismo como “espíritos mentores” que se manifestam do plano espiritual revelando a cosmologia evolucionista da doutrina espírita.

"Considero que as concepções da
ressurreição católica e da
reencarnação espírita
estão balizadas pelas
 noções de Graça - a primeira -
e Evolução - a segunda."
IHU On-Line - Como entender o dilema entre carma e terapia dentro do espiritismo?
Marcelo Camurça - Esta questão foi desenvolvida de uma forma mais completa por mim num artigo que intitulei Entre o cármico e o terapêutico: dilema intrínseco ao Espiritismo, onde aponto, dentro das concepções espíritas, uma tensão entre o lugar da doença como questão inexoravelmente moral subordinada à lei de causa-efeito (popularmente conhecida como carma), mas também o papel ativo de uma terapia objetiva no diagnóstico, tratamento e possível cura.
Penso que isto se deriva do perfil espírita da “cientifização do espiritual”, calcado em uma articulação bem engendrada entre “progresso moral” (dimensão filosófico-religiosa) e a realidade das “energias, fluidos e faixas vibratórias” (dimensão científica). Ou seja, a dimensão subjetiva, moral e psicológica do indivíduo está intrinsecamente ligada a faixas energéticas e vibratórias. Por isso, em caso de doença, o espiritismo atua nesta questão tanto por passes, tratamentos e operações espirituais, intervindo no fluido espiritual para reequilibrar as energias deste indivíduo, quanto pelo ensinamento moral e o “atendimento fraterno”, conscientizando este indivíduo que sua doença está ligada a sua evolução espiritual resultado de atos praticados em “encarnações” anteriores.

A contradição
Mas o problema é encontrarmos uma contradição (e não articulação) entre estas duas instâncias. E aí vem a pergunta: até que ponto o recurso às curas mediúnicas não comprometeria as responsabilidades ou obrigações no cumprimento das dívidas cármicas? Ou seja, se o carma foi programado espiritualmente, qual a finalidade da cura? Isto pode ser ilustrado por uma anedota que ouvi no meio espírita, que dizia que o polêmico médium Arigó disse a Chico Xavier que o seu espírito mentor, o Dr. Fritz, poderia curá-lo de sua doença no olho, ao que Chico respondeu que esta era uma doença cármica, a qual, necessariamente, reapareceria em outro lugar, e que ele já estava acostumado com ela e não ia querer uma doença nova. Acho que neste dilema explica-se a clivagem que sempre dividiu o movimento espírita entre aqueles chamados “científicos”, que atuariam em experimentos paracientíficos do inefável, buscando alargar a ciência materialista para uma ciência espiritual, no caso uma “medicina da alma” e aqueles chamados “religiosos”, que, através de uma hermenêutica do Evangelho e da codificação kardequiana, explicariam o infortúnio dos indivíduos e os exortariam à conduta moral elevada e à prática do bem como instrumento de evolução espiritual.

IHU On-Line - Quais as principais reflexões que podemos fazer ao contrapor os conceitos de ressurreição católica e reencarnação espírita?
Marcelo Camurça - Considero que as concepções da ressurreição católica e da reencarnação espírita estão balizadas pelas noções de Graça - a primeira - e Evolução - a segunda. Neste sentido, a configuração católica se expressa no que chamo de “religião de salvação”, regida pelo primado da “graça” e “misericórdia divina” como esferas constitutivas do processo de “salvação” do homem. A configuração espírita, por sua vez, se expressa no que denomino de “religião de aperfeiçoamento”, onde prevalece a iniciativa do ser em sucessiva evolução e autoaprendizado na direção da plena realização no “amor de Deus”.
Embora ambas as configurações contemplem na sua cosmologia teleológica as dimensões do “amor e da misericórdia” do Criador na remissão e no resgate de suas criaturas, aliada à liberdade de escolha entre o bem e o mal, a configuração da “salvação” enfatiza a iniciativa divina na redenção da falibilidade dos seres e a do “aperfeiçoamento” acentua a iniciativa dos seres, balizada pela lei de Deus, no seu processo de caminho de integração no divino. Portanto, as duas formas ou instrumentais com que as realidades humanas “agarram” o sentido último (o modelo da “salvação” e da “evolução”) diferem entre si enquanto modalidades, manifestações de se acercar do transcendente, cada uma com suas argumentações, coerência interna e questões de plausibilidade.
Na modalidade católica temos um percurso salvífico condensado e na espírita, dilatado, que, a despeito de suas diferenças profundas no terreno das coerências e plausibilidades (e seria ingenuidade passar por cima destas diferenças, que merecem, ao invés disto, serem tomadas para um plano de diálogo), desembocam na mesma “realidade última”.

IHU On-Line - Qual a influência do espiritismo para as religiões e doutrinas da chamada nova era?
Marcelo Camurça - Espiritismo e nova era possuem a mesma referência histórica de origem, marcados pela onda do “novo espiritualismo” do fim do século XIX, onde proliferaram também a Teosofia, os ocultismos e a Rosa Cruz. Enquanto religiosidades com grande penetração nas camadas letradas da população, a nova era recebe do espiritismo a postura de racionalizar a magia, assim como o caráter individualista moderno da noção de livre arbítrio, que na nova era é exponenciado ao milésimo grau de autonomia, onde não existe nenhuma amarra para a criatividade individual. Como demonstra seu lema: no blame, no shame!.
No espiritismo as restrições ético-morais da doutrina codificada impõem limites às demandas por sucesso e fruição que são vinculadas, na nova era, às possibilidades ilimitadas do poder da mente e não, como na doutrina espírita, ao grau de merecimento subordinado às exigências de evolução moral. Na medida em que se expande, o espiritismo sofre um processo de fragmentação, liberando dos seus efetivos grupos sincrético-esotéricos, grupos paracientíficos, etc. Na verdade, cresce numa franja do espiritismo um número de simpatizantes de práticas new age: uso de cristais, tarô, reiki, etc., o que levou Anthony D’Andrea a ver um processo de “novaerização” do espiritismo ou de “pós-espiritismo”.
A mediunidade é reinterpretada como channeling (canalização), comunicação com o plano espiritual, mas também com universos intergalácticos, o carma é atenuado como influência tendencial, a razão é substituída pela intuição. Para determinadas camadas dos extratos médios brasileiros, o espiritismo não responde mais às suas demandas existenciais, onde o “interior” do indivíduo se transforma no locus supremo da verdade, alcançado pela meditação, técnicas de introspecção, bebidas sagradas, etc. A forte aderência do espiritismo à sua doutrina codificada implica numa falta de flexibilidade quanto às demandas diversificadas por novidades espirituais/existenciais destes grupos.
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* Marcelo Ayres Camurça é antropólogo e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Fonte: IHU online, 31/10/2010
Imagens da Internet

Entre o espiritual e o material

MARCELO GLEISER*

Imagem da Internet
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O material sem o espiritual é cego,
 e o espiritual sem o material é fantasia.
Nossa humanidade está na interseção

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EXISTIMOS NESSA FRONTEIRA, não muito bem delineada, entre o material e o espiritual. Somos criaturas feitas de matéria, mas temos algo mais. Somos átomos animados capazes de autorreflexão, de perguntar quem somos.
Devo dizer, de saída, que espiritual não implica algo sobrenatural e intangível. Uso a palavra para representar algo natural, mesmo intangível, pelo menos por enquanto.
Pois, se olharmos para o cérebro como o único local da mente, sabemos que é lá, na dança eletro-hormonal dos incontáveis neurônios, que é gerado o senso do "eu".

"Vivemos numa época onde o
materialismo acentuado
 - do querer antes de tudo, do eu antes do outro,
do agora antes do legado -,
está por causar consequências sérias."


Infelizmente, vivemos meio perdidos na polarização artificial entre a matéria e o espírito e, com frequência, acabamos optando por um dos dois extremos, criando grandes crises sociais que podem terminar em atrocidades.
Vivemos numa época onde o materialismo acentuado -do querer antes de tudo, do eu antes do outro, do agora antes do legado-, está por causar consequências sérias.
Lembro-me das sábias linhas do filósofo Robert Pirsig, no clássico "Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas": "Nossa racionalidade não está movendo a sociedade para um mundo melhor. Ao contrário, ela a está distanciando disso".
Ele continua: "Na Renascença, quando a necessidade de comida, de roupas e abrigo eram dominantes, as coisas funcionavam bem.

"O ponto é claro:
atingimos uma espécie de saturação material.
Para chegar a isso,
sacrificamos o componente espiritual."

Mas agora, que massas de pessoas não têm mais essas necessidades, essas estruturas antigas de funcionamento não são adequadas. Nosso modo de comportamento passa a ser visto como de fato é: emocionalmente oco, esteticamente sem sentido e espiritualmente vazio".
O ponto é claro: atingimos uma espécie de saturação material. Para chegar a isso, sacrificamos o componente espiritual. O material é reptiliano: "Eu quero, eu pego. Se não consigo, eu mato (metaforicamente ou de fato). O que quero é mais importante do que o que você quer".
Claro, progredimos muito, dando conforto a milhões de pessoas, mas, no frenesi do sucesso, deixamos de lado o que nos torna humanos. Não só nossas necessidades, mas nossa generosidade, nossa capacidade de dividir e construir juntos.
Quando nossa sobrevivência está garantida, recaímos em nosso modo reptiliano de agir -autocentrado- e esquecemos da comunidade.
A diferença entre nossa realidade e a de Pirsig, que escreveu essas linhas acima em 1974, é que um novo tipo de conscientização está surgindo, em que o senso de comunidade está migrando do local ao global.
Isso me deixa otimista.
Em todo o planeta, um número cada vez maior de pessoas entendeu já que os excessos materialistas da nossa geração precisam terminar. Não é apenas porque o materialismo desenfreado é superficial. É porque é letal, tanto para nós quanto para a vida à nossa volta.
Olhamos para nosso planeta de modo que não olhávamos 20 anos atrás. O sucesso do filme "Avatar" não teria sido o mesmo em 1990.
O momento está chegando para um novo tipo de espiritualidade, que nos levará a uma existência mais equilibrada, onde o material e o espiritual mantêm um balanço dinâmico. O material sem o espiritual é cego, e o espiritual sem o material é fantasia. Nossa humanidade reside na interseção dos dois.
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* MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha online, 31/10/2010

Olhares que curam...


A história de Zaqueu é uma história de olhares…

Há o olhar de Zaqueu, que procurava ver quem era Jesus; correu e subiu a um sicômoro para ver Jesus que devia passar por aí.
Há o olhar de Jesus que, ao chegar a esse lugar, ergueu os olhos…
Há, enfim,o olhar da multidão, que, ao ver tudo isso, recriminava Jesus por ir a casa de um pecador.
Três olhares, tão diferentes uns dos outros! Bem o sabemos: o olhar é uma linguagem além das palavras.
Os nossos olhares falam muito mais do que tantos discursos. As nossas palavras podem mentir, os nossos olhares não.
EM primeiro lugar, reparemos no olhar da multidão. Jesus tinha curado um mendigo cego; ao ver isso, a multidão celebrou os louvores de Deus. Ao ver o maravilhoso, a multidão maravilhou-se. E depois, tudo muda de repente. Após a atitude de Jesus para com Zaqueu, a multidão olha Jesus com hostilidade. Versatilidade das multidões, sem dúvida.
Mas também versatilidade dos nossos próprios olhares. Basta uma coisa de nada para que o meu olhar sobre aquele que estimava mude, quando percebo que ele não era “bem” aquilo que eu pensava!
Em segundo lugar, reparemos no olhar de Zaqueu. Mais do que um olhar de simples curiosidade, é um olhar de desejo. Ele tinha ouvido dizer que este Jesus não falava como os escribas e os fariseus. Além disso, Ele fazia milagres. Não viria Ele da parte de Deus? Então, ele quer ver este rabino que não é como os outros. Mas a sua procura continua tímida. Não ousa avançar demasiado. E eu? Qual é o meu desejo de ver Jesus, de O conhecer? Não sou demasiado tímido quando se trata da minha ligação com Jesus e da minha fé?
Finalmente, há o olhar de Jesus, que ergueu os olhos para Zaqueu. Que viu Ele? Um pecador à margem da Lei, banido por todos? Não, Jesus viu um homem rejeitado por todos, um homem habitado por um desejo, talvez não muito explícito, de ser acolhido por Ele próprio. Viu um homem que não tinha ainda compreendido que Deus o amava, apesar dos seus pecados, que Deus o olhava unicamente à luz do seu amor primeiro e gratuito. Então, Jesus colocou no seu olhar sobre Zaqueu todo este amor que transformou o publicano. E que o salvou!
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Comentário: Lc 19,1-10

Como funciona o Congresso

Rubem Alves*


Minha última crônica política que elucidou a dialética dos partidos do Brasil, a saber, o partido das galinhas versus o partido das raposas, provocou tamanha reação que resolvi dar continuação ao assunto. O assunto de hoje, dirigido especialmente às crianças, é sobre como funciona a mais importante de todas as instituições democráticas: o Congresso Nacional:
Congresso é o nome que se dá aos bichos eleitos reunidos. Na eleição para a presidência do Congresso o bicho que recebeu mais votos foi a Hiena, famosa por seu senso de humor: estava sempre dando risadas. Na sua posse ela fez um lindo discurso sobre as excelências da dieta vegetariana. E para terminar deu uma aula de filosofia. “Como disse o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, nós somos o que comemos. Vacas comem capim; portanto são capim. Macacos comem banana; portanto são bananas. Galinhas e patos comem milho; portanto são milho. Pássaros comem alpiste; portanto são alpiste. Assim, onças que comem vacas estão, na verdade, comendo capim. Uma cobra que come um macaco está, na realidade, comendo bananas. Um gambá que come galinhas está, na realidade, comendo milho. E um gato que come passarinhos está, na realidade, comendo alpiste. São todos, portanto, vegetarianos. Assim sendo, e em cumprimento às promessas que fizemos no período eleitoral, proclamo a lei de que todos os animais terão de ser vegetarianos, cada um do seu jeito. Viva a República Vegetariana!”
Se vocês argumentarem que as conclusões filosóficas da Hiena estão erradas direi que vocês estão com toda razão. Mas é preciso que se aprenda a mais importante de todas as regras da política: “Na política quem tem razão não é quem tem razão. É quem tem o porrete maior...”
O discurso da Hiena foi saudado com uma grande salva de palmas, seguido por um festival gastronômico em que hienas, onças, lobos, cães vadios, cobras, gambás e gatos vegetarianamente churrasquearam vacas, veados, macacos, galinhas e passarinhos. “Pois Feuerbach não disse que somos o que comemos? A lei é clara: todos os animais são vegetais transformados..”.
Aí os membros do partido derrotado perceberam que haviam caído numa armadilha. Leis são armadilhas. Uma vez feitas não podem ser desrespeitadas, a menos que sejam revogadas por aqueles que as fizeram, os representantes eleitos.

Mas quem teria poder para revogar essa lei? Olhando para seus gordos representantes no Congresso era claro que nenhum deles estava disposto a trocar costeletas, lombos e lingüiças por alface, couve e cenoura... Concluíram, então, que com aquele congresso de carnívoros a reforma política jamais seria realizada. O Ganso, metido a intelectual, repetiu então uma frase que havia lido num livro em inglês: “Might makes right”... É o Poder que estabelece o Direito.
Foi então que um leitão rechonchudo chamado Alfred Hitchcock pediu a palavra. Ele já havia experimentado a dor da perda de sua mãe, comida por uma onça que falava enquanto comia: “Que deliciosa é essa porca! Ela é milho, é abóbora, é mandioca, é batata! Como é boa a dieta vegetariana!” Pois bem. O dito leitão ponderou: “Eu não posso enfrentar a onça. As galinhas não podem enfrentar os gambás. Os cordeiros não podem enfrentar os lobos! Mas os pássaros! Milhares de pássaros em seus vôos rasantes e bicos pontudos! Que poderão fazer as onças, os gambás e os lobos contra o ataque de milhares e pássaros? Vamos chamar os pássaros! Eles são vegetarianos! São nossos aliados!”” E assim aconteceu. Vieram então, em bandos que tapavam o sol, milhares de andorinhas, pássaros pretos, sabiás, pardais, tico-ticos, periquitos... Invadiram o edifício do Congresso. Foi um pandemônio. O espaço escureceu. O barulho dos pios e dos gritos dos pássaros era ensurdecedor. Milhares de bicos bicando sem parar em mergulhos certeiros. Além disso, por onde iam soltavam seus excrementos moles e fedidos que escorriam pelas caras dos excelentíssimos. Os representes gritavam histéricos: “Isso é conspiração! Estão tentando desestabilizar o governo!” Mas os pássaros nem ligaram. Continuaram a fazer o que estavam fazendo. Os gambás, onças, lobos, cães vadios e hienas fugiram e nunca mais voltaram, com medo de que os pássaros lhes furassem os olhos...”
Isso, meninos e meninas, tem o nome de revolução. Revolução é quando os eleitores resolvem demitir os seus representantes que os traíram e fazer, eles mesmos, as leis. Vejam, como num ritual de feitiçaria, o filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock. Quem sabe os pássaros vêm...
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* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular

sábado, 30 de outubro de 2010

Um país na roda-viva

Santiago Kovadloff *
- La Nación

O vazio que Kirchner deixa é o vazio gerado pelos caudilhos quando se vão. Enquanto governam, almejam tudo. Quando perdem o poder ou a vida, não têm ninguém que os represente
AP
Ele não preparou Cristina para a sua herança imaginária,
 mas para preservar seu capital político

Não faltarão os insensatos que festejarão seu desaparecimento. São cegos, não só insensíveis. Não são apenas impermeáveis à dor pessoal; são impermeáveis também às consequências políticas que esse brusco desaparecimento acarreta à República Argentina. Porque com Néstor Kirchner não morreu somente um ex-presidente, mas o político mais poderoso do país. Que Deus inspire a presidente e quem costuma aconselhá-la para que, nos próximos pronunciamentos, não façam desse fato uma fonte de vantagens políticas espúrias. A moderação que há muito tempo deveríamos ter, mais do que nunca é indispensável.
Não, a morte de Néstor Kirchner não beneficia ninguém. E obviamente não beneficia o oficialismo. Tampouco a oposição. Em definitivo, é um desastre para a democracia argentina. A dimensão das incertezas trazidas por sua morte ainda não pode ser devidamente avaliada. Mas é, e será, sem dúvida, determinante. E tudo isso poderá ser agravado por aqueles que não vacilarão em fazer uso demagógico da sua morte. Como ocorreu com Juan Perón, quando Eva Duarte faleceu, com Isabel Martínez, quando morreu Juan Perón, e mais recentemente, quando faleceu o pai de Ricardo Alfonsín, Cristina Fernández se verá investida nos atributos com que a comiseração pública e a idealização inevitável costumam coroar aqueles que, por uma ou outra razão, são familiares das grandes personalidades desaparecidas. Isso é compreensível. Mas também o é a inquietação de quem teme que essa piedosa proximidade e essa solidariedade sejam usadas ideologicamente por aqueles que gostam de se aproveitar da dor das pessoas para consolidar seu poder.
A morte de Néstor Kirchner vai acelerar a desintegração da Frente para a Vitória. Provocará tensões entre setores que disputarão com unhas e dentes a condição de honrados representantes do ex-presidente falecido.
Mas o certo é que Néstor Kirchner não deixa herdeiros. Sua liderança sempre foi excludente, não inclusiva. E certamente veremos aqueles que se empenharão em apresentar Cristina Fernández com sua sucessora. Mas estarão equivocados. A presidente foi aliada do ex-presidente. A única pessoa que esteve ao seu lado em situação de igualdade. Mas Kirchner não a preparou para receber sua herança imaginária, e sim para preservar seu capital político enquanto ele, num cone de sombra mais que tênue, continuava exercendo o poder.
Néstor Kirchner jamais renunciou à sua liderança. Como outras figuras da nossa história, foi um dirigente solitário. Defensor ávido e feroz do seu protagonismo. O verticalismo foi sua norma; a transversalidade a sua máscara. Por trás da retórica do companheirismo, sempre manteve um implacável domínio pessoal.

"Aqueles, como nós, que não concordavam com ele,
prefeririam que fosse derrotado pela democracia,
 não pela morte.
Mas não é exagero afirmar que Kirchner preferiu a morte.
O destempero era sua marca distintiva.
 Ele poderia ter sido personagem
de uma tragédia grega."

Néstor Kirchner morreu como queria. Sua morte é chocante, emociona, mas não surpreende. Era uma morte anunciada. Ele jamais recuou diante da adversidade nem diante dos adversários, que considerou sempre inimigos. E o risco da morte tampouco o intimidava. Há muito tempo desprezava os avisos dados pelo seu corpo enfermo. Não os aceitava. No geral, o excesso era sua norma. Homero soube distinguir entre a ousadia e a coragem. Muitos dirão que Néstor Kirchner foi um homem de coragem. Talvez. Como político, a ousadia foi o que melhor o caracterizou. Os limites denegriam sua onipotência. Não faltam exemplos disso, desde que assumiu pela primeira vez o governo de Santa Cruz até essa funesta quarta-feira, um dia triste para todos os argentinos.
Aqueles, como nós, que não concordavam com ele, prefeririam que fosse derrotado pela democracia, não pela morte. Mas não é exagero afirmar que Kirchner preferiu a morte. O destempero era sua marca distintiva. Ele poderia ter sido personagem de uma tragédia grega. E, como numa tragédia grega, seu desaparecimento não soluciona o conflito, mas vem tornar mais complexa a trama que caracteriza a difícil situação do país.
Independentemente de ser a favor ou contra o que Néstor Kirchner realizou e significou, o fato é que o seu desaparecimento é uma desgraça que afeta a nós todos. A fragilidade institucional da Argentina, com sua morte, recebe mais um golpe, e dos mais profundos, desde o retorno do país à vida constitucional. O vazio que Néstor Kirchner deixa é o vazio gerado pelos caudilhos quando se vão. Enquanto governam, aspiram a ser tudo. Quando perdem o poder e, como nesse caso, a vida, não têm ninguém que os represente. /
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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*SANTIAGO KOVADLOFF É FILÓSOFO, ENSAÍSTA E POETA, AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O SILÊNCIO PRIMORDIAL (JOSÉ OLYMPIO)
Fonte: Estadao online, 30/10/2010

Outono da Idade Média

obra de Huizinga, chega ao País

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Para discuti-la, o 'Estado' reuniu o francês Jacques Le Goff e o brasileiro Hilário Franco Júnior

Desde o Renascimento e, mais tarde, o Iluminismo, em línguas europeias como o português, o inglês ou o francês, os vocábulos "medieval" e "moderno", além de definirem duas eras distintas da História, designam uma dicotomia: de um lado, as trevas, o ultrapassado, o atraso; de outro, as luzes, o atual, o progresso. Essa visão de mundo, decretada por humanistas do século 16 e reforçada por filósofos do século 18, trazia embutida a ideia de que, ao deixar a Idade Média, seus valores e seus princípios, a Humanidade alcançava a passarela para um futuro mais justo, democrático e legítimo: a Idade Moderna.
Andrei Netto/AE
Jacques Le Goff:
historiador é reconhecido como o maior medievalista vivo

Essa visão dos "medievalismos", cujos fragmentos de preconceito ainda perduram, começou a ser desconstruída pelas mãos do historiador americano Charles Haskins, autor de The Renaissance of the Twelfth Century, de 1927.
Antes dele, porém, outro especialista em história medieval, o holandês Johan Huizinga (1872-1945), já havia traçado em cores a vida, os valores, os hábitos e as emoções naquele período em seu clássico O Outono da Idade Média, que chega na íntegra às livrarias brasileiras, traduzida diretamente de seu idioma original.
Uma das virtudes tácitas de Huizinga em sua obra-prima é sua habilidade de relativizar as "certezas". Virtuoso de sua disciplina, o autor reconhecia as contradições da História, que ajudam, por exemplo, a entender o dualismo medieval-moderno. "É bem verdade que cada época deixa mais rastros de sofrimento do que de felicidade. Suas desgraças se tornam sua história", ponderou. No mesmo trecho, Huizinga apela à convicção "talvez instintiva" para elaborar uma equação: a soma de paz e felicidade destinadas às pessoas não pode variar muito de uma época à outra. "O brilho do final da Idade Média também não passou despercebido: ele sobreviveu na canção popular, na música, nos horizontes quietos da pintura de paisagem e nos rostos sóbrios dos retratos", escreveu, em seu tom romântico e subjetivo.
Raros são os livros de História que se tornam história, assim como poucos são os historiadores lembrados pela posteridade. Esse é o caso de Huizinga e de sua obra-prima.
Publicado em 1919, O Outono da Idade Média (Herfsttij der Middeleeuwen) derrubou as fronteiras que outros pesquisadores haviam construído entre a Idade Média tardia e o Renascimento. Para o holandês, a transição vivida no século 15, um ponto de virada da civilização ocidental, foi muito mais fluida do que supúnhamos. A Idade Média era, sim, um período de fome, doenças, miséria, ódio, mas não apenas isso. Era também tempo de prazeres, de ideais, de arte e de amor.
Para explorar os meandros, as sutilezas, os erros e acertos da obra de Huizinga, o Sabático – que na quarta-feira, em parceria com a editora do livro, a Cosac Naify, promoveu um debate na Universidade de São Paulo com os professores Lorenzo Mammì, Marcelo Cândido da Silva e Tereza Aline Pereira de Queiroz –, propôs um encontro, por assim dizer, histórico. Em Paris, o caderno reuniu o historiador francês Jacques Le Goff, 86 anos, considerado o maior especialista do mundo sobre o tema, e seu ex-orientando brasileiro, o ex-professor da USP Hilário Franco Júnior, de 61 anos. No encontro, realizado no escritório do acadêmico francês, em sua casa, no 19.º distrito parisiense, Le Goff saudou a adoção do título O Outono..., e não o da primeira versão francesa da obra, denominada O Declínio da Idade Média. "Essa é uma leitura estúpida do livro", ressaltou em diferentes momentos.
Admiradores de Huizinga, Le Goff e Hilário travaram um diálogo fascinante e revelador sobre o autor, morto em De Steeg em 1945, durante a ocupação nazista da Holanda. A seguir, a síntese do encontro, marcado pela amizade – e pelo reconhecimento intelectual mútuo.

Hilário Franco Júnior – O Outono da Idade Média desenhado por Huizinga é tão magnífico que permitiu a Philippe Wolff tentar transformar o outono em primavera. Este é o nome de um livro de 1986: O Outono da Idade Média ou a Primavera de Tempos Novos. O que eu gostaria de saber é: o fim da Idade Média, segundo Huizinga, é realmente um outono ou é uma primavera?
Jacques Le Goff – Você, como historiador, sabe que mesmo que a História só possa ser construída a partir de documentos, baseada em pilares os mais sólidos possíveis, ela é aberta, e à medida que o tempo passa, as interpretações podem variar bastante. O Outono da Idade Média de Huizinga é um livro tão interessante que passado quase um século ele continua a ser lido, traduzido e se presta a novas interpretações. É preciso dizer que o período ao qual o livro se dedica, digamos um longo século 15, talvez também seja um dos mais mal estudados na Europa, e por isso ainda há novas descobertas e interpretações. Há uma exposição em cartaz hoje, no Grand Palais, com o título France Quinze Cent, que mostra como esse período foi uma mistura do apogeu da Idade Média e de afirmação do Renascimento. Eu creio que este seja o caso de uma virada histórica que não se parece com nenhum outro, porque se trata de um belo outono. A tradução francesa antiga era uma tradução estúpida ao se referir ao declínio da Idade Média.
No entanto, Huizinga compartilhava com muitas pessoas cultas da Europa do início do século 20 a ideia de que a Idade Média acabava no fim do século 15, um período marcado pela tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, com a tomada de Granada e com a reunificação de toda a Península Ibérica pelos reis católicos, que haviam caçado os muçulmanos, e, sobretudo, pela descoberta da América de Cristóvão Colombo, que produziu o que poderíamos chamar de primeira globalização da história. Mas eu me pergunto se o nosso conhecimento desse período e nossas interpretações não mudaram um pouco.
No que me diz respeito, eu fui voluntariamente provocador ao falar de uma longa Idade Média que se prolongou até o século 18. Continuo a pensar que há uma certa verdade na ideia de que a Idade Média vai até o fim do século 18, se observamos aspectos essenciais, como a fome, as pestes, a indústria – a economia capitalista do século 18 é uma grande virada. O que ocorre é que, na verdade, nós voltamos à visão de Huizinga, continuando ou retomando a ideia de que do fim do século 15 ao século 16 acontece um certo número de mudanças profundas, dentre as quais a descoberta da América, a Reforma na Europa. Realmente há algo de novo no século 16. Mas o que me parece novo é que, mesmo que consideremos que o fim da Idade Média acontece no fim do século 15, ela não era decadente, não era triste, mas sim soberba, até exagerada. Vemos isso com os pintores flamengos e com a riqueza econômica das cidades flamengas e italianas, em particular Veneza, antes da descoberta da América, ou na moda da época, às vezes extraordinária.
Vejo hoje um retorno a Huizinga. De outro lado, ele soube no início do século 20 fazer viver a história que ele escrevia com qualidades, dons, procedimentos que não eram nada correntes na História. Em seu livro, Huizinga se mostra o precursor de um novo tipo de História que está em pleno desenvolvimento hoje, a história das emoções, a história das paixões, lançada há cerca de 20 anos pela historiadora americana Barbara Rosenwein. E isso é O Outono da Idade Média.

Franco Júnior – Como o senhor explica a pequena posteridade do livro de Huizinga? Seria em razão de uma certa instintividade que ele explora e que é mal compreendida por certos historiadores, que se consideram grandes cientistas e que veem grandes leis históricas, ou coisas do gênero?
Le Goff – Eu creio que, na realidade, a posteridade de Huizinga foi contida em grande parte pelo nascimento e pelo desenvolvimento de uma forma de fazer a História que alcançou grande posteridade, que é a Escola dos Annales. Mas, ao contrário do que possamos pensar, a história dos Annales é sobretudo uma história econômica e social, diferente do Outono da Idade Média. De qualquer forma, acho que o sucesso dos Annales contribuiu muito para bloquear a influência de Huizinga.

"A meu ver, por muito tempo, entre 1850 e 1930,
a História ficou bloqueada pela história das ideias, além, é claro,
da história tradicional.
Sem os outros domínios, os homens perdem suas carnes.
Aliás, eis uma palavra que convém a Huizinga:
 há carne no Outono da Idade Média."
Franco Júnior – Deixe-me perguntar algo mais pessoal: o senhor falava há pouco de uma longa Idade Média. O senhor se sente um pouco tributário de Huizinga, desta visão de longo termo?
Le Goff – Sim, absolutamente. Não apenas de sua visão de longa duração, mas também da ideia de alargar o domínio da História. A meu ver, entre os grandes méritos de Huizinga estava procurar fontes às quais os historiadores não se interessavam muito, seja na arte, na literatura, nos costumes. Além disso, há no Outono da Idade Média uma busca da época no coração dos homens e mulheres e um olhar muito compreensivo sobre o "parecer". Essa combinação da busca do íntimo e da procura do "parecer" me soa avançada em relação ao momento mais ambicioso do início da Escola dos Annales – algo que ela não conseguiu completar porque traçar a história universal é um objetivo utópico.

Franco Júnior – Conceitos como representação, sistema de valores, temas como o corpo, a morte, as emoções, etc., tudo está presente em Huizinga. De certa forma, tudo prenunciava a Antropologia Histórica, que o senhor desenvolveu nos anos 70.
Le Goff – Sim. E isso me permite reconhecer minha dívida em relação a Huizinga, pelas pesquisas que fiz nesse sentido, em particular sobre o corpo e as imagens. No tema das imagens tive uma grande receptividade, porque um grupo de jovens historiadores o retomou e o desenvolveu, em particular sob a direção de Jean-Claude Schmitt, Jean-Claude Bonne, de Jérôme Baschet, na França, e também na Alemanha, com Hanz Belting. (Erwin) Panofsky também pode ser incluído. Houve um esforço, do qual participei, para alargar as fontes e o domínio da História, em particular em direção ao corpo e à exploração da imagem, que são diferentes da História da Arte tradicional.

Franco Júnior – Mas há uma diferença entre a forma com que Huizinga fazia a história das imagens, das representações, e a forma como a Escola dos Annales o fazia. Qual seria essa diferença essencial?
Le Goff – Eu creio que, apesar de seu charme, o livro de Huizinga é subjetivo demais. Podemos fazer uma história dos sentimentos, mas não podemos fazer História com sentimentos. Creio que a história das imagens desenvolvida a partir da Escola dos Annales era mais próxima das fontes, com métodos de análise mais científicos em relação às práticas de Huizinga, que eram mais literárias do que científicas, ao menos em relação ao tipo de ciência que é a História.

Franco Júnior – Sua ressalva sobre a história emocional das emoções me leva a outra questão: no prefácio da primeira edição, Huizinga diz que escrever o livro foi como "observar o profundo de um céu noturno, um céu vermelho como o sangue, pesado e desértico de um cinza chumbo ameaçador. O quadro que eu tracei é mais sombrio e menos sereno do que o que eu entrevi quando comecei a trabalhar". Minha questão é: esse quadro mais sombrio é um reflexo dos séculos 14 e 15, ou da Grande Guerra, que recém-acabava e que estava presente no espírito de Huizinga?
Le Goff – Eu acredito que seja a segunda hipótese, até porque não é assim que vemos o século 14 e o século 15. Eu insisti, talvez até um pouco demais, no lado subjetivo da obra de Huizinga. Mas não se deve esquecer que a subjetividade dos historiadores transparece um pouco frente ao horror, independente de qualquer esforço de se trabalhar cientificamente. Um dos primeiros historiadores, senão o primeiro historiador a ter acentuado a subjetividade de sua obra foi Jules Michelet, que foi uma fonte dos Annales. Muito do que Huizinga pôs em O Outono está em Michelet. Há uma outra tendência da História, da qual O Outono da Idade Média talvez seja uma produção tardia: é a veia romântica. A passagem que você acaba de ler é profundamente romântica.

Franco Júnior – Em um artigo de 1986, reproduzido na edição brasileira, Peter Burke, historiador inglês, diz que O Outono... é penetrado de nostalgia e pode ser considerado um caso de medievalismo romântico à maneira de Walter Scott e Gabriel Rossetti.
Le Goff – Devo admitir que em um momento dessa conversa eu pensei em Walter Scott. Ele é uma das minhas grandes fontes de pesquisa como historiador da Idade Média e é alguém que me aproxima de Huizinga. Mas para diversos historiadores o livro de Huizinga foi um verdadeiro pioneiro em um domínio que precisa continuar a ser explorado: o da História dos valores e dos sistemas de valores. O que satisfaz, faz chorar e viver as pessoas de uma época? Esse é um domínio que ainda não produziu toda a sua riqueza. A meu ver, por muito tempo, entre 1850 e 1930, a História ficou bloqueada pela história das ideias, além, é claro, da história tradicional. Sem os outros domínios, os homens perdem suas carnes. Aliás, eis uma palavra que convém a Huizinga: há carne no Outono da Idade Média.

Franco Júnior – Mas carne viva ou morta? Porque Huizinga revela uma certa obsessão pela morte, pela história da morte...
Le Goff – Há, sem dúvida, uma certa obsessão pela morte em O Outono da Idade Média, o que tem várias fontes. Antes de mais nada, a morte é um dos valores do século 15, que foi, por exemplo, o século das danças macabras. Outra prova da fascinação de Huizinga pela morte é o seu romantismo. E outra fonte de influência é o que você citou, a Guerra de 1914-1918, na qual a Holanda foi uma das vítimas.

Franco Júnior – Por duas vezes em sua entrevista de 1975, o senhor ressaltou a semelhança entre Huizinga e Lucien Febvre. Eu me pergunto se não poderíamos fazer o mesmo em relação a Marc Bloch. Digo isso porque o subtítulo de O Outono da Idade Média é Estudo Sobre as Formas de Vida e de Pensamento, o que me lembra o célebre capítulo de A Sociedade Feudal, A Condição de Vida e a Atmosfera Mental. É possível aproximar Huizinga e Bloch? Huizinga havia lido Bloch?
Le Goff – Estou mais ou menos certo que sim. Não tenho lembranças claras, para ser sincero, mas sei que me preocupei com esse assunto, e cheguei à conclusão de que Bloch teria lido Huizinga. E eu penso que, mesmo que Lucien Febvre tenha sido mais próximo da mentalidade, da sensibilidade de Huizinga, Marc Bloch também pode ter sido influenciado, ainda que com uma certa distância. Por exemplo, esse capítulo da Sociedade Feudal, que citamos frequentemente e que foi um dos grandes trechos deste livro, não era o tema que mais o interessava.

Franco Júnior – Ah, não? Isso me surpreende...
Le Goff – O que interessava a Marc Bloch era antes de mais nada a história econômica, a história social e, eu diria, a história da mitologia. Eu acredito que qualquer que fosse o parentesco e a influência de Huizinga sobre a Escola dos Annales e sobre seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, os Annales deram à pesquisa histórica na Europa e na França direções que os afastavam de Huizinga. E creio que esse tenha sido um fator que bloqueou, em maior ou menor proporção, a difusão do trabalho de Huizinga.

Franco Júnior – Muito interessante... Na sua entrevista, o senhor diz que O Outono da Idade Média é um livro poético e que sua poesia expressa ao mesmo tempo sua grandeza e seu limite. Nós já discutimos esse ponto. Mas, no que diz respeito aos limites de Huizinga, no fim da Idade Média havia uma forte necessidade de dar formas ao sagrado. Mesmo fazer amor era algo sagrado. Ainda assim, Huizinga dá muito pouca atenção às sensibilidades hereges, em um momento em que a Holanda era marcada por esse sentimento. A meu ver é uma das fraquezas deste livro. Qual o porquê desse desprezo?

Le Goff – Para ser franco, é algo que eu nunca me questionei, e por isso vou improvisar. Falamos bastante que é necessário conservar o título original do livro, que é o "outono", e não o "declínio". É um belo outono ensolarado. No entanto, para um protestante, é o fim de um mundo. Talvez Huizinga não tenha querido misturar em seu livro aquilo que seria o fermento de uma modernidade. As heresias, à medida que anunciavam a Reforma, referiam-se ao período posterior àquele que Huizinga queria mostrar. Mesmo que eu não aceite a tradução "declínio", tenho de admitir que Huizinga quer oferecer à Idade Média um bom túmulo. E talvez ele não tenha querido misturar o assunto.

Franco Júnior – É possível. Para encerrar, eu me permitiria fazer uma pequena provocação. O senhor me afirmou certa vez que a obra de um historiador não sobrevive a si próprio mais de 50 anos. Se Huizinga morreu em 1945, a provocação é: O Outono da Idade Média está morto?
Le Goff – Quando disse isso, devo tê-lo feito por duas razões. A primeira, que eu me referia a uma espécie de média. As obras de História, em sua maioria, sobrevivem, têm alguma influência e nos permite interpretar os fatos de outra maneira, o que as diferencia das obras mortas. Os 50 anos, eu diria, é mais ou menos o prazo de validade correto. De outro lado, eu confesso que não suporto os historiadores que evocam um tal limite como uma espécie de conjuração, na esperança de que a própria História lhes desminta. No fundo, eles esperam que ao menos uma parte de suas obras supere esse limite, que aliás não é absoluto.
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Reportagem POR  Andrei Netto - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão online, 30/10/2010