quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Bairrismo do centro

Juremir Machado da Silva*
Crédito Arte João Luis Xavier
O mundo é cheio de contradições. Uma contradição inteligente e sem solução se chama de paradoxo. Deve ser uma invenção da natureza para que tudo seja mais divertido ou tragicômico. Uma das coisas que mais me chamam a atenção é o bairrismo do centro. Ninguém é mais bairrista no Brasil do que cariocas e paulistas. Nem os baianos. Muito menos os gaúchos. O bairrismo dos cariocas e dos paulistas já começa nessa crença de que eles são realmente centro. É uma ideia do tempo em que não havia Internet nem globalização. Hoje, tudo é centro. Até a periferia. Carioca é tão bairrista que acha que não tem sotaque e, com aquele sotaque de cobra sibilando, imita o sotaque dos outros. Paulista faz o mesmo, só que com aquele sotaque de caipira enrolando a língua.
Já disse aqui que a principal marca do bairrismo paulista está em se ver como cosmopolita. É o cosmopolita do "ô meu" e do "ô loco". O cosmopolita do "Curintia" ou da padaria da esquina. A marca do bairrismo carioca é achar que todo carioca é malandro e bom de humor, aquele humor de irmão mais velho, da implicância e do bullying. Carioca vê clichês nos costumes dos outros. Já os seus clichês são sempre positivos. Nada mais bairrista do que a mídia carioca e paulista, que se julga nacional, embora até escreva com sotaque. Nessa história dos 50 anos da Legalidade, cariocas e paulistas deram um show de bairrismo. Cobriram a renúncia de Jânio Quadros e o papel de Carlos Lacerda, o presidente bebum que haviam inventado para varrer a corrupção e o jornalista mentiroso que passou a vida tentando ser presidente.
Cariocas e paulistas acham que os gaúchos são bairristas porque mandamos no Brasil com Getúlio Vargas, Jango e até com os milicos. Não suportam o fato de que não torcemos para Flamengo e Corinthians e, com Inter e Grêmio, vivemos dando laço neles. Os cariocas, mais pragmáticos, resolveram aderir e elegeram Brizola duas vezes para governar o Rio de Janeiro. A dor dos paulistas é maior. Depois de 1930, nunca mais voltaram realmente a controlar as rédeas do Brasil. Tentam nos enfiar pela goela os seus gostos esquisitos, a começar pelos sertanejos. Não cola. A Legalidade é mais uma cicatriz na vaidade das elites cariocas e paulistas. Jânio se foi como um louco. Os ministros militares tentaram um golpe absurdo. Lacerda reprimiu a imprensa e os movimentos sociais e tentou deixar a bola com seus amigos fardados.
O Rio Grande do Sul estragou a festa. Colocou água no chopinho da galera do centro. Desesperados, cariocas e paulistas, donos da mídia mais provinciana do Brasil, mais do que a Rede Baita Sol, de Palomas, o que é uma baita façanha, tentam nos rotular de bairristas para encobrir o próprio bairrismo. O jornal Estado de S. Paulo, que botou luto pela morte de Pinochet, e a Folha de S.Paulo, que bajulou a ditadura e depois a chamou, não faz muito, em editorial, de "ditabranda", simularam interesse. A tucana revista Veja, como sempre, nada viu. Afinal, olha para o passado com sua ideologia conservadora. Veja continua na Guerra Fria. Dá até pena.
---------------------------------------------
* Sociólogo. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo

ARRUMAR SÓTÃOS E PORÕES

Lya Luft*
Quem acompanha o que penso há décadas sabe que o centro de minhas perplexidade tem sido a família, esse chão inaugural sobre o qual caminharemos pelo resto de nossa vida, mais sólido ou mais esburacado, propiciando que se ande melhor ou se tropece mais. Acontecimentos espantosos mostrados na mídia nestes dias testemunham que precisamos ser menos românticos e mais lúcidos para que se salve uma semente de humanidade ali onde família deixou de existir. Bandos de crianças e pré-adolescentes fazem arrastões em hotéis ou lojas numa grande cidade. Alguns, presos, são devolvidos às mães. Ouve-se claramente uma dessas pseudomães criticar a filha, não por ter roubado, mas por ter “roubado no mesmo lugar, sua besta”. Uma autoridade insistia brandamente em que ainda se devia apostar na família. Sinto muito: nesses casos extremos, não acredito nisso. Algumas famílias são a origem do mal (e não só entre os mais desvalidos). Ali não existem colo, abraço, escuta ou palavra: existem brutalidade, obscenidade e crueldade. Ali não se formam pessoas, e é insensato devolver crianças ou pré-adolescentes a esse tipo de mãe. É uma desesperada, dirão alguns, e pode ser. Mas ali o conceito de “família” não existe.
Nem acredito que essas crianças enfurecidas, pequenos selvagens que apanhados destruíram, literalmente, postos de polícia e salas de atendimento de menores infratores, chutando policiais, atirando objetos longe, quebrando e rasgando o que chegava aos alcance de sua violência, tenham possibilidade de melhoria, se devolvidas a sua pseudofamília. Retornadas às ruas, são um perigo para si e para todos. A lei deveria ser muito firme nesses casos, para socorrer fantasmas com carinha de criança e alma de sombra, acalmando sua violência, incutindo-lhes o que seja convívio, dignidade, respeito por si e pelo outro: longo caminho, longo aprendizado, longo esforço da sociedade em compensar essas pessoinhas pelo abandono em que as deixou.
Quando se fala em redimir os miseráveis do país retirando-os desse contexto, deve-se incluir, de imediato, o trio moradia, saúde e educação, sem o qual somos quase bichos. Perdoem-me os ainda líricos, mas o que se viu mais de uma vez nessas crianças foi a violência nua e crua. Talvez estivessem drogadas. Certamente não conhecem outra coisa no ambiente insano no qual nasceram. Mas precisam, por isso mesmo, de contenção, limite, autoridade amorosa mas firme, orientação e, antes de tudo, cuidados básicos consigo mesmas.
Onde a família virou apenas um mito distante, mais essencial é a ideia da educação, que não se restringe a caderno e lápis, mas começa com a tentativa de salvar essas crianças do seu meio com um atendimento básico em saúde e higiene, conceitos fundamentais de vida, afeto, respeito, o que, naturalmente, inclui limites, disciplina, restrições e encaminhamentos paulatino, paciente com autoridade, a um condição de vida mais humana. Educação começa aí, inclui essas coisas, é muitíssimo maior do que isso que chamamos ensino, e é condição dele.
Erradicar a miséria onde ainda se vive em condições inimagináveis é ainda mais urgente do que ordenar o sótão, procurando expulsar os ratos e os insetos daninhos ali instalados, reestruturar funcionamentos, dar novo sentido, deixar entrar claridade, botar em ação espanadores, panos, água limpa, enceradeiras e ordenação de objetos. Mas talvez as duas coisas sejam essenciais e não sejam incompatíveis, embora exijam força e empenho quase sobre-humanos: o país olha com alguma esperança para essa possibilidade. Quem assistiu ao espetáculo daquelas crianças ferozes aposta em se juntarem as duas pontas numa grande arrumação de casa visando aos espectros do porão e aos ratos e lacraias do sótão, custe o que custar, enfrentando oposições, reclamações, superando jogos de poder e cobiça de cargos, encarando o principal: limpeza, luz, ordem, eficiência, decência, fazendo funcionar melhor a dramática engrenagem social em que nos debatemos.
________________________
*Escritora. Tradutora. Escreve quinzenalmente na revista VEJA.
Fonte: Revista VEJA impressa, Ed. 2232 – 31 de agosto de 2011, pág.26.
Imagem da Internet

Às vezes uma broca é só uma broca

ANTONIO PRATA*
Imagem da Internet
--------------------------------------------------------------------------------
Diante de uma queixa de meu amor,
usei um golpe baixo: 'Você prefere ver
pelas paredes quadros
ou baratas?'
--------------------------------------------------------------------------------
Pode parecer bobagem e talvez seja -claro que é, é uma tremenda bobagem-, mas não admito que outra pessoa pendure os quadros em minha casa. Tenho amigos, decerto mais bem resolvidos do que eu, que conseguem delegar a função a um cunhado, ao zelador ou a outro profissional habilitado sem sentirem, com o descumprimento das obrigações conjugais, sequer uma comichão em suas masculinidades. Um deles chega até a sugerir, sempre que a mulher exige algum reparo doméstico: "Chama um homem, meu bem". Eu não sou assim. Sinto-me pusilânime como um corno rodrigueano só de pensar em abrir a porta de meu próprio lar para que outro marmanjo meta a broca em minhas paredes.
Fiz anos e anos de psicanálise, sei bem que minha relação com a furadeira é apenas uma manifestação ridícula de antigos fantasmas: nunca ter aprendido a jogar futebol, ser baixinho, estar mais para Woody Allen (no mau sentido) do que para Humphrey Bogart (no único sentido), mas pouco importa. Uma hora a gente desiste de iluminar as minhocas escondidas embaixo de cada pedra, simplesmente admite que a vida é assim mesmo e toca pra frente, transformando neuroses em convicções -eis aqui uma delas, sólida como uma viga: na minha casa, quem fura sou eu!
Minha insistência no monopólio da furadeira talvez não fosse um problema se a ela não se somasse outra, digamos, idiossincrasia: uma tendência à procrastinação das tarefas domésticas que chega a ser enlouquecedora. "Enlouquecedora" para minha mulher, evidentemente. Afinal, após duas semanas na casa nova, as roupas de cama já estão no roupeiro, os sabonetes nas saboneteiras, o sal no saleiro -só os quadros continuam pelos cantos, esperando, como aviões num aeroporto fechado pelo mau tempo.
As tormentas que alego para meu renitente atraso são o trabalho, que anda puxado, e a necessidade de priorizar tarefas mais urgentes: passar a conta de luz para nosso nome, instalar a máquina de lavar, marcar a dedetização. Diante de uma das legítimas queixas de meu amor, cheguei até a usar de um golpe baixíssimo, desses que devem ser evitados mesmo em momentos de MMA conjugal: "Decida, o que você prefere ver pelas paredes, quadros ou baratas?". Não colou. Este fim de semana receberemos alguns amigos e eu recebi um ultimato, ou faço aquilo a que me proponho ou ela tomará medidas extremas: chamará um "Marido de Aluguel".
Ora, meus caros, vocês podem dizer que sou neurótico, louco de pedra, caso de hospício, mas convenhamos: se não houvesse nos pequenos reparos domésticos toda uma simbologia, se não residisse nos pregos, parafusos, courinhos e trincos uma das últimas reservas de nossa acuada masculinidade, teriam esses trabalhadores o nome que têm? Evidente que não.
Maridos de aluguel, especuladores de curto prazo, saqueadores de pirâmides, hienas: todos eles ganhando a vida às custas da desgraça alheia. Ela que experimente chamar aqui um desses larápios. Será recebido com broca 12 -função martelete-, lança-pregos e maçarico. Na minha casa, quem fura sou eu! (Mesmo que demore um pouquinho).
-------------------------------
* Cronista. Escritor.antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata
Fonte: Folha on line, 31/08/2011

Entre ser feliz e ser livre

MARTHA MEDEIROS*
Imagem da Internet
Dizem que ainda vai chover muito no Sul e fazer frio até outubro. Meleca. O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra. Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein e o casal Fitzgerald, e driblavam a lei seca com litros de uísque, vinho e absinto. O espírito é parecido com o do último filme de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no registro de época. Um prosa escrita em tom de pileque, com direito a uma ressaca braba no final.
Hemingway era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo tempo, demonstrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus sonhos, e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse. Amava os amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa. Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma. Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.
Hemingway nunca teve dúvida
de que ser livre era bem mais necessário
e menos complicado do que
ser feliz.

Hadley acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais, arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como ele definia a resignação. Logo, sua primeira esposa viveu no melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.
O livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser feliz.
Fácil para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway, ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem que segue lutando para não entregar sua alma em nome das conveniências, e uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que vier a sofrer.
Quem ganha é o leitor.
----------------------------
* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 31/08/2011
Imagens da Internet

O nome dele era Guri

Ruy Carlos Ostermann*
Imagem da Internet
Tenho saudade dos meus cachorros. Foram muitos, de várias raças, tamanhos e olhares, além do latido modulado que sabiam fazer de felicidade, espanto ou simplesmente porque precisavam de mais atenção. Mas o primeiro de todos, eu bem pequeno, na chácara de minha avó, em longos verões e invernos, era um policial que chamavam de Guri, o que o cercava de uma redução que nunca lhe permitiu ronronar, mostrar os dentes ou parecer esquivo. Ele abanava o rabo em reconhecimento. Morreu no trilho do trem, que fazia uma volta atrás da chácara. Soube depois, bem depois, na primeira visita que meus pais fizeram à vovó.
E sendo assim, fiquei afastado da casa, embaixo do caramanchão, cabeça baixa, muito triste e desconsolado. O Guri fora enterrado ali, ao pé da árvore, sem marca ou recado, a grama já havia reassumido sua planura. Botei duas pedras que estavam debaixo da casa, numa delas escrevi Guri, e me afastei. Era discreto, ninguém poderia se opor ou tirá-las dali. E se alguém, de passagem, se surpreendesse, bastava perguntar na casa quem era Guri e todos saberiam.
Tive muitos cachorros, cheguei até a querer outro Policial. Mas achei injusto, a memória mais verdadeira se faz da saudade e da perda.
-----------------------------
* Jornalista. Escritor. Cronista.
Fonte: Site Encontro com o professor, 31/08/2011

terça-feira, 30 de agosto de 2011

É o emprego

Antonio Delfim Netto*
O mercado promoveu um festival de grande volatilidade ("é na confusão que se ganha dinheiro!"). Criou uma enorme expectativa sobre o discurso que Ben Bernanke faria na conferência monetária anual que o Federal Reserve de Kansas City promove em Jackson Hole. Para todas as pessoas com razoável desconfiômetro, era claro que nada de muito importante poderia acontecer. Bernanke não decepcionou: apelou para o nosso velho conselheiro Acácio e mandou ver. Disse, enfaticamente, que diante da gravidade do problema, faremos o que tivermos de fazer!
Mas qual é esse problema que até agora ignorou os estímulos monetários e fiscais tomados a partir da crise de 2007/09? Depois de dois anos, e um cavalar esforço fiscal (que destroçou as finanças do país) e monetário, que salvou o sistema financeiro (cujos agentes produziram a crise e saíram alegres com gordos bônus sem serem incomodados), o problema nos EUA é dar emprego a 25 milhões de honestos trabalhadores desempregados ou fazendo "bicos". Isso se reflete na estabilidade das demandas de auxílio-desemprego, que se vê no gráfico abaixo.
"No fundo, os EUA enfrentam
um problema moral"
No fundo, os EUA enfrentam um problema moral. O sistema financeiro deveria mesmo ser salvo, mas não, necessariamente, os acionistas e administradores. É claro que os abusos do subprime (estimulados pela miopia do próprio governo e a conivência de suas agências) deveriam ter sido corrigidos com uma política diferente da que deu todo o poder aos bancos (que foram cúmplices no processo), para executarem as hipotecas. Como esperar uma recuperação do consumo com os cidadãos ameaçados de desemprego e sendo despejados de suas casas? Como esperar a recuperação dos investimentos sem perspectiva de aumento do consumo?
Infelizmente, o presidente Obama, ao cercar-se de assessores provenientes do velho incesto entre a academia e as finanças, desperdiçou seu capital político numa troca imoral: a salvação de desonestos banqueiros pelo desemprego de 25 milhões de cidadãos que viviam honestamente do seu trabalho.
É essa imoralidade que sustenta as maluquices do Partido Republicano, que deu forças à destruição civilizatória do movimento do Tea Party e aumentou a disfuncionalidade do sistema político americano. Bernanke reconheceu isso, com outras palavras, quando disse que o maior problema dos EUA, hoje, é a falta de seriedade e clareza da política fiscal e que "o país deveria estar servido por um processo melhor de decisões na área fiscal".
Aliás John Lipsky, vice-diretor-gerente do FMI, afirmou a mesma coisa em Jackson Hole, quando sugeriu que os maiores riscos para a economia mundial eram: 1) a falta de um plano de recuperação fiscal transparente, sério e percebido como exequível; e 2) a falta de confiança na capacidade política das autoridades (americanas e europeias) de controlarem a dívida pública.
Praticamente no mesmo dia em que Bernanke falava, o Bureau of Economic Analysis (BEA) dos EUA divulgava a primeira estimativa do crescimento anual do PIB, sazonalmente ajustada e anualizada, no segundo trimestre de 2011: apenas 1%, como se vê na tabela abaixo.
Quando comparamos a taxa de crescimento no segundo trimestre com a do primeiro, verificamos que a componente do consumo privado caiu (-1,17%), a do investimento cresceu (0,31%), a das exportações líquidas cresceu (0,43%) e a do governo (consumo mais investimento) cresceu (1,05%). Basicamente, a pequena recuperação do PIB se deveu à redução da componente demanda privada.
 Bernanke deixou ainda no ar uma possibilidade de que possa adotar, no futuro próximo, novos estímulos, "porque o Fed tem uma série de ferramentas que podem ser usadas para dar maior estímulos monetários". Acabou fazendo um teatro que vai dar energia à volatilidade dos mercados. Deu a entender que a próxima reunião do Federal Open Market Committee (Fomc) será de dois dias (20 e 21 de setembro), para analisar e propor novas medidas. Temos agora mais um mês para bons "rumores" e alta volatilidade.
Talvez dois fatos importantes emergirão: 1) que a disfuncionalidade do Congresso americano é um problema basicamente político (como se viu na aprovação do aumento do endividamento do Tesouro) ligado às eleições de 2012 e não será superado, a não ser depois delas; e 2) que o problema só poderá ser resolvido com um programa de aceleração do crescimento com ênfase na recuperação do emprego. Isso, seguramente, não ocorrerá com uma política fiscal tímida e mal focada. É preciso recuperar a confiança dos trabalhadores, para que aumentem seu consumo, e dos empresários, para que aumentem os seus investimentos.
----------------------------------------
* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 30/08/2011

A economia da felicidade

Jeffrey D. Sachs*

Vivemos em tempos de altas ansiedades. Apesar de o mundo usufruir de uma riqueza total sem precedentes, também há ampla insegurança, agitação e insatisfação. Nos Estados Unidos, uma grande maioria dos americanos acredita que o país está "no caminho errado". O pessimismo está nas alturas. O mesmo vale para muitos outros lugares.
Tendo essa situação como pano de fundo, chegou a hora de reconsiderar as fontes básicas de felicidade em nossa vida econômica. A busca incansável de rendas maiores vem nos levando a uma ansiedade e iniquidade sem precedentes, em vez de nos conduzir a uma maior felicidade e satisfação na vida. O progresso econômico é importante e pode melhorar a qualidade de vida, mas só se o buscarmos junto com outras metas.
Nesse sentido, o Reino do Butão vem mostrando o caminho. Há 40 anos, o quarto rei do Butão, jovem e recém-entronado, fez uma escolha notável: o Butão deveria buscar a "Felicidade Nacional Bruta" (FNB), em vez do Produto Nacional Bruto (PNB). Desde então, o país vem experimentando uma abordagem alternativa e holística em relação ao desenvolvimento, que enfatiza não apenas o crescimento da economia, mas também a cultura, saúde mental, compaixão e comunidade.
Dezenas de especialistas reuniram-se recentemente na capital do Butão, Thimbu, para fazer um balanço sobre o desempenho do país. Fui um dos coanfitriões, com o primeiro-ministro do Butão, Jigme Thinley, um líder em desenvolvimento sustentável e grande defensor do conceito de "FNB". A reunião ocorreu na esteira da declaração de julho da assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que convocou os países a avaliar como as políticas nacionais podem promover a felicidade em suas sociedades.
"Devemos sim apoiar o desenvolvimento
 e crescimento econômico,
mas apenas dentro de um contexto mais amplo:
um contexto que promova a
sustentabilidade ambiental e
os valores da compaixão e honestidade,
necessários para criar
a confiança social."
Todos os que se reuniram em Thimbu concordaram sobre a importância de buscar a felicidade em vez da renda nacional. A questão que examinamos é como alcançar a felicidade em um mundo caracterizado pela rápida urbanização, meios de comunicação de massa, capitalismo global e degradação ambiental. Como nossa vida econômica pode ser reordenada para recriar um senso de comunidade, confiança e sustentabilidade ambiental?
Estas foram algumas das conclusões iniciais. Primeira, não devemos menosprezar o valor do progresso econômico. Há sofrimento quando as pessoas passam fome, quando são privadas do atendimento de necessidades básicas, como água potável, atendimento médico e educação, ou empregos dignos.
Segunda, a busca contínua do PNB, sem levar em conta outros objetivos, tampouco é caminho para a felicidade. Nos EUA, o PNB subiu acentuadamente nos últimos 40 anos, mas a felicidade, não. Em vez disso, a busca obstinada do PNB levou a grandes desigualdades de riqueza e poder - alimentadas pelo crescimento de uma grande subclasse --, aprisionou milhões de crianças na pobreza e provocou grave degradação ambiental.
Terceira, a felicidade é alcançada por meio de uma abordagem de vida equilibrada, entre indivíduos e sociedade. Como indivíduos, somos infelizes quando nos é negado o atendimento de necessidades básicas materiais, mas também somos infelizes se a busca por rendas maiores substitui nosso foco na família, amigos, comunidade, compaixão e equilíbrio interno. Como sociedade, uma coisa é organizar políticas econômicas para manter os padrões de vida em alta, mas outra bem diferente é subordinar todos os valores da sociedade à busca do lucro.
A política nos EUA, contudo, permitiu cada vez mais que os lucros empresariais dominassem todas as outras aspirações: igualdade, justiça, confiança, saúde física e mental e sustentabilidade ambiental. As contribuições de empresas a campanhas corroem cada vez mais o processo democrático, com a benção da Corte Suprema dos EUA.
Quarta, o capitalismo global apresenta muitas ameaças diretas à felicidade. Está destruindo o ambiente com as mudanças climáticas e outros tipos de poluição, enquanto um fluxo incansável de propaganda da indústria petrolífera leva muitas pessoas a desconhecer o problema. Isso enfraquece a estabilidade mental e confiança social, com a incidência de depressões clínicas aparentemente em alta. Os meios de comunicação de massa se tornaram meio de distribuição de "mensagens" empresariais em grande parte abertamente contra a ciência, enquanto os americanos sofrem de um número cada vez de vícios de consumo.
Consideremos como as lanchonetes de refeições rápidas usam óleos, gorduras, açúcares e outros ingredientes viciantes que criam uma dependência, prejudicial à saúde, em relação a alimentos que contribuem para a obesidade. Cerca de 30% dos americanos são obesos na atualidade. O resto do mundo acabará seguindo o mesmo caminho, a menos que os países restrinjam práticas empresariais perigosas, como a publicidade, voltada a crianças, de alimentos viciantes e prejudiciais à saúde.
O problema não está apenas nos alimentos, a publicidade voltada às grandes massas contribuiu para muitos outros vícios de consumo, que implicam em altos custos à saúde pública, incluindo o hábito de ver televisão em excesso, apostas, uso de drogas, fumo e alcoolismo.
Quinta, para promover a felicidade, precisamos identificar os muitos fatores além do PNB que podem melhorar ou piorar o bem-estar de uma sociedade. A maioria dos países investe para calcular o PNB, mas pouco gasta para identificar as fontes da má situação da área de saúde (como o fast-food e o tempo excessivo em frente à TV), o declínio da confiança social e a degradação ambiental. Uma vez que compreendamos esses fatores, teremos condições de agir.
A busca insana pelos lucros empresariais ameaça a todos nós. Naturalmente, devemos apoiar o desenvolvimento e crescimento econômico, mas apenas dentro de um contexto mais amplo: um contexto que promova a sustentabilidade ambiental e os valores da compaixão e honestidade, necessários para criar a confiança social. A busca da felicidade não deveria ficar confinada ao belo reino montanhoso do Butão.
------------------------------
Jeffrey D. Sachs é professor de Economia e diretor do Instituto Terra, da Columbia University. É também assessor especial do secretário-geral das Nações Unidas sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Copyright: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
Fonte: Valor Econômico on line, 30/08/2011
IHU on line, 30/08/2011

3 poemas de Yves Namur

Uma voz
ergueu-se das cavidades do Inverno,
doce e leve
como a palavra sem peso
que vinha da tua boca.
Uma voz terá assim regressado
para perturbar o canto
e
a única pergunta
que ainda se não ousava fazer
às aves da alma.

**

Aquele que entreabre a boca
por um instante que seja,
esse estará talvez esquecido de
que o seu corpo é todo ele feito de aves,
àrvores voadoras e constelações de fogo.

E que desta maneira e pouco a pouco
se esvaziará disso,
de tudo isso.
**

Será o poema essa coisa ínfima
que rodeia o corpo e a ausência?
Essa parte ínfima
que arde
e sempre está a arder
na rosa insuspeitada?

 
-------------------------------------
* Poeta agnóstico francês.
Publicada por Happy and Bleeding em 23

Deus não é um vazio...

“Para muitos não-crentes, de fato, Deus não é um nada vazio,
 mas uma ausência. E nós sabemos bem que o lugar livre de uma pessoa
que nos deixou não está vazio,
porque a ausência é a saudade ou a expectativa de uma nova presença.
Eis por que não era tão paradoxal o que escreveu um católico francês
no século passado, Pierre Raverdy: “Há ateus de uma aspereza feroz,
que no final de contas se interessam por Deus mais
do que certos crentes frívolos e tíbios”. Compreende-se, então, como é preciso
também nós ter ao nosso lado – como quis Bento XVI – estas presenças
 autênticas e sinceras, enquanto refletimos, dialogando e rezando
pela paz e a justiça no mundo pelos caminhos
e memórias de Francisco”.
(Final do texto: Quem pergunta está a caminho da verdade - Gianfranco Ravasi – Cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura – In L’Osservatore Romano, 20/08/2011, pág.34)
OBS.: O texto integral faz referência ao encontro do papa Bento XVI em Assis que acontecerá em 27 de outubro e haverá a presença de um grupo de cinco pessoas que não pertencem a qualquer expressão religiosa codificada, mas que tem uma visão ética e humanista do ser e do existir. "Quem faz perguntas quer a verdade. Enquanto quem duvida quer ouvir que a verdade não existe" (Cormac McCarthy, escritor agnóstico contemporâneo, americano no seu romance: Sunset limited.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Ecologia, Espiritualidade, Ética: relacionando os 3 E’s com a Ética nos Negócios

Roberto Patrus, da Plurale*
Este ensaio é fruto das minhas inquietações enquanto professor de Ética, psicoterapeuta e cidadão preocupado com a preservação do planeta. Procurei pensar sobre a importância de saber-se provisório nesse mundo, fonte de reflexão sobre o mistério e da espiritualidade. A partir dessa idéia, procuro relacionar ecologia, espiritualidade e ética (os 3 E’s) com o propósito de oferecer ao leitor uma oportunidade de refletir sobre si mesmo e sobre a qualidade da sua militância em prol de um mundo melhor. Finalizo o artigo associando a temática dos 3E’s com a Ética nos Negócios, a partir da premissa de que o trabalho é um lócus privilegiado da nossa atuação para a construção de uma sociedade melhor. Devemos lutar por justiça e sustentabilidade. Mas podemos fazê-lo com amor. E felizes.

O princípio ecológico

Nós somos hóspedes na vida. Antes de nascer, habitamos um órgão muscular feminino, que acolheu a cada um como ovo fecundado. Expulsos do meio líquido do útero, fazemos da primeira inspiração do ar a origem de toda angústia que vamos sentir toda vez que o choque da novidade abalar o equilíbrio de nossa energia vital. Somos hóspedes de um útero antes mesmo de nascer.
Recebido com hospitalidade, alegria e deslumbramento, o novo ser precisa de um lugar para morar. E o rebento vai para uma casa que não é sua, mas dos pais ou daqueles que se dispuseram a criá-lo. Sua chegada é celebrada com visitas de amigos e familiares. Embora talvez nem saiba, o filho é hóspede na casa dos pais. Dorme, come e vive em uma casa que não lhe pertence. Desconfio que quanto maior a noção que uma pessoa tem de que a casa onde está não é sua, maior a chance de que ela se comporte com mais educação. Quem se sabe visita na casa alheia lida com os objetos e com o espaço do outro com maior cerimônia. Tende a preservar espaços íntimos, armários, gavetas, a evitar a intimidade, enfim. Somos visita na casa dos nossos pais. Mesmo morando na casa deles.
Pode ser que um dia o filho (ou a filha) deixe a casa paterna. Terá então a sua própria casa, não importa se “casa própria” ou alugada. Ainda assim, o ser humano continua sendo hóspede na vida. O planeta é a sua casa maior e não lhe pertence. A passagem de cada um de nós pela Terra um dia terá um fim. E ela continuará recebendo outros hóspedes, quem sabe nossos filhos, netos, bisnetos… Quanto maior a consciência da pessoa de que a Terra é a grande casa que o hospeda provisoriamente, maior a probabilidade que ela atue com educação ecológica. Também somos visita no planeta. A vida circula e permanece. Nós passamos.
"A consciência de que somos hóspedes
 na vida permite a reflexão sobre o
mistério do mundo e, ao mesmo tempo,
a compreensão da ecologia como cuidado
com a casa em que vivemos.
Somos provisórios.
Estamos de passagem."
Da compreensão de que o ser humano se acomoda provisoriamente no útero, na casa dos pais e no planeta, podemos deduzir um preceito bíblico: honrar pai e mãe. Esse mandamento significa reverenciar a origem próxima, os pais – responsáveis primeiros pelo milagre da concepção – e a origem primeira, fonte do mistério maior que é a Criação. Quem não respeita pai e mãe está adormecido em relação ao mistério do mundo. Saber-se criatura permite ao ser humano ter humildade para reconhecer que os fenômenos da vida ultrapassam a capacidade humana de tomar consciência deles. Essa constatação possibilita o respeito a posições divergentes e facilita o diálogo entre religiosos, filósofos e cientistas de posições divergentes.
Desse preceito, deduzimos o princípio ecológico de respeito ao planeta, como casa da qual somos visita em tempo provisório. Aliás, a palavra eco, do grego oîkos, significa casa, habitação. Cuidar das florestas, rios, mares e da atmosfera terrestre é cuidar de nossa casa. Quem é incapaz de ver que a vida continua mesmo depois da própria morte, ilusão própria de um individualismo cego, é insensível à premência de preservar e manter as condições de vida da Terra.
Em síntese, a consciência de que somos hóspedes na vida permite a reflexão sobre o mistério do mundo e, ao mesmo tempo, a compreensão da ecologia como cuidado com a casa em que vivemos. Somos provisórios. Estamos de passagem.

A espiritualidade como princípio

Hóspede no planeta, o ser humano é também hóspede do próprio corpo. À medida que envelhece, tem a chance de ver-se cada vez mais lúcido em um corpo cada vez menor para a grandeza da inspiração que um dia foi chamada de alma. Não somos o nosso corpo. Essa ilusão, comum tanto a quem se sente belo quanto àquele que não gosta do seu corpo, é fonte de sofrimento, atual ou futuro. Ao contrário dos animais, que são o corpo, o ser humano tem um corpo.
A partir do momento em que o ser humano demonstra capacidade de abstração e consolida as mudanças fisiológicas que permitem a reprodução, ele já é capaz de compreender que o corpo é a casa do seu espírito, ou, para usar uma linguagem laica, a casa da sua consciência, do seu pensamento sobre si mesmo, de sua reflexão. A velhice, entretanto, é a última oportunidade para que ele acabe com a ilusão de que é o seu corpo. A diminuição natural de algumas funções do seu corpo e a necessária adaptação às limitações próprias da idade permitem ao adulto velho pensar que seu corpo é uma casa frágil para um espírito cada vez mais livre. Se abençoado com a virtude da fé, pode valer-se dela para imaginar que também é hóspede do seu corpo. A partir daí, abre-se a possibilidade de viver com espiritualidade e perceber em cada gesto, palavra ou conduta a celebração do mistério da vida.
Vida é mistério.
Mistério é não-saber.
Diante do não-saber, o ser humano
sente angústia.
A compreensão de que a vida é mistério é o fio de Ariadne para pensar a relação entre ecologia, espiritualidade e ética. Não é raro ver pessoas deslumbradas com o nascimento de uma criança na família. A gravidez, o parto, o primeiro colo de um ser tão belo quanto indefeso são experiências que se apresentam ao ser humano como um mistério maravilhoso. Ocorre, porém, que cada um de nós é o mesmo mistério de um recém-nascido. Apenas crescemos. O arrebatamento diante da vida não acontece somente diante de um bebê que acaba de nascer. Ele se apresenta a qualquer momento. Sempre. Mas nem todas as pessoas estão atentas para o mistério da vida.
Não deveríamos precisar de eventos extraordinários para lembrar que estamos vivos. Curiosamente, damo-nos conta do esplendor da vida e do espetáculo de existir quando estamos diante da morte ou diante de algo que nos pareça um milagre. O milagre (do latim miraculum, substantivo que significa prodígio ou fato extraordinário; e mirari, verbo que exprime admiração, espanto) é a manifestação de um fenômeno fabuloso diante do qual nos sentimos maravilhados. Existe fenômeno mais interessante do que a vida? Não é absolutamente estranho estarmos respirando (involuntariamente) em um planeta que se move no universo em meio a uma infinidade de astros?
Certa vez um aluno me disse que ficara maravilhado ao visitar uma horta de um amigo. Disse-me que o sujeito conversava com os pés de tomate e com as alfaces, construía pirâmides para enviar energia para as plantas, fazia a horta “ouvir” música clássica e mais algumas estratégias parecidas. Os tomates e as alfaces que ele colhera eram tão maiores que o tamanho normal que ele disse tratar-se de um milagre da “energia cósmica”. Como seu professor de Filosofia, disse-lhe que o milagre não era acelerar o crescimento do tomate nem fazê-lo crescer mais do que o normal. Milagre era existir tomate! Por que existe tomate? Por que uma semente se transforma em uma árvore que dá frutos com sementes? Em suma, por que existe vida?
Vida é mistério. Mistério é não-saber. Diante do não-saber, o ser humano sente angústia. Fica incomodado por não ter respostas para suas perguntas. Diante do abismo do não saber, o ser humano é convidado a construir os fundamentos. Assim, o ser humano inventa respostas. O vazio de respostas para o mistério da vida é condição de possibilidade para a liberdade humana. Se não houvesse o vazio, ninguém teria a liberdade de acreditar no que acredita. Seríamos obrigados a aceitar uma verdade pré-estabelecida, que recusa a possibilidade de outra versão. A isso chamamos fundamentalismo. O fundamentalismo recusa o mistério (e a angústia decorrente) porque considera que a resposta para a origem da vida está dada de forma satisfatória. Para o fundamentalista, quem discordar dele está errado. Por isso, o fundamentalismo está de mãos dadas com a intolerância religiosa, com o moralismo e com a rigidez ética. Ele impede a compreensão da espiritualidade como a consciência do mistério.
"A consciência do mistério e
a liberdade humana de pensá-lo
para lidar com os perigos da vida
permitem ao ser humano pensar a escolha
de suas condutas com espiritualidade,
condição para atuar eticamente
 com elevação."
As respostas para a origem da vida são construídas a partir do reconhecimento do mistério do mundo. Podemos entender, assim, a máxima socrática como ponto de partida da sabedoria filosófica. Essa postura de humildade permite o diálogo com quem pensa diferente sobre algo de que ninguém pode ter certeza. E abre a perspectiva para que cada pessoa evite identificar-se com o seu pensamento e a sua crença. A fixação no conhecimento ou na moral decorre do esquecimento de que tudo o que pensamos é uma mera construção humana para lidar com o sentimento de insegurança diante do abismo. Mesmo a ciência é um esforço de compreensão da realidade que não soluciona o mistério, ainda que amparado em métodos de maior rigor. Pobre do cientista que deixou de duvidar do conhecimento. Corre o risco de transformar-se em um fundamentalista acadêmico. O desamparo existencial é fonte de fé, sabedoria e ciência e, como tal, deve manter-se aberto ao mistério, a fim de não aprisioná-lo em formulações científicas ou apologéticas fechadas à contínua descoberta da verdade.
A consciência do mistério e a liberdade humana de pensá-lo para lidar com os perigos da vida permitem ao ser humano pensar a escolha de suas condutas com espiritualidade, condição para atuar eticamente com elevação. Com tal dimensão de espiritualidade, o ser humano é capaz de perceber que seus papéis sociais, sua profissão, seus bens não são a sua essência. Sabe do risco de identificar-se com sua função como pai, mãe, professor, gestor, assistente social ou qualquer outro papel. E abre-se para a possibilidade de exercer essa função sem que isso se torne parte de si mesmo. A ação será mais eficaz quanto mais o seu agente a execute em benefício dela mesma e não para acentuar a identidade do seu papel .
O indivíduo consciente de si mesmo reconhece que seus pensamentos e crenças não são a sua identidade. Etimologicamente, idem, do latim, significa “o mesmo”. Identificar-se com algo é, literalmente, fazer dele o mesmo que si próprio. Identificar-se com o conhecimento ou com a moral seria a perda da dimensão da espiritualidade, porque reduziria o mistério ao dogma, seja da ciência, seja da religião. A abertura para o conhecimento do novo depende do exercício da dúvida metódica, postura impossível naquele que se identificou com o conhecimento ou com a moral. Em síntese, o mistério como abismo absoluto, impossível de ser conhecido, é a base da espiritualidade que permite o desapego, a humildade, a liberdade, o respeito ao pensamento divergente e uma mente aberta para a construção de um sistema aberto às novas contribuições.

O princípio ético
"Para ser feliz, precisamos nos relacionar
 com os outros e com o meio em que vivemos.
Embora cada um seja uma individualidade,
separada dos outros e da natureza,
o ser humano não vive só."
A ética é a reflexão sobre o que convém. Tem como objeto de reflexão a escolha de uma conduta considerada correta em detrimento de outras. A escolha é condição indispensável para se pensar a ética. Ela envolve a liberdade da pessoa que toma a decisão de refletir sobre a conduta que considera adequada.
A finalidade da ética é ser feliz. Como vivemos em comunidade, a infelicidade do outro pode nos prejudicar. Daí o princípio altruísta de que para ser feliz é preciso fazer feliz. A felicidade é um estado de harmonia vivida pela pessoa. Abrange o equilíbrio do seu corpo, a satisfação de suas necessidades de amor, poder e independência, e a percepção de que a vida tem um sentido.
Para ser feliz, precisamos nos relacionar com os outros e com o meio em que vivemos. Embora cada um seja uma individualidade, separada dos outros e da natureza, o ser humano não vive só. Ele se relaciona com outras pessoas. E não existiria como ser humano sem ambiente social. Três princípios traduzem a finalidade da ética: não se prejudicar; não prejudicar o outro; e não deixar que o outro o prejudique. Esse triplo imperativo é condição para que o ser humano seja feliz e se realize como pessoa partícipe de grupos sociais.
Não se prejudicar implica cuidar da própria casa, isto é, do corpo e do planeta. O corpo, como morada do espírito, é a casa de si mesmo. O planeta também é casa do ser humano. Cuidar do corpo e do planeta são condições éticas inextrincáveis de quem se percebe hóspede. Constitui contradição irrefutável defender as florestas do planeta e se permitir ser um fumante.
Não prejudicar o outro significa ser capaz de vê-lo como alteridade a quem o respeito é fundamental. O prejuízo ao outro por meio da agressão, do roubo, da exploração ou da humilhação demonstra a incapacidade do indivíduo de ver-se separado daquele a quem desrespeita. Nesses casos, predomina a identificação com o outro, como se ele fosse parte de si mesmo. O indivíduo parece alienado de que a vida é trabalho que lhe compete, por seu próprio esforço e responsabilidade. Ele não consegue perceber a humanidade do outro.
Não deixar que o outro a prejudique significa a capacidade da pessoa estabelecer limites para conviver. Se não faz sentido prejudicar o outro, é absolutamente sem lógica permitir que uma pessoa permita que alguém a prejudique. Não faz sentido amar ao próximo mais do que a si mesmo. A noção de espiritualidade implica desapego no sentido de reconhecer que o corpo, os bens, os pensamentos, as crenças e os valores da pessoa não são a pessoa. Isso não significa de modo algum mutilar-se, fazer voto de pobreza, ser niilista e permissivo. Cuidado com a “própria casa” não significa recusar a “casa própria”.
"O princípio ético implica o respeito
a si e ao outro. O princípio da espiritualidade
 exige a percepção do mistério e
sua celebração como possibilidade
de transcendência."
A relação entre os 3 E’s e os 3 P’s

O princípio ecológico prevê o cuidado com o planeta, uma casa compartilhada por hóspedes diversos. O princípio ético implica o respeito a si e ao outro. O princípio da espiritualidade exige a percepção do mistério e sua celebração como possibilidade de transcendência. Em conjunto, os 3 E’s permitem ao indivíduo exercitar a compaixão, aceitar a realidade e colocar os seus talentos a serviço do aperfeiçoamento das pessoas e do mundo. Sua atuação ética será ao mesmo tempo ecológica porque contemplará o micro e o macro. Servir ao todo é servir a si mesmo. Aperfeiçoar-se é aperfeiçoar a dinâmica dos nossos relacionamentos, pedra angular da nossa atuação no mundo. Os 3 E’s se entrelaçam mutuamente.
Essa percepção da unidade entre os contrários – que preside a síntese entre os 3E’s – unifica as aparentes contradições entre o individual e o social, o princípio (valor deontológico) e o fim (valor teleológico), a convicção e a utilidade. Ela é condição para se pensar a Ética nos Negócios como um campo de conhecimento não somente necessário como possível.
Quem cultiva a espiritualidade, sentindo a
presença do mistério dentro de si,
abre-se ao encontro
com o outro.
Do princípio ecológico extraímos a máxima de que a empresa é uma célula em um organismo social, em que tudo está interligado. Qualquer organização estabelece relação de interdependência com outras organizações e a sociedade em geral. Justamente por ser parte, é necessário evitar a intimidade e festejar a cerimônia com as outras partes – base do respeito. Como a empresa se relaciona com clientes, fornecedores, empregados, governo, acionistas, concorrência, e demais stakeholders, é fundamental para a empresa saber-se parte de um sistema. Essa é a base para a compreensão de relações do tipo ganha-ganha.
Da espiritualidade como princípio, extraímos a noção de que a vida não é passível de ser conhecida na sua totalidade, o que exige do gestor a humildade de colocar-se em diálogo com os pares e públicos interessados para construir juntos a solução para os problemas da organização. Responsabilidade social implica relacionamento com os públicos afetados pela empresa, ou seja, criação de canais de comunicação, trabalho conjunto, efetivação de parceria e espírito de co-autoria em projetos comuns.
Da ética, deduzimos o princípio de que a conduta humana deve estar, em última análise, a serviço das pessoas. No campo dos negócios, essa premissa remete à humanização das relações com empregados, clientes, acionistas, fornecedores e demais públicos. Não podemos esquecer que tudo que envolve a atuação nas empresas, como trabalho, dinheiro, relacionamentos, projetos e sonhos, está a serviço da felicidade humana. Se a ética empresarial tem como meta 3 P’s (em inglês, profit –lucro-, people, planet), fica claro que a dimensão da pessoa (people) deve presidir as demais.
A felicidade se realiza em cada um. Quem cultiva a espiritualidade, sentindo a presença do mistério dentro de si, abre-se ao encontro com o outro. Assim, pode ver que a vida tem um sentido maior que nossa existência. Essa dimensão de transcendência ajuda a ser feliz. E contribui para fazer do trabalho uma fonte de realização porque pelo no sentido.
-------------------------------------------------
* Roberto Patrus-Pena (robertopatrus@terra.com.br) é colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre sustentabilidade. É pesquisador e professor do Mestrado e Doutorado em Administração da PUC Minas, filósofo, psicólogo e psicoterapeuta. Este artigo é destaque na Edição 24 de Plurale em revista(Plurale)

Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/29/08/2011

O que é meu é seu?


Por que comprar algo se você pode alugar, pegar emprestado ou trocar com outra pessoa? O consumo colaborativo, já muito utilizado nos Estados Unidos, começa a criar raízes no Brasil.
Mas esta tendência americana ainda não pegou de vez aqui. Será que estamos atrasados para este tipo de inovação ou ainda falta essa cultura do reuso?
A maioria dos cases relacionados a consumo colaborativo é de fora do País. Para a consultora em Inovação e professora da ESPM/FIA, Martha Terenzzo, a crise financeira americana foi crucial para acelerar esta tendência de compartilhar, trocar, alugar ou vender produtos usados.
É necessário amadurecermos esta tendência em busca dos possíveis ganhos. Um dos modelos de negócios neste sentido no Brasil, de acordo com Martha, é o INIO – I need, I offer - (http://www.inio.com.br/teaser/?1&OAuthException).
É o primeiro site de trocas e consumo colaborativo para Facebook no país. A proposta contempla o consumo consciente de serviços.
O cliente que precisa de uma prestação de serviços, mas não dispõe de recursos financeiros, pode apresentar a sua necessidade e o que tem a oferecer em troca.
A ideia do INIO é abrir mão daquilo que não é mais necessário para as pessoas, mesmo que temporariamente, em troca de bens ou serviços fundamentais em certo momento.
Na América Latina, segundo lembra Martha, a primeira empresa de carsharing é a Zazcar (http://www.zazcar.com.br/?gclid=CPDj-oP56qoCFcqd7Qod5UJOOg). As pessoas, inclusive no Brasil, podem fazer um cadastro e escolher um dos planos mensais. Recebem um cartão de acesso e fazem a reserva do carro por telefone ou internet. Depois, é só se dirigir a um dos pontos de estacionamento 24 horas (chamados PODs), destravar o veículo com o cartão e utilizá-lo. No retorno, estacionar no POD mais próximo deixando a chave no porta-luvas.
Outro site criado para o consumo colaborativo no Brasil é o DescolaAí.com (http://www.descolaai.com/). A proposta online facilita o aluguel e troca de produtos e serviços, entre amigos, familiares e comunidades.
Qualquer pessoa pode colocar à disposição, sem custo algum, seus produtos que serão alugados ou trocados por quem precisa deles. O marketing do portal garante que é uma forma de ganhar dinheiro e ainda ajudar o planeta evitando que outros produtos sejam criados com extração de novos recursos naturais.
Por outro lado, para alguns profissionais, o Brasil não está atrasado, mas, na verdade, não tem a cultura deste modelo de negócio. Para João Ciaco, diretor de Marketing da Fiat, o brasileiro ainda não tem o costume de consumir junto, principalmente em se tratando de dividir ou alugar um carro – bem tão almejado pelo consumidor.
No entanto, Ciaco acredita na importância de começar a desenhar este novo conceito de inovação, já praticado fora do país. Prova disso são as dezenas de sites mencionados pelo professor e especialista Gil Giardelli no blog do portal HSM.
Para quem deseja conhecer mais sobre o tema, uma boa dica é o livro ‘O que é Meu é Seu’ (What´s Mine is Yours: The rise of Collaborative Consumption’. A inovadora social e co-autora desta obra, Rachel Botsman, garante que esta tendência vai crescer ainda mais quando as crianças que nasceram na era das redes sociais se tornarem consumidoras.
E qual a sua visão sobre o consumo colaborativo? A tendência veio para ficar?
-----------------------------------------
Fonte: http://www.hsm.com.br/blog/2011/08/29

A falta que o respeito faz

Leonardo Boff*
Imagem da Internet

A cultura moderna, desde os seus albores no século XVI, está assentada sobre uma brutal falta de respeito. Primeiro, para com a natureza, tratada como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe todos os segredos(Bacon). Depois, para com as populações originárias da América Latina. Em sua "Brevíssima Relação da Destruição das Indias” (1562) conta Bartolomé de las Casas, como testemunho ocular, que os espanhóis "em apenas 48 anos ocuparam uma extensão maior que o comprimento e a largura de toda a Europa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiça e tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um país que tínhamos visto cheio de gente e de gente tão humana”(Décima Réplica). Em seguida, escravizou milhões de africanos trazidos para as Américas e negociados como "peças” no mercado e consumidos como carvão na produção.
Seria longa a ladainha dos desrespeitos de nossa cultura, culminando nos campos de extermínio nazista de milhões de judeus, de ciganos e de outros considerados inferiores.
Sabemos que uma sociedade só se constrói e dá um salto para relações minimamente humanas quando instaura o respeito de uns para com os outros. O respeito, como o mostrou bem Winnicott, nasce no seio da família, especialmente da figura do pai, responsável pela passagem do mundo do eu para o mundo dos outros que emergem como o primeiro limite a ser respeitado. Um dos critérios de uma cultura é o grau de respeito e de autolimitação que seus membros se impõem e observam. Surge, então, a justa medida, sinônimo de justiça. Rompidos os limites, vigora o desrespeito e a imposição sobre os demais. Respeito supõe reconhecer o outro como outro e seu valor intrínseco seja pessoas ou qualquer outro ser.
Dentre as muitas crises atuais, a falta generalizada de respeito é seguramente uma das mais graves. O desrespeito campeia em todas as instâncias da vida individual, familiar, social e internacional. Por esta razão, o pensador búlgaro-francês Tzvetan Todorov, em seu recente livro "O medo dos bárbaros” (Vozes 2010), adverte que se não superarmos o medo e o ressentimento e não assumirmos a responsabilidade coletiva e o respeito universal não teremos como proteger nosso frágil planeta e a vida na Terra já ameaçada.
O tema do respeito nos remete a Albert Schweitzer (1875-1965), prêmio Nobel da Paz de 1952. Da Alsácia, era um dos mais eminentes teólogos de seu tempo. Seu livro "A história da pesquisa sobre a vida de Jesus” é um clássico por mostrar que não se pode escrever cientificamente uma biografia de Jesus. Os evangelhos contêm história; mas não são livros históricos. São teologias que usam fatos históricos e narrativas com o objetivo de mostrar a significação de Jesus para a salvação do mundo. Por isso, sabemos pouco do real Jesus de Nazaré. Schweitzer compreendeu: histórico mesmo é o Sermão da Montanha e importa vivê-lo. Abandonou a cátedra de teologia, deixou de dar concertos de Bach (era um de seus melhores intérpretes) e se inscreveu na faculdade de medicina. Formado, foi a Lambarene no Gabão, na África, para fundar um hospital e servir a hansenianos. E ai trabalhou, dentro das maiores limitações, por todo o resto de sua vida.
Confessa explicitamente: "o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum sentido. O que importa mesmo é, tornar-se um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”.
No meio de seus afazeres de médico, encontrou tempo para escrever. Seu principal livro é: "Respeito diante da vida”, que ele colocou como o eixo articulador de toda ética. "O bem”, diz ele, "consiste em respeitar, conservar e elevar a vida até o seu máximo valor; o mal, em desrespeitar, destruir e impedir a vida de se desenvolver”. E conclui: "quando o ser humano aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante; a grande tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive”.
Como é urgente ouvir e viver esta mensagem nos dias sombrios que a humanidade está atravessando.
---------------------------------
* Teólogo, filósofo e escritor Autor de "Convivência, Respeito, Tolerância”, Vozes 2006.
Fonte: Adital on line, 29/08/2011

Benedict Anderson e as fronteiras (e anomalias) do nacionalismo


Se estivesse vivo, o historiador e cientista político britânico George Hugh Nicholas Seton-Watson (1916-1984) – herdeiro de uma vasta tradição liberal de historiografia e ciências sociais e autor do melhor e mais abrangente texto em língua inglesa sobre nacionalismo até 1983 ­– não teria observado, com pesar: “Assim sou levado a concluir que não é possível elaborar nenhuma ‘definição científica’ de nação; mas o fenômeno existiu e continua a existir”. É que um ano antes da morte de Watson, em 1983, o também historiador e cientista político Benedict Anderson publicaria a ‘bíblia’ da área, trazendo não só as definições e análises de nação, nacionalidade e nacionalismo, mas rompendo com as teorias até então consagradas de nomes como Eric Hobsbawm, Ernest Gellner e Elie Kedourie.
Na introdução de Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (Companhia das Letras), Anderson usa a observação de Hugh Seton-Watson para justificar a publicação da obra. Este livro, escreveu, pretende oferecer a título de ensaio, algumas ideias para uma interpretação mais satisfatória da ‘anomalia’ do nacionalismo. A justificativa revelou-se desnecessária. Quase 30 anos depois, o clássico já teria sido traduzido para cerca de 30 idiomas, e as teorias e análises nele contidas tornariam Anderson um dos mais influentes pensadores contemporâneos da área de humanidades.
A formulação de Anderson para o conceito de nação se apoia sobre as expressões, por vezes paradoxais, de comunidade imaginada, limitada e, ao mesmo tempo, soberana. “Imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles (…). Limitada porque mesmo a maior delas (…) possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações (…). Soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da história humana em que mesmo os adeptos mais fervorosos de qualquer religião universal se defrontavam inevitavelmente com o pluralismo vivo dessas religiões e com o alomorfismo entre as pretensões ontológicas e a extensão territorial de cada credo, as nações sonham em ser livres (…). A garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano”, expõe o intelectual na introdução da obra.
O pensador e professor emérito da Universidade de Cornell (EUA) esteve nos dias 18 e 19 de agosto na Unicamp, em sua primeira visita ao Estado de São Paulo. No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Anderson ministrou a conferência “Why we think that nation is good” e conversou com alunos de pós-graduação que trabalham com pesquisas relacionadas às suas obras.
A visita de Anderson foi organizada pela professora Eliane Moura da Silva, do Programa de Pós-Graduação em História e Ciências Sociais da Unicamp (leia análise a seguir). A docente ressaltou a importância da passagem do intelectual pela Universidade: “Ele é um dos principais pensadores contemporâneos sobre temas relacionados à antropologia, história e linguística. É muito grande a influência no Brasil de suas obras, sobretudo de Comunidades Imaginadas. Os cursos de graduação da Unicamp em história e antropologia utilizam há muitos anos a obra de Anderson em suas referências bibliográficas. Seu pensamento tem uma influência enorme nos estudos latino-americanos”, salientou.
Na entrevista que segue, Anderson fala sobre os temas abordados nas conferências no IFCH, analisa as manifestações nacionalistas no contexto de globalização e discorre sobre os movimentos da Primavera Árabe.

Jornal da Unicamp - Gostaria que o sr. falasse sobre o tema de sua conferência proferida na Unicamp.
Benedict Anderson - O que se espera de todos nós é que, às vezes, reconheçamos que nossa nação não é boa. Em minha experiência, nós sempre perdoamos nossa nação. A famosa expressão ‘certo ou errado, meu país’, significa que mesmo que meu país esteja errado, ele ainda é meu país. É bem diferente da ideia de religião. Não haverá esta expressão: ‘Minha religião, certa ou errada’, pois uma religião errada é impossível...
Falei também sobre algo que não é muito discutido em termos políticos, que é a vergonha. Trata-se de um sentimento muito interessante. Todos provavelmente a experimentaram quando eram mais novos: foram levados por sua mãe para algum lugar, e ela fala de uma maneira que não te deixa confortável e você pensa: ‘Por favor, pare’. Você quer enfiar a cabeça na terra, mesmo que ela seja uma boa mãe...
É esse sentimento, o ‘por favor, mãe, de novo não’, que é a vergonha. Se ela não fosse sua mãe, você só acharia que ela estava falando muito alto, mas porque ela é sua mãe, você sente vergonha. Esse sentimento é muito interessante. Ele liga a ideia da nação à emoção, e podemos encontrá-lo em várias situações.

JU – O sr. poderia exemplificar?
Anderson – Eu acabei de ir a Fortaleza, onde visitei um museu militar pequeno, de apenas duas salas, com fotos dos militares da Guerra do Paraguai. É claro que o museu tem referências sobre os grandes heróis que derrotaram o Paraguai. Mais tarde eu estava conversando com o guia do museu e ele me disse: ‘É tão vergonhoso, é muito vergonhoso; nós quase cometemos um genocídio. Oitenta por cento dos homens do Paraguai foram massacrados, e eu me sinto envergonhado sempre que penso sobre isso’. Ele não se sente culpado, não acha que a culpa é dele. Mas o país que ele ama o faz se sentir envergonhado.
Na Guerra do Vietnã muitos americanos pensaram: ‘Isso é uma vergonha para nosso país, queremos amá-lo e vejam o que nosso governo estúpido está fazendo’. E assim por diante. Eu tento encontrar as diferentes razões que levam as pessoas a acreditar na bondade de seu país. E a vergonha é importantíssima nisso. Há muitas dimensões nisso, mas é aí que temos que começar. É algo que você não encontra em jornais e revistas com frequência.

JU – O livro Comunidades Imaginadas já foi traduzido para cerca de 30 idiomas. Que contribuições o sr. acredita ter dado com os conceitos contidos na obra?
Anderson – O escritor nunca é um bom juiz para esse tipo de coisa. Mas há, agora, obras sobre a história das ideias, sobre nacionalismo, e meu livro é visto como uma transição na maneira como esses livros eram escritos. Até aquele momento, nos anos 80, as pessoas escreviam sobre nacionalismo muito bem no que se referia aos movimentos nacionalistas: como eles começavam, como agiam e quem os apoiava. E esses livros são escritos basicamente de um ponto de vista esquerdista e com um viés materialista. Eu promovi, digamos, uma mudança de interpretação. Este livro está na fronteira: é basicamente materialista, mas é um pouco desconstrutivista.
Eu creio que a razão para que seja um sucesso por tanto tempo – são quase trinta anos, não? – é que ele liga as duas coisas: em primeiro lugar, os que estudam o pensamento sem se preocupar com as bases materiais e os materialistas. O segundo ponto é que a maioria dos livros sobre nacionalismo até aquela época versava sobre a Europa. Este foi o primeiro texto teórico que fez um esforço real para estudar o nacionalismo fora da Europa, nas Américas e também na Ásia. Isso o torna mais atrativo para professores fora da Europa, dá um lugar na ordem das coisas.

JU – Em que medida a globalização tem influência nas manifestações nacionalistas?
Anderson - Eu não tenho certeza que exista influência… É uma questão de como você compreende a globalização. Os EUA, por exemplo, estão fazendo tudo o que podem para bloquear o livre comércio com a China. Eles não querem deixar os chineses investirem lá, eles impõem todo tipo de tarifa sobre comida e outras coisas.
Na Europa, também: Portugal contra Alemanha, França contra os britânicos e assim por diante. Você pode notar em momentos de crise que a autopreservação da nação é muito forte. Não iria me surpreender se o euro caísse eventualmente.
Você pode ver a mesma coisa na Primavera Árabe. É muito visível que a retórica e as imagens são de protestos nacionais. Como numa imagem que eu vi de uma multidão na Síria prestes a ser atacada: três ou quatro blocos de pessoas estão segurando bandeiras da Síria. Você ouve os egípcios dizerem: ‘nós estamos envergonhados’. ‘Nós’ são os egípcios. Não são ‘os muçulmanos’ ou os ‘árabes’ como um todo. E isso muda de lugar para lugar e pode parecer surpreendente para algumas pessoas, pois muitos acreditam que o que existe para os muçulmanos é o Islã, mas esse não é o caso.
Outra coisa que eu penso é que as pessoas esquecem que, apesar da internet oferecer possibilidades, a maioria da comunicação que acontece nela ocorre entre pessoas que falam a mesma língua, e normalmente estão no mesmo país. Apesar de as pessoas poderem se comunicar com o mundo todo, a porcentagem que realmente o faz é, na verdade, muito pequena.
Também com o aumento da espionagem industrial entre grandes empresas, o surgimento dos hackers e tudo o mais, há muitos que acreditam que o sistema de internet aberto que temos hoje será lentamente bloqueado por forças maiores numa tentativa de se protegerem. Esse acesso globalizado não será assim daqui a dez anos. Será algo como um acesso protegido. Parece difícil, mas eu acredito que vai acontecer, e que o nacionalismo é um dos grandes culpados.

JU – Em que medida a crise econômica mundial exerce influência sobre manifestações nacionalistas?
Anderson - Bem, temos que olhar para os dois maiores ‘jogadores’: China e EUA. O que mais chama atenção é como os chineses dizem que a ‘grande China’ é melhor que todo o resto. Eles estão indo mais rápido, gastando mais dinheiro... Na China, agora, há uma novela muito popular sobre a Dinastia Ching, que foi deposta pela Revolução Chinesa. Agora essas pessoas, que antes eram más, são maravilhosas. E a principal razão para que elas sejam maravilhosas é que elas são as pessoas escolhidas para conquistarem o Tibete e o interior da Ásia como um todo.
Há uma China que se sente mais forte a cada dia, onde tudo é nacional: prestígio é nacional, prosperidade é nacional, a unidade é nacional e assim por diante. E eles não hesitam em bloquear links eletrônicos que minariam essa imagem.
Do outro lado, temos os EUA, onde a política está muito deteriorada há dez anos. Parte disso é, com certeza, o sentimento de que o tempo em que os EUA dominavam o mundo está terminando. A América está imersa neste problema, sua indústria não está mais ganhando facilmente de todas as outras, e americanos não são muito bons em lidar com desapontamentos. Eles são amigáveis aqui e agora, mas veremos muito mais coisas acontecendo na América. Eles não conseguem suportar a ideia de não serem mais o número um em tudo. Mesmo nas coisas pequenas: não gostamos do futebol deles, eles já não são os melhores nesse futebol, eles não têm sucesso no tênis e algumas vezes estão apanhando até no basquete. Vinte anos atrás os atletas americanos dominavam o mundo. Eu vejo que não serão nada agradáveis os desdobramentos nas relações bilaterais entre EUA e China. Países menores resolvem suas diferenças de maneiras mais apropriadas.

JU – Ao responder sobre a globalização, o sr. faz menção à eclosão da Primavera Árabe. Como o senhor analisa os movimentos por mais liberdade nos países islâmicos? O sr. acha que essas manifestações são nacionalistas?
Anderson - Bom, foi uma espera longa quando você pensa que alguém como Khadafi está no poder desde 1969. São mais de 40 anos. Parece-me que os aparelhos eletrônicos de comunicação e a internet ajudaram muito esse movimento: eles permitiram uma coalizão pública por meio da qual muitos grupos se juntaram rapidamente para derrubar esse líder militar. Mas a natureza dos movimentos populares é tal que, assim que o objetivo é alcançado, a coalizão começa a quebrar. Os objetivos de grupos diferentes começam a ser trazidos para o jogo. Creio que é por isso que os egípcios e os tunisianos estão passando por tempos difíceis. Quando a ação é conjunta, torna-se muito mais fácil derrubar um regime. Já construir algo posteriormente, que vá agradar a todos, pode levar muito mais tempo... E a outra coisa que eu notei na minha experiência assistindo a ditadores na minha parte do mundo – o sudeste da Ásia – é que você pode derrubar o regime, mas é muito difícil mudar os hábitos que as pessoas adquiriram sob ele. Por exemplo: pessoas se acostumaram a quebrar leis. Homens de negócio e empregados pagam juízes atrás de portas fechadas. Parar de fazer isso é difícil, pois a corrupção já está profundamente enraizada. Um segundo motivo é que o povo está acostumado à política personificada, no sentido de que os partidos políticos, aqueles que tinham bases genuínas, foram destruídos pelos militares. O que sobra disso é algo antiquado, como se duas famílias representassem as duas únicas possibilidades. Esse é o tipo de política que se tem agora no Yêmen e no Egito. Quando o sistema entra em colapso, coisas como famílias, clãs ou tribos se tornam importantes novamente.

JU – É a quarta vez que vem ao Brasil. Como está sendo esta visita?
Anderson - Fui a Fortaleza pela segunda vez… Eu acho o Nordeste muito interessante. Uma das coisas de que mais gostei em Fortaleza foi ir a um museu dedicado ao cordel; é simplesmente maravilhoso. Uma coisa muito estranha da qual eu gostei muito foi uma história em que uma mulher mata o cavalo do marido por ciúmes e foge com um bode (risos). Eu sempre me divirto aqui, sempre há algo novo para se ver. Colaboraram Everaldo Luís Silva, Mateus Fioresi e Júlia Rany Campos Uzun

Quem é
Benedict O’Gorman Anderson nasceu em 1936, em Kunming, capital da província de Yunnan, na China. Descendente de irlandeses e de ingleses, foi criado, desde criança, na Califórnia, nos Estados Unidos. É irmão do historiador marxista Perry Anderson. Estudou em Cambridge e se especializou em estudos da política e história da Indonésia e do sudeste Asiático. É professor emérito da Universidade de Cornell.
Além de Comunidades Imaginadas, publicou outras cinco obras. Em Java in a Time of Revolution: Occupation and Resistance, ele analisa a revolução na Indonésia de 1945 no âmbito da ocupação japonesa. É um estudo em profundidade sobre a crise e independência na Indonésia.
Também sobre o país, ele escreveu, em 1985, In the Mirror: Literature and Politics in Siam in the American Era e, em 1990,Language and Power: Exploring Political Cultures in Indonesia. Suas obras mais recentes são The Spectre of Comparisons: Nationalism, Southeast Asia, and the World, de 1998, em que refina as teorias sobre nacionalismo em Comunidades Imaginadas, e Under Three Flags: Anarchism and the Anti-colonial Imagination, de 2005.


Um clássico do pensamento

ELIANE MOURA DA SILVA

É muito difícil fazer justiça em poucas palavras às sofisticadas análises de Benedict Anderson sobre o nacionalismo. O livro Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo (1983) é a mais original abordagem sobre o tema. Especialista em Sudeste Asiático, ele viveu e realizou pesquisas na Indonésia, Sião e Filipinas. O primeiro impulso para escrever o livro sobre o tema surgiu durante o período da Terceira Guerra da Indochina (1978-1979) entre a China, Camboja e Vietnã ao observar que, desde a Segunda Grande Guerra, toda revolução bem sucedida se definia em termos nacionais. Dessa forma, pareceu a ele que compreender a história do nacionalismo, tinha na questão cultural e nos artefatos simbólicos, particularmente nas transformações da consciência, o elemento central para pensar, definir a existência das nações. Desenvolvendo seus estudos, teorias e metodologias influenciado por pensadores como Erich Auerbach, Victor Turner e Marc Bloch, entre outros, seu trabalho foi ganhando uma dimensão e erudição que acabaram transformando o livro num grande clássico da história do pensamento do século XX.
Para Anderson, as origens culturais das nações modernas podem ser encontradas em alguns momentos históricos modernos: na mudança na concepção de tempo, no declínio das comunidades religiosas e dos impérios dinásticos, no desenvolvimento da cultura impressa de massas (livros, jornais) em línguas vernáculas. Tendo especificado as causas gerais subjacentes ao desenvolvimento das nações, explorou as mudanças particulares em contextos culturais e históricos. Começou por considerar a América Latina, onde – de forma controversa e interessante – apontando as comunidades crioulas das Américas como o meio onde a consciência nacional emergiu antes de aparecer na maior parte da Europa e de forma diferente da europeia em dois aspectos: conduzida por elites crioulas e não por intelectuais; o idioma não teve um aspecto tão fundamental uma vez que as colônias partilhavam a língua comum das metrópoles imperiais.
Os nacionalismos na Europa foram diferentes em dois pontos: em primeiro lugar, o papel desempenhado pela imprensa em idiomas considerados nacionais e a própria ênfase na língua nacional; em segundo lugar, os problemas políticos que derivaram da existência de vários impérios dinásticos do século XIX que nada tinham com qualquer noção do moderno nacionalismo. Essas similaridades também podem ser encontradas em movimentos nacionalistas e nos conflitos políticos nos vastos territórios da Ásia e da África.
Com referência aos nacionalismos anticoloniais, Anderson vai demonstrar que foram inspirados nos primeiros movimentos europeus e americanos. E tiveram consequência da administração colonial partilhada entre europeus e nativos ao longo de todo o século XIX. Isso permitiu o surgimento de uma intelectualidade local, bilíngue e com acesso aos modelos de nação e de nacionalismo, e que teve papel fundamental para copiar, adaptar e aprimorar as experiências anteriores. Nas condições do século XX, a construção de sistemas culturais nacionais foi muito fácil.
----------------------------
Reportagem por SÍLVIO ANUNCIAÇÃO
Fonte:  Jornal da UNICAMP - http://www.unicamp.br 29/08 a 04/09/2011