sábado, 30 de junho de 2012

A falsa promessa da democracia

Karel Beckman*
tahrir-square.jpg
Pessoas ao redor do mundo estão lutando contra regimes autocráticos em nome da liberdade e da democracia.  Elas estão certas em lutar pela liberdade, mas estão erradas em lutar pela democracia.  Os libertários deveriam tentar esclarecer a estas pessoas que o caminho democrático não os levará a mais liberdade, mas sim a mais escravidão.
Não há dúvidas de que a maioria dos libertários simpatiza com os protestos corajosos feitos por pessoas comuns contra os regimes autoritários ao redor do mundo.  Ao contrário dos neoconservadores ou liberais, os libertários não ficam preocupados quando os manifestantes ameaçam a "estabilidade" de um país que é um mero protetorado dos EUA no Oriente Médio. Eles sempre advertiram que o apoio a ditaduras sempre gera um efeito contrário ao desejado, o tiro sempre sai pela culatra, uma vez que geralmente os povos oprimidos se revoltam não apenas contra os seus opressores, mas também contra os seus apoiadores ocidentais. A história do pós-Segunda Guerra Mundial está cheia de exemplos disso.
Mas o que os libertários deveriam pensar sobre o fato de que os manifestantes estão geralmente lutando por (mais) democracia?  Afinal, não se pode negar que os dissidentes em países autoritários, como a Rússia, a China, o Egito, a Tunísia e os países do Golfo Pérsico exigem democracia ("eleições livres") acima de tudo.  
Para os libertários, isto representa um dilema.  Por certo, desde que Hans-Hermann Hoppe publicou seu famoso livro Democracy — The God That Failed, em 2001, muitos libertários tornaram-se cada vez mais críticos de toda a idéia de democracia.  Você poderia dizer que, graças a Hoppe, muitos libertários têm redescoberto o fato de que a democracia é, em um certo sentido muito básico, totalmente incompatível com a liberdade.
Como Hoppe e outros demonstraram, democracia ("governo pelo povo") não é de modo algum o mesmo que liberdade ("liberdade do indivíduo").  Em um sistema em que "o povo" governa, todas as decisões importantes sobre todos os aspectos da sociedade são tomadas pelo "povo", ou seja, pelo governo democraticamente eleito que supostamente representa o povo, isto é, pelo estado.  Em tal sistema, as pessoas naturalmente recorrem ao estado para resolver os seus problemas ou para lidar com todos os males da sociedade.  Como consequência — e dado que uma intervenção sempre leva novas intervenções — o poder do estado está em constante expansão.
Isto é exatamente o que aconteceu, na prática, em países democráticos.  O advento da democracia, em vez de fortalecer, subverteu as liberdades e os direitos que as pessoas até então desfrutavam nos países ocidentais.  O poder do estado tem crescido constantemente nos últimos 100—150 anos, sempre em linha com o crescimento contínuo dos princípios democráticos do governo.  Como demonstrado neste artigo, desde o século XIX até ao início da Primeira Guerra Mundial, os gastos dos governos ocidentais em relação ao seu PIB eram ínfimos comparados a hoje, exceto em épocas de guerra.  Imposto de renda não existia.
Mas à medida que a democracia foi se aprofundando, o poder dos governos foi aumentando de forma constante.  Os gastos dos governos passaram de cerca de 10% do PIB em 1870 para 47% em 2010, segundo dados do "The Economist" (ver tabela do artigo).  O endividamento está totalmente fora de controle na maioria dos países ocidentais, pois, para sustentar estes gastos maciços, apenas a arrecadação de impostos não é suficiente.
O número de leis com as quais os governos ocidentais controlam seus cidadãos tem crescido assustadoramente, para além de qualquer nível que teria sido tolerável no início do século XX.  As regulamentações atuais estipulam regras para tudo que seja imaginável, desde como uma pulseira de relógio deve ser construída até como os anéis de cebola devem ser preparados nos restaurantes.
Milhões de pessoas apodrecem nas penitenciárias ao redor do mundo, tendo suas vidas destruídas pelo simples fato de terem comercializado substâncias que os governos consideram impróprias para consumo.  Ninguém está a salvo dos agentes da lei nos dias de hoje, e não apenas no que tange à questão das drogas: qualquer indivíduo pode hoje ser preso por qualquer pretexto, pois ele sempre estará, inevitavelmente, violando um dos milhares de regulamentos e leis criados irrefreavelmente pelos governos, sobre os quais o cidadão comum não possui o mínimo controle.  Nenhum "direito" é sacrossanto, nem o direito à liberdade de expressão, nem o direito à propriedade privada.
E não há nenhum sinal de que as coisas estejam melhorando.   A cada dia que passa, nossos mercados estão menos livres, nossa propriedade está menos segura, nossas leis ficam mais arbitrárias e nossos "representantes" se tornam mais corruptos.  E o ideal de liberdade se torna, cada vez mais, apenas uma memória distante.
Rebelião e revolução
No entanto, este não é o modo como esses manifestantes olham para a democracia.  Eles associam a democracia à liberdade. Não é difícil entender por quê.
Mesmo em estados ditatoriais, o que as pessoas provavelmente querem acima de tudo são duas coisas: um padrão de vida decente e o controle sobre suas próprias vidas — sobre seu ambiente, suas carreiras, sua vida social.  Atualmente, elas não têm nenhuma influência sobre as leis que regem suas vidas.  Elas não têm controle sobre seus bens ou sobre o ambiente que as cerca.  Elas não podem abrir uma empresa sem permissão de burocratas corruptos.  Elas não têm nenhum poder de decisão sobre se a represa que será construída na sua vizinhança e que irá varrer sua aldeia do mapa poderá ou não ser construída, ou sobre se a construção de uma fábrica poluente que irá destruir as suas culturas poderá ser impedida.  Elas simplesmente não têm seus direitos de propriedade reconhecidos.  E elas não têm nenhuma maneira de remover os seus governantes que violam diariamente suas propriedades, exceto por meio da rebelião e revolução.
A democracia, portanto, se torna uma maneira por meio da qual elas imaginam poder remediar todos esses males.  Elas acreditam que a democracia irá lhes conceder os meios para escolher seus próprios governantes, para ajudar a formular as leis que os regem, e para que possam recorrer a tribunais independentes quando seus direitos são violados.  E elas acreditam sinceramente que a democracia irá torná-las mais prósperas.
Estas crenças são perfeitamente compreensíveis.  Afinal, nos países democráticos ocidentais, as pessoas ainda têm algum controle sobre suas vidas.  Elas são capazes, em certa medida, de eleger seus governantes ou de se desfazer deles por meio do voto.  Elas têm tribunais relativamente independentes aos quais podem recorrer se acreditarem que seus direitos estão sendo violados.  Elas são, até certo ponto, livres para se movimentar, procurar um outro emprego ou tentar uma vida melhor em outro lugar se assim o desejarem (pelo menos dentro de seus próprios países).  E elas tendem a ter um nível de vida relativamente elevado.
Estas são as promessas que a democracia oferece aos povos oprimidos ao redor do mundo.
No entanto, o que essas pessoas oprimidas não conseguem entender é que a liberdade e a riqueza que as pessoas usufruem nos países mais ricos do Ocidente não se devem ao fato de esses países serem democracias, mas sim ao fato de que seus sistemas democráticos foram construídos sobre fundamentos liberal-clássicos.
Por exemplo, todas as liberdades que os americanos modernos usufruem (ou usufruíam) — propriedade privada, liberdade de circulação, liberdade de expressão, tribunais independentes, poderes limitados dos governantes — foram estabelecidas pelos Pais Fundadores após a revolução americana (em parte tendo por base as tradições clássico-liberais inglesas).  Isso ocorreu antes do advento da democracia tal como a conhecemos hoje.  E o mesmo ocorreu em outros países ocidentais.  Primeiro veio a liberdade individual; só mais tarde é que veio o estado nacional democrático.
Em países que estão em vias de adotar a democracia, como o Egito, a Tunísia, a Líbia, e até mesmo, quem sabe, a China, onde não há nenhuma tradição de liberalismo clássico, não há motivos para crer que o advento da democracia levará a (mais) liberdade.  Ao contrário: o "povo" dessas novas democracias irá exigir que o estado tome medidas para satisfazer seus desejos.  Isso provavelmente levará à criação de ditaduras socialistas, nacionalistas ou religiosas.
Nas primeiras eleições livres no Egito, os partidos liberais-seculares que instigaram a revolta da Praça Tahrir conseguiram apenas 7% dos votos. A Irmandade Muçulmana e outros partidos islâmicos radicais foram os partidos mais votados.  Ocorreu o mesmo fenômeno na Tunísia.  No que diz respeito aos islâmicos, parece ser algo completamente fora de suas tradições falar sobre uma sociedade genuinamente livre.  O mais provável é que elas façam exatamente o oposto e sujeitem toda a sociedade à lei da sharia.
E este não é um problema exclusivamente árabe ou islâmico.  Em países como a Venezuela, a Tailândia e a Hungria, os líderes eleitos têm pouca intenção de estabelecer sociedades libertárias.  Também na China, se este país alguma dia se tornar democrático, partidos altamente nacionalistas poderão chegar ao poder.
Portanto, embora os defensores ocidentais da democracia estejam corretamente saudando o movimento Primavera Árabe como sendo uma vitória da democracia, é muito provável que tal movimento (talvez com algumas exceções) não se transforme em uma vitória da liberdade.
É claro que alguém pode perguntar: pessoas como a Irmandade Muçulmana não teriam o direito de controlar suas próprias vidas?  De viver de acordo com a lei sharia, por exemplo, se assim o desejarem?  É claro que sim.  O problema é que, em uma democracia — em um estado-nação democrático —, essas pessoas não governam apenas suas próprias vidas; elas também estendem seu domínio sobre todas as outras pessoas que vivem em sua sociedade.  Afinal, é exatamente assim que o sistema democrático funciona.
O que, então, deveríamos dizer, como libertários, a essas pessoas corajosas que enfrentam armas e tanques em sua luta para serem mais livres?  Não os estaríamos desencorajando se lhes disséssemos que não devem lutar pela democracia?  Não.  Não estaríamos os desencorajando se lhes explicássemos que eles devem lutar não por democracia, mas sim por liberdade.  E que isso significa que elas não deveriam tentar substituir seu estado autoritário por um estado nacional democrático, mas sim tentar romper completamente com o estado.  Elas deveriam tentar criar a sua própria sociedade descentralizada e livre.
É claro que a maioria não iria deixá-las criar esta sociedade, pois a maioria sempre depende de uma minoria para ser explorada.  Mas, dependendo das circunstâncias, quem sabe?  Por que não tentar?
Pensando bem, não é exatamente isso que nós também deveríamos estar tentando fazer aqui no mundo ocidental?

Tradução de Fernando Manaças Ferreira

A insensatez dos sensatos e a força social da utopia cristã hoje

Jung Mo Sung*
Um homem sensato se revolta com a natureza das coisas? É claro que não, pois uma das características da sensatez é, precisamente, ter juízo e equilíbrio para não ir contra a realidade como ela é. Revoltar-se contra a natureza das coisas e a própria natureza como tal é sinal de imaturidade ou de insensatez. Como a sociedade precisa mais de pessoas sensatas do que insensatas, a conclusão seria que o melhor para vida social é menos rebelião contra a natureza da vida social. Conclusão essa que é compartilhada pela maioria da população.
Ao mesmo tempo, muitas pessoas diriam que não é sensato aceitar a realidade social e ambiental em que vivemos. A grande desigualdade social, as injustiças nas relações econômicas e sociais e os problemas ambientais são sinais de que as coisas não estão bem.
Ora, o que é, então, ser sensato nos dias de hoje? Aceitar as "regras do jogo”, a "natureza das coisas” da vida social, ou se rebelar? Isso depende do que entendemos por "natureza das coisas”.
Na Antiguidade, os povos acreditavam que a vida como eles conheciam era fruto do destino ou da vontade onipotente dos deuses. Não havia alternativa, por isso ninguém discutia a questão ética, da injustiça ou justiça, sobre a vida social ou familiar. Quando a vida que vivemos é compreendida como sendo conforme a vontade divina ou dos poderes espirituais da natureza, a discussão sobre injustiça ou justiça não faz sentido. Hoje, por ex., ninguém discute sobre a justiça ou injustiça da "lei da gravidade” porque é uma "lei natural”. Assim também era no passado distante sobre o papel das mulheres na sociedade e na família ou a fome e sofrimento dos pobres e o poder e a riqueza dos reis.
É só quando grupos de pessoas oprimidas conseguem imaginar um mundo diferente do que conhecem, um mundo onde seus sofrimentos não mais existem, é que a sua realidade passa a ser percebida como social e não mais como natural ou divina. Sem essa imaginação utópica (Franz Hinkelammert), a realidade social não pode ser criticada de modo radical. Geralmente, no passado e no presente, os pobres expressam essa imaginação através de linguagens religiosas por dois motivos básicos. Primeiro, porque falam de um mundo que ainda não veem, precisam de imagens e símbolos típicos da linguagem religiosa; segundo, porque percebem que, sendo pobres e fracos, precisam do poder ou ajuda de Deus para realizar esse sonho. Assim, eles criticam a religião e deus dominantes e expressam a fé em um novo Deus.
Se Deus que descobrem não está de acordo com o mundo que os sensatos dizem ser "natural” ou "divino”, qual a razão, a causa, da situação que agora é percebida como injusta? A resposta não pode mais ser "leis da natureza” ou vontade divina. Só pode ser responsabilidade humana. Em linguagem religiosa: só pode ser fruto do pecado. Só na medida em que a realidade social é vista como fruto do pecado, ou da injustiça, é que ela pode ser transformada profundamente. E esse juízo só é possível a partir da imaginação utópica de um mundo sem injustiças e mortes antes do tempo. Reino de Deus foi o nome dado por Jesus para essa "imaginação utópica”; imaginação essa que foi entendida, pela fé, como "visão” dada pelo Espírito.
Hoje, quando a expansão do "império capitalista global” é vista como "evolução natural”, o cristianismo ainda tem uma contribuição importante a dar enquanto religião: anunciar o Reino de Deus (a imaginação utópica) que permite ver como o império atual é fruto e expressão do pecado! A força social do cristianismo não está no seu discurso meramente ético, mas no seu discurso religioso capaz de desmascarar a insensatez das pessoas sensatas do mundo; desmascarar o pecado do mundo a partir da fé em Deus que deseja a vida abundante para todas e todos.
---------------------
 * Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo. Autor (com Hugo Assmann) de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”. 
Twitter: @jungmosung].
Fonte: Adital on line, 30/06/2012
Imagem da Internet

Neocoronelismo urbano

 Carlos Guilherme Mota*

Maluf, então prefeito, vistoria obras na Av. Dr. Arnaldo, em 1969 - Arquivo AE
Arquivo AE
Maluf, então prefeito, vistoria obras na Av. Dr. Arnaldo, em 1969

Oposição de Erundina à aproximação Lula-Maluf reforça tese de que neste país o ‘novo’ nunca foi novo

Mal começado, o século 21 trouxe uma surpresa histórica: Lula se aliou a Maluf. O arco se fecha, e queima-se um bom candidato à condução da megacidade de São Paulo, capital financeira e cultural do País. Era só o que faltava para a caracterização completa dessa "república de coalizões" estapafúrdias, com seu futuro redesenhado nessa semana a partir da maior metrópole do País. Hoje, que significa mesmo ser republicano?
Encerra-se um ciclo histórico, deixando para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação político-social por conta do líder operário que nos anos 1970 pusera paletó e gravata para encontrar-se, a pedido, com o chanceler alemão Helmut Schmidt no hotel Hilton, centro de São Paulo, e explicar-lhe a nova era e o novo sindicalismo, o que impactou o sistema civil-militar de então. O mesmo bravo líder que enfrentou a ditadura a partir da "república do ABC"; o paciencioso torneiro que disputou – até ganhar! – eleições presidenciais contra forças de herdeiros da ditadura, da mídia e do capital financeiro e, vencedor, encarnou a vanguarda das lutas sociais na América Latina; esse líder não conseguiu fugir ao modelo autocrático-burguês. Pena.
Qual a lógica da política na terra bandeirante? Será possível fazer-se uma análise crítica das forças políticas que comandam a cidade desde, digamos, os tempos da ditadura e dos prefeitos biônicos até hoje? De que maneira os grupos econômico-financeiros, empreiteiras e respectivas forças políticas se revezaram na briga pelo poder? E o que tudo isso tem a ver com o modelo caótico de cidade que temos hoje? Não parece haver dúvidas sobre a importância da disputa municipal deste ano nas futuras eleições presidencial e estadual, sobretudo quando se recorda que o PT, como o antigo PTB e o atual PDT, sempre tiveram dificuldades eleitorais neste Estado e nesta anticidade. Desafio para todos, inclusive para a presidente Dilma, que vai melhorando em sua caminhada, sobretudo quando guarda alguma distância dessa sombra que não quer calar.
A galeria dos ex-prefeitos paulistanos ostenta de tudo, em termos humanos e de interesses do capital. Nossa urbe, marcada pela preocupação com o bem comum (o "ben comun", como se lê nas Atas da Câmara já no século 16) e os interesses da coletividade, teve fortes lideranças, desde o Morgado de Mateus (1765–1775) até o verdadeiro estadista que foi Prestes Maia, já no século 20, estudado pelos eruditos Benedicto Lima de Toledo e Candido Malta Campos, este em sua obra fundamental Rumos da Cidade. Ao revisitarmos a galeria dos ex-prefeitos, sem preocupação de arrolamento, nota-se que alguns são destacáveis (Faria Lima, Olavo Setúbal, Mário Covas, Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra), outros "esquecíveis" (Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Celso Pitta, Paulo Maluf). Mas convidemos o (e)leitor a avaliar o que cada um/uma representou ou ainda representa.
Na atualidade política, dizem os incautos ou muito espertos que direita e esquerda são definições que já não têm sentido. Carentes de leitura de livros, revistas e do mundo contemporâneo, lhes bastaria constatar as diferenças na França entre os projetos de um François Hollande e uma Marine Le Pen, ou no Brasil, entre os de Covas e Pitta, ou entre os de Maluf e (digamos) Lula.
O problema é que, de tempos em tempos, a capital paulista gera quasímodos políticos como Paulo Salim Maluf, um dos pilares da ditadura de 1964. O ex-governador, ex-candidato à Presidência da República e ex-prefeito de São Paulo (as ossadas de Perus não permitem esquecê-lo), nessa aproximação com o ex-presidente Lula com vistas à eleição municipal para escolha do novo prefeito da maior cidade da América Latina, obriga o cidadão minimamente ético e atento à História e a nossa vida política e social a se perguntar se não estamos vivendo mais uma ficção de mau gosto. Nesta agora cidade-pânico, penso no cidadão ativo que se recusa a ser alvo daquela frase ácida de Raymundo Faoro, quando dizia que "o Brasil é um país de otários", uma sentença dura do girondino radical, mas que se atualiza cada manhã ao tomarmos conhecimento do noticiário nacional, ou tentarmos entrar em um metrô (digamos, a Linha Vermelha, de Itaquera à Barra Funda), ou simplesmente atravessar a rua na faixa de pedestres. O problema é que o girondino gaúcho não logrou ensinar a radicalidade responsável ao seu amigo pernambucano, que deveria ser adotada como estratégia e referência em face dos "donos do poder". Ou seja, do patronato político brasileiro, incluídos os últimos lamentáveis ministros das Cidades, no ministério hoje nas mãos do PP de Maluf. Pobres cidades brasileiras…
Neste país de amnésicos, vale recordar o velho Marx, pois do PT, um partido de esquerda, poderíamos esperar tudo, menos a aliança Lula-Maluf. Marx dizia que, ao longo da história há fenômenos que podem se repetir: na primeira vez, ocorrem como tragédia; na segunda, como farsa. Historicamente, na prática, Paulo Maluf contradiz Marx, pois a primeira vez que ocupou posto público foi farsa, a segunda também, a terceira idem, e assim sucessivamente, até essa semana de sucesso… Mas Marx nunca foi bem lido por eles, ou talvez nem sequer lido, e muito menos pensado, sobretudo em suas páginas incômodas sobre os lumpesinatos – de onde provêm a massa dos eleitores de Maluf – que, despidos de ideologia ou filosofia, topam qualquer parada e constituem um freio para o avanço da História.
Como explicar o que aconteceu essa semana em São Paulo, senão pela confluência, para fins eleiçoeiros, de duas lideranças populistas para puxar as massas de seus respectivos eleitores? De uma parte, as gentes de Maluf, liderança que mobiliza moradores da periferia – muito menos do que se imagina, talvez Marta mobilizasse mais –, mas também segmentos da pequena burguesia, o curral decrescente e disperso de desavisados, "despossuídos" e politicamente deseducados. E, de outra parte, os eleitores de Lula e do PT, que, apesar das crescentes defecções, compõem o contingente daqueles que creem que seu carismático líder, historicamente importante, ainda representaria a possibilidade de superação, via reforma, do capitalismo selvagem e da redenção dos trabalhadores. Ou seja, da fração da classe operária que subiu ao paraíso, como espera subir a fração mais abaixo, que aguarda sua vez (e a inadimplência) na antessala das agências de automóveis.
Enfim, uma obra de antiarte política, o encontro Maluf-Lula, que nem a burguesia mais esclarecida e empenhada poderia imaginar, muito menos arquitetar um símile competidor em suas hostes. O resultado, convenhamos, é a massificação bruta de nosso capitalismo periférico, em que tudo vale nada. E que acelera o processo de deseducação cívica e política dos jovens, o desencanto dos maduros e a descrença dos democratas nos valores do socialismo reformista. Nesse processo, desceram pelo ralo o contrato social, as lutas de classes ("apagadas" justamente no período dos governos Lula), da cidadania pura e dura, das visões progressistas de mundo e de política. Enfim, dos valores humanistas. Recorde-se que Chico de Oliveira, um dos ex-fundadores do PT, já concluíra em 2006 que "o papel transformador do PT se esgotou" (Folha de S. Paulo, 24-7-2006, p. A-12). Naquele mesmo ano, o conservador liberal Claudio Lembo sentenciava: "Lula não tem tendência a ditador. É um operário do chão de fábrica. Conhece a vida de verdade. É um pequeno burguês, apenas isso" (Folha de S. Paulo, 31-12-2006). Após o levante do PCC em 15 de maio daquele ano, em que a sociedade civil paulistana se acoelhou, a "paz" voltava a reinar na capital do capital no Brasil…
A recusa da ex-prefeita Luiza Erundina em participar dessa aproximação com Maluf vem reforçar a tese de que, neste país velho e periférico, o "novo" não é novo, e nunca foi. Rapidamente, o supostamente novo ficou velho, correndo de costas em direção ao passado, como se vê na foto histórica, com o candidato Fernando Haddad sem graça entre dois Poderosos Chefões, foto antes inimaginável. A combativa ex-prefeita Erundina, com sua recusa em participar do jogo, demonstra que o pragmatismo rasteiro não pode passar por cima de valores éticos, na política como na vida. Convidado em seguida para o posto, Pedro Dallari optou por trilhar o mesmo caminho da ex-prefeita.
O fato é que a socialista paraibano-paulistana criou um forte lema para a nova sociedade civil brasileira: "Não aceito". E pôs em alerta seu próprio partido, que vem crescendo e conquistando papel importante no cenário nacional. Que ele só terá a ganhar com tal recusa, o tempo dirá. As lideranças burguesas nacionais e as dos trabalhadores, sobretudo aquelas pessoas cidadãs preocupadas com o ethos, a transparência e o mores positivo em política e na formação de um Brasil democrático, republicano e moderno, têm agora uma possibilidade de interlocução com gente de respeito. Quanto ao PT, terá que rever o lugar da ex-prefeita Marta Suplicy no quadro local e nacional; e o PSB de Eduardo Campos, de reavaliar o valor da ex-prefeita Luiza Erundina. Do mesmo modo, os outros partidos, sobretudo o PMDB, que não podem continuar a ter esse papel de vala comum dos descorados camaleões.
Na metrópole paulistana, testemunha-se nos dias atuais o fim da História. Mais precisamente, de uma certa e bela História, que alimentou as expectativas e siderou corações e mentes (lembram-se dessa expressão?) de três ou quatro gerações. Não se trata, está claro, do fim da História de Francis Fukuyama, ideólogo de sucesso e garoto-propaganda de um capitalismo predatório "avançado" e desistoricizante. Ou seja, daquela forma de organização econômico-social que só poderia dar no que deu, mas que gerou a reação social e político-ideológica positiva que resultou na eleição de Barack Obama – uma liderança bem formada política, cultural e ideologicamente. No Brasil, o momento é de desilusão das gerações, mas como a História continua, há que se buscar sinais de novos tempos, de uma nova era.
Como analisar tantas expectativas hoje frustradas? Neste país de tradição colonial, talvez a ascensão de Lula e o crescimento do lulismo possam ser entendidos por conta do velho gosto aristocrático pelo popular, cultivado até por frações da alta burguesia e de classes médias ascendentes, um "apreço" genérico por operários, sobretudo se qualificados e bem pagos. Operários que não tivessem seus macacões sujos de graxa, que fossem conversáveis (e conversíveis) como Lech Walesa, o polonês do Solidariedade. Tal "apreço’ lembra os abraços que o grande abolicionista e aristocrático Joaquim Nabuco dava nos militantes negros, eventualmente convidados a subir em seu palanque, mantendo, porém, ligeira distância.
"Tudo que é sólido se desmancha no ar", sabemos hoje. E os carismas e populismos, como o de Jânio Quadros, também se desfizeram com o tempo, por inconsistência. Hoje, ouvem-se os aplausos de plateias que, deseducadas e mal formadas, eventualmente também são atraídas pela musicalidade da "canção nova" e pela singeleza ideológico-teológica de padres-cantores e pregadores espertos. Amanhã, quem sabe isso mude.
Nesta terra de carismas fáceis e "miséria farta" (como diria Anísio Teixeira), em que a modernidade vem sendo adiada com método, "conciliação" e rigor, talvez estejam sendo geradas, em algum canto, novas visões de mundo, lideranças e mensagens menos simplistas e grosseiras sobre o que vem a ser política, sociedade, cultura. Pois a História continua… 
-------------------------
* Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é um historiador brasileiro. Escritor.
Fonte: Estadão on line, acesso 30/06/2012

Nacionalismo e desenvolvimento (I)

  José Luís Fiori*
 

"A dificuldade da "economia política clássica" foi reconhecer o significado econômico das nações, não apenas na prática mas também na teoria". Eric Hobsbawm, "Nações e Nacionalismo desde 1780", Paz e Terra, 1990, p: 37

Desde a Revolução Francesa, a palavra "nacionalismo" teve várias definições e conotações políticas e emocionais, variando segundo o tempo e o lugar, e aparecendo ora como uma ideologia ou sentimento, ora como um movimento social ou estratégia política. Na sua origem histórica, sobretudo na França e nos Estados Unidos, foi um movimento revolucionário, democrático e cidadão, depois passou a ter uma conotação predominantemente cultural e etnolinguística, sobretudo na Europa Central, para se transformar, finalmente, num projeto político de construção e/ou fortalecimento dos Estados nacionais que nasceram - dentro e fora do continente europeu - a partir das independências americanas. Mas foi só na segunda metade do século XIX que o nacionalismo adquiriu uma face e uma formulação explicitamente econômica e se transformou num instrumento de luta dos países "atrasados" contra a supremacia inglesa.
É bem verdade que depois do século XVI o desenvolvimento econômico capitalista se deu sempre com base em Estados territoriais que praticaram políticas mercantilistas de defesa de suas economias nacionais, e nesse sentido se pode dizer que sempre existiu algum tipo de nacionalismo econômico "primitivo", desde a origem do sistema estatal europeu. Mas foi só na Alemanha, no século XIX, que se formulou uma teoria e uma estratégia nacionalista consistente de desenvolvimento econômico, a partir de objetivos geopolíticos explícitos. Na sua obra mais importante, publicada em 1841, o economista alemão Friedrich List criticava a "economia política clássica" por condenar as nações menos desenvolvidas a "rolar eternamente a pedra de Sísifo" do atraso, exatamente porque havia "excluído completamente a política da ciência econômica, ignorado a existência da nacionalidade, e desconhecido completamente os efeitos da guerra sobre o comércio entre as nações" (1986, p:128). Depois da morte de List e da primeira unificação alemã, em 1871, estas ideias contribuíram decisivamente para o desenho de uma estratégia consciente de desenvolvimento e industrialização, combinada com uma visão ufanista da cultura germânica e com um projeto geopolítico de unificação e expansão do poder alemão, em direta competição com o poder comercial e naval da Grã-Bretanha.

Por que os sucessos econômicos 
do passado foram interrompidos 
por retumbantes fracassos políticos?

Desde então, o sucesso econômico da Alemanha se transformou no paradigma de referência do nacionalismo econômico, em todo mundo, e teve uma importância particular na história da Rússia e do Japão, países que têm várias semelhanças geopolíticas com a Alemanha. Entre o fim da "Guerra dos 30 Anos", em 1648, e a unificação de 1871, o território atual da Alemanha foi dividido e "balcanizado", de forma ativa e conivente, pelas grandes potências europeias, e só conseguiu se unificar depois de três guerras sucessivas e vitoriosas, da Prússia contra a Dinamarca, a Áustria e a França, na década de 1860.
Mas mesmo depois da unificação, a Alemanha sempre se sentiu um país cercado e pressionado, carregando um enorme atraso político e econômico e um profundo ressentimento com relação às "grande potências" responsáveis pela criação do sistema inter-estatal e do capitalismo europeu, e pela liderança da conquista europeia do "resto do mundo". É neste contexto de atraso, cerco e ressentimento nacional, que se deve situar a permanente preocupação defensivo-expansionista da Alemanha, dentro de um "espaço vital" supra-nacional a ser conquistado e preservado. É neste contexto também que se deve situar o "intense commitment" de suas elites civis, militares e intelectuais, que teve um papel decisivo no desempenho econômico do nacionalismo alemão. Em maior ou menor medida, se pode reencontrar muitas destas características na história da Rússia/URSS e do Japão, e nos seus grandes ciclos de intenso crescimento econômico, desde o século XIX, e mesmo entre 1950 e 1991, apesar de que neste período o Japão e a Alemanha fossem transformados em "protetorados militares" a serviço da estratégia militar global dos EUA.
Agora de novo, neste início do século XXI, Alemanha, Rússia e Japão estão seguindo estratégias econômicas nacionalistas, orientadas por seus grandes objetivos estratégicos nacionais permanentes, de defesa e luta pelas suas hegemonias regionais. Para pensar o futuro ou tirar lições, entretanto, seria importante primeiro entender porque os seus grandes sucessos econômicos e tecnológicos do passado acabaram sendo interrompidos por retumbantes fracassos políticos e/ou geopolíticos.
 ---------------------------
* José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007.
Fonte: 
 http://www.valor.com.br/opiniao/2732936/nacionalismo-e-desenvolvimento-i 29/06/2012
Imagem da Internet

Jonathan Franzen: “Me dei conta de que estava roubando Tolstói”

Jonathan Franzen é uma das estrelas da décima edição da Flip (Foto: Getty Images)

Jonathan Franzen é uma das estrelas da décima
edição da Flip (Foto: Getty Images)

O autor americano vem ao Brasil para a Flip. Em entrevista a ÉPOCA, diz que a trama central de seu romance "Liberdade" se parecia com a de "Guerra e Paz", do escritor russo

LUÍS ANTÔNIO GIRON
 
O escritor e admirador de pássaros americano Jonathan Franzen, de 52 anos, é uma das grandes atrações da décima edição da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa na quarta-feira (4). Ele conversou nesta semana com ÉPOCA de seu apartamento em Uptown, em Nova York. Falou de pássaros e de seus hábitos de consumo cultural. Diz, por exemplo, que não gosta mais de ir ao cinema. Abaixo, trechos da conversa.
Leia a entrevista exclusiva de Franzen e a reportagem sobre a décima e maior edição da Flip em ÉPOCA que chega às bancas e ao seu tablet (baixe o aplicativo) neste fim de semana.
ÉPOCA – Seu romance Liberdade foi celebrado em 2010 como herdeiro da tradição moderna, foi chamado de o “grande romance americano”, um exemplo do romance social. É isso mesmo, ou os críticos exageram?Jonathan Franzen – Meus dois últimos romances, As correções e Liberdade, abordam questões de família. Em Liberdade, somente o primeiro capítulo discorre sobre os assuntos do momento, a decadência da América etc. São dois ou três temas políticos que chamaram a atenção dos resenhistas. Mas não posso chamar o que fiz de “grande romance” nem mesmo “romance social”. São tentativas.
ÉPOCA – O senhor diz que o escritor precisa viajar, conhecer o mundo e viver intensamente o que escreve, e se transformar no final de um livro. Não é um programa romântico em um mundo em que os autores se acomodaram diante do computador?
Franzen –
Eu me considero romântico no sentido modernista do termo. O Modernismo fez a reciclagem do Romantismo, colocando o sujeito no centro da criação literária, bem como a busca de novas formas de linguagem e narrativa. Nesse sentido, sou romântico e modernista. Eu me identifico com a obra de Novalis [poeta alemão], mas principalmente com as de Marcel Proust, Joseph Conrad e William Faulkner. Todos escritores que correram riscos e dedicaram suas vidas à escrita.

ÉPOCA – No seu anseio em ser legível, as histórias de Faulkner não são fragmentárias demais?
Franzen –
Pois é, eu busco uma forma mais clássica e linear de contar histórias do que a de Faulkner. Sou uma pessoa convencional, e talvez por isso eu queira narrar minhas histórias de modo direto e sem ornamentos ou armadilhas. Faulkner experimenta com a linguagem e com os blocos narrativos. Meu romance favorito de Faulkner é justamente o fragmentário Absalão, Absalão! Só que basta penetrar no emaranhado narrativo do livro para sentir a clareza e a força de Faulkner. Dele eu recomendo também a leitura de Santuário e A aldeia, romances em que Faulkner se esforça por não ser difícil. E, de fato, são textos que prendem do começo ao fim.

ÉPOCA – É quase impossível para um romancista não ser chato. Há passagens difíceis em Conrad e Proust...
Franzen –
É verdade. Páginas e páginas insuportáveis, mesmo em uma obra maravilhosa como Em busca do tempo perdido, de Proust. Conrad também é enrolado, mas dificilmente você encontra romance mais divertido que Nostromo. Autores como Proust e Conrad forçaram os limites da palavra em suas obras, e apontaram para novas possibilidades de narrar uma história.
ÉPOCA – Há duas citações interessantes nos seus dois últimos romances. Em As correções, o senhor cita a série Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis. Em Liberdade, é a vez de citar Guerra e Paz, de Liev Tolstói. Qual o motivo para isso? É uma relação intertextual?
Franzen –
Eu citei Nárnia por dois motivos. Em primeiro lugar, porque adoro a premissa da história: um guarda-roupa no fundo de uma casa que abre as portas para um outro mundo. Ora, essa deveria ser a razão de existir de todas as histórias infantis, levar as crianças para um universo desconhecido. E aqui entra o segundo motivo: um dos heróis do livro, o menino Edmundo Pevensie, é o que deveriam ser os heróis de histórias infantis: ele não é comportado, e às vezes age com egoísmo, como um menino de verdade. Os livros infantis são tristemente dominados pelo maniqueísmo Bem e Mal. Nárnia prova que é possível fazer uma história bonita sem disfarçar a realidade. Bom, quanto a Guerra e Paz, coloquei a citação na boca de Patty [protagonista do romance] porque, enquanto escrevia Liberdade, me dei conta de que eu estava simplesmente roubando a trama central de Guerra e Paz de Tolstói. Foi um roubo inconsciente do qual tentei me redimir, citando a fonte.

ÉPOCA – O senhor conhece os brasileiros autores do passado?
Franzen –
Tenho apreço por Clarice Lispector. Machado de Assis é genial, ainda que afetado pelo ambiente literário europeu. Um autor para o qual não me considero preparado é Jorge Amado. Os romances dele têm um realismo social que me lembra os panoramas engajados de John Steinbeck, em As vinhas da ira. Tanto Amado como Steinbeck têm um tom autoindulgente em algumas obras. Steinbeck não sustenta esse tom em boa parte de sua produção. É um escritor muito rico. Quanto a Jorge Amado, ainda quero ler mais obras dele para formar uma opinião.
Ir ao cinema se tornou chato. Entrar em uma fila, pagar US$ 15 dólares e sentar em uma cadeira suja cercado por adolescentes barulhentos não é coisa que me agrade mais"
Jonathan Franzen
 
ÉPOCA – Algumas histórias de Jorge Amado pertencem ao gênero fantástico, e lembram o boom latino-americano dos anos 60.
Franzen –
Os leitores estão meio cansados desse sabor de fantasia da literatura latino-aAmericana. Hoje percebo um retorno ao realismo. É o caso do escritor colombiano Juan Gabriel Vasquez, preocupado em investigar a realidade e a violência da América Latina. Esse me parece um caminho mais interessante do que o realismo fantástico.

ÉPOCA – Quando o senhor avista pássaros, imagino que se esforce em ouvir o canto deles.
Franzen –
Sim, faz parte do meu trabalho de ambientalismo escutar pios e gorjeios. Aqui mesmo onde moro é mais fácil ouvi-los cantar do que enxergá-los. Admiro a riqueza melódica do canto dos pássaros.

 
 
  
ÉPOCA – Isso me faz lembrar o escritor francês Pascal Quignard, que afirma que eles inventaram a música. O homem só fez roubar e codificar o canto dos pássaros. Que tipo de música humana o senhor gosta de ouvir?Franzen – Música é um tipo de coisa que não consigo ouvir enquanto escrevo. Porque é uma arte que exige atenção exclusiva. Ouço música quando não estou escrevendo, quando meus sentidos estão abertos e ainda estou imaginando que história vou contar. Estou ouvindo rock’n’roll, pensando no próximo romance. As composições de Steve Reich são atuais e acessíveis, cheias de uma imprevisibilidade que me atrai. Rock, Reich e [Igor] Stravinsky. Aprecio menos Olivier Messiaen e suas composições baseadas em canto de pássaros do que Stravinsky. Seus ritmos são complexos, mas, ao mesmo tempo, atingem diretamente o corpo inteiro . É uma arte complexa que chega até nós de forma transparente e simples. A música de Stravinsky é uma boa imagem para definir o que eu faço em minha obra literária: simplicidade superelaborada.

ÉPOCA – É verdade que o senhor prefere ver filmes em casa a ir ao cinema?
Franzen –
Sim. A experiência de ir ao cinema se tornou chata. Entrar em uma fila, pagar 15 dólares por um ingresso (eu não precisaria mais pensar nisso, mas continuo pensando) e sentar em uma cadeira suja cercado por adolescentes barulhentos não é coisa que me agrade mais. O DVD supre minha necessidade de ver filmes e séries de televisão. O DVD player é uma das conquistas tecnológicas que eu considero importante.
--------------
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2012/06/jonathan-franzen-me-dei-conta-de-que-estava-roubando-tolstoi.html

Cuidado com os gurus

WALCYR CARRASCO*
 
Aconteceu há muitos anos. Estava relaxado numa poltrona, num sobrado em San Francisco, nos Estados Unidos. Uma senhora gorda, esparramada a minha frente, me induzia a um transe. Falava em inglês que reproduzo traduzido:
– Você está vendo uma luz. Aproxime-se. Deixe que o Ser tome conta de você.
– Simmmmm...
Eu me sentia vibrando com o Universo.
– Permita que o Ser responda pela sua boca.
Uma força tomou conta de meu corpo.
– Aqui estooou...
– As energias deste rapaz são puras, oh, Ser?
– Sim... ele é um iluminado – respondi, tomado de sabedoria.
– Deve receber as energias da senda?
– Ooohhhh... sim, sim.
– Devo fazer sexo com ele?
Despertei subitamente. Com os olhos semicerrados, observei a senhora de lábios brilhantes a minha frente.
– Nããããoooo.... vosso caminho é puro – continuei, em voz cavernosa.
– Oh, mas seria melhor para unir nossas energias.
– Não, não! – disse, mais preocupado.
Ela me despertou. “Como foi? Não lembro de nada”, disse. “Ainda há um caminho a trilhar”, ela respondeu.
Desisti dos próximos passos. Tive uma amiga chilena que largou marido e filhos para integrar-se a um templo em Los Angeles. Fazia parte dos eleitos de um guru para salvar a humanidade na guerra nuclear. Com meditação e exercícios, tais eleitos seriam transformados em pilha de energia positiva para reverter o Armagedon. A escolha movimentou um grande número de pessoas, de várias nacionalidades, interessadas em virar pilha. O desprendimento da vida material incluía limpar o templo, pois iluminados não contratam faxineiras. Cinco dias depois de deixar a família e o saldo bancário para trás, minha amiga esfregava o chão. De repente, sentiu duas mãos em seu traseiro. Era o guru.
– Mestre! Que é isso? – disse ela.
– Sou guru, mas também sou homem – ele respondeu, apertando um pouco mais.
A chilena fugiu com as malas pela neve.
Antes de continuar, quero deixar claro que sou espiritualista. Gosto de rezar. Acredito em outras vidas. Em energias positivas. Mas mantenho o espírito crítico. Gurus me assustam pelo poder que exercem sobre seus adeptos. E sempre há um candidato a guru por perto. “Conheço uma mulher que teve uma visão sobre você. Viu uma sombra muito negativa. Marque um encontro!”, me disse um amigo, dia desses.

 "Mas a grande pergunta ainda é: 
por que uma pessoa precisa de alguém que lhe 
diga como deve viver?"

Eles me assustam pelo poder exercido sobre os adeptos – e sempre há um candidato a guru por perto 
Corajosamente, recusei-me a conhecê-la. Não preciso de um baralho para saber a continuação. Ela me dirá o que devo ou não fazer com minha vida. Eu, hem! Candidatos a guru têm técnicas. Uma é avisar sobre riscos, como no meu caso. Outra, falar sobre reencarnações anteriores em que a nariguda de hoje foi a Maria Antonieta de ontem; e o baixinho, Alexandre, o Grande. Elogios disfarçados também valem. Um amigo conheceu uma senhora que olhou para seu rosto e disse:
– Você é uma alma antiga.
– Sim, sim! – disse animado.
– Tem uma missão nobre na Terra.
– Sempre acreditei nisso!
Quem não quer se sentir um anjo?
Há gurus de todos os estilos: hindu, budista, celta, bruxo medieval, Nova Era. Todos pregam o abandono da vida material e a completa submissão. Conheci uma mulher que, em prol do crescimento interior, mudou-se para uma comunidade em Campos do Jordão, São Paulo, abandonando a profissão. Anos depois, procurava emprego como doida. Um conhecido quase perdeu a mulher ao entrar numa seita que obrigava a castidade umas três vezes por semana. Outro se filiou a uma que praticava o sexo para a purificação. O grupo quase acabou no Brasil: os rituais se transformaram em farra, e veio o descrédito.
A intensidade do poder de um guru é inacreditável. Nem sempre seu interesse é o dinheiro. Há gurus que querem viver bem. Muitos não se preocupam com isso. Gostam de comandar vidas. Nem é preciso lembrar tragédias como a provocada pelo americano Jim Jones, que levou 918 pessoas ao suicídio em 1978. Nos Estados Unidos, há terapeutas especializados em tratar pessoas abduzidas por gurus e resgatadas pela família.
As religiões tradicionais saem ganhando, pois suas estruturas impedem o domínio absoluto de um mestre sobre o grupo. Mas a grande pergunta ainda é: por que uma pessoa precisa de alguém que lhe diga como deve viver?
De Jesus a Buda, os grandes mestres aconselham a busca interior como caminho de evolução. Tanto na vida prática como na espiritual. É uma prova de sabedoria. O melhor guru é o que cada um tem dentro de si.
----------------
* Jornalista. Autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/vida/walcyr-carrasco/noticia/2012/06/cuidado-com-os-gurus.html
Imagem da Internet

Homo fictus

LUÍS AUGUSTO FISCHER*
 
Tem aquela superstição da estatística: se a gente colocar um macaco por tempo suficiente diante de um teclado de computador, em algum momento ele será capaz de escrever, palavra por palavra, o Hamlet, de Shakespeare.

Alguns limites dessa hipótese já são conhecidos, especialmente o fato de macacos serem mortais, e portanto não disporem de tempo suficiente – mil anos? Um milhão? – para a tarefa. É sério: tem gente que já testou essa especulação. O resultado não foi muito animador: saíam linhas como sssssssssssssssssstssssssssm,,m, ou algo assim.

O caso é que a concepção e a redação do Hamlet são mais do que acerto casual. Há algo de muito profundo na prática de conceber e contar histórias. Mais profundo do que o abismo das implicações psicológicas e sociais, para indivíduos e grupos. É bem possível que contar e ouvir histórias, viver de ficção, seja resultado de um processo adaptativo: em algum momento-chave de nossa trajetória sobre as duas patas traseiras, os ancestrais contadores de história e seus ouvintes atentos devem ter levado vantagem sobre os sem-imaginação. E eis-nos aqui, vivendo intensamente o mundo da ficção, no romance ou na telenovela, na canção ou na propaganda de margarina.

O autor desse argumento é Johnathan Gottschall, norte-americano, professor de literatura. Li a notícia na edição de fim de semana do jornal Valor Econômico e me fui atrás da conversa dele, no site com seu nome. Ali, se pode ler de e sobre seu livro The Storytelling Animal – How Story Make us Human, ou seja: O Animal Contador de Histórias – Como a Ficção nos Torna Humanos. (Ele usa story, e não ficção, que adotei porque sou inimigo pessoal do termo estória.)

Diz um trecho da apresentação (em tradução rápida): “Este livro é sobre o primata Homo fictus (Homem Ficcionalizador), o grande símio com mente contadora de histórias. Você pode não perceber, mas você é uma criatura do imaginário reino chamado Terra do Nunca. Ela é sua casa, e antes de morrer você vai passar décadas lá. Se você não se deu conta antes, não se desespere: ficção é para os humanos como água para os peixes – totalmente envolvente e não muito perceptível. Enquanto seu corpo está sempre fixado em um ponto particular do espaço-tempo, sua mente é sempre livre para circular por terras de faz de conta. E consegue”.

Isso tudo reforça a convicção de que vale a pena insistir com a literatura. Tanto que esbocei mais uma lista de argumentos a favor dela, lista nascida de uma conversa pública na Feira do Livro de Canoas, em que estive ao lado do amigo Sergius Gonzaga.


Seis teses

1. PROFUNDIDADE. A literatura faz parte da nossa vida de modo essencial. Gottschall fala da narrativa, termo que engloba romance, conto, teatro, memória etc., mas creio que podemos incluir o território da poesia, que não tem compromisso necessário com o relato de histórias. Poesia tem outra têmpera essencial: o poeta (no poema mesmo, ou em qualquer texto em que possa expressar-se a índole poética) não passa correndo sobre a linguagem-ponte de modo a alcançar logo a outra margem, mas pelo contrário, fica pisando e repisando sobre a linguagem-ponte, fazendo-a balançar.

E o que a literatura nos dá, em primeiríssimo lugar? Profundidade, experiência vertical da vida. Nos dá notícia de que somos muito mais do que sabemos ser, porque somos capazes de entender dramas, tragédias, comédias, percursos os mais variados, isso tudo sem viver diretamente nenhuma das histórias lidas. Aliás, Gottschall nos diz que o provável motivo de ter havido este processo adaptativo foi a vantagem de experimentar situações fortes (participar de uma guerra, conquistar a mulher de um homem poderoso etc.), sem precisar vivê-las diretamente.

2. AGILIDADE. Quem lê tem agilidade mental; quem lê literatura tem ainda mais presteza, velocidade, capacidade de estabelecer relações de todo tipo. Aí está um valor indiscutível da leitura e da literatura. A prova desse ganho pode ser feita em negativo: converse com quem não lê e confira. Bem, há exceções; há pessoas interessantíssimas que não leram, talvez nem soubessem ler, ou mal e mal dominassem a técnica básica. Mas no mundo de hoje essas figuras são cada vez mais raras.

E se for o caso de estabelecer uma regra geral, é certo que a regra desejável será a de ensinar a ler e a escrever, como caminho mínimo para o acesso ao aprendizado, à novidade. Ensinar a ler todo tipo de texto, do mais singelo como uma notícia ao mais complexo como um poema, passando pela bula de remédio, pelo panfleto político, por qualquer modalidade de texto. De todos os ambientes letrados possíveis, porém, o mais relevante é o da literatura, porque ele concentra as várias modalidades de uso da linguagem utilizadas intensamente e carrega a vantagem da longa tradição, que permite ao leitor exercitar uma verdadeira aeróbica mental. Enfim, mas não por último, a leitura tona-nos mais hábeis no manejo da língua, que medeia todas as relações sociais, afetivas e políticas.

3. VARIEDADE. A literatura tem o extraordinário mérito de acolher qualquer experiência humana, em qualquer parte, época e situação. Faça o teste: na literatura, não há o que não haja. Vidas de santos e canalhas, nobres e plebeus, reacionários e revolucionários, remediados e sem-remédio, ricos e pobres, todas cabem na literatura. A melhor literatura brasileira foi concebida na luta contra a trivialidade, a indiferença, a exclusão. Pense Simões Lopes Neto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa botando o “sertão” nas primeiras filas da qualidade. Ou Vieira e Machado, escritores classicizantes. A crônica, que não respeita limites; a canção, forma semiliterária (e semimusical) que não tem como ser mais acolhedora das variedades dialetais.

Quer dizer: já foi cumprido na literatura aquele ideal que os sociolinguistas postulam para o ensino de língua, de que a escola acolha todas as variedades dialetais da vida diária, sem exclusão, como forma de acolher os falantes delas, muitas vezes gente que não conheceu jamais formação letrada. Se os alunos forem expostos a ela, terão como se encontrar e poderão então ver que maravilhas os grandes artistas já fizeram com este patrimônio compartilhado por todos, a língua portuguesa.

4. CONCENTRAÇÃO. A leitura de textos de qualidade impõe exigências, e uma delas é a concentração. Não basta sentar por poucos minutos para vencer o desafio de um texto profundo, e isso costuma ser obstáculo duro para os leitores inexperientes. Essa característica se salienta mais ainda em nossos tempos, tão pródigos em diversões com satisfação imediata.

Mas ocorre que essa imediatez é diretamente proporcional à profundidade: quanto mais rápida a satisfação, mais raso é o prazer estético e o proveito intelectual. O romance exige muito tempo de leitura, mas a intensidade da satisfação nem se compara. O preço para ler bem é a concentração, poderíamos dizer “o foco”, como está na moda. E é bem isso: quem lê boa literatura aprende a ter foco, aprendizado que pode ser repassado para as outras áreas da vida, com ganhos objetivos, da preparação para uma prova à dedicação a objetivos de longo prazo na vida.

5. IMAGINAÇÃO. Um dos dois valores mais importantes para a leitura é a imaginação. Ocorre sempre essa verdade geral aos que fazem comparação entre um romance lido e a adaptação desse romance para o cinema ou a tevê: a transposição para meios audiovisuais costuma decepcionar os leitores do livro original porque na leitura o poder daquela história foi muito superior, devido exatamente ao fato de que a leitura exige imaginação.

Nada contra as adaptações, em todos os sentidos e para todas as linguagens: elas são uma porta de acesso que deve ser incentivada. Mas o caso é que o original faz nossa mente funcionar com mais vigor: ali onde o escritor sugere um castelo ou uma praça, nossa imaginação entra em funcionamento para realizar tais lugares, ao passo que no audiovisual nós já vemos o castelo e a praça que o diretor imaginou, restando pendurar a nossa leitura na dele, o que é sempre menos do que poderia ser.

E qual o valor da imaginação? Incalculável, sem dúvida. Imaginamos novas formas de organização social, tanto quanto novos usos e tecnologias, para nem dizer as novas formas de sermos nós mesmos.

6. LIBERDADE. Talvez o mais potente valor da literatura seja o de proporcionar o exercício da liberdade. Quem lê passeia por rotas desconhecidas que no entanto estão dentro de cada um, bastando ativá-las. São incontáveis os exemplos de leitura proveitosa feita em condições precárias, até mesmo quando faltam as liberdades elementares. Com crianças, nem se fala: compare o antes e o depois dos livros. Pergunta Michèle Petit: as crianças se exprimem mais do que antes, ou não? Estão mais à vontade para falar delas mesmas? A relação delas com os outros se transforma? Parece haver pouca dúvida das respostas.

Se entendermos liberdade como a infindável conquista da autonomia, então a leitura de literatura pode ser qualificada como o caminho talvez mais significativo que a família, a escola, as instituições públicas de cultura devem proporcionar.
  
QUATRO LEITURAS SOBRE LEITURA 
 
Lições dos Mestres, de George Steiner. Rio de Janeiro: Record, 2005.
A Arte de Ler, ou Como Resistir à Adversidade, de Michèle Petit. São Paulo: Ed. 34, 2009.
A Espécie Fabuladora – Um Breve Estudo sobre a Humanidade, de Nancy Huston. Porto Alegre: L&PM, 2010.
Voltar a Ler – Propostas para Ser uma Nação de Leitores, de Mempo Giardinelli. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2010.
-------------------
* Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/06/2012
Imagem da Internet
 

A alma hooligan e o crepúsculo do macho

MÁRIO CORSO*

 

A questão da violência ligada ao futebol é complexa e multifacetada, mas talvez possa ser entendida a partir dos deslocamentos da identidade masculina no século 20

Existe uma personagem oculta na Eurocopa 2012: a polícia. De uns anos para cá, ela tanto se sofisticou em prevenir os conflitos entre torcedores fanáticos que eles estão minimizados. Não foram os hooligans que perderam a força, é a repressão que os mantêm na linha. Quase todos os países europeus têm problemas com eles, mas foram trocando experiências e criando políticas coercitivas até que se chegou a um equilíbrio de controle.

O Estado os combate, mas nunca entendeu seus motivos. Creio que tampouco a intelectualidade europeia se debruçou o suficiente sobre eles para saber qual é a bússola que usam (se é que a tem), as razões da sua fúria besta, seu amor desmesurado por uma bandeira clubística e, ocasionalmente, por sua seleção. Afinal, quem são esses brigões da pequena causa? O que querem esses rebeldes de uma causa tão rebaixada? Por que jovens trabalhadores europeus, vários com empregos razoáveis, remuneração idem, preenchem sua vida com futebol, brigas e álcool? Por que essa violência gratuita e sem sentido os cativa?

A questão é complexa, multifacetada, mas creio que uma das chaves para entendê-los passa por pensar nos deslocamentos da identidade masculina do século 20. E, é claro, simetricamente, no novo papel da mulher. O mundo industrial já fez do trabalhador peça de uma engrenagem que o transcende. Há uma alienação básica, mas ao menos ele era homem, entre outras coisas, porque ia para rua trabalhar, cabia-lhe trazer o pão para casa. Ser homem estava ligado a esse lugar social e familiar, a mulher estava em casa nos seus afazeres domésticos e subordinada ao marido. Socialmente o homem tinha o papel principal, mesmo que algum indivíduo fosse sem valor, ele seguia superior à metade da humanidade. Por sorte, isso mudou drasticamente: a mulher conquistou um lugar no espaço público, saiu da tutela do homem e hoje ganha para seu sustento. Dentro do casamento, outrora berço da tirania masculina, ocorreu o mesmo, não existe mais a assimetria onde a mulher era submissa, não autorizada a pensar e ter opiniões. Enfim, o trabalho já não ajuda a definir o que é ser homem. Ganhar dinheiro tampouco, mandar na mulher também não, o que é ser homem então?

O século 20 foi, infelizmente, pródigo em guerras. As guerras convocam o homem para um dos arquétipos da condição masculina, o guerreiro. A I e a II Guerra, depois a Guerra Fria e as lutas anti-coloniais, apesar do cataclismo humano, forneciam um lenitivo para a identidade masculina. O varão seguia nesse ponto útil, indispensável, um peça valiosa da engrenagem bélica. A economia e os valores da modernidade esvaziavam a representação da figura clássica masculina, como provedor e mestre, mas a guerra lhe contrabalançava o prestígio como soldado. O que fazer agora que a Europa se pacificou?

Observamos no século passado o declínio de todas as formas de filiação, daquilo que nos faz pertencer a um grupo. Todas tornaram-se mais frágeis, elas já não amarram uma identificação como antes. Ser inglês, francês ou alemão numa Europa que usa a mesma moeda e tem fronteiras abertas já não define claramente alguém. A cultura de massas avançou sobre as culturas locais e tradicionais, dando vida a novas personagens de identificação para sonhar, a globalização da cultura dilui fronteiras, vários povos cultivam os mesmos heróis e vilões. Os ofícios tampouco lembram as antigas guildas e corporações, com seus códigos e costumes, além disso os homens trocam de profissão, e mesmo as diferenças entre os ofícios não são claras. O que vale é ter dinheiro e não como se o obtém. Poucas profissões ainda devolvem uma imagem que sirva como âncora identificatória.

Da parte das religiões o quadro não é diferente, o mundo desencantou, e o papel das crenças ficou secundário, pouco definidor, apenas funciona para os poucos que se tornam radicais em tentar fazer valer o mundo antigo da religiosidade perdida. Ser católico, anglicano, ou protestante tanto faz, talvez o judaísmo e o islamismo ainda costurem um sentido peculiar, que não se confunda com o establishment convencional. Os grandes partidos políticos também são uma sombra do que foram, especialmente no sentido de uma escolha política definir uma identidade que dê sentido a uma vida. Não existem mais brigas por causas, talvez a ecologia seja a exceção, mas essa é, ou deveria ser, de todos. Enfim, vivemos a falência das formas tradicionais de identificação, das ideologias e das filiações, portanto cada vez é mais difícil saber quem se é e a que grupo pertencemos.

O homem de hoje segue trabalhando, com mais exigências de desempenho, e sem as regalias antigas, ainda que ilusórias, de seu gênero. Vê a mulher seguir seus passos e muitas vezes o ultrapassar; não sabe como ser amado e admirado por elas, antes bastava ser homem, hoje ele não sabe o que elas querem. O homem está solto, avulso no plano das ideias. Sem nada em volta que lhe devolva uma imagem do que ele é como cidadão e tampouco uma consistência viril, outrora refúgio das certezas. Resta-lhe o futebol, a paixão por um time, a violência da rua, essa inequivocamente, um lugar de machos. O hooligan é o homem que não conta com uma guerra, então a inventa; não tem mais uma nação, uma causa, porém achou um clube para incondicionalmente e irracionalmente amar. O totem clubístico vem no lugar do pai decaído, da nação diluída, o time é a única tribo que consegue amar. O time não lhe pede nada e lhe diz atrás de que cores ele poderá vibrar para se sentir parte de algo.

Outro fato intrigante dessa questão é que os valores do individualismo cruzaram o século em alta e a tendência é seguir nessa direção, por que então um comportamento de massa, onde o indivíduo se funde no anonimato, consegue adeptos tão entusiastas? Talvez o hooligan seja também uma denúncia de mal-estar na individualidade, um protesto em ato. Ali alguém deixa de ser ele mesmo para pertencer a uma multidão, imerge no mar do não ser, aceita a vontade coletiva, quer estar num rebanho que economiza a reflexão.

O comportamento hooligan é a subversão das demandas por ser em nome próprio, de carregar o peso de ser original e ímpar, é a vontade de ser massa e descansar a cabeça das exigências abstratas, intangíveis, que são colocadas ao homem de hoje. Os hooligans são uma resposta fácil, barata, ingênua e bruta dirigida à esfinge que pergunta ao homem o que ele é. Ao invés de olhar para frente, ele olha para trás, junta os farrapos dos uniformes dos avós e faz uma bandeira anacrônica e sem sentido, que já não honra ninguém, uma caricatura de soldado num simulacro de guerra. Só extrai sentido social nessa cruzada patética contra a polícia e contra outros, tão perdidos como ele. Bebe a última gota de uma imagem masculina que já não se sustenta. É a imagem do ocaso do macho tradicional.
---------------------------
*Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, autor de Psicanálise na Terra do Nunca: Ensaios sobre a Fantasia”, entre outros
Fonte: ZH on line, 30/06/2012

O desafio do vazio

 ABRÃO SLAVUTZKY*
 
O século 21 pode ser definido como o século do vazio. Há um sentimento de vazio expresso nas perdas, nas angústias, no desamparo. Cada um busca preencher esse vazio como pode: uns criam, já outros correm atrás das drogas, dos alimentos e dos objetos que nunca satisfazem seus desejos. Encher seu vazio é uma obsessão nos dias de hoje. Sempre algo faz falta, como dizia uma amiga que perdera sua irmã, e por anos a fio repetia: “Que falta ela me faz”. A falta é o vazio, e sempre falta algo, pois somos incompletos e frágeis. Ora, se sempre foi assim, por que então o século 21 seria o século do vazio?

Os tempos são de desconstrução das verdades totalizantes. O século passado viu o fim da religião como todo-poderosa, bem como os sonhos de profundas transformações sociais, gerando uma nova sociedade. Há ainda um processo de luto pela perda das ilusões de um homem novo. A humanidade parece abatida diante de seus fracassos. Talvez haja descrença na realidade desse mundo que mudou de rosto. Há um desconcerto dos pensadores diante de um futuro em constante mutação. Daí o aumento do vazio, como se fosse tudo um pouco estranho. Há grandes transformações e conquistas na genética, na biotecnologia e nanotecnologia. São constantes as inovações nas ciências e nas técnicas de toda ordem. E, diante de tudo, boa parte da população se mantém desconcertada e meio anestesiada.


 Aliás, o deprimido é um guardião de seu próprio cemitério, “guarda aí sua ilusão perdida”, 
escreveu Pontalis.

Esse é o século de incredulidade diante da desintegração da política, da economia desgovernada, numa velocidade alucinante. Estamos globalizados e fragmentados, à procura de um norte inexistente. É no meio dessa falta de rumos que as depressões crescem. Aliás, o deprimido é um guardião de seu próprio cemitério, “guarda aí sua ilusão perdida”, escreveu Pontalis. Tempos de ilusões perdidas, de perda de rumo diante da falta de caminhos para uns e de caminhos desconhecidos para outros. Nessa situação, é indispensável a poesia que propõe: criar é não se adaptar à vida como ela é. Importante é gerar uma rebelião que desafie o destino. É desse entusiasmo criativo que devemos nos alimentar para enfrentar o tédio.

Entretanto, impressionam os caminhos destrutivos, que vêm assolando mais os jovens. Estes sentem a dificuldade de encontrar espaços num mundo cada vez mais competitivo. A juventude vive a angustiante luta de inserção na economia. Muitos terminam dispondo só de seu corpo e de sua força física. Mesmo assim, há os que encontram seus rumos, ao se sentirem amparados em suas famílias. Indispensáveis também são os professores de raro talento, os humoristas que aliviam, e a arte. Essencial é a arte das parcerias, a contrapartida da exaltação do egoísmo. Logo, busquem-se caminhos para se reconciliar com a fragilidade da condição humana. Viver não só atrás dos objetos e das certezas, mas aprender a poesia das incertezas. Perceber, por exemplo, o entusiasmo com que a natureza se renova. E, assim, sonhar com novas forças para enfrentar o desafio do vazio.
--------------------
*Psicanalista
Fonte: ZH on line, 30/06/2012
Imagem da Internet

A europa em depressão

01.jpg

LUTO
Tiziana Marrone (de preto) lidera a marcha
das viúvas em Bolonha, na Itália

Aumento do número de suicídios motivados por razões econômicas levanta uma delicada questão: será que os planos de austeridades não estão indo longe demais?

Mariana Queiroz Barboza


No início de junho, o empresário Renzo Menin, 60 anos, decidiu acabar com sua vida se atirando da ponte Stocco, em Pádua, na Itália. Pouco menos de um mês antes, um homem de 53 anos, desempregado, fez o mesmo na província de Ancona, saltando da varanda do terceiro andar de sua casa. Em Salerno, Generoso Armenante, ex-segurança de 49 anos, se enforcou depois de um almoço em família. Em comum na história desses italianos, a falta de perspectiva e o sofrimento causado pela incapacidade de honrar suas dívidas, reflexo direto da crise econômica que atinge a Europa. Menin, pouco antes de ir à ponte, recebera uma notificação da Equitalia, empresa pública responsável pela cobrança dos impostos no país, de que sua dívida com o fisco chegava a 117 mil euros. O homem de Ancona, cujo nome não foi divulgado, vinha de um profundo quadro de depressão agravado pela falta de emprego e pelo fim de seu casamento. Estava sozinho em casa quando saltou da varanda, mas foi encontrado pelo próprio filho na calçada. Armenante estava sem trabalho há um ano e meio e era ameaçado de despejo. Deixou no bolso um bilhete: “Decidi acabar com minha vida porque sou um fracasso. Não posso mais viver sem trabalho”.

Desde o início de 2012, 80 pessoas tiveram suas mortes ligadas à crise econômica na Itália. Segundo o instituto de pesquisas Eures, o número de suicídios está em ascensão desde 2008, quando os primeiros efeitos do colapso financeiro começaram a surgir. Assim que o premiê Mario Monti assumiu o poder na terceira maior economia da zona do euro, no fim de 2011, uma série de medidas de austeridade entrou em vigor para reduzir os gastos públicos e assegurar a saúde financeira do governo. Os serviços públicos foram cortados e os impostos subiram. Enquanto o desemprego chegava a níveis recordes (em abril, ficou em 10,2%), o custo de vida aumentava. Com o objetivo de chamar a atenção para o drama, em maio, um grupo de viúvas de suicidas organizou uma marcha na cidade de Bolonha. A líder do grupo, Tiziana Marrone, era casada com o artesão Giuseppe Campaniello, que atirou fogo em si na calçada em frente a um escritório da Equitalia. Durante o protesto, Tiziana disse: “Não queremos terminar como a Grécia”.
02.jpg
VÍTIMAS DA ECONOMIA
Família dorme na calçada em Atenas, na Grécia: a austeridade gerada
pela recessão fez o índice de suicídios dobrar no país nos últimos três anos
Antes um dos países com o menor índice de suicídio, a Grécia viu suas taxas dobrar nos últimos três anos. O caso mais emblemático é o do aposentado Dimitris Christoulas, 77 anos, que chocou o mundo numa manhã de abril, quando disparou um tiro de pistola na cabeça. O local escolhido foi a praça Sintagma, em Atenas, bem em frente ao Parlamento. Em sua carta de despedida, Christoulas escreveu: “Não me resta nenhuma solução exceto colocar um fim decente à minha vida antes de ser forçado a procurar comida no lixo e de ser um fardo para os meus filhos”. O final trágico segue um roteiro previsível. A crise provoca mudanças no ambiente macroeconômico (aumento do desemprego, das dívidas domésticas e da desigualdade de renda), o que implica respostas políticas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), essas respostas são determinantes para o agravamento ou a suavização de fatores de risco para a saúde mental. Em geral, cada aumento de 1% no desemprego é associado a uma alta de 0,79% nos suicídios de pessoas de até 65 anos. “A austeridade está intimamente relacionada ao aumento de suicídios”, disse à ISTOÉ Paul Corcoran, diretor da Fundação Nacional para Pesquisas em Suicídio, da Irlanda. “Investir em criação de empregos e serviços sociais reduz o impacto da recessão.” Segundo o especialista, a polícia irlandesa intensificou nos últimos meses a patrulha em conhecidos locais de suicídios, como os cais de Dublin e Cork.

Relatório da OMS mostra que, na Finlândia e na Suécia, períodos de profunda recessão não aumentaram as taxas de suicídio porque os benefícios sociais foram mantidos e, em alguns casos, até subiram. A regra, porém, é outra. A crise asiática de 1997 e 1998 foi responsável por dez mil mortes em Hong Kong, no Japão e na Coreia. Nos Estados Unidos, a crise de 1929, conhecida também como Grande Depressão, levou a um aumento de 22,8% nos suicídios até 1932 – maior avanço observado num período de quatro anos, de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), de Atlanta. Alex Crosby, médico do CDC, disse à ISTOÉ que os homens, entre 25 e 64 anos, são quatro vezes mais propensos ao suicídio motivado por razões econômicas do que as mulheres. O medo de perder o emprego e o comprometimento da renda com dívidas são fatores de estresse. Os números relacionados às mortes demoram cerca de dois anos para serem oficializados, mas, pelas suas observações, Crosby afirma: “O padrão se repete na crise atual”.
03.jpg
04.jpg 
-------------------
Fonte:http://www.istoe.com.br/reportagens/218103_A+EUROPA+EM+DEPRESSAO

O Facebook não vai democratizar a sociedade', diz cientista político no Senado

 
A ideia da internet como panaceia para os males do sistema representativo é ilusória, no entender do professor de ciências políticas da Universidade Federal Fluminense (UFF) Renato Lessa.

A ideia de que a internet possa curar os males do sistema político representativo, e levar ao paraíso da democracia direta é uma ilusão, no entender do professor de filosofia política da Universidade Federal Fluminense (UFF) Renato Lessa. Ele proferiu na noite de quarta-feira (27) a sexta palestra do Fórum Senado Brasil 2012, que segue até o dia 7 de agosto no auditório do Interlegis.

"O Egito é uma prova de que não é o Facebook quem vai democratizar a sociedade" disse Lessa perante uma audiência composta na sua maioria por estudantes universitários e servidores do Senado. O conferencista justificou seu ceticismo, ao lembrar que as redes sociais virtuais são consideradas as grandes responsáveis por viabilizar as campanhas políticas contra os governos ditatoriais em muitos países do Oriente Médio e do Norte da África, no que se consagrou chamar de Primavera Árabe. Entretanto, a força mobilizadora dessas redes não logrou converter à região à democracia. No Egito, por exemplo, foi eleito um novo governo para suceder o ditador Hosni Mubarak, mas num quadro institucional ainda controlado pelas forças armadas.

As declarações de Renato Lessa a respeito do papel da internet foram dadas como contraponto à sua explanação sobre o sistema representativo e seus dilemas. Tanto no Brasil quanto em outros países tem sido usual se falar numa crise de legitimidade dos parlamentos, provocada pelo que seria o divórcio entre a vontade dos eleitores (os representados) e os políticos (representantes).

Para o professor e também diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje, o sistema representativo já nasceu com uma imperfeição: o representante não espelha o representado, como seria o caso da pintura figurativa, em que o artista busca o máximo de semelhança entre a realidade e o que desenvolve na tela. Além disso, imaginar que um indivíduo possa de fato representar os anseios de uma multidão de indivíduos é algo que está no terreno "da alucinação", falando do ponto de vista filosófico.

"A representação, desde seu início, foi caracterizada por uma imensa tensão constitutiva. Ela foi criada como uma ficção segundo a qual muitos podem se fazer presentes em poucos", conceituou. O que há, segundo o cientista, é uma relação de sentido prático, uma vez que dos antigos sistemas de democracia direta, com destaque para a assembleia grega, passou-se a modelos que conferissem direitos eleitorais a contingentes cada vez maiores de pessoas, e em sociedades que marchavam em direção ao sistema capitalista. Quando surgiu, entre os séculos 17 e 18, o sistema representativo não se encaixava no conceito contemporâneo de democracia. Em geral, o direito a voto era oligárquico, privilégio de poucas pessoas e poucos grupos.

Em certos países, o direito ao voto foi conquistado com luta, embora isso não impeça que hoje os cidadãos estejam desanimados com seus representantes. No Brasil, assinalou Lessa, a descrença também é notada, embora o direito ao voto tenha sido muito mais uma concessão ao povo.

Seja lá como for, o cientista político recomenda que a melhoria do sistema representativo venha de fora para dentro, vale dizer, do seio da sociedade para o parlamento, de modo a diminuir a distância entre a identidade política dos eleitores e dos políticos.

Lessa se preocupa com a despolitização dos cidadãos, justamente por levar a um desligamento entre representados e representantes. Em entrevista após a palestra, o professor da UFF comentou os desdobramentos dos recentes movimentos anti-corrupção, que exibiram bastante vigor nas redes sociais, e chegaram a levar manifestações às ruas, mas que até o momento não se constituíram numa força política  operante nos dois planos da política: o da praça pública e o do parlamento.

"É um movimento mais moral do que político, por vezes contra o parlamento", alertou o cientista político, ao analisar, entre outros aspectos, a tendência daqueles grupos a fugirem da estrutura de lideranças habitual e da criação ou adesão a um partido.

Quanto ao caráter dispersivo da internet, abrigo de uma miríade de interesses específicos, e distante das grandes bandeiras que mobilizavam as multidões até os anos 80, Lessa prefere não saltar do ceticismo quanto ao real poder de transformação do novo meio para um pessimismo que veria nas redes sociais mais um espaço de manipulação e esvaziamento político. "Não há computador que vá além do voto. É preciso que se crie um ambiente de discussão, mas a internet pode exercer um papel mobilizador muito interessante", ponderou.

Ao observar de forma bem humorada que "o melhor sistema político é sempre o do vizinho", Lessa disse considerar perda de tempo a procura da fórmula certa para a reforma política no Brasil. O cientista político contou sobre o grande entusiasmo de estudiosos portugueses pelas regras eleitorais brasileiras, que muitos no Brasil querem trocar pelas portuguesas, como o voto em lista.

Para ele, um dos problemas centrais no Brasil é a formação de partidos cujo objetivo é apenas a busca de votos, e não a criação de uma forte identidade com o eleitor. Isso é agravado pela falta de investimento na qualificação cívica da própria classe política e pela baixa escolaridade do eleitorado.

Por essa razão é que Lessa insiste numa pressão por mudanças com origem em movimentos políticos dotados de forte identidade. "O processo político não se esgota em eleições. É preciso uma energização cívica extrainstitucional", aconselhou.
(Agência Senado)
--------------
Fonte:  http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=83059
Imagem da Internet

Resolver o básico enigma

Uma das mais antigas perguntas que os seres humanos se fazem encontra 20 preciosas respostas nesta caixa de dois caprichados volumes. A partir de uma ideia notável do professor universitário de Filosofia Plínio Junqueira Smith, doutor pela USP e com pós-doutorado em Oxford, um dos volumes apresenta dez provas da existência de Deus, formuladas ao longo dos séculos por Aristóteles, Cícero, Sexto Empírico, Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, Descartes, Malebranche, Berkeley e Hume. O outro volume apresenta dez provas da inexistência de Deus, por Bayle, Diderot, Meslier, Kant, Feuerbach, Nietzsche e Faure, além de Sexto Empírico, Cícero e Hume, que, antecedendo Junqueira Smith, apresentaram provas tanto da existência quanto da inexistência de Deus.
Curiosamente, a prova mais antiga na coletânea da existência de Deus, do século IV a.C., não tem conteúdo religioso, mas rigorosamente racional e científico. É de autoria de Aristóteles, que constata estar tudo em permanente movimento no mundo, devendo existir, portanto, um primeiro motor que dá origem a todo esse movimento. A esse primeiro motor, Aristóteles intitula Deus. Já Santo Anselmo, no século XI, defende a tese de que, no universo, deve existir algo maior do que tudo, não sendo possível conceber alguma coisa maior do que essa outra que é a maior. Esse maior do que tudo é Deus.
É curioso que as provas da inexistência de Deus sejam todas filosóficas, não havendo nenhuma proveniente da observação do mundo material, como fez Aristóteles para provar que Deus existe. As provas mais importantes da inexistência de Deus são, significativamente, oriundas do Iluminismo do século XVIII. Diderot postula que um Deus perfeito não poderia ter criado um mundo tão imperfeito. Já Kant defende que Deus é apenas um postulado da razão pura, uma simples ideia, não podendo de modo nenhum ser afirmada a sua existência fora do pensamento puro. Fazendo um balanço dos dois tipos de respostas, o que se pode dizer é que, para quem tem fé, Deus existe. Para quem não tem fé, Deus não existe. Não se pode provar que Deus existe. Aquilo que podemos provar existente, mais cedo ou mais tarde será algo que poderemos mudar por nossas ações sobre esse algo, e isso inequivocamente mostraria que esse algo não é Deus. Por outro lado, também não podemos provar que Deus não existe, mesmo porque pode haver seres mais inteligentes do que nós em planetas de outras galáxias, que odem ser onipotentes, oniscientes e, até mesmo, onipresentes.

Dez provas da existência de Deus
Org. Plínio Junqueira Smith, Alameda, 304 págs., R$ 40
Dez provas da inexistência de Deus
Org. Plínio Junqueira Smith, Alameda, 344 págs., R$ 45
--------------------
 Texto de  Renato Pompeu
Fonte:  http://www.cartacapital.com.br/cultura/resolver-o-basico-enigma/