domingo, 30 de setembro de 2012

A cruzada de um sociólogo contra a mistificação de Jorge Luis Borges

Entrevista
Fervores de Buenos Aires
PAULO WERNECK

RESUMO Especialista na sociologia da intelectualidade brasileira, Sergio Miceli lança livro que questiona a imagem de Borges como escritor universal, apolítico e infenso ao contexto histórico. Em entrevista, ele desenvolve aspectos do argumento e comenta as condições de produção intelectual no Brasil e na Argentina.

Trinta E quatro anos depois de ter causado celeuma com uma pesquisa que explicitou as relações de Carlos Drummond de Andrade e de sua geração intelectual com o poder, o sociólogo Sergio Miceli volta ao vespeiro político-letrado com "Vanguardas em Retrocesso" [Companhia das Letras, 232 págs., R$ 49,50]. A coletânea reúne 11 anos de leituras comparativas sobre artistas e escritores argentinos e brasileiros dos anos 1920, tendo o mestre-sala Jorge Luis Borges na comissão de frente.
Ao pesquisar os escritos de juventude que Borges expurgou de sua obra completa, Miceli procura ancorar na política e na história argentina dos anos 20 uma obra que a crítica (não só local) buscou isolar do contexto sociopolítico, conferindo-lhe um status que Miceli chama de "extraterrestre".
Ao reiterar o nacionalismo de um autor que se esforçou para apagar os contornos nacionais de sua obra, Miceli faz o que chama de "crime de lesa-majestade" e já desperta reações, não só na Argentina. Seus críticos veem no trabalho uma tentativa de subordinar a análise "puramente literária" ao contexto sociológico. Miceli contra-argumenta: para ele, é "ridículo" querer ler a poesia de Drummond como pura metafísico.
Publicado ao mesmo tempo na Argentina e no Brasil, com pequenas diferenças na montagem, o livro será lançado amanhã, às 18h30, na Livraria da Vila do Shopping Higienópolis, em debate com intelectuais brasileiros e argentinos. Entre seus próximos projetos estão novos ensaios portenhos, mas sobre os anos 30, quando se dá o recuo conservador de Borges, e um livro sobre Drummond. "Ele que me aguarde", alerta Miceli. 

****

Folha - O que significa o título "Vanguardas em Retrocesso"?
Sergio Miceli - Uma gente, tanto letrados como artistas, que alardeava que estava inovando formalmente -com novas linguagens, sintaxe do povo, língua falada, antilusitanismo, a importância do modelo francês-, mas, do ponto de vista político, era para lá de retrógrada. Porque era ligada ao sistema oligárquico anterior, num sistema de dominação de que nem se dava conta.
A Beatriz Sarlo tem um trabalho que mostra a grande coisa que [a escritora] Victoria Ocampo fez: ela era uma tradutora. A revista "Sur" era uma espécie de "Serrote" [revista de ensaios do Instituto Moreira Salles] dos anos 30: achava que era vanguarda porque traduzia autores franceses de quarta e de quinta categoria.
Com o livro, eu digo: vamos acabar com o relato triunfalista de que o modernismo é só um avanço. Também é um retrocesso, o horizonte político estava toldado por essa interpretação, que eles não conseguiam fazer, do que estava se modificando em termos políticos.
Nos anos 30, momento de baixa inclusive no impacto deles na cena cultural local, tanto lá como aqui o retrocesso político é mais dramático ainda. Se você ler a correspondência do Mário de Andrade em 1932, com Bandeira, Drummond, é decepcionante a ingenuidade política dele, ele não está atinando com o que acontece no país. 

Mas havia alternativa? Tinha como atinar naquele momento?
Podia não ter alternativa, mas isso teve consequências para a obra. Quando escrevo que eles entoam o canto do cisne da oligarquia, quero dizer: eles estão inovando no linguajar, mas têm muito preconceito político, muita interpretação equivocada do que está acontecendo socialmente, da nova coalizão vitoriosa em 30. Lá e aqui, é parecidíssimo, todos viram antigoverno central. Por exemplo, a reação de Mário e Oswald de Andrade ao romance social nordestino. Eles destratam, o Oswald os chama de "búfalos do Nordeste".
Não atinaram com o que estava acontecendo: São Paulo tinha perdido o controle do sistema político e isso tinha um preço cultural.
Quando a gente discute os autores fora desse contexto, não entende nada, não entende Drummond, não entende Bandeira. Drummond começa a vida no Partido Republicano Mineiro como um homem da oligarquia, com um posição na Imprensa Oficial, trabalha com o Capanema como secretário de Estado. Acho absolutamente ridículo ler Drummond como se fosse um metafísico. Essa ideia de ler "A Rosa do Povo" ou "Claro Enigma" fora do contexto político brasileiro ou internacional é inadmissível. Mas isso se mantém, as pessoas acreditam nisso, acham que é possível. 

Você aplica o mesmo método que utilizou nos anos 70, para "objetivar" a geração literária de Drummond, tendo despertado grande celeuma. Houve reação semelhante na Argentina de Borges?
Borges é particularmente sensível. Ele é o grande mistagogo, o homem que detém o mistério dessa escrita imaculada. Mexer com o cara que é o centro nervoso da autoimagem argentina é complicado. Existe também toda uma ortodoxia interpretativa sobre ele, na qual esse meu trabalho é lesa-majestade pura, é sacrilégio, embora haja pessoas na crítica literária argentina que remaram contra a corrente e escreveram obras importantes contra Borges.
Na tradição de uma crítica literária pouco sociológica como a argentina, os textos desfrutam de um estatuto de extraterritorialidade. São nuvens mágicas, estão infundidos pela magia. Os argentinos falam de textos como se fossem pessoas vivas. Por que essa maluquice? No Brasil, escreveu-se "Raízes do Brasil", "Casa-Grande & Senzala", de gente que já tinha formação como cientista social. No Brasil, todo mundo está mais acostumado a isso. 

Em termos comparativos, como vê as condições de produção intelectual lá e aqui hoje?
Lá eles têm menos recursos, menos gente, todos têm dois, três empregos, ganham mal, a coisa é mais acanhada do ponto de vista institucional, mas eles mobilizam muita gente, têm uma atividade intelectual muito intensa.
Aqui tem muito dinheiro para você fazer o que quiser, tem mais autonomia, tem uma hierarquia na academia, tem uma elite que conseguiu condições excepcionais para fazer as coisas. Mas isso é também uma espécie de servidão. A inserção nesse mundo tão protegido da academia, poder ter um emprego só (falo de uma elite), tem um lado de servidão e de cegueira para uma porção de coisas. É preciso refletir sobre as novas condições de produção dessa geração. 

E quanto à relação com o governo? A intelectualidade na Argentina está basicamente alinhada ao kirchnerismo...
Não está. Tem a Beatriz... 

Ela é uma voz solitária.
Não é tão solitária, tem gente que pensa como ela. Mas eles estão numa situação mais complicada do ponto de vista econômico, social. Aqui tem esse mensalão, que é um enrosco. Eu acho que é complicado e dilacerante.
Se não houvesse [o julgamento] seria trágico: como ficaria a Justiça neste país? Seria ridículo. Mas, da forma que está se dando, se virar uma vitória da direita, também não acho legal. O lulismo talvez esteja se tornando essa linha divisória entre os intelectuais. 

 ***

Polêmica é bem-vinda, mas força interpretação

 
DAMIÁN TABAROVSKY

Em seu diário sobre Borges, Bioy Casares anotou, em 1949: "Borges contou a Martínez Estrada que recebemos ameaças anônimas por causa da 'Antología Poética'. Martínez Estrada disse a ele que já se sabe que foram escritas por Manuel Gálvez ou Ramón Doll".
A anedota expressa bem o clima da época, e mais ainda o dos anos 1920 e 30. Gálvez e Doll são alguns dos mais importantes representantes do nacionalismo intelectual argentino, com o qual Borges e Victoria Ocampo, na juventude, travaram relações, amizades, intercâmbios e, é claro, conflitos.
O nacionalismo cultural era uma forte tendência literária e política, à qual o jovem Borges -nascido em 1899- não podia ficar alheio. Em "Ensayos Porteños - Borges, el Nacionalismo y las Vanguardias", recém-publicado pela editora da Universidade Nacional de Quilmes, Sergio Miceli se esforça em contextualizar essa relação.
Este livro agudo, que vai além do próprio Borges, desmonta certa tentação -ou lugar-comum- de ler Borges como autor universal, internacional, apolítico, distante dos problemas nacionais e do contexto sociocultural argentino.
Não é o primeiro a ir nessa direção, já explorada por Beatriz Sarlo, entre outros, mas é bem-vindo por contextualizar a trama nacional que atravessa a obra de Borges. Seria, contudo, um erro -no qual Miceli às vezes cai- supor que o Borges dos anos 1920 e 30 foi, quase, um escritor nacionalista.
Mesmo sob risco de forçar o viés nacionalista (em frases como "Borges se afirmou como um nacionalista cultural com rasgos típicos de crítico literário competente"), o livro é interessante naquilo que tem de provocador, de polêmico.
Afinal, o que é um bom crítico literário, um ensaísta cultural, senão alguém que força uma interpretação, que a leva ao extremo? A moderação não é o que caracteriza Miceli, e isso sempre é bem-vindo.
Se Borges não foi nacionalista no sentido estrito, quer dizer que não foi católico, não participou ativamente do golpe de Estado de 1930, não apoiou o fascismo, não foi antissemita e não combateu o cosmopolitismo; esteve comprometido com o clima das primeiras décadas do século 20, no qual a busca pelo nacional esteve presente como nenhuma outra.
Borges ocupou um lugar preponderante nesse debate que Miceli, com rigor intelectual, põe em questão -debate que mantém uma surpreendente e necessária atualidade.
(tradução: PW)
------------------------
Fonte: Folha on line, 29/09/2012
Imagem da Internet

A “boa” morte

 Diana Lichtenstein Corso*
 
Perdi uma amiga, partiu antes de ficar velha. Ela deixa marcas importantes em sua área profissional, uma legião de amigos órfãos de sua presença, uma vida plena, interrompida por um câncer fulminante. Mal teve tempo de passar pelas torturas da doença, viveu seus últimos tempos ignorante do mal que implacavelmente a corroía. Graças a isso, viajou, estudou no Exterior e se divertiu. Sentia vagos mal-estares estomacais, que atribuía à alimentação. Quando seu trágico destino foi revelado, já era tarde para qualquer providência, que, se tomada antes, tampouco seria diferente. Ela teve uma, sempre indesejável, boa morte. Se é possível desejar algo nesse território, também gostaria de partir assim, tendo tido o direito de viver plenamente até o fim, como ela.

Nesse sentido, celebro a resolução do Conselho Federal de Medicina, que se pronunciou sobre os termos do “Testamento Vital”. Trata-se do direito de deixar estabelecidos os limites a respeito dos procedimentos aos quais não desejamos ser submetidos na fase terminal. A morte deveria pertencer a seu protagonista, mas infelizmente, não existe momento de maior entrega.

Duvido que exista alguém que não tenha fantasiado sobre seu enterro. Quem não gostaria de ser uma mosca para assistir à própria despedida? Na derradeira celebração, estaríamos em condições de avaliar a veracidade das lágrimas, estimar nossa importância para os outros. É também oportunidade de, por que não, deixá-los culpados, se por acaso isso nos satisfaz. Dizem que a mãe judia vai mandar gravar em sua lápide: “Eu disse que não estava me sentindo bem”. No enterro, nosso epitáfio está na boca de todos, cada presente oferece uma frase que nos definia, ou uma memória marcante do convívio, dirá em que lhe faremos falta. Enfim, parece o momento em que nossas maiores perguntas estarão por fim respondidas e não estaremos lá para ouvir. Pena.

O problema é que até esse momento, em que nosso ser transforma-se nas palavras dos que permanecem vivos, precisamos passar pela dura transição de morrer. Morrer costuma doer. Dói sentir-se esvair, é absurdamente triste ver-se partir, dói o corpo que colapsa. Tenho mais medo de morrer do que da morte. Talvez, se minha amiga tivesse tido tempo de escrever seu testamento vital, não escolheria outros termos para sua partida.

Há pouco, o mundo assistiu chocado ao suicídio do diretor de cinema Tony Scott, que pulou de uma ponte, dizem que após constatar que possuía uma doença incurável. Abisma-me semelhante ousadia, não só relativa ao ato em si, mas também de assumir essa posição frente aos seres queridos. Morrer é como sair de uma festa, cedo é constrangedor, tarde é melancólico, buscamos a hora certa e sempre ficamos com a sensação de ter errado o momento. Nunca faria um ato como o de Scott, pois o efeito dramático sobre os que ficam é avassalador, também é preciso zelar pela dor deles. Quando chegar a hora, só peço que me poupem de torturas desnecessárias e me deixem partir. Essa é minha vontade e creio que a de tantos.
----------------------------
dianamcorso@gmail.com 
*Psicanalista
Fonte: ZH on line, 30/09/2012
Imagem da Internet

Luc Ferry: “A felicidade não existe. Só a serenidade”

Entrevista

Luc Ferry em seu escritório em Paris

Luc Ferry em seu escritório em Paris (Bassignac Gilles/Gamma)

Para o filósofo francês, todas as grandes filosofias tentaram fazer com que os homens vencessem seus medos. Hoje, a ecologia se baseia na proliferação do medo

Branca Nunes
Todas as filosofias, assim como as religiões, querem a mesma coisa: salvar os homens do medo que os impede de viver bem. Só que as grandes filosofias são as doutrinas da salvação sem Deus e sem a fé.
A popularidade do filósofo francês Luc Ferry, 60 anos, também é alicerçada na originalidade de suas frases de efeito. Por exemplo: “A felicidade não existe, o que existe é a serenidade”. Ou: “Todas as grandes filosofias e religiões tentaram fazer com que os homens vencessem seus medos. Hoje, a ecologia política se baseia na proliferação do medo”. Lançada em 2006, Aprender a viver, sua obra de maior sucesso, vendeu mais de 700.000 exemplares em dezenas de idiomas. Entre seus últimos livros estão Famílias, amo vocês e A tentação do cristianismo. Ministro da Educação da França de 2002 a 2004, foi o idealizador da lei que proibiu o uso de véu por estudantes muçulmanas nas escolas públicas francesas. Alto, cabelos negros e ondulados, Ferry expôs, entre uma tragada e outra, um pouco da teoria que mistura filosofia, psicanálise e irresistíveis pitadas de autoajuda.

Qual é o maior obstáculo à felicidade? A felicidade não existe. Temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação. Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

O medo da morte é o maior obstáculo para o homem? Existem basicamente três grandes medos. 
O primeiro é a timidez. Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante, ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. 
O segundo medo são as fobias. Medo do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. 
O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo. Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está baseada na doutrina da serenidade.

Além das fobias conhecidas, existem as modernas? Vivemos a sociedade do medo. Aos três grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio, do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais. A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e útil. Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da sabedoria. É o que os ecologistas chamam de princípio da precaução. Isso não quer dizer que os ecologistas estejam errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há também muita mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.

Qual a diferença entre a angústia vista pela psicanálise e pela filosofia? A filosofia e a psicanálise lidam com angústias distintas. A psicanálise luta contra a angústia patológica, o conflito entre o desejo e a moral, uma tentativa de reconciliar o indivíduo consigo próprio. No entanto, mesmo se atingíssemos uma perfeita saúde mental, depois de 20 anos de análise bem sucedida, restaria a angústia metafísica. Aí começa a filosofia, que ensina a alcançar a sabedoria no sentido da serenidade, não da felicidade.

O que há na filosofia que a religião não tem? Tanto a grande religião quanto a grande filosofia pretendem fazer com que as pessoas deixem de ter medo. Essencialmente, o que a religião diz é que, se alguém tem fé, se acredita em Deus, não precisa ter medo. Não precisa, por exemplo, temer a morte. As religiões são a doutrina da salvação pela fé. Todas as filosofias querem a mesma coisa: salvar os homens do medo que os impede de viver bem. Só que as grandes filosofias são as doutrinas da salvação sem Deus e sem a fé.
 
  "O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com o mundo."

Com a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo? A primeira grande resposta a essa pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro. Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da guerra. A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz, do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado, ou ao futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca. Quando retorna à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver no presente. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se eu me separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu. O futuro é uma ilusão.

Por que o título do seu livro é Aprender a viver? Houve uma mudança no ensino da filosofia, uma guinada da prática para o discurso decorrente da vitória do cristianismo sobre o mundo ocidental. A partir da Idade Média a religião assume um papel mais importante que a filosofia. Ela detém o monopólio do que é a vida beata, do que é a salvação, e proíbe a filosofia de cuidar dessa questão. É aí que a filosofia se torna apenas um discurso, uma análise de conceitos e não mais uma prática que tem por objetivo ensinar a viver. Escolhi o título Aprender a viver para difundir a ideia de que a filosofia não é apenas um discurso, mas um aprendizado da vida. Resumidamente, a filosofia é uma concorrente da religião e da psicanálise.

O ensino da filosofia deveria ser obrigatório nas escolas? Tudo depende da forma como ensinamos. Infelizmente, a maior parte do tempo, ao menos na França, reduzimos a filosofia a um tipo de instrução civil. Apresentamos aos alunos questões sem respostas possíveis: “O que é o belo?”, “o que é o bem?”, “o que é o tempo?”. Isso não tem nada a ver com a filosofia. É uma imbecilidade, uma estupidez. É melhor não ensinar filosofia do que ensinar dessa forma. Se um dia quisermos que as crianças pensem por si próprias, precisamos ensinar a história de grandes visões do mundo. Contar, por exemplo, que na filosofia existem cinco grandes respostas para a pergunta “o que é a vida boa”: a grega, a cristã, a do humanismo moderno, a de pensadores como Nietzsche e a contemporânea. Isso é apaixonante. A filosofia não consiste em tentar construir um argumento para responder a uma questão absurda. A filosofia é aprender a viver.

Como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas? Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem em uma coleira para levá-lo para passear como se fosse um cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com o mundo.

Como ministro da Educação, o senhor provocou controvérsia ao banir o uso de véu pelas estudantes muçulmanas e do solidéu pelos judeus nas escolas públicas. O que o senhor pensa hoje dessa polêmica? Na França, a polêmica não foi tão grande quanto nos outros países que não entenderam a nossa posição. Temos a maior comunidade judaica do mundo, depois de Israel e Nova York, assim como temos a maior comunidade muçulmana da Europa. Depois da segunda intifada (2000), que aguçou o conflito entre israelenses e palestinos, houve um aumento enorme de atos violentos dentro das escolas. As crianças muçulmanas se sentiam palestinas, embora fossem francesas. E os judeus retrucavam como sendo israelenses. Mesmo sendo, antes de tudo, franceses. Limitei-me a dizer que, no ensino fundamental, até os 16 anos, todos os sinais religiosos estavam proibidos. Mão só o véu islâmico, mas o quipá e a cruz. A decisão se limitou às crianças, não atingiu as ruas, os adultos. O professor não precisa saber qual é a religião dos alunos, se são judeus, católicos ou muçulmanos. Ao mesmo tempo, temos que lutar pela libertação das nossas mulheres e proteger nossas crianças. O islamismo radical é o nazismo dos nossos dias.

Por que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães? Tanto no caso grego, quanto no alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega. Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia protestante de Lutero. Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”, “eu desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto do protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca toda a filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram momentos muito importantes na religião. Você não tem isso nos Estados Unidos, nem na França. Ao contrário do que pensam os franceses, Descartes não é um bom filósofo.
----------------
Fonte:  http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/luc-ferry-%E2%80%9Ca-felicidade-nao-existe-o-que-existe-e-a-serenidade%E2%80%9D

Minha sina

<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Juremir Machado da Silva*

Quando eu nasci, não veio anjo algum me dizer para ser "gauche" na vida. Na época, os anjos não viviam à sombra nem falavam francês. Também não liam Carlos Drummond de Andrade. Diante dessa indiferença, tive de sair rolando por aí. Suspeito que os anjos não se interessavam por Palomas. Essa falta de orientação deve ter marcado a minha vida. Liderei a minha primeira insubordinação com 6 anos de idade, em 1968, contra ter de cantar o Hino Nacional em posição de sentido. Perseguidos, três coleguinhas e eu buscamos refúgio em cima de uma bergamoteira, de onde saímos direto para a tortura, atrás da porta, no grão de milho. Que trauma!

Continuo assim. Por falta de anjo, ando por aí criticando mitos, polemizando, comprando brigas. Soube que seria assim quando, num segundo ato, entendi que jamais aprenderia a marchar. O professor grudava em mim, no 7 de Setembro, e gritava: "Está com o passo errado". O instrutor da parada escolar tentou me salvar de ser torto, mas eu já estava condenado. Não acredito em prêmios e distinções. Espontâneos, não recuso. Digo o que penso sempre que possível. Pago por isso. Recebo mensagens de consolo. Fico rindo. Aqueles que me consolam, acreditam piamente no meu sofrimento. Aqueles que me criticam, acreditam piamente que sou invejoso. Não quero decepcionar: sou o maior invejoso que já conheci. Sofro como Paulo Coelho. Afinal, ele e eu somos os maiores intelectuais em atividade no Brasil. E os mais incompreendidos. Paulo Coelho deve ter anjos da guarda.

Eu não tenho. Nem aceitaria proteção. Qual é o meu problema? A incapacidade de aceitar a eterna supremacia do passado sobre o presente. Não tenho dificuldade em achar que Maradona foi melhor que Pelé. Menos ainda de achar que Messi é melhor que os dois. Não encontro razões objetivas para medir. Também não tenho dificuldades para achar que existam hoje escritores melhores que Machado de Assis ou Balzac. Borges foi melhor que Machado de Assis. Gabriel García Márquez é tão bom quanto Balzac. Essa adoração do passado é um efeito, uma ilusão de ótica, uma distorção provocada pelo fator "clássico", um mecanismo de realimentação, feito uma palavra que, por ser mais procurada num motor de busca, acaba por se tornar ainda mais procurada, aparecendo sempre em primeiro lugar.

Minha regra é torta: pode-se saber o que é ruim. Não se pode definir categoricamente, entre duas coisas muito boas, o que é melhor. Se penso assim é culpa do anjo, que não estava lá. Essa falta afetou o meu olhar. Examino os jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro: que provincianismo patético! Que pobreza intelectual! Que falta de autonomia estética! Dizem sempre a mesma coisa. Toda semana, uma resenha de Machado de Assis. Chego a pensar que ele ressuscitou. Ficou imaginando o que teria acontecido comigo se um anjo tivesse aparecido no meu nascimento para me mandar ser torto na vida. Como isso não aconteceu, fiquei idiota, com cérebro de ervilha. Nada tem o meu respeito absoluto. Culpa do tal anjo.
--------------------
* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor.
juremir@correiodopovo.com.br
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER 
Fonte: Correio do Povo on line, 29/09/2012

João Grilo era feliz e não sabia

GAUDÊNCIO TORQUATO*

"Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher." O astuto João Grilo podia recitar versos destrambelhados, fazer traquinagens com o grande amigo Chicó e arrematar impressões com a maior inocência, como a que fez para Manuel, o Leão de Judá, o filho de David, o Jesus negro que pontifica na peça O Auto da Compadecida: "O senhor é Jesus? (...) Aquele a quem chamavam Cristo? (...) Não é lhe faltando o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado". Grilo jamais podia adivinhar que suas lorotas poderiam, um dia, em vez de gostosas gargalhadas, causar sérios dissabores. A ele e ao pai que o gerou: o teatrólogo, o advogado, o cancioneiro, o romancista da Academia Brasileira de Letras, o genial paraibano Ariano Suassuna.
Falta pouco para o grupo que se autointitula defensor do conceito "politicamente correto" jogar o autor de A Pedra do Reino na masmorra da censura, para fazer companhia a um dos mais influentes escritores brasileiros, Monteiro Lobato. Como se sabe, este autor foi execrado por comparar Tia Anastácia, personagem de Caçadas de Pedrinho, a uma "macaca de carvão" e, mais recentemente, porque seu conto Negrinha teria conteúdo racista, na visão de uma entidade de advocacia racial e ambiental. Ora, estudiosos consideram o conto um libelo contra a discriminação.
A polêmica sobre o uso do lexema negro na literatura se expande na esteira do debate sobre direitos humanos e combate às variadas formas de discriminação. Acontece que as lutas pela igualdade têm jogado na vala comum da discriminação manifestações de todo tipo, mesmo as que retratam um ciclo histórico. É o caso da obra de Monteiro Lobato, que nasceu seis anos antes da abolição da escravatura e vivenciou, até na fase de escritor, a segregação de escravos. Não há como imaginar personagens que tanto encantaram crianças e adultos - Emília, Pedrinho, Saci-Pererê, Visconde de Sabugosa, Tia Anastácia - adotando, ao final do século 19, a expressão que as patrulhas acham corretas. Quem quiser associar Lobato à discriminação certamente vai forçar a barra para encontrar o ato de ofício, como se diz nestes tempos de julgamento do mensalão. É uma questão de interpretação.
Ele retratava um tempo em que a negritude era apresentada de maneira pejorativa. Censurar a expressão de uma época é apagar costumes, queimar tradições. Contextualizar para os alunos de hoje, por meio de anexos e notas explicativas, obras literárias do passado é passar recibo de ignorância. Sinal de barbárie cultural. Para que servem professores? Não são eles que ensinam, interpretam e analisam as condições dos ciclos históricos?
Veja-se esta frase do padre Anchieta sobre os índios: "Para esse gênero de gente, não há melhor pregação do que espada e vara de ferro". Isso tira seu mérito de catequizador? Não sem razão Joaquim Nabuco, o abolicionista, se indignava com os sacerdotes que possuíam escravos: "Nenhum padre nunca tentou impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas". Que tapume se pode se colocar nas páginas de O Mulato (1881), de Aluísio Azevedo, onde se lê: "Se você viesse a ter netos, queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina?". E como apagar trechos de Histórias e Sonhos, de Lima Barreto, que registra: "Não julguei que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo feiticeiro". Barreto é o mesmo que escreveu Clara dos Anjos (1922), libelo contra o preconceito que conta a história de uma mulata traída e sofrida por causa da cor. Quanta estultice prendê-lo nos grilhões da discriminação.
Nessa toada, passamos por Bernardo Guimarães. Em sua Escrava Isaura (1875) há trechos que hoje estariam no índex das proibições: "Não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme como a mais vil das negras (...)?". Aportamos na Bahia de Jorge Amado. Em Capitães de Areia descreve João Grande: "Negro de 13 anos, forte e o mais alto de todos. Tinha pouca inteligência, mas era temido e bondoso". Pelo andar da carruagem, os patrulheiros de plantão não se convencem nem mesmo com a beleza poética do canto de Castro Alves. Enxergariam palavras politicamente incorretas do tipo: "E quando a negra insônia te devora" ou "corre nas veias negras desse mármore não sei que sangue vil de messalina". Imaginem se descobrirem o jesuíta André João Antonil, autor de Cultura e Opulência do Brasil (1711), fazendo esta consideração: "Os mulatos e as mulatas são fonte de todos os vícios do Brasil".
Pode-se atribuir ao celebrado Fernando Pessoa a pecha de machista? Eis o que pensava: "O espírito feminino é mutilado e inferior; o verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de mulher". É possível enxergar Shakespeare acorrentado nos porões da censura? Pois em Otelo se lê que Brabâncio deixara a filha livre para escolher o marido que mais lhe agradasse, mas descobriu que, em vez de um homem da classe senatorial, a donzela escolhera um mouro para se casar. Decidiu, então, procurar Otelo (o mouro) para matá-lo. O roteiro cabe na enciclopédia dos patrulheiros.
Pergunta de pé de texto: por que a tentativa de mudar a História? Simples. O entendimento dessa turma é que chegou a hora do acerto final. Urge refazer a História do passado com os verbos (e as verbas) do presente. Garantir que o ontem não existiu. Eis aí a pontinha da Revolução Cultural que bu(r)rocratas tentam engendrar desde 2004, quando criaram uma cartilha com 96 expressões que consideraram politicamente incorretas. Os "inventores" da nova cultura poderiam até tentar mudar o Código de Hamurabi, escrito por volta de 1700 a. C. Vão esbarrar numa montanha de preconceitos.
--------------------
*JORNALISTA; PROFESSOR TITULAR DA USP; É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO. TWITTER: @GAUDTORQUATO - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 30/09/2012
Imagens da Internet

A democracia tutelar

CLAUDIO DE MOURA CASTRO*
 
 
Muitos cabeleireiros de Curitiba preferiram ser autônomos, alugando espaço físico nos salões de beleza - como se fosse um box em mercadinho. Assim têm ampla liberdade e trabalham nas horas que mais lhes convêm. O sindicato da categoria e a Delegacia do Trabalho aprovam o arranjo. Todos felizes? Não! Para o Ministério Público, precisam de carteira assinada, pois são explorados pelos salões. Em protesto, 600 deles saíram às ruas, afirmando pagarem seus impostos, não serem explorados e ganharem muito bem, obrigado. Nossa Constituição manda tutelar menores, incapazes e índios, mas não cabeleireiros prósperos que vão às ruas renegar a intromissão do Estado.
Nas ditaduras as pessoas são oprimidas e privadas de suas liberdades pessoais. Por oposição imediata, persiste no imaginário popular a ideia de que nas democracias as liberdades são asseguradas, pelo simples fato de ser o povo a decidir como quer viver, e não o ditador de plantão.
O mundo, contudo, é mais complicado do que isso. No período de consolidação da independência americana, no início do século 19, muito se discutiu sobre o assunto. Temiam-se os riscos de opressão por parte das minorias ou da maioria, mesmo na democracia. Ou seja, democracia não garantiria liberdade. Nos seus Federalist Papers, James Madison advertiu: "É de grande importância numa República resguardar a sociedade da opressão de seus dirigentes, mas também resguardar alguns segmentos da sociedade contra a injustiça imposta por outros".
Como são proféticas essas palavras na nossa titubeante democracia! Convivemos com um pipocar de pequenos e grandes atentados contra as liberdades.
Nossas cabeças coletivas herdaram um DNA autoritário. Na ditadura aparece como o "eu prendo e arrebento". E, como temia Madison, na nossa democracia se revela fácil ludibriar a sociedade e cercear insidiosamente as liberdades de cada um.
Reconheçamos: na democracia não pode tudo. Não pode matar, não pode roubar e não pode muito mais. Corta-se a liberdade se está em jogo o bem comum. Mas o limite é tênue e controverso. A mensagem deste ensaio é que já fomos longe demais nesses assaltos à liberdade e há o risco de irmos mais longe ainda, embalados pelo atávico "não pode".
Nossos funcionários públicos nem sempre se veem como servidores. Irrompe aqui e acolá sua alma secreta de pequenos imperadores do quarteirão. Com que prazer e soberba, mas sem razões convincentes, os guardas criam monumentais congestionamentos de trânsito!
Para lutar contra a corrupção criam-se regras que amedrontam os funcionários com processos e lhes tiram a coragem para usar o bom senso. Vi um caso grotesco de uma escola que precisava mandar um ofício à secretaria estadual, toda semana, a fim de que o padre fosse autorizado a rezar, na escola, a mesma missa de sempre. Obter um alvará ou um "habite-se" é um pesadelo - em que pese vivermos num país de infindáveis favelas e invasões. Para alugar uma simples van é preciso mandar, de véspera, a lista com o nome dos passageiros e o número das suas identidades. E por que proibir as farmácias de vender picolé?
"Tempo é dinheiro" pode soar americano demais para alguns. Mas as perdas de tempo para lidar com os tentáculos da burocracia muito contribuem para a baixa produtividade da economia. Quando tudo é proibido ou tortuoso, fenecem os negócios, floresce a indústria dos despachantes e se infla o nível de emprego dos advogados.
Por que cassar o direito de fazer besteiras que só prejudicam o próprio autor? Num país tropical, o Estado não permite que motociclistas andem com a viseira levantada - aliás, os próprios motociclistas da polícia não cumprem essa regra. Óculos para motos? Somente o modelo aprovado.
Madison assustava-se com a tirania das minorias. Aqui vemos os grupos e lobbies se aninharem nas rugosidades do Estado para conseguirem privilégios e reservas de mercado. Os sindicatos defendem seus interesses privados confortavelmente encastelando seus membros na burocracia pública - só em conselhos já são 30 mil sindicalistas. Sociólogos e filósofos protegem seus mercados com leis que obrigam a ensinar os ofícios deles. Curiosamente, a lei determina a carga horária mínima para Sociologia, mas nada diz sobre Português e Matemática. Negros e índios querem matérias sobre seus problemas. Por que as faculdades privadas levam mais de dez anos para virar universidades e as públicas são criadas do dia para a noite, sem as mínimas condições de funcionamento? Diploma para jornalista? Até os astrólogos já tentaram criar reserva de mercado. É a tirania das minorias.
Para podar uma árvore dentro do seu próprio quintal é preciso obter autorização dos príncipes do meio ambiente. Para fazer um laguinho no sítio exigem-se os mesmos papéis que foram demandados para a represa de Três Marias. Já ouvi que a melhor solução é fazer o laguinho escondido e depois pedir ao vizinho que denuncie. Vem então o fiscal, autua, multa e regulariza. No Paraná, para compensar séculos de devastação, cortar o seu querido pinheiro virou crime medonho. Na prática, quando os pinheirinhos começam a empinar, são todos rapidamente cortados, antes que chamem a atenção. Depois de grandes, nem pensar, mesmo que atrapalhem seriamente. Cria-se o pesadelo do "não pode" e pouco ou nada ganha o meio ambiente.
O que fazer? O remédio é óbvio e difícil. A sociedade brasileira precisa dar-se conta de que é pelo Estado, ou por meio dele, que são corroídas as liberdades tão preciosas e que tanto nos custaram a alcançar. É preciso pressionar os representantes do povo para que resistam, em vez de cederem às tramoias de minorias que se querem locupletar. É indispensável protestar contra os burocratas que injustificadamente tolhem as nossas liberdades.
-----------------------
*DOUTOR EM ECONOMIA; É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 30/09/2012
Imagem da Internet

Democracia e golpismo

MARIA CELINA D'ARAUJO*
 
 

Cientista política reflete sobre as avaliações em andamento dos fatos políticos que redundaram no que se chamou 'mensalão'

Desde que o País se redemocratizou, a importância do conhecimento dos cientistas políticos cresceu e sua presença na mídia também se tornou mais constante, especialmente em momentos eleitorais ou de possíveis crises políticas. Passaram a estudar com mais rigor e mais recursos metodológicos o comportamento político do eleitor, o desempenho dos partidos nas urnas e no Congresso, impactos do sistema eleitoral sobre o sistema partidário, geografia do voto, possíveis reformas eleitorais e partidárias e seus impactos na qualidade da representação, etc. Temas não faltam e creio que estamos fazendo isso muito bem. No entanto, quando se trata de fazer previsões, os cientistas políticos, assim como os economistas, passam por situações vexatórias e humilhantes. Isso é parte do ofício das disciplinas que lidam diretamente com as resultantes da ação humana que são, por definição, imprevisíveis.
A ciência política tem como objeto o poder, que, como diz Maquiavel, é tema referido à ação humana: "A política é coisa dos homens como eles são", ou seja, capazes de patifarias e ações generosas conforme suas habilidades para lidar com circunstâncias, adversidades, desejos de poder e valores.
Dito isso, quero refletir sobre a avaliação em torno dos fatos políticos que redundaram no que se chamou mensalão. Não faço previsões nem ilações de causa e efeito e não ouso falar do desempenho do Judiciário. Metodologicamente limitada a refletir a posteriori, procuro entender argumentos usados por meus colegas e analistas políticos em geral que se posicionam de maneira favorável ao governo do ex-presidente Lula da Silva e ao PT. Entre eles, destaco seis.
Lula não sabia. Num primeiro momento houve o argumento quase unânime de que, se fatos estranhos ocorreram no financiamento da campanha do PT em 2002, o presidente deveria ser poupado, pois tudo teria se passado à sua revelia. A começar pelo denunciante, Roberto Jefferson, o presidente era pessoa honrada e deveria ser deixada à margem desses fatos. Em entrevista ao Aliás em 10 de julho de 2005, defendi que, a julgar pela história de nosso presidencialismo a partir de 1946, era impossível imaginar que qualquer operação política de grande vulto, envolvendo empresários e uma grande rede de partidos, pudesse ser feita sem o conhecimento do presidente em exercício.
O mensalão nunca existiu. Essa afirmação persistiu ao longo do processo. Teria sido uma invenção da oposição e da "imprensa golpista". Cientistas políticos comprovaram que, a julgar pela trajetória do comportamento dos partidos no Congresso, nada indicaria a compra de votos. De fato, o Executivo continuou aprovando seus projetos com as altas taxas de sucesso que tivera desde o governo Itamar: desde então, cerca de 95% dos projetos aprovados pelo Legislativo têm origem no Executivo. Foi nesse compasso que se votou a emenda da reeleição proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique, recorrentemente lembrada como uma vitória à custa da compra de votos.
O que o PT fez não tem nada diferente. Nesse caso, trata-se de um direito adquirido pela classe política de usar privadamente recursos públicos. Corrupção e negociatas seriam prática comum no Brasil. Por que fazer do PT a única vítima de uma prática que tem consentimento generalizado? Explica-se que a crítica deriva do elitismo dos que não querem reconhecer os inegáveis avanços sociais do País desde 2003. Seria uma vertente da conspiração das elites, mas com a reafirmação cínica de que "se todos roubam, por que o PT não pode?" Alguns parlamentares do PT chegaram a afirmar que, como aprendizes, não souberam fazer isso tão bem quanto os partidos mais experientes.
O mensalão não tem impacto nas eleições, pois o povo não se interessa por esses assuntos. Se tem ou não impacto, não me cabe avaliar, não é minha expertise, se alguma tenho. Preocupante é aceitar com naturalidade que o eleitor não leve em conta temas éticos. De todos os argumentos que tentaram minimizar a importância do mensalão, esse me parece o mais grave. Foi muito acionado no início da campanha pelos governistas mais otimistas, embora, depois, o tom tenha mudado um pouco. O que importa é que foi um argumento corriqueiro que faz supor que o Brasil possa ser mesmo um país de gente moralmente indolente. No entanto, à medida que a candidatura de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo avançou nas pesquisas, esses mesmos analistas sentenciaram que o eleitor se tornou um consumidor mais exigente. Pelo menos isso.
Lula passará imune a todo o processo. As teses a esse respeito vão em duas direções: sua liderança pessoal é inabalável e o lulismo veio para ficar. Se lulismo significa mais justiça social, é desejável mesmo que continue. As democracias modernas, contudo, supõem revezamento de líderes e partidos no poder. Momentos de baixa acontecem com líderes e organizações partidárias sem que isso signifique seu ocaso.
Há golpismo no ar. Governistas e analistas simpatizantes do governo têm insistido nesse ponto. Há golpismo da direita contra os avanços nas políticas sociais do PT, e o PIG, "partido da imprensa golpista", leia-se toda a grande imprensa, estaria ao lado dos conservadores. Segundo a nota dos partidos da base (20/09) em apoio ao ex-presidente, nem o STF escaparia: seria parte da trama que visa a "golpear a democracia e reverter as conquistas que marcaram a gestão do presidente Lula". Há uma entidade vigorosa no ar: os golpistas. A oposição também bate firme nessa tecla quando insiste que o PT pode acionar qualquer mecanismo não republicano para se manter no poder. Tendo em vista essas suspeitas generalizadas sobre golpes e golpismo, só resta concluir que a qualidade da democracia no Brasil ainda deixa muito a desejar.
Um argumento adicional presente entre os militantes do PT é o de que o mais importante nas eleições de 2012 seria derrotar os tucanos em São Paulo. São Paulo, de fato, é um caso de pouca rotatividade no poder desde 1982. No entanto, os governos, lá e alhures, são escolhidos por cidadãos que precisam ser respeitados em suas escolhas.
Estou relendo Sociologia dos Partidos Políticos, de Robert Michels, que em termos de realismo político chega a ser mais cruel do que Maquiavel. Baseado em sua experiência no partido alemão da social-democracia, do início do século 20, afirma que "à medida que a organização (o partido operário) cresce, a luta pelos grandes princípios se torna impossível". Impossível? Não, claro que não. Mas certamente é uma tarefa à qual os partidos que se dizem programáticos precisam dar mais atenção.
-------------------
* DOUTORA EM CIÊNCIA POLÍTICA; É PROFESSORA DA PUC-RIO - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 30/09/2012
Imagem da Internet

Procuram-se virgens

 DEBORA DINIZ*
 

O 'leilão' de Catarina reflete a ordem moral em que o sexo das mulheres é propriedade masculina

Um leilão de virgens em território global. Foi nesse cenário que Catarina Migliorini, catarinense de 20 anos, se lançou: o espetáculo de ser uma virgem leiloada para um documentário dirigido por um australiano. Já foram feitos 13 lances, o mais alto de US$ 160 mil, oferecido por Jack Miller, americano ainda desconhecido. Catarina será desvirginada em um voo da Austrália para os EUA, estratégia para burlar leis locais que restringem a prostituição ou o comércio do sexo. O site "procuram-se virgens" lista as regras da penetração: brinquedos eróticos e beijos são proibidos; não pode haver filmagem ou audiência; o tempo mínimo de consumo da virgem será de uma hora. O leilão atiça a curiosidade sobre o filme, cujo enredo está a meio caminho de um documentário, reality show e pornografia.
Alexander é o virgem em leilão. Catarina comprovará sua virgindade por exames ginecológicos, mercadoria mais difícil de ser demonstrada no corpo de Alexander. Por isso a aposta nas imagens e na história de vida do rapaz: um tipo tímido que não olha para a câmera, quem sabe um solitário à procura da proteção de uma mulher madura. Sua virgindade vem sendo pouco cobiçada - o lance mais alto foi de US$ 1.200, oferecido por uma australiana. O diretor tentou não ser óbvio no espetáculo do sexo ao incluir um virgem no enredo, mas a audiência resiste à igualdade na exploração sexual de homens e mulheres: Catarina é a mercadoria em disputa e certamente será a protagonista do filme. Alexander, um coadjuvante. Sua utilidade é aliviar a barra com as feministas críticas do comércio do sexo, caso da jurista americana Catharine MacKinnon, para quem a prostituição e a pornografia são danosas às mulheres.
Não sou uma seguidora de MacKinnon na perseguição à pornografia ou à prostituição - desconfio de sua tese de que homens que veem filmes pornográficos violentos buscam reproduzir suas fantasias no corpo de outras mulheres, ou mesmo que proibir o comércio do sexo protege as mulheres da exploração sexual. Mas há algo de inquietante na disputa por Catarina que ressoa da ordem moral em que o sexo das mulheres é uma propriedade masculina. Afinal, o que querem os homens ao leiloar uma virgem? Reanimar o tabu do sexo. Há mulheres em abundância dispostas, por prazer, dinheiro, ou ambos, a manter relações sexuais com homens. Muitas são virgens. O filme nos transforma em audiência de um jogo que não desafia a moral hegemônica; ao contrário, brinca com suas normas.
Uma prostituta é uma mulher disponível no mercado. Uma virgem é uma mulher à espera de um homem. A prostituta é a mulher da rua; a virgem, a da casa. O filme mistura os papéis, joga com as fantasias sexuais: a virgem é, agora, uma prostituta, a mulher que será penetrada em um espetáculo global, mas que não será visto. A câmera acompanhará o casal até a entrada do avião e a cena de sexo será apenas imaginada, como a que ocorre com as virgens na noite de núpcias. Seremos voyeurs de uma mulher que vende seu sexo como em um filme pornográfico, mas o tom documental da história a manterá na redoma protegida das virgens.
O tabu do sexo perturba não apenas nossa moral, mas o estatuto narrativo dos filmes. Por isso há algo de político nesse documentário. MacKinnon persegue os filmes pornográficos porque considera que as cenas de sexo são reais: uma mulher violada em um filme pornográfico é, de fato, uma mulher violada. Catarina será desvirginada - haverá um antes e um depois em seu corpo, segundo as perícias médicas. Mas ela reclama para si o estatuto profissional de atriz e não de prostituta: é uma atriz que venderá sua imagem e seu hímen para um documentário sobre como o tabu do sexo movimenta mercados e audiências.
------------------
* É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNB, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO - O Estado de S.Paulo

A nobre irmandade

VERISSIMO*

 

Tese: o clima frio favoreceu o crescimento de civilizações mais avançadas porque os habitantes de climas frios passavam mais tempo contemplando o fogo. Os povos de climas quentes tinham menos necessidade de fogo para aquecê-los, por isso foram privados das divagações que vêm com a contemplação do fogo e são menos filosóficos e mais superficiais. Nos climas frios, de tanto olhar as chamas qualquer pessoa acabaria desenvolvendo, se não escatologias ou sistemas ontológicos completos, pelo menos teorias. 

0 0 0 
 
Os povos de clima quente têm a experiência direta do sol na cabeça, os de clima frio experimentavam o sol armazenado na madeira, portanto o sol intermediado, reciclado pelo tempo. O fogo armazenado é o sol de segunda mão, quase uma versão literária. Olhar para o sol transformado em fogo domesticado leva a abstrações e ponderações, olhar para o sol original leva à cegueira. Mas tanto o sol vivo no céu quanto o sol ressuscitado no fogo podem destruir o cérebro, um fritando-o e outro levando-o para tão longe que ele quase se eteriza. Não há Einsteins em regiões tropicais, mas também não há muitos cientistas loucos. Abstrações e ponderações em overdose também podem ser fatais. Contemplar muito o fogo também enlouquece.

0 0 0 
A combustão da madeira, sendo consumida pelo fogo do sol que absorveu a vida toda, é uma metáfora para a existência: você também é consumido pela que lhe dá energia - mais ou menos rapidamente, dependendo de ser graveto ou nó de pinho. Se envelhecer é ir ficando cada vez mais grave, só atingiremos nossa verdadeira seriedade depois de mortos, quando nos juntaremos aos fósseis. Também levaremos energia aprisionada para baixo da terra e seremos como o carvão, o petróleo e os restos degradados de tudo que já viveu, integrados na capa explosiva do planeta - o que pode ser mais sério? 

0 0 0
 
Toda matéria orgânica, da jabuticaba ao papa, almeja isso, essa respeitabilidade subterrânea, essa dignidade de mineral depois da frivolidade efêmera da vida. Do barro viemos e ao barro voltaremos, mas agora em outra categoria, depois da nossa temporada ao sol: a de combustível. Entendo quem prefira a cremação (que é quando a nossa identificação com lenha fica mais completa) mas eu quero tudo a que tenho direito depois de morto. Decomposição, gazes - enfim, minha iniciação na nobre irmandade dos inflamáveis.

0 0 0 
 
Olhar o fogo devia inflamar a imaginação de quem o contemplava, no tempo das cavernas, e via nele fantasmas e presságios. O fogo era, de certa forma, a televisão da pré-história - com uma programação muito melhor. 
---------------
* Luis Fernando Verissimo. Escritor gaúcho. Cronista.
Fonte:  http://www.estadao.com.br/30/09/2012
Imagem da Internet

A terceira Revolução Copernicana

Marcelo Gleiser*
 
Revoluções como as de Copérnico tiraram a centralidade da Terra e da Via Láctea no Universo 

QUANDO, EM 1917, Einstein propôs o primeiro modelo cosmológico da era moderna, não havia qualquer razão para supor que o Universo teria um começo. Tudo indicava que o Universo era estático e infinitamente velho, sem um início. 

Tudo indicava também que a Via Láctea era tudo o que existia. Outras "nebulosas", vistas com telescópios, eram supostamente parte dela. Para além da Via Láctea, o Cosmo se estendia pela escura vastidão infinita do espaço vazio. 

Em menos de uma década, porém, tudo iria mudar. Para o horror da maioria dos cientistas, o Cosmo ganhou uma história, que, ao menos qualitativamente, lembrava o "Faça-se a Luz!" bíblico. 

Numa sucessão de observações sensacionais, graças a um telescópio de cem polegadas e uma metodologia impecável, o astrônomo americano Edwin Hubble e seu assistente Milton Humason determinaram, em 1924, que a Via Láctea era apenas uma entre "centenas de milhares" de outras galáxias. 

Hoje, sabemos que existem centenas de bilhões de galáxias. Após Hubble, a imagem da distribuição da matéria pelo espaço mudou completamente: não havia mais um "centro", a Via Láctea, mas um enorme número de núcleos. De certa forma, a descoberta foi uma versão moderna da Revolução Copernicana, visto que foi nela que a Terra perdeu sua centralidade. 

Como se isso não bastasse, em 1929, Hubble e Humason demonstraram que as galáxias se afastavam umas das outras. A conclusão, ainda mais chocante, inclusive para Einstein, era a de que o Universo não era estático, mas estava em expansão. Com isso, o Cosmo ganhou uma história: voltando no tempo, haveria um momento no qual as galáxias estavam amontoadas, o momento da "criação". 

Se Hubble estivesse certo, a cosmologia se tornava mítica, colocando-a próxima das questões religiosas: se o Universo tem uma história, como ela começou? "Quem" a começou? Por que ela começou? 

A situação tornou-se ainda mais interessante quando, em 1927, o padre-cosmólogo belga Georges Lemaître propôs que o Universo surgiu da desintegração espontânea de um gigantesco átomo primordial. 

Lemaître inventou um modelo científico da "criação", mesmo se insistisse que não havia qualquer relação com a Bíblia. Mas a associação era inevitável. Ninguém prestou, ou quis prestar, atenção nas ideias de Lemaître até que Hubble descobriu a expansão. 

Desde então, a cosmologia vem se debatendo com a questão do "início" de tudo. Em 1948, três ingleses sugeriram uma alternativa, o "modelo do estado padrão", no qual o Cosmos não teria um começo: por toda a eternidade, a matéria era criada na mesma proporção em que se diluía devido à expansão. 

Porém, nos anos 1960, o modelo rival do Big Bang é que foi verificado por observações. Tudo indica que ao menos nossa etapa cósmica surgiu mesmo de um evento inicial.
Mas e se nosso Universo não for único, mas parte de um multiverso, esse sim eterno? Modelos atuais pressupõem que seja esse o caso, que o multiverso existe eternamente e que o nosso existe entre incontáveis outros. Seria a terceira Revolução Copernicana, agora removendo a centralidade do Universo. 
-----------------------
* MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
Facebook: goo.gl/93dHI
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saudeciencia/69099-a-terceira-revolucao-copernicana.shtml
Imagem da Internet 

Utopia congelada

Tarso Genro*
Em 1994, pedi aqui a moratória da utopia socialista. A esquerda ganharia pelas regras do jogo. Criticaram. Hoje, o "votar não adianta" assombra é a Europa 

Há anos (em janeiro de 1994), escrevi um artigo nesta seção da Folha, cujo título era "Uma moratória para a utopia".
Na época, fui criticado pela autodenominada "esquerda" do meu partido -que mais tarde tomou seus próprios caminhos- e também pela esquerda acadêmica, que agora se especializou no antilulismo e no antipetismo e que faz coro com a direita mais retrógrada, "contra os políticos" e "contra a corrupção", estabelecendo uma identidade mecânica e autoritária entre ambos.
A moratória com a utopia socialista pressupunha -e ainda pressupõe- uma convergência à esquerda a partir dos valores básicos da democracia e da república, daí tendo como fulcro o Estado de Direito: a observância das "regras do jogo" (Bobbio).
Isso pressupunha a inversão de prioridades, a partir dos governos de esquerda, pautando -em oposição à mera estabilidade- a estabilidade com distribuição de renda e inclusão social e educacional amplas.
Tratava-se de colocar os "de baixo" na mesa da democracia, como dizia Florestan Fernandes. E isso foi feito.
Felizmente (e não foi obviamente por artigos como aquele) o Brasil trilhou este caminho. E por mais que se possa criticar o cerco midiático ao STF no processo do "mensalão", por mais que se possa discordar da avaliação das provas, da inovação de teses para proporcionar condenações, da "politização" excessiva do processo, ninguém pode dizer que os ministros da nossa corte suprema estão julgando contra as suas convicções ou insuflados por pressões insuportáveis.
Nada do que está acontecendo é estranho a qualquer Estado de Direito, por mais democrático e maduro que ele seja.
O Estado de Direito democrático é assim mesmo. A sua superioridade em relação às ditaduras é que as suas limitações e insuficiências são abertas e podem ser contestadas, tanto no plano da política como do direito, de forma pública e sem temor, por qualquer cidadão.
Faço estas observações porque eminentes intelectuais e jornalistas europeus, em distintas manifestações, hoje questionam a situação da democracia na Europa. 
 
 Boaventura Sousa Santos (na revista "Visão", de Lisboa) escreve "Portugal é um negócio ou é uma democracia?". Joaquin Estefania ("El País", de Madrid), defende que "começa a ser um mistério que alguém se moleste de votar e estimular a alternância partidária (...) se não existe capacidade de intervenção efetiva por parte de uma autoridade política eleita".
Antonio Baylos Grau, da Universidade Complutense de Madrid, diz que a Espanha está "numa democracia limitada", com a "soberania limitada (doutrina Brejnev) através da arquitetura financeira mundial, concentrada em poucas mãos".
Assim, sugiro que a democracia no Brasil, neste período histórico, está mais avançada do que no continente europeu, porque a adoção da dogmática de "não há alternativa" (ao caminho pautado pelas agências de risco e pelo poder privado do capital financeiro) não tem vigência nem efetividade em nosso país.
As medidas que a presidenta Dilma tem tomado na gestão econômica, dando sequência às políticas do presidente Lula, de inserção soberana, cooperativa e interdependente do país, na economia e no mercado mundial, mostram que a democracia, sim, pode ter consequência na economia e no desenvolvimento social de qualquer estado.
Na Europa, não somente foi feita uma moratória com a utopia socialista, cujo impulso foi responsável pelas grandes conquistas de proteção social e de coesão nacional no século passado, mas também foi congelada a utopia democrática. Os governos eleitos, sejam socialdemocratas ou conservadores, na primeira fala que fazem, quando chegam ao poder, é que "não há alternativa".
Logo, não adianta votar e escolher.
Nós, da esquerda e do PT, e todos os democratas de todos os partidos celebremos esta diferença: ainda não conseguiram congelar, aqui, a utopia democrática. 
------------------
TARSO GENRO, 65, é governador do Rio Grande do Sul. Foi ministro da Justiça, da Educação (ambos no governo Lula) e prefeito de Porto Alegre pelo PT (1993-1996 e 2001-2002) 
Fonte: Folha on line, 30/09/2012
Imagem da Internet

Que mundo estamos a criar?

P. Dennis Clark*
Meditação

Imagem
 Anónimo holandês

Levantou-se, então, um doutor da Lei e perguntou-lhe, para o experimentar: «Mestre, que hei-de fazer para possuir a vida eterna?» Disse-lhe Jesus: «Que está escrito na Lei? Como lês?»O outro respondeu: «Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.» Disse-lhe Jesus: «Respondeste bem; faz isso e viverás.»

Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?» Tomando a palavra, Jesus respondeu:

«Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto.

Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar. ’Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.» (Lucas 10, 25-37)

Uma jovem mãe estava a ter um dos piores dias da sua vida. O marido havia perdido o emprego; o esquentador tinha explodido; o carteiro trouxe um monte de contas que ela não podia pagar; o seu cabelo estava péssimo e sentia-se gorda e feia. Estava quase no ponto de rutura quando levantou o seu filho de um ano e o sentou na cadeira de bebé, apoiou a cabeça no tabuleiro e começou a chorar. Sem um murmúrio, a criança tirou a chucha da sua boca... e carinhosamente colocou-a na dela!

* * * * *

Compaixão: Ele desconhecia a palavra mas o seu coração conhecia a necessidade. E deu o que tinha. Nós somos, de tantas maneiras, os artífices dos mundos dos outros. Minuto após minuto criamos o mini-mundo em que vivemos juntos. E na maior parte das vezes nem sequer pressentimos como é enorme a nossa capacidade de levar alegria ou tristeza, cura ou dor aos outros.

Imagem 
Théodule-Augustin Ribot

Por exemplo, quando participamos na missa estamos a criar um breve e pequeno mundo. Outras pessoas, cujos nomes nem sequer conhecemos, prepararam o espaço para nós: limparam o pó e varreram, arranjaram e colocaram flores, ensaiaram os cânticos. Agora é a nossa vez de fazer da celebração um espaço calmo, pacífico e acolhedor, um espaço onde podemos ajudar os outros a experimentar a presença amorosa de Deus, a sua força, o seu conforto e apoio.

Fazemos isso de inúmeras maneiras: o modo como entramos e saímos, o modo como cantamos e rezamos em conjunto, o modo como damos espaço uns aos outros, o modo como fazemos silêncio uns para os outros. São muitas as maneiras como criamos ou destruímos algo admirável.

Imagem 
Jan Wynants
Toda a nossa vida é assim: desde o momento em que abrimos os nossos olhos pela manhã até quando os fechamos à noite, temos o poder de criar e o poder de destruir, o poder de dar os nossos dons – grandes e pequenos – e o poder de os recusar.

Provavelmente nenhum de nós encontrará alguma vez um homem a morrer na berma da estrada. E a maior parte de nós raramente será chamada a fazer um sacrifício realmente significativo por outra pessoa. Mas todos nós iremos encontrar milhares de pessoas cujas vidas podemos tornar um pouco mais ricas, um pouco mais felizes porque estávamos lá e porque demos o que tínhamos – tal como aquela criança deu a sua chucha.

Imagem 
Van Gogh

A cada momento cada um de nós tem alguma coisa a dar, alguma coisa que é precisa. Dá-la-emos? Temos de dar, simplesmente porque dar os nossos dons é a única maneira possível de encontrar a felicidade. A vida não é um desporto de bancada! Dar os nossos dons – todos eles, todos os dias – é a única maneira de realizar a nossa vida, a única maneira de crescermos à imagem e semelhança de Deus.
 ---------------------------------
P. Dennis Clark
In Catholic Exchange
Trad. e adapt.: rm
© SNPC (trad.) | Atualizado em 30.09.12

Magia aqui não resolve

Michiko Kakutani, do The New York Times
 
 

Com o novo romance de J.K. Rowling, The Casual Vacancy (A Vaga Casual, em tradução livre), entramos definitivamente na "terra dos trouxas" - quase o mais longe que pudermos do mundo encantado de Harry Potter. Não há mágica no livro - nem em termos de bruxaria nem de magia narrativa.
Ao contrário, esse romance para adultos é composto por vários personagens com os mesmos atributos da tia e do tio de Harry, Petunia e Vernon Dursley: egocêntricos, mesquinhos, esnobes e julgadores, cujas histórias nem cativam nem empolgam.
Infelizmente, o mundo real que ela delineou nas páginas do livro é intencionalmente banal, tanto que foi rotulado negativamente não só como decepcionante, mas também como bobo.
O enredo, que acontece no pequeno vilarejo fictício de Pagford, na Inglaterra, é uma crônica sobre o desastre político e pessoal causado pela morte inesperada de um membro do conselho paroquial local chamado Barry Fairbrother. É como se a história fosse uma novela sombria que descreve a vida provinciana restrita e circunspecta.
Esse definitivamente não é um livro para crianças: suicídio, estupro, vício em heroína, espancamentos e considerações sobre patricídio permeiam as páginas da obra; há uma cena de sexo em um cemitério, uma grotesca descrição de um preservativo usado e uma cena alarmante de abuso sexual doméstico.
O romance tem momentos de autêntico drama e alguns flashes aqui e ali de humor, mas termina de forma desanimadora. Mais duas mortes repentinas e cruéis ocorrem na história, deixando o leitor atrapalhado com algo que nada tem a ver com as emoções evocadas pelo desfecho da série Harry Potter.

Um mundo genérico

É claro que muitos autores já criaram retratos da vida provinciana que captam a essência do cotidiano com grande profundidade emocional. Isso, infelizmente, não acontece neste livro. Enquanto o universo de Harry Potter foi ricamente imaginado e complexamente detalhado, assim como a terra média de J.R.R. Tolkien ou a Oz de L. Franck Baum, Pagford é estranhamente genérica: uma aldeia de brinquedo, em que os tetos das casas somem para revelar adultérios, discordâncias matrimoniais e conflitos generalizados entre as pequenas pessoas. É como se escrever sobre o mundo real tenha inibido a imaginação milagrosamente inventiva de Rowling e a privado da tensão entre o mundano e o encantado, constrangendo a sua habilidade de criar uma história com duas ou até mesmo três dimensões.

Conforme a história de The Casual Vacancy se desenrola e Rowling brinca com as consequências dos segredos mais sombrios de seus personagens, a narrativa adquire movimento, mas isso só ocorre depois de muitas páginas percorridas. Em alguns assuntos, The Casual Vacancy aborda temas que aparecem nos livros de Harry Potter: as perdas e os fardos da responsabilidade que vêm com a idade adulta e a inevitável ideia da morte.
Não terminamos o livro com a sensação de termos descoberto as entrelinhas dos personagens de Vacancy da mesma forma como acontece com os amigos e inimigos de Harry Potter. Também não finalizamos a obra sabendo sobre como o passado deles e de suas famílias influenciou suas vidas atuais. 

Obviamente, J.K. Rowling teve sete livros para mapear as complexidades do mundo dos bruxos em Harry Potter. O leitor deve torcer para que a autora não tente mostrar o "mundo dos trouxas" de Pagford em algum outro volume, mas, em vez disso, tente partir para algo mais convincente e focado no futuro.
------------------------
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,magia-aqui-nao-resolve,937787,0.htm

sábado, 29 de setembro de 2012

Igreja tem de ganhar «atitude de encontro» e rejeitar «distanciamentos, hostilidades e indiferenças»

P. José Tolentino Mendonça*
 
 
Olhando para nós próprios [cristãos] e para o mundo em que nos inscrevemos, percebemos que não nos reconhecemos necessariamente na sociedade porque ela mudou muito e já não é um reflexo das nossas ideias, modelos sociológicos ou sequer do que pensamos que seria o melhor ou o mais justo. O mundo é como é, e a verdade é que se distanciou muito de uma gramática, modelo, cultura, noção de tempo e de Homem que enforma a tradição cristã.
Penso que hoje surge como inalienável por parte da Igreja o dever da explicação. Hoje os cristãos têm o dever de explicar-se a um mundo que não os entende, não porque seja mau mas porque funciona numa lógica diferente.
Há dias lia um artigo de António Pinto Ribeiro, programador que colabora com a Gulbenkian, sobre a incapacidade que um universitário de História de Arte tem hoje para ler aquilo que para nós são evidências, como por exemplo uma pintura da Anunciação. Faltam chaves que para nós parecem óbvias, porque as narrações evangélicas embrenham profundamente a nossa vida. Mas essas chaves passaram a faltar, naturalmente, na cultura onde estamos inscritos.
Às vezes falamos, na nossa linguagem, de concílios, sínodos, bispos e encíclicas como se fosse a coisa mais evidente para toda a gente. Não é, deixou de ser há muito tempo. Muitos dos mal-entendidos surgem porque não entendemos este dever fundamental de explicar.
Quando lemos os textos cristãos do Novo Testamento percebemos que a força audaciosa das primeiras comunidades estava muito em terem interiorizado que tinham de traduzir aquela mensagem. Paulo sabe que o cristianismo nasceu na Palestina mas que ele tem de usar uma nova linguagem se quiser chegar aos Coríntios e aos Filipenses. Não pode falar da mesma maneira. Tem de arriscar, utilizar palavras novas. Um cristão é um tradutor, um hermeneuta, tem de traduzir Deus por miúdos, tem de contar de forma percetível aquilo em que acredita. Se não o fizer, este corte, este silêncio, esta conversa de mal-entendidos vai simplesmente prolongar-se.
Além disso, nós, Igreja, precisamos de fazer um mea culpa, um exame de consciência, e dizer que nós próprios sabemos falar mal e ousamos muito pouco falar aos outros daquilo em que acreditamos. Sabemos dizer mal as razões do nosso crer, mesmo em situações favoráveis que nos são colocadas.
É claro que ao olhar para a cultura contemporânea, para este grande caldo heterogéneo, podemos identificar atitudes negativas, ambientes hostis, resistências, preconceitos, críticas a priori. Mas o mais frequente é lidarmos com o nosso próprio mutismo. Nós interiorizamos a própria indiferença do mundo. Não é o mundo que é indiferente; nós é que interiorizamos, em grande medida, esse conceito da indiferença. E porquê? Porque nos dá jeito; porque apostamos ainda pouco na formação das comunidades e dos cristãos; porque a fé, muitas vezes, é incapaz de pronunciar as suas razões; porque ela é muito mais o automatismo das práticas rituais e pouco o que é mais longo e demorado, isto é, uma tomada de consciência que torna um freguês numa testemunha. A transferência de deixarmos de ser fregueses da nossa paróquia e passarmos a ser testemunhas na nossa comunidade é uma deslocação que precisamos de fazer acontecer dentro da Igreja, porque ela não acontece automaticamente.
As estruturas da Igreja precisam de profissionalismo – uma palavra de que gostamos pouco e que também pode ter a sua ambiguidade. Mas no fundo precisamos de criar e aprofundar competências na área da comunicação e da organização, criando uma rede maior entre os contactos.
Olhando para o mundo há fronteiras que pensamos que existem mas que deixaram de existir. Ao descrever a contemporaneidade, o filósofo italiano Gianni Vattimo diz que entramos num tempo de um pensamento fraco. E a verdade é que há uma debilidade – e não podemos fugir desta palavra – que caracteriza a Igreja, e isso porque estamos em recomposição, porque percebemos que os modelos em que vivíamos são inadequados e que a realidade sobra por todos os lados. Por exemplo, já não conseguimos suportar o modelo paroquial porque nos faltam presbíteros para colocar em cada paróquia. A própria ideia de território não resiste à prática das mobilidades sociais. Há fenómenos tão novos que nos fazem viver no interior da Igreja numa grande debilidade.
Este é também para nós um tempo de crise. E há silêncios e silenciamentos que nascem desta hora que estamos a viver. Percebemos que há modelos que não servem mas por outro lado ainda a estamos a experimentar ou descobrir novos, a escutar os sinais dos tempos, a encontrar caminhos... Estamos num tempo de balanço em relação ao que foi o séc. XX e ao que foi um certo espírito ligado ao Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo que procuramos perceber o mundo em que nos inscrevemos, as grandes mutações antropológicas e sociais a que as comunidades cristãs não são imunes. É um tempo de debilidade que não podemos disfarçar com discursos musculados ou com discursos para a frente que não querem encarar a realidade. A realidade é esta e é isto que temos de abraçar e olhar.
Mas o mundo é também uma realidade muito débil e ténue. As instituições sociais passam por processos de erosão e recomposição a um nível muito mais profundo e radical do que aquele que nós próprios experimentamos. Mesmo na diferenciação e na mudança que estão a sofrer, sentimo-nos numa concha, protegidos. Não sentimos o que no mundo se sente muito mais, que é uma insegurança e incerteza a toda a linha. Neste sentido, a lógica do adversário que deixou de funcionar.
Na cultura contemporânea, e pensando no caso português, a Igreja ainda é olhada como adversário cultural. Precisamos de explicar e explicarmo-nos, para que a Igreja seja vista como aliada e não como adversária. Esta mudança que nós temos de protagonizar. Nós, cristãos, temos de fazer sentir aos outros que não têm de ter medo de nós, da nossa presença, do nosso modo de viver, do nosso estilo, dos nossos valores, do que celebramos na fé, da nossa liturgia, das nossas procissões, dos nossos jornais, da nossa agência noticiosa… Não têm de temer porque nós somos aliados do que a cultura e a civilização têm de mais fundamental, que é a pessoa humana e a sua vida, em todos os momentos. Que é, no fundo, as suas dificuldades e a situação concreta em que ela vive. Mas esta viragem – passar de adversário a aliado – compromete-nos e hipoteca-nos. E não podemos ficar à espera diante de uma porta aberta. Temos de ensaiar passos.

 "Há uma frase do romancista católico 
Julien Green que diz assim:
 «Enquanto vivermos inquietos, 
podemos estar tranquilos».

Penso, por exemplo, que este projeto do Pontifício Conselho para a Cultura, o Átrio dos Gentios, é uma forma emblemática e icónica de dizer «não tenham medo», e perceber que pessoas com perspetivas e experiências de vida diferentes podem ser complementares, e não necessariamente rivais. O que o cristianismo traz ao mundo não é alguma coisa que destrói o mundo - «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu próprio Filho». O cristianismo é a alma do mundo, é chamado a trazer um suplemento de espírito ao mundo, a alargar a esperança do homem e da cultura.
Neste sentido penso que não temos de interiorizar distanciamentos, hostilidades, indiferenças. A Igreja precisa de ganhar uma atitude de encontro e de escuta, avaliando também a nossa própria escuta. Nós escutamos o mundo; mas quem é que faz a escuta da escuta que nós fazemos? Quem é que nos diz se a escuta que fazemos é profunda, sintonizada, ou se em vez de escutar o mundo estamos antes a ouvir a nossa própria voz?
Este tempo, com todos os seus impasses e crises, em que sentimos uma transformação muito grande e uma diminuição sociológica daqueles que se identificam em termos de vida com a mensagem cristã, é também o lugar para um florescimento da experiência cristã.
Há trabalhos que temos de ser nós, Igreja, a protagonizar, sem estar à espera que sejam os outros a fazê-los. Por exemplo, temos de fazer e aprofundar, dentro da Igreja, o diálogo entre a fé e a razão, pensando a fé de forma inteligente e não fazendo dela, simplesmente, um irracional que incorporamos. Temos de fazer apelo e valorizar as mediações da filosofia, do direito, da sabedoria, da teologia, do humor, da estética. Não é por eu ser padre ou leigo empenhado, ou por o nosso jornal ter a etiqueta católica – isso não é um selo de nada. Vivemos num tempo e numa cultura onde precisamos de construir uma presença, não dando por adquirido o que já deixou de ser. Nesse sentido há um grande desafio à humildade, ao caminho, à aceitação das circunstâncias e à oportunidade que este tempo representa.
Se nós ouvirmos pensadores contemporâneos, como Marcel Gauchet ou Habermas, percebemos que as sociedades secularizadas não excluem o religioso. Pelo contrário, elas contam com o religioso, mas esperam que ele seja explicado e testemunhado de forma pacífica e credível. Não numa perspetiva do poder mas da relação, da apresentação, do encontro. E neste contexto há uma atitude, um modo de situar-se no interior da cultura que precisamos de aprofundar e que é uma urgência do próprio ser cristão.
Dizer isto não é fazer a apologia de uma neutralidade ou cair numa neutralização do cristão. O catolicismo afirma-se como uma diferença, uma qualidade, uma condição e um estado. A fé não é uma ideologia mas é alguma coisa em que nos tornamos – não nascemos cristãos mas tornamo-nos cristãos, que é a fidelidade a Cristo.
A diferença cristã deve conduzir-nos a um protagonizar a diferença. A nossa presença tem de fazer a diferença. O mundo não nos dá nada de bandeja, e ainda bem. Nós também não damos nada de bandeja ao mundo.
Há um desafio muito grande à autenticidade. Podemos dizer que a mundo perdeu o norte, que a cultura vive de sucedâneos e de contrafações, que vivemos num mimetismo e numa osmose onde se esquece o que é a verdade… Mas não é bem assim. No coração do homem e da mulher há uma nostalgia do autêntico, que vemos nas coisas mínimas: a lã virgem dos nossos pullovers, o doce da avó, a comida caseira são imagens de marca, pequeninos detalhes desta língua que a cultura fala mas que atestam esse desejo de uma autenticidade, de uma verdade.
O mundo espera encontrar nos cristãos palavras proféticas, sem dúvida; os profetas bíblicos tinham as palavras proféticas mas também tinham os gestos proféticos. O tempo em que vivemos é uma oportunidade para revalorizarmos e redescobrirmos a intensidade comunicacional dos gestos proféticos. O mundo precisa de ver em nós gestos proféticos. E muitas vezes o silêncio é um gesto profético, que toca profundamente.
Por exemplo, o caso dos monges de Tibhirine, na Argélia, essa comunidade mártir. São poucos homens que viveram de forma pobre e humilde, sem grande comunicação com o exterior, a não ser a relação com a aldeia muçulmana que os envolvia. Mas a experiência que realizam, tecida do silêncio que marca e documenta a autenticidade daquelas vidas dadas, não deixa ninguém indiferente. Aquelas vidas têm espessura de sentido, têm um enigma, constituem uma pergunta.
A experiência cristã no mundo de hoje tem de inscrever-se na cultura como pergunta, silenciosa, despretensiosa, de quem deu a sua vida. Se o mundo reconhecer isto em nós, é capaz de perceber que valeu a pena o encontro porque aquilo que descobriu é capaz de o iluminar e de lhe dar alguma coisa que ele não tinha.
Há uma frase do romancista católico Julien Green que diz assim: «Enquanto vivermos inquietos, podemos estar tranquilos».
 -------------------------------------
 *P. José Tolentino Mendonça
Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Jornadas Nacionais da Comunicação Social da Igreja Católica, Fátima, 27.9.2012
Vídeo: Agência Ecclesia http://www.youtube.com/watch?list=UUCRAIiRW-TTJT_vHIrkr40Q&feature=player_embedded&v=lvMElwWNRqo