sábado, 30 de novembro de 2013

"AVALOVARA", 40 anos depois

 Carlos Felipe Moisés*
 
O poeta é um lavrador? O sentido primitivo se perdeu, 
mas pode ser recuperado.

Osman Lins (1924-1978) deixou um vazio difícil de preencher. Primeiro, o ficcionista admirável de "O Fiel e a Pedra" (1961) ou "Nove Novena" (1966); depois o dramaturgo de "Lisbela e o Prisioneiro" (1964) e outras peças; por fim, o ensaísta combativo, empenhado no engajamento do escritor e na função social da literatura: "Guerra sem Testemunhas - O Escritor, Sua Condição e a Realidade social" (1969).

Para Osman, literatura pode ser entretenimento, mas é também uma das formas mais eficientes e persuasivas de buscar um sentido para a existência, uma razão de ser. "Avalovara", romance publicado 40 anos atrás, cada vez mais atual, é um bom exemplo.

É uma história de amor: os encontros e desencontros de Abel, o protagonista, e suas três mulheres, cada qual a seu tempo, uma em Paris, outra no Recife, a derradeira em São Paulo. As cidades não são meros cenários, fazem parte integrante da trama, espelham as almas das criaturas, que ao mesmo tempo vão sendo formadas no rumo da geografia que percorrem. Para a terceira mulher confluem as experiências anteriores: desembocadouro dos rios que Abel navega, um pouco às cegas, no encalço do amor absoluto.

Mas tal enredo não é oferecido ao leitor na sequência do fio cronológico: a narrativa vai registrando, em capítulos quase sempre breves, retalhos de uma história cujas partes vão-se entrelaçando, como cacos de um vitral, e só aos poucos se dá a conhecer. O leitor, sequioso de saber se eles "se casaram e foram felizes para sempre", precisará refrear um pouco o seu ímpeto e habituar-se às inúmeras digressões às quais Abel e suas amadas se entregam.

E é preciso aceitar também que essa "desordem" narrativa (reflexo do deambular errante dos personagens) não é arbitrária, mas obedece a um plano rigoroso, geométrico. A estrutura do romance segue o itinerário sugerido por um antigo palíndromo inscrito num quadrado e percorrido por uma espiral.

Palíndromo? "Frase ou palavra que se pode ler indiferentemente da esquerda para a direita ou vice-versa" (Houaiss): "radar", "reter", "arara", "Roma é amor" etc. Osman Lins parte de um palíndromo famoso, atribuído a um escravo frígio de Pompeia ("Sator Arepo Tenet Opera Rotas"), as palavras empilhadas uma abaixo da outra, formando um quadrado.

Para completar a figura: uma espiral que, das bordas do quadrado na direção do centro, vai tecendo circunvoluções a cada volta mais cerradas, passando várias vezes pelos miniquadrados onde se alojam as demais letras, oito ao todo. Por isso são oito os "temas" do romance, retomados periodicamente, a cada giro da espiral. Apesar do que o desenho, estático, sugere, a espiral gira ininterruptamente, sem que saibamos de onde parte e para onde caminha - tal como a história de Abel. A simbologia é clara: o fluxo ininterrupto da vida que ao mesmo tempo escoa e milagrosamente permanece - sempre a mesma e sempre outra.

Em tempo: "avalovara" é o nome de um pássaro imaginário - explica o narrador, como explica também a simbologia do quadrado e da espiral. Isso nos permite deter a atenção no sentido da frase latina: "o lavrador mantém com firmeza o arado nos sulcos".

No latim arcaico, o "sulco", ou a "rota" que o arado traça na terra, era também chamado "versus", derivado de "vertere", não no sentido de derramar mas no de voltar, retornar. Só mais tarde é que a mesma palavra, "versus", passa a designar, por analogia, a linha seccionada (ou interrompida, ou "vertida") que forma o poema. O poeta é um lavrador? O sentido primitivo se perdeu, mas pode ser recuperado.

O palíndromo, contido no quadrado e percorrido pela espiral, fornece ao romance não só o seu plano, mas também a ideia essencial que o constitui: a substância poética, a ideia ao mesmo tempo arcaica e atual de que só existe vida em poesia. A analogia não se reduz à origem da palavra "verso".

Assim como o lavrador tira o máximo proveito da terra a ser cultivada, cavando nela sulcos regulares, simétricos e bem medidos, o poeta-escritor mantém o mais estrito controle sobre as trilhas de palavras que vai desenhando no papel. Assim como a terra inculta se beneficia do metódico trabalho do lavrador, podendo então gerar flores e frutos, a terra inexplorada do sonho do escritor-poeta pode ser cultivada com as sementes-palavras criteriosamente escolhidas por ele. Assim como o lavrador não colherá fruto algum, se permitir que o arado saia por aí traçando um caminho qualquer, aleatório, o poeta também não criará poesia caso se limite a exibir sua habilidade com o arado, isto é, caso não seja movido pelo espírito verdadeiramente criador, que lhe permite utilizar a ferramenta para outros fins.

Tal como na ficção, na fábula milenar e no cultivo da terra, ou no quadrado onde se inscrevem o palíndromo e sua espiral, assim também, na realidade cotidiana deste mundo desgovernado em que vivemos, a vida só faz sentido se formos capazes de inventá-lo: ordem e caos, entrelaçados.
Ao escolher o seu palíndromo-matriz - emblema da condição humana -, Osman Lins certamente já o sabia.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), crítico literário ("Tradição & Ruptura") e tradutor ("O Poder do Mito") 
Fonte: Jornal Valor Econômico on line, 29/11/2013

ECONOMIA EM TEMPOS DIFÍCEIS

 Alberto Carlos Almeida*
Governar é, dentre outras coisas, decidir quem ganhará e quem perderá. Foi-se o tempo em que o principal perdedor das decisões governamentais era a população mais pobre do Brasil. De 1980 a 1994, nada menos do que cinco presidentes ocuparam o Palácio do Planalto, tivemos 15 ministros da Fazenda, 14 presidentes do Banco Central, seis moedas e uma inflação anual de 730%. Com uma inflação nesse nível, quem mais perdia eram aqueles que viviam apenas de seu salário. Todos se recordam do sindicalista Lula e de sua lista de reivindicações com frequência encabeçada pelo combate à carestia e ao aumento de preços. Em 1986, o Plano Cruzado e o congelamento de preços resultaram na repentina redistribuição de renda em favor dos assalariados e dos mais pobres. Naquele ano, o PMDB, responsável pelo que veio a ser uma temporária queda da inflação, venceu as eleições para o governo de todos os Estados do Brasil, com exceção de Sergipe.

De 1995 a 2010, a cadeira de presidente foi ocupada por apenas duas figuras, tivemos três ministros da Fazenda, cinco presidentes do Banco Central, apenas uma moeda e uma inflação anual de 7%. Exatamente por conta de uma inflação tão baixa, Fernando Henrique e Lula foram reeleitos. Adicionalmente, Lula foi capaz de eleger Dilma sua sucessora. O que separa os dois períodos é a volta da eleição presidencial. Com ela, os presidentes foram obrigados, por uma questão de sobrevivência eleitoral, a atender à maioria da população. Vale chamar atenção para o contraste: enquanto não havia eleição direta para presidente, a sobrevivência de quem controlava o Poder Executivo nacional não dependia do controle da inflação, o eleitor não podia se manifestar sobre isso. O grande perdedor da política econômica que vigorou até 1994 foi a população pobre e os grandes ganhadores do que ocorreu depois foram os mesmos pobres.

Na história recente do Brasil, durante o governo Lula, ficamos todos com a impressão de que a política econômica apenas gera ganhadores. Viveu-se um período de grande liquidez internacional, preços de commodities em alta, juros americanos em baixa. O resultado foi que todos os grupos sociais melhoraram de vida. Tratou-se de uma unanimidade. Empresários, trabalhadores, campo, cidade, todos ganharam durante o governo Lula. Os períodos de bonança escondem que, sempre, quando há ganhadores, há também perdedores. Neste caso, quando todos ganham, há aqueles que ganham menos e os que ganham mais. No período Lula, o grupo social que mais ganhou foi a base da pirâmide. Houve um aumento vigoroso da renda real dos mais pobres, enquanto o aumento da renda daqueles que têm curso superior completo não foi tão grande assim. O resultado disso foi a redução da desigualdade de renda no Brasil, fartamente documentada pelas várias medições e estudos produzidos pelo IBGE e pelo Ipea.

A política econômica que resulta na redistribuição de renda tem vários componentes, e um deles é o câmbio. Quando o real fica valorizado frente ao dólar, a indústria perde e a população ganha por meio de seu impacto no controle da inflação. A população não tem conhecimento técnico sobre taxa de câmbio, comércio exterior ou mecanismos de redução de preços domésticos vinculados aos termos de trocas internacionais. Quando se trata de câmbio, o que a população tem de conhecimento, e a maneira como ela expressa esse saber, vem por meio da comparação entre o real e o dólar. O real pode estar mais ou menos forte frente ao dólar.

Foi assim que perguntamos, em uma pesquisa nacional, o que acontecia quando o real ficava mais forte frente ao dólar. Dadas quatro opções de resposta, 25% afirmaram que é bom para a população pobre, é bom para o povo; 19% disseram que os preços dos alimentos ficam mais baratos; 16% responderam que é bom para os empresários; 15% consideraram que fica cada vez mais difícil para os exportadores venderem produtos para outros países. Chama atenção que 23% não tenham respondido a essa questão, mesmo recebendo opções de resposta. Isso mostra quão distante está esse assunto de grande parte da população.

Na sequência, foi perguntado o que era melhor: ter menos empregos na indústria, mais empregos no comércio e preços mais baixos, ou ter mais empregos na indústria, sem que sejam gerados empregos no comércio e preços mantidos. Respostas: 51% preferiram a primeira opção e 29%, a segunda. Mais uma vez, a não-resposta foi elevada: 20%.

A divisão regional dessa resposta é reveladora de quanto a região Sul se sente dependente dos empregos industriais. Foi lá que se obteve a maior proporção daqueles que preferem mais empregos na indústria, mesmo com menos empregos no comércio: 44%. No Nordeste, apenas 19% ficaram com essa escolha. No Sul, a mão-de-obra é mais qualificada e a indústria, comparativamente ao comércio, exige isso. Ao passo que a recente prosperidade da população nordestina tem a ver com a expansão do comércio.

Igualmente interessante é a visão de mundo de quem completou a faculdade, aqueles que têm educação formal mais avançada. Nada menos do que 37% desse grupo afirmam que, quando o real fica mais forte frente ao dólar, é mais difícil para os exportadores venderem produtos para outros países. Uma proporção muito acima da média nacional de 15%. Por outro lado, esse mesmo segmento da população considera que é melhor ter menos empregos na indústria: 61% pensam assim. Isso certamente reflete o fato de as pessoas com grau superior completo estarem em sua grande maioria empregadas no setor de serviços. Sentem-se, portanto, pouco dependentes dos empregos gerados pela indústria.

As nuances e os detalhes da política econômica não podem ser decididos ao sabor do que pensa a população ou do que deseja o eleitorado. A dimensão do Brasil, o tamanho de nossa população, a complexidade de nossa economia e todos os interesses envolvidos na disputa política condicionam inúmeras decisões. Nesse caso, pode não ser recomendável para o Brasil depender economicamente apenas de um determinado segmento da economia. Ainda que haja vantagens comparativas e vocações, como parece ser o caso da exportação de commodities, pode ser desejável que o Brasil seja economicamente diversificado. Tão ou mais importante do que isso são os interesses estabelecidos. As decisões políticas não são tomadas no vácuo. Vários interesses são levados em conta e o peso relativo de cada um varia conforme o tipo da decisão e quando ela é tomada.

A eleição presidencial lida com o interesse da grande maioria da população - e isso pode variar entre países e entre questões. No Brasil, a política externa, por exemplo, não mobiliza o eleitorado como nos Estados Unidos. A diferença é inteiramente compreensível: a inserção internacional daquele país é imensamente maior do que a nossa. Nos debates da eleição presidencial americana, a política externa é um dos temais mais importantes. Mobiliza o eleitorado, divide preferências e influencia o voto. Isso não acontece no Brasil. Resultado: a margem de manobra de nossa elite política, quando se trata de política externa, é muito maior do que a da elite política dos Estados Unidos - nossos políticos não estão tão restritos ou condicionados pela visão do eleitorado.

A economia é importante em qualquer lugar do mundo. No caso do Brasil, ainda em uma comparação com os Estados Unidos, pode até ser que o peso relativo dos resultados da política econômica seja maior. O motivo é simples: a população vive mais próxima da pura e simples sobrevivência do que os americanos. O bem-estar do eleitorado, traduzido em aumento real do poder de compra, é variável-chave para explicar tanto a popularidade presidencial quanto, tem sido assim nos últimos pleitos, o resultado eleitoral.

Diz-se que todos os caminhos levam a Roma. A frase tem a ver com a grande importância que o Império Romano teve para o Ocidente: foi, um dia, o umbigo do nosso mundo. No Brasil, todos os caminhos levam ao controle da inflação. Seja por meio de aumento de juros, como mostrei há um mês nesta coluna, seja por meio de um câmbio que deixe, na linguagem da população, o real forte frente ao dólar.
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* Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
Fonte: Valor Econômico on line, 29/11/2013


TÔ CANSADA

Marli Gonçalves
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Verdade que em português a expressão não tem o charme e o elã da mesma coisa dita em francês – “Je suis Fatigué”- que sempre se escuta, especialmente nas ruas de Paris. Um enfado. Quando vivi lá um tempinho fiquei muito impressionada como pode ser aplicada a tantas coisas. Então, veja só, 
virou o Manifesto do Tô Cansada
FADIGA
Tô cansada. Física e emocionalmente falando. Mas sabe que me sinto assim justamente por estar cansada, muito cansada, mais ainda de suportar coisas, fatos, versões e etcs externos? E você vai concordar comigo, seja de direita, esquerda ou sei lá; seja branco, preto, amarelo, vermelho. Tédio e cansaço andam juntos.
Tô cansada da pobreza em que anda a política nacional, que consegue até fazer de gente inteligente uns verdadeiros imbecis na defesa do escancarado indefensável, e usando argumentos que ora, ora, ora, faça-me o favor! Tô cansada desse clima de beligerância, de torcida de futebol, de xingação que não leva a nada. Uns querendo que os caras morram; outros querendo que eles sejam incensados, santos, virem mártires. Apontando o dedinho: alguém aí já foi ou tem ideia do que é a vida numa prisão? Já não basta? Não querem também que eles durmam em cama de faquires, cheias de prego?fatiguer
3481db0aTô cansada, e muito, por outro lado, de acharem que somos um tipo de idiotas que têm de aguentar ouvir dizer que os caras são coitadinhos. Que conseguem empregos de 20 mil em hotel porque “empregos regeneram detentos”, como o dono do tal hotel ousou declarar (aliás, já pensou essa informação correndo na Detenção, a fila que se formará?). Enfim, tô cansada dessa política rastaquera que junta trem com fiscal, junta Brasil com Suíça e Alemanha, uma briga para saber quem é ou foi mais corrupto, quando, desde quando, em quais governos. Fora as indiretas: pegaram carregamento de cocaína em helicóptero de deputado mineiro, e a tocha acende no couro do Aécio. Quer acusar, acusa logo formalmente. Achar que ele cheira, cheirou ou cheirará é apenas chato, e também não vai ajudar ninguém a permanecer no poder fazendo campanha suja. Lula bebeu, mas não sei se bebe ainda ou se beberá, tá? Mas é que fotos dele para lá de Bagdá circulam desde os imemoriais tempos do sindicato. E não o impediram de chegar duas vezes à Presidência da República.
pleurer_filletteTô cansada de sentir medo. E de ouvir sobre o medo dos outros, que paralisa os mercados. De andar olhando para tudo quanto é lado, suspeitando de todos. Cansada de viver nessa tensão de cidade. Cansada de invariavelmente abrir o jornal, site, portal, ligar o rádio ou tevê e em poucos minutos saber de mais um sem número de mulheres mortas em violência doméstica, criancinhas sendo usadas como trapinhos, inclusive sexuais. Tô cansada do trânsito. Da perda de tempo. Da violência nas ruas, com gente se matando e brigando por causa de latarias, buzinas. Tô cansada de ouvir os números de recordes de trânsito e de ver as faixas pintadas que inventaram, e que me lembram a história de como hipnotizar uma galinha. Risca o chão e põe o bico dela na faixa.
Tô cansada das deselegâncias. Da falta de educação e de um mínimo de civilidade. Da falta de reconhecimento. Das sacanagens vindas de todos os lados tentando botar a mão no seu bolso para arrancar algum. Tô cansada da indústria de multas. Da leniência da Justiça. Dos juízes que não leem os processos que julgam, e que decidem – claro, quando querem, num tempo considerável que se deram – com uma canetada a vida de quem tenta se defender de abusos.parler_beaucoup
Tô cansada dessa absurda e silenciosa alta de preços que todos nós sentimos e que eles negam porque negam quando reclamamos de nossas sacolas vazias, do que cortamos do orçamento, com mãos de tesoura.
Tô cansada da falta de amizade, e da incompreensão das coisas mais básicas. Tô cansada de ver a miséria e a pobreza real, nas ruas, que desaparece nas propagandas oficiais com figurantes risonhos. Aliás, tô cansada das propagandas oficiais de um tudo que apenas disfarça campanhas ilegais, mais do que antecipadas, com uns cara de pau andando em campos verdes dizendo que vão melhorar coisas que já deviam ter melhorado faz muito tempo, já que estão no poder e me lembram o Cazuza – “meus inimigos estão no poder…”sprizgja
Tô cansada de ver ainda existirem tantas tentativas de censura, e de algumas conseguirem sucesso. De ver triunfar nulidades. De ver o Brasil sempre pensando no futuro, que nunca chega.

“Mas o pior é o súbito cansaço de tudo. 
Parece uma fartura, 
parece que já se teve tudo e que não
 se quer mais nada” 
(Clarice Lispector)
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* Do site da autora.
 FONTE: http://marligo.wordpress.com/2013/11/29/

ORDEM E FRAGILIDADE

  Carlos Benedito Martins*
Ordem e fragilidade
 Goffman analisou os processos da interação entre os indivíduos nas mais diversas situações concretas: 
em um elevador, uma conversa informal, uma entrevista para obtenção de trabalho, 
uma fábrica, um hospital psiquiátrico etc. 
(imagem: Sxc.hu) 

 No sobreCultura, sociólogo disseca obra de Erving Goffman publicada pela primeira vez em 1959. 'A representação do eu na vida cotidiana', que saiu no Brasil em 1985, concentra-se na análise da interação social. 
 

A representação do eu na vida cotidiana, de Erving Goffman, foi publicado pela primeira vez em 1959 e contribuiu para a celebridade acadêmica de seu autor. Além de ter impactado a sociologia contemporânea, foi lido em várias partes do mundo por vasto e diferenciado público. No Brasil, a primeira edição saiu em 1985, pela Vozes, que, além de reimprimir este livro (na 18ª edição), vem nos últimos anos publicando outros importantes volumes da obra de Goffman.

Não deixa de ser paradoxal que um dos autores mais influentes na sociologia americana do século passado seja de origem canadense. Goffman nasceu em 1922 na pequena cidade de Mannville, em Alberta, descendente de judeus imigrantes da Ucrânia. Sua formação inicial não foi em sociologia, mas em química. No período 1943-44, trabalhou no National Film Board do Canadá, que produzia documentários, experiência que teve impacto posterior em seu refinado senso de observação dos comportamentos dos atores sociais na vida cotidiana.

Em 1944, ingressou na Universidade de Toronto para iniciar seu treinamento em sociologia. No ano seguinte, decidiu prosseguir seus estudos no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, de grande prestígio acadêmico. A passagem por essa universidade marcou de forma profunda sua produção intelectual.

Goffman estava interessado em compreender 
a complexa trama que envolve o encontro de 
dois ou mais indivíduos
Ao longo de sua vida acadêmica, Goffman privilegiou a análise do problema da interação social, presente já na tese de doutorado e também no discurso como presidente da American Sociological Association, em 1982, que não chegou a ler devido à sua morte prematura em novembro daquele ano. Estava interessado em compreender a complexa trama que envolve o encontro de dois ou mais indivíduos. Suas análises buscavam apreender os mecanismos sociais que sustentam e/ou comprometem os processos da interação entre os indivíduos nas mais diversas situações concretas: em um elevador, uma conversa informal, uma entrevista para obtenção de trabalho, uma fábrica, um hospital psiquiátrico etc.

Face a face

 

Em sua percepção, a relação face a face que os indivíduos travam entre si em situações sociais concretas constitui um domínio de investigação distinguível – a ordem de interação – que possui suas estruturas, processos e regularidades específicas, não podendo ser reduzida a situações macrossociais e cujo método adequado de investigação repousa na microanálise.

Ao recuperar a contribuição do sociólogo Willian Thomas a respeito do impacto da ‘definição da situação’ sobre o comportamento que os indivíduos desenvolvem entre si, Goffman enfatizou que as condições situacionais afetam, informam e circunscrevem as ações sociais no tempo e no espaço. Nesse sentido, insistiu que a compreensão da trama interacional deve levar em consideração a existência de situações sociais específicas nas quais os indivíduos encontram-se fisicamente presentes, desenvolvem seus comportamentos, interpretam e respondem às ações dos demais envolvidos nesse processo.
Capa do livro A representação do eu na vida cotidiana 

Em A representação do eu na vida cotidiana, Goffman usou parte das observações realizadas durante 18 meses nas ilhas Shetland, Escócia, para sua tese de doutorado, defendida em 1953. Utilizou diversas fontes sociológicas e também lançou mão de extenso material literário para ilustrar sua argumentação. Ele empregou a metáfora da dramaturgia da representação teatral para analisar como os indivíduos apresentam-se uns diante dos outros e como regulam as informações e manejam a imagem de si que procuram transmitir durante uma interação social.

Na representação teatral destacam-se três elementos: o ator que se apresenta sob a máscara de um personagem, outros personagens da peça e a plateia. O autor reduz esses elementos a apenas dois: um indivíduo que representa determinado papel social na vida real e a plateia, ou seja, os outros que estão em interação com ele. A plateia pode ser composta por poucos indivíduos ou por uma coletividade.
A partir de um vocabulário dramatúrgico, Goffman descreve vários tipos de encontros que os indivíduos realizam na vida cotidiana, tais como visitar um amigo, comparecer a um funeral, comer em um restaurante etc. Em cada um deles, o indivíduo busca apresentar um comportamento adequado à situação específica na qual ocorre sua ação.

Temas dramatúrgicos

 

O livro explora seis temas dramatúrgicos. As representações são as performances que os indivíduos realizam para projetar uma determinada imagem de si. Por equipe entende-se qualquer grupo de indivíduos que cooperam entre si como grupo de atores. As regiões se distinguem em ‘fachada’ (onde os atores apresentam suas identidades públicas em função do desempenho de um determinado papel social para uma plateia) e ‘bastidores’ (onde os atores relaxam do papel social que representam). Papéis discrepantes expressam acontecimentos inesperados que podem desacreditar a impressão que um indivíduo ou uma equipe deseja projetar para uma plateia.

A comunicação imprópria refere-se a determinados comportamentos dos membros de uma equipe que desautorizam a impressão que ela desejava passar para um público. E a arte de manipular a impressão a determinadas medidas defensivas usadas pelos atores para evitar incidentes durante o processo interacional que possam colocar em risco a representação e medidas protetoras usadas pela plateia para ajudar a reparar a representação caso tenha ocorrido alguma ruptura durante a interação.

O autor estava particularmente interessado em analisar a performance dos indivíduos diante da presença de outros de modo a influenciar a percepção que tenham dele. Assim, quando uma pessoa chega à presença de outros, empenha-se em transmitir-lhes certa impressão. Pode desejar que pensem muito bem dela. Às vezes, agirá de forma calculada para alcançar esse objetivo; às vezes tem pouca consciência de estar procedendo assim; em outras situações, um determinado papel que exerce na sociedade a conduzirá a passar uma impressão deliberada de um determinado tipo de pessoa que pretende ser. Quando um ator assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada corresponde a esse papel. Nesse sentido, existem diferenças entre fachadas mantidas por um médico, uma enfermeira e um vendedor de ferros-velhos.

A interação social implica a produção de um consenso operacional construído conjuntamente 
pelos participantes envolvidos
Na medida em que os outros que participam de uma interação agem como se o indivíduo tivesse transmitido a eles uma determinada impressão de si, para Goffman o indivíduo projetou uma definição da situação, ou seja, informou-os a respeito do que é na vida social. A performance implica expressões, atitudes e comportamentos que permitem ao indivíduo evocar uma autoimagem para os outros. Ao projetar uma definição da situação, isto é, apresentar-se como uma pessoa de determinada categoria social, automaticamente ele tem a expectativa moral de que os outros o tratem e valorizem de maneira adequada.

A interação social implica a produção de um consenso operacional construído conjuntamente pelos participantes envolvidos – por meio de sensibilidade diplomática, tato e savoirfaire –, no qual tendem a apoiar valores aos quais todos os presentes prestam falsa homenagem e evitam assuntos que poderiam comprometer o modus vivendi em construção naquele momento. Na medida em que a sustentação da situação deriva de um empreendimento coletivo, a análise apropriada não repousa no indivíduo isolado e seu aparato psicológico, mas nas relações mutuamente construídas entre as diferentes pessoas presentes. Nessa perspectiva, Goffman reivindica uma sociologia das ocasiões, capaz de analisar o empreendimento interacional, uma vez que busca analisar não o homem em seus momentos, mas os momentos e seus homens.

A crise na trama interacional surge quando um determinado acontecimento coloca em dúvida ou contradiz a imagem de si que determinado indivíduo tentou transmitir aos demais. Mesmo em interações que se desenrolam de forma razoavelmente pacífica podem ocorrer pequenos eventos involuntários, que podem solapar a impressão que um indivíduo procurava transmitir. Goffman ressaltou que em nenhum momento o ator possui completo domínio do fluxo dos acontecimentos durante uma interação. Com isso, quis destacar que a impressão criada por uma determinada representação constitui uma situação delicada, frágil, que pode ser quebrada a qualquer momento por pequenos contratempos.
Imagem no espelho
A crise na trama interacional, segundo Goffman, surge quando um determinado acontecimento coloca em dúvida ou contradiz a imagem de si que determinado indivíduo tentou transmitir aos demais (imagem: Sxc.hu)
A coerência expressiva exigida nas representações dos indivíduos coloca em evidência uma dissonância entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres humanos, possuímos estados de espírito, humores, impulsos que variam segundo as circunstâncias. No entanto, quando um indivíduo assume um determinado papel social, torna-se inapropriado estar sujeito a altos e baixos em seu comportamento. Existe uma expectativa social de que o desempenho de certo papel implique uma burocratização do espírito a fim de que o indivíduo inspire a confiança de executá-lo de forma constante ao longo do tempo.

Diante da situação de possível descrédito social que pode surgir no processo interacional, o indivíduo pode perder o controle muscular, gaguejar, arrotar, ter uma flatulência, bocejar, tropeçar etc. Ao apresentar dificuldades em manejar seu comportamento emocional, pode expressar preocupação demais ou pouco interesse na representação do outro, ter um comportamento de ansiedade excessiva, explosão de riso ou de raiva que o incapacita momentaneamente a agir de forma adequada etc.

Sentimento de embaraço

 

Conforme determinados fatos perturbadores ocorrem durante um processo interacional, interrompendo seu desenrolar, cria-se um sentimento de embaraço entre seus participantes. Para Goffman, um indivíduo reconhece um sentimento de embaraço nos outros e em si mesmo quando surgem sinais objetivos de distúrbios corporais e emocionais, como sinais avermelhados no rosto, transpiração em excesso, perda do domínio da comunicação verbal, tremor nas mãos, dificuldade no manejo do olhar, sorriso fixo etc. Nessa circunstância, os participantes descobrem que o acordo tácito que, de forma explícita ou implícita, vinha sustentando suas condutas estava equivocado.
Nesse momento, o sistema da interação entra em colapso, gerando uma situação confusa e de embaraço para o indivíduo cuja representação foi desacreditada e para os demais, que estavam propensos a acreditar em sua representação. Goffman ressalta que, no processo de desmoronamento do processo interacional, o sentimento de embaraço contamina, contagia e infringe sofrimento social a todos os participantes, sendo que o indivíduo que eventualmente contribuiu para desacreditar um outro se sente também envergonhado e culpado, pois, ao destruir a imagem do outro, ele destrói sua própria imagem enquanto ator capaz de se comportar de forma hábil e diplomática em situações interacionais delicadas.


O livro sugere que todo ator que vive em sociedade paga um alto preço emocional ao exercer no dia a dia 
um conjunto de papéis sociais
A sociologia de Goffman, ao assumir que o sentimento de embaraço causa um profundo sofrimento social para os indivíduos, concebeu o ator social mais preocupado em minimizar possíveis riscos durante sua performance no processo interacional do que em maximizar ganhos sociais. Na medida em que uma simples nota fora de compasso pode comprometer uma performance social em sua totalidade, para ele, homens e mulheres, de forma consciente ou inconsciente, conduzem suas vidas procurando a todo custo evitar situações que contradigam manifestamente a imagem que o indivíduo e/ou uma equipe projetou de si.

O livro sugere que todo ator que vive em sociedade paga um alto preço emocional ao exercer no dia a dia um conjunto de papéis sociais. Não basta desempenhá-los. Trata-se também de persuadir diariamente os outros atores a respeito da coerência entre as imagens correspondentes a um determinado papel que está executando e exibir comportamentos adequados ao que insinuou que é socialmente. A performance de um ator implica uma autodisciplina do seu eu demasiado humano e um constante cuidado para representar de forma convincente seu eu socializado de maneira a não desacreditar sua representação. O preço pago quando os outros percebem um descompasso entre as aparências alimentadas por um indivíduo e a face incongruente de seu comportamento é a humilhação social, a condenação pelos outros homens, a perda da reputação e do crédito social.

O leitor tem diante de si um livro estimulante intelectualmente, que o levará a compreender de forma mais clara, e talvez com certa ironia, as representações dos indivíduos com os quais convive em diversos contextos da vida cotidiana. E é possível que o conduza a desenvolver uma autoironia a respeito de suas próprias representações no dia a dia.

Você leu o ensaio da seção 'Perdidos & Achados' do sobreCultura 13. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral do suplemento. PDF aberto (gif)
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* Departamento de Sociologia - Universidade de Brasília
Fonte:  http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/309/ordem-e-fragilidade/view

Prudência e conhecimento efetivo

 Felipe Charbel*

Prudência e conhecimento efetivo
 A prudência como qualidade que transforma o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas 
em conhecimento efetivo da realidade é o tema deste artigo da série comemorativa dos 500 anos de ‘O príncipe’.
 (arte: Ampersand)
 
O príncipe prudente, segundo Maquiavel, é aquele que não apenas tem a habilidade de analisar, interpretar e, quando é o caso, intervir na realidade, mas também o que sabe encontrar os meios adequados de persuasão. 

De Aristóteles até o final do século 18, a prudência foi vista, por muitos filósofos políticos, como uma das qualidades mais importantes que os seres humanos deveriam ter para orientar sua ação e para intervir num mundo dominado pelas contingências. No pensamento político de Maquiavel, a prudência tem um lugar central, embora nem sempre reconhecido pelos intérpretes da obra do florentino. Ela é, ao mesmo tempo, uma qualidade necessária à ação política e à análise da política. Na prudência, ação e análise convergem em um só princípio. 
Em O príncipe, Maquiavel expõe seu “entendimento das ações dos grandes homens”, ou seja, tudo o que aprendeu na “longa experiência das coisas modernas e no estudo contínuo das antigas”. O que ele apresenta é exatamente sua prudência, ou seja, sua capacidade de analisar e interpretar a realidade. E também de intervir nela, se for o caso. 

A prudência, para o secretário florentino, é precisamente essa qualidade intelectual que permite transformar o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas em conhecimento efetivo da realidade. Ou, para empregar um termo que ele utiliza no capítulo 15 de O príncipe, em “verità effetualle della cosa”, um tipo de saber político muito diferente do conhecimento abstrato, associado ao estudo de “repúblicas e principados que nunca se viram nem se verificaram na realidade”.

Distância do conceito humanista

 

Maquiavel distancia-se das formas de examinar a política próprias do pensamento político dos humanistas do seu tempo. É possível notar, em seus escritos, uma mudança de procedimento analítico, embora não haja uma mudança na palavra utilizada para caracterizar esse procedimento: tanto o secretário como os humanistas reconheciam na prudência a qualidade intelectual que alguém deveria ter para o trato correto dos assuntos públicos.

Mas o que o secretário entende por prudência distancia-se em grande medida do seu conceito humanista. Ela não está submetida à justiça, por exemplo, ou a preceitos religiosos, especificamente cristãos, o que se pode perceber nas seguintes passagens de O príncipe, assim como em outros momentos de sua obra: “O príncipe, se for prudente, não deverá importar-se com a pecha de miserável”; “um soberano prudente não pode nem deve manter a palavra quando tal observância se reverta contra ele e já não existam motivos que o levaram a empenhá-la”.

Em Maquiavel, a efetividade analítica está diretamente associada à capacidade de formular um juízo correto com velocidade, de identificar um problema em seu nascimento, de antever os efeitos das possíveis ações realizadas por reis, príncipes, embaixadores e Repúblicas
Mas não se pode entender o alcance do conceito de prudência em Maquiavel apenas pela negativa. O mais importante nesse deslocamento em relação ao quadro tradicional das virtudes são as novas possibilidades que ele abre tanto para o exame da política como para a ação. Como o princípio da efetividade analítica é alçado ao primeiro plano, em detrimento da subordinação abstrata da análise política aos preceitos morais das tradições filosóficas da Antiguidade e do cristianismo, a interpretação da realidade dependerá exclusivamente da habilidade do intérprete, de sua capacidade de discernir nas “coisas do mundo” os princípios adequados para a ação.

Em Maquiavel, a efetividade analítica está diretamente associada à capacidade de formular um juízo correto com velocidade, de identificar um problema em seu nascimento, de antever os efeitos das possíveis ações realizadas por reis, príncipes, embaixadores e Repúblicas. 

Ninguém deve “se concentrar”, escreve em O príncipe, “apenas nos distúrbios presentes, mas também nos futuros, fazendo de tudo para evitá-los, pois com a prevenção é possível remediá-los mais facilmente, ao passo que, quando se espera demasiado, o tratamento não chega a tempo, porque a doença já se tornou incurável; é como a tísica, que, segundo os médicos, a princípio é fácil de tratar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo sido diagnosticada nem tratada precocemente, se torna fácil de reconhecer e difícil de curar. É o que acontece com os assuntos de Estado: reconhecendo à distância os males que medram nele — o que só é dado ao homem prudente —, é possível saná-los de pronto; porém, se por imprevidência os deixarem crescer a ponto de se tornarem visíveis aos olhos de todos, não haverá mais remédio”.
Prudência em Maquiavel
Segundo Maquiavel, o príncipe prudente não pode prescindir do reconhecimento público. (foto: Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
Mas a prudência, em Maquiavel, não possui uma dimensão apenas calculativa, associada ao exame dos modos de intervenção política que podem produzir resultados consistentes. Ela é também performativa, ou seja, é domínio da prudência encontrar os meios adequados de persuasão. O cálculo sem eloquência é inútil. 

É o que diz Maquiavel na seguinte passagem dos Discursos: “Desse tipo de homem”, o prudente, “é fácil que nunca surja nenhum em dada cidade, e, mesmo que surgisse, pode ser que nunca persuadisse os outros daquilo que pretendesse”. A prudência não se reduz à reflexão, ao processo de ajuizamento, mas envolve também a escolha de estratégias adequadas de composição textual e de expressão. A prudência não pode prescindir do reconhecimento público. Sem a unidade entre pensamento e expressão, não há verdades efetivas.
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* Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte:  http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/sobrecultura/2013/11/prudencia-e-conhecimento-efetivo

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ciência Livre: vale a pena um professor criar o seu blog

Ladislau Dowbor*
Arquivo
 É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos 
o acesso a trabalhos científicos essenciais.
Na virada do milênio, decidi repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um balanço.  Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas, relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje ao meu filho, que me ajudou a montar o meu primeiro site. Alguns já chamam este tipo de ajuda de filhoware.
Decidi fazer este pequeno balanço porque deve ajudar muita gente que se debate com a transição. Deixem-me dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de arquitetura do trabalho intelectual.

O ponto de partida foi o meu blog, http://dowbor.org, hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.

Deixem-me lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50 milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora. Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE (China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira ainda muito tímida.

Isto dito, eu que não sou nenhum MIT, constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte, esperando que as informações sejam úteis:

1)    A criação de um blog individual de professor representa um investimento extremamente pequeno, comparando com o benefício obtido, sobre tudo porque hoje temos estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.

2)    Ter um blog não é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog científico, na realidade, como o meu, é muito mais uma biblioteca de fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu tenha de acompanhar e administrar. Não faz muita diferença com uma estante na minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar o meu texto com uma palavra chave no computador, do que localizá-lo na estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu blog, não precisa me pedir o livro emprestado nem perder tempo dele e meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.

3)     A produção científica e a divulgação deixam de constituir processos separados. O artigo ou o livro que o professor escreve, ou que recebeu e quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português, pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles encontraram simplesmente porque colocaram palavras chave na busca por internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada, mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai para a 6ª edição pela editora, uma coisa não atrapalha a outra, a editora encontra o seu interesse também.

4)    O essencial não está na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente. Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação em geral.

5)    O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros. Coloco no blog, em Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta sobre energia, recomendo que peguem no meu site o artigo de Ignacy Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para alunos.

6)    Como professor, recebo frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço suficientemente a minha área para saber que se trata de um ótimo trabalho. Normalmente, ninguém leria o trabalho, pois o aluno não é conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons trabalhos de pessoas menos conhecidas.

7)    Tudo isto está baseado no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido, que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao mesmo tempo que permite que o texto seja imediatamente acessível para fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.

8)    Um enriquecimento muito importante do processo, é que me permite utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada produção, associando ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso ou animação gráfica sem nenhum constrangimento, pois do lado de quem lê haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem, ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem utilizada é muito útil.

9)    Trata-se de uma ferramenta em que o universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez do professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos online sobre o tema, desenvolverão a sua capacidade de pesquisar no imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados. Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.

10) O processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores. Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A minha solução, é que publico sim em periódicos formalmente avaliados como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e que não me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada 24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas condições, francamente não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e 50 dólares por artigo e por acesso. Já são mais de 15 mil cientistas americanos que boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não atualizar os seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital, um para pontos, outro para leitores.

11) Com pequenos conselhos de alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais evidentes de comunicação. No blog abri a possibilidade de qualquer pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil “colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento, permite fazer circular o material. Por tanto, a minha biblioteca virtual não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com todos os interessados, mesmo que não me conheçam.

12) Uma virtude básica do processo que precisa ser entendida, é que os textos circulam não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular, é o que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de construção científica.

13) Finalmente, eu acho que da mesma forma que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde, Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros – precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de Copyright só teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição. Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.

Permito-me aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu blog, hoje um WordPress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho. Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, com organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no começo até montar um blog adequado para professor), fiquem à vontade, eventualmente posso até recomendar pessoas que possam ajudá-los. Vamos encher este país de ciência, de boa ciência, progressista, transformadora.

Quanto ao medo das pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável, descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é relevante ou não”.
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* Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no  Instituto Polis, CENPEC, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/

PEDIR

José Tolentino Mendonça*
 Mãos

É um verbo humaníssimo, este verbo pedir. Pedimos coisas diferentes e de formas absolutamente variáveis. Quando nascemos, começamos por pedir aos gritos que partam em nosso socorro, antes de termos as palavras. Quando aprendemos a usá-las, ganhamos talvez maior tranquilidade no pedir, mas nem sempre. Pedimos porque não nos bastamos a nós próprios. E isso, que seguramente é um elemento que nos redime, não deixa de ser igualmente uma ferida. O léxico do pedir é prolífero, mas também inconstante. Pedimos com simplicidade e com inúmeros rodeios. Mantemo-nos fluentes ou gaguejamos, mergulhados numa insegurança que nos tolhe.

Pedimos oralmente, por escrito, por entreposta pessoa, de forma ostensiva ou subtil, ou, até, com maior ou menor consciência de que um pedido está a ser formulado. Há mesmo momentos da vida (e não são poucos) em que faríamos tudo para não ter de pedir. Esta dificuldade nem sempre é má Precisamos de autonomia para maturarmos o nosso caminho pessoal, e todas as dependências de que a vida se tece só ganham em ser sacudidas e purificadas por um espírito de liberdade que se afirma. Pedir pode tornar-se um obstáculo a aprendizagens que estão perfeitamente ao nosso alcance. Mas o contrário também é verdade, pois crescemos no reconhecimento de que sem os outros nós não somos. De entre todos os pedidos, os que nos custam mais são os mais simples, aqueles imateriais, e que se prendem com a arquitetura (ou arquitextura, como ensinou Derrída) das relações: pedir amor, pedir desculpas, pedir presença, conversa, calor, compaixão. Aí é tão fácil ficar enredado em engulhos, coisas não-ditas ou mal-entendidas. 

Penso muitas vezes num pedinte que conheci em Roma. Era (e é) impossível não dar com ele quando se visita a cidade. Eu estava sempre a esbarrar com uma das suas passagens: à saída da universidade, da biblioteca, do cinema, no Campo das Flores, em São Pedro, por todo o lado. De dia ou de noite. Um homem que andará hoje pelos sessenta anos de idade, com um porte discreto, delicado até. Abeira-se dos passantes com duas perguntas. «Fala italiano?» - atira primeiro. E, qualquer que seja a resposta, dá o passo seguinte. Pegando cuidadosamente numa moeda entre os dois dedos e colocando-a perto dos nossos olhos, roga: «Tem 100 liras?». Conheci-o assim, ainda antes do euro. Com a integração na moeda única, ele também se ajustou, passando a pedir 10 cêntimos. 

A primeira vez que a sua interpelação nos é dirigida pensamos que se trata de alguém que precisa de completar a quantia necessária para um bilhete de metro ou para uma fatia de pizza. Depois de o encontrarmos centenas de vezes, ficamos sem saber exatamente o que pensar. Assisti, porém, a uma cena que porventura pode esclarecer parte do enigma. 

Numa rua, à volta do Panteão, estava sentado um outro mendigo. Melhor seria dizer que estava prostrado. Com um vestuário andrajoso, um braço deformado por caroços, um ar que trazia misturado tudo: dor e exclusão. À distância, vejo o pedinte aproximar-se dele. E, para meu espanto, percebo que repete ao mendigo a cantilena que faz a todos os outros, mostrando-lhe insistentemente uma moeda. Talvez para afastá-lo, talvez vencido pela compaixão, vejo que o mendigo tira do seu prato uma moeda que lhe entrega. E foi neste momento que a cena se tornou inesquecível. O pedinte ajoelha-se ali diante de todos, agarra as mãos do mendigo e beija-as repetidamente, turbado pela emoção. Penso que finalmente o percebi. Ele não pedia moedas. Pedia um bem mais raro e vital: pedia o dom.
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* Escritor português. Teólogo. Poeta.
In Expresso, 23.11.2013
Fonte: http://www.snpcultura.org/pedir.html 27.11.13

O aumento da crença no criacionismo nos Estados Unidos

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 A busca pela certeza é uma tradição americana 
(Reprodução/Economist)
Aquela antiga religião é forte nos EUA. Para tomar apenas uma medida, por década mais de 40% dos americanos afirmam consistentemente aos pesquisadores da Gallup que Deus criou os humanos mais ou menos como esses são hoje há menos de 10.000 anos. Eles estão adotando um relato das origens do homem promovido por criacionistas da Terra jovem que recorrem a uma leitura dolorosamente literal das Escrituras, deixando de lado os contra-argumentos da ciência (os fósseis são uma relíquia do dilúvio de Noé, argumentam, e a evolução é um mito avançado por ateus). Em uma pesquisa recente 58% dos republicanos e 41% dos democratas afirmaram crer no criacionismo. Os alicerces dessas fés são o princípio da infalibilidade bíblica, isto é, uma certeza de que as Escrituras são necessariamente verdadeiras.

A busca pela certeza é uma tradição americana. Os crentes do Velho Mundo em geral herdam a religião de forma passiva, como um artefato cultural. Os americanos, um povo individualista, tem uma propensão maior a trocar de igrejas ou pastores até encontrar um credo que faça sentido para eles. Eles admiram textos seminais (como por exemplo a constituição), os quais cidadãos prosaicos podem tomar por verdades imutáveis.

Ao mesmo tempo, a fé literal está em crise. Americanos jovens estão se distanciando das denominações rígidas, as quais detêm bastante influência sobre a vida americana no pós-guerra. Ao atingirem os 18 anos de idade, a metade dos evangélicos abandona suas fés, e entrar em uma universidade pública é especialmente perigoso. O aparente paradoxo de uma forte crise na fé é explicado pela rigidez: aquilo que não dobra pode vir a quebrar. O perigo é sentido de forma aguda em círculos cristãos conservadores, nos quais foi iniciado um debate sobre as perspectivas de longo prazo do movimento.
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 http://opiniaoenoticia.com.br/internacional/o-aumento-da-crenca-no-criacionismo-nos-estados-unidos/ 28/11/2013

DRAMÁTICOS

Montserrat Martins*
  TV
Num “papo de bar” discutíamos quem será ainda imortal daqui a alguns séculos, Freud, Marx, Gandhi? Eu apostei em Shakespeare e na sua universalidade dramática, seu desvendar da alma humana em suas histórias de amor e ódio, paixão e ciúmes, vingança e reparação, generosidade e cobiça, toda sorte de paixões, enfim. Mudam os séculos, evoluem as civilizações, a ciência e a tecnologia, mas o elemento humano está lá, na massa bruta do nosso ser, com toda gama de emoções que somos capazes de sentir.

Novelas e filmes exploram isso com “conhecimento de causa”. Mesmo quem não acompanha novelas pode apreciar às vezes o desempenho de atores capazes de dar vida a personagens como Carminha ou Félix, para falar apenas dos mais recentes sucessos da tevê brasileira. Somos dramáticos, mesmo que as situações retratadas passem longe da nossa vida, as emoções nos atraem. Grandes atores e atrizes são admirados por nos brindarem com interpretações envolventes, nos propiciando momentos de “voyeurs” sentimentais.

No cotidiano temos de reprimir muitas emoções, no convívio social, por isso as atuações dramáticas nos agradam, nos liberam, se tornam formas de prazer, de diversão. Prazeres instintivos, cuja repressão e canalização para finalidades mais nobres seria uma tarefa evolutiva, civilizatória. Pois a TV está repleta de programas sensacionalistas, a começar pelos policiais, você sabe. Estes programas são assistidos e apreciados pelos próprios “bandidos” caçados ali, numa espécie de “coluna social”, pois é o único local onde eles se vêem na TV.

A exploração barata das emoções em programas populares, num “vale-tudo” pelo Ibope, vai funcionar enquanto houver público para isso. Das boas dramaturgias, dramas dos quais podemos extrair algum significado e aprendizagem, podemos dizer que são universais enquanto capazes de atingir a todos, em diferentes locais e épocas. Muitos Datenas se sucederão e Shakespeare ainda estará lá, como vem ocorrendo há vários séculos. Como foi dito de maneira poética por Machado de Assis: “Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare, quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare”.

E o que os dramas nos ensinam? Haverá alguma fórmula para a mudança de comportamento, psicológica ou bioquímica, capaz de alterar nosso modo de nos relacionar uns com os outros? A evolução elevará nosso nível de consciência social, ou seremos uma civilização decadente, cega pelo consumismo? Temos capacidade de ser menos imediatistas a tempo de evitar o deterioro das condições de vida no planeta? Não sei as respostas, mas todas essas questões filosóficas tem um mesmo cerne: a condição humana. Os dramas nos ensinam é que não há respostas fáceis.
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* Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
Fonte:  http://www.ecodebate.com.br/2013/11/28/dramaticos-artigo-de-montserrat-martins/
Foto: Karen Goodman – http://yearofserendipity.com

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Oriente não grita. O Oriente sussurra.

Martha Medeiros* 
 
Passei os últimos 21 dias realizando um sonho antigo: conhecer a Tailândia. 
(...)

Além de usarem um tom de voz absolutamente relaxante para nossos ouvidos estressados, nunca vi tantos sorrisos em rostos estranhos. As pessoas sorriem o tempo todo umas para as outras. Por nada. Por tudo. Trabalham sob um calor massacrante e ainda assim não se emburram, não perdem a compostura, não passam a mão na testa, parece que nada que é externo os atinge. O ar-condicionado funciona por dentro. A alma é que é climatizada.

Sua cultura não estimula o contato físico que para nós é tão normal: nem abraços, muito menos esbarrões. Não se tocam com o corpo: o contato se dá com o olhar direto e com o semblante sereno de quem, em sua infinita calma (90% da população é budista), tem tempo para ouvir os outros e para repetir informações pacientemente até que fique claro que o importante não é tocar, e sim trocar.

Até mesmo no apressado e caótico trânsito de Bangcoc, a coisa se resolve sem buzina.

Pessoas viajam pelo mundo para conhecer monumentos, comer, comprar. A atenção geralmente é voltada para o que se pode fotografar com a câmera e administrar com o bolso. A Tailândia e o Camboja são realmente fotogênicos. Quanto às compras, o mundo virou um supermercado gigante e o que se comercializa lá é vendido aqui também, compra-se mais por impulso do que pela novidade. O que não se globalizou (ainda) é o espírito do lugar, e isso é que verdadeiramente encanta: a reverência que não é submissão, mas respeito. O silêncio que não é timidez, mas educação. E flores e cores em abundância, que traduzem a importância do mínimo essencial: a beleza que não é vaidade, mas manifestação de amor à vida.

Impossível não voltar tocada.
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* Escritora.
OBS.: O texto integral se encontra na ZH.
Fonte: ZH on line, 27/11/2013
Imagem da Internet

José Mujica: "Queremos combater o narcotráfico ao roubar-lhe o mercado"

José Mujica: "Queremos combater o narcotráfico ao roubar-lhe o mercado" Félix Zucco/Agencia RBS
O ex-guerrilheiro tupamaro, conhecido por manter uma vida simples mesmo após a presidência, lidera a estratégia 
mais controversa de combate às drogas na América do Sul 
Foto: Félix Zucco / Agencia RBS

Comandante do Uruguai fala a ZH sobre a legalização da maconha e outros temas

De alpargatas, cabelos desalinhados, barba por fazer, o indefectível bigode de cantor de tango e a simplicidade que o mundo aprendeu a ver como autêntica, o presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, ou simplesmente Pepe Mujica, 78 anos, recebeu ontem Zero Hora em sua chácara de Quincho Varela, distante 20 minutos do centro de Montevidéu. Mujica é amável. Na entrada de madeira da propriedade, a já famosa cachorrinha perneta Manuela aproxima-se dos visitantes, aceita os afagos. Há outros dois cães e um gato à porta da residência, mas só ela acompanha o homem que governa 3,5 milhões de uruguaios.

A chácara é o seu recanto do ex-guerrilheiro tupamaro, em meio a livros, flâmulas e recordações. Ali, produz seu próprio Tannat e planta acelga, beterraba e flores. A única segurança à vista é um carro da polícia. Um furgão serve de transporte presidencial, em lugar do Fusca azul, ano 1987, que valeria algo como US$ 900, não fosse o ilustre proprietário.

Na entrevista, de 50 minutos, o presidente uruguaio define como um "teste social" a legislação que regula a produção e o consumo de maconha, aprovada pela Câmara dos Deputados e à espera de votação no Senado. Defende um mundo mais justo e sem preconceitos. Põe fé num Mercosul vitaminado, critica a Argentina e diz que o mensalão não ocorreria em seu país.

Leia a íntegra da entrevista:

Zero Hora — Que sonhos de guerrilheiro o presidente José Mujica colocou em prática?
José Mujica — Creio que a motivação da preocupação social, de tratar de contribuir para conseguir uma sociedade com melhores relações humanas, mais justa, mais equitativa, onde o "meu" e o "teu" não separe tanto as pessoas. Essa maravilhosa aventura que é a vida, que, por ser tão cotidiana, as pessoas não se dão conta. Só valorizam o que têm. Estar vivo é quase um milagre. Procurar que as pessoas estejam o mais felizes possível. Essa é uma causa nobre. Naquela época, pertencíamos a um mundo que tinha seus arsenais de ideias, e entramos em outro mundo. Mas, na realidade, a causa que nos impulsiona é a mesma. Os caminhos que podemos tentar são diferentes, mais complexos. Tudo ficou muito mais difícil, sobretudo é tudo a muito mais longo prazo do que o que poderíamos pensar em nossos tempos de juventude.

ZH — Por quê?
Mujica — Por causa da realidade. As mudanças culturais são enormemente difíceis. Existem classes sociais cuja cultura é muito difícil de mudar, custa muito esforço, muito conhecimento. Necessitam-se recursos difíceis de conseguir. Acredito que o mundo pode ir construindo uma sociedade mais justa, mais nobre. Na medida em que exista mais massificação do conhecimento e da cultura no nível das grandes massas, um país que tem muita gente e que está escravizado na sociedade de consumo vai ter a construção de uma sociedade melhor. Então, o que parecia ser impossível vai demorar um pouco mais.

Leia mais:
Em setembro, na ONU, Mujica fez discurso histórico. Veja a íntegra

ZH — Quanto o senhor está conseguindo fazer?
Mujica — Algumas coisas. Há menos pobres, de pobreza material. Há muitos pobres na cultura e nos sentimentos. Creio que fizemos algo e outros terão de seguir. Sou favorável à existência dos partidos políticos, das organizações políticas, porque nossas vidas são curtas, e essas causas necessitam muito tempo. Custa muito fazer uma colheita, e o período da vida humana é relativamente breve. E as causas não são coletivas, são intergeracionais. Não se vai conseguir um milagre de um dia para o outro. Fizemos nossa parte, plantamos, e tratemos que outras pessoas sigam levantando a bandeira e lutando por isso. Antes, pensávamos que haveria algum dia triunfal, em que arrancaríamos a revolução. Hoje, pensamos que a marcha é muito mais lenta e de longo prazo, que compreende nossa vida e a de muitas outras gerações e que temos que ir contribuindo para essa luta sucessivamente. Talvez os chineses, quando construíram a Grande Muralha, pensaram que era missão impossível, de 300, 400 anos. Bem, a fizeram. Temos de fazer uma grande muralha de corações, de sentimentos e de cultura. Vai durar muito.

ZH — A vida é uma construção?
Mujica — A vida é uma construção permanente, e isso dá sentido à vida. A vida se pode viver porque se nasceu, como um vegetal ou qualquer animal. Pode-se dar um conteúdo a esse milagre da vida. Então, nós nos sentimos felizes de participar dessa luta.

ZH — O senhor gosta que seja assim? Que não seja como o senhor pensava quando era um tupamaro?
Mujica — Sigo sendo um tupamaro. Não deixei de ser. O tupamaro se rebelava contra a injustiça. Isso eu tenho muito claro. Há os caminhos, as circunstâncias, mas a maneira de ver a vida continua a mesma.

ZH — As mudanças de costumes, como o casamento igualitário e outras, fazem com que a sociedade uruguaia seja mais igualitária?
Mujica — Creio que ajuda, ajuda. Não são a causa essencial. Colaboram. A causa essencial segue sendo ricos e pobres, as classes sociais. Um homem de cor discriminado, se é pobre, aí sente a discriminação. Se é rico, não tem problema. Um heterodoxo sexual, se é pobre, aí tem problema. Se é rico, não tem problema. Assim, a contradição fundamental segue sendo a das classes sociais. As outras também existem e ajudam, mas são secundárias. E é mais fácil resolver o secundário do que o principal.

ZH — Resolvendo-se o secundário, é possível ter o principal como alvo?
Mujica — O principal é o alvo clássico. Custa muito.

ZH — Quanto custa?
Mujica — Não sei, mas criar um mundo mais igualitário custa muito. Custa muito. Porque o motor do desenvolvimento de nossa economia é o lucro, e é o afã de lucro que move a humanidade. Creio que substituir esse motor pela solidariedade é uma mudança cultural que exige uma verdadeira revolução.

ZH — Tivemos nos anos 1990 na Argentina, com Carlos Menem, e no Brasil, com Collor, governos que pensam diferente do senhor. Acredita que nessa década que se considera como de definição do neoliberalismo houve um retrocesso?
Mujica — O homem é um animal utopista. Há utopismo de esquerda e há utopismo de direita. Esse utopismo de direita, o neoliberalismo, é o sonho de acreditar que pela via crônica de mercado se solucionam todos os problemas. Esse é um utopismo de direita: a parte sagrada é o mercado. Se o mercado funciona livremente, tudo mais se resolve. Nós acreditamos que isso seja um absurdo. Não é que o mercado não tenha importância, mas ao lado do mercado há outras coisas que têm importância. O assunto é mais complicado. O mercado tem certa participação na sociedade, mas também tem suas limitações. Precisa-se de políticas, políticas sociais. Deve-se contribuir para que o Estado trate de compensar aquilo que o mercado não soluciona. O mercado não distribui igualmente, concentra. Concentra a riqueza. Mesmo que gere muita riqueza, concentra-a tanto que acaba não distribuindo proporcionalmente a riqueza que se cria. O mercado também cria diferenças sociais enormes. Se o Estado não tem políticas que contribuem com eles, não acredito que o mercado... Esse foi o sonho dos utopistas de direita. Reduzir o Estado ao mínimo, não ter políticas sociais, e deixar que o mercado, livremente, ajeite tudo. O utopismo de esquerda é acreditar que o Estado é capaz de fazer tudo e resolver tudo. E termina criando uma burocracia que também segue sendo terrivelmente injusta. Qual é o caminho? Bem, aí está a discussão. É preciso um pouco de mercado, é preciso um pouco de Estado. Mas se precisa, fundamentalmente, que as pessoas sejam dirigentes de si mesmas. Que tenham capacidade de se autogovernar em tudo que seja possível. Para mim, esse é o motor essencial da mudança: que as pessoas não precisem de um Estado que as governe tanto, nem de um mercado cego. Mas que cada um seja responsável em grande parte por seu destino, que possam se juntar com outros e conduzir os fenômenos econômicos, dirigir empresas etc, e não precisem ter de pilotar uns aos outros. Mas isso vai ser um processo...

ZH — Isto não é uma mudança de sua parte, na medida que nos anos 1970 acreditava na revolução marxista, com a economia no centro?
Mujica — Sim.

ZH — E hoje, pelo que me parece, quer uma revolução mais cultural, comportamental.
Mujica — Marx foi muito ridicularizado, tanto por alguns de seus defensores como por alguns de seus detratores. Ele reconheceu a importância que tem o aspecto econômico, mas que não significa que a história humana se explica só pelo econômico. A história humana tem muitos componentes. Acho que, da economia, o mais importante é forja em que se cria a cultura de uma nação. Nós, hoje, temos uma cultura capitalista. E quem tem essa cultura não são os grandes donos do capital, que é óbvio que devem tê-la. Quem tem essa cultura é aquela grande massa que consome e gasta e se move todos os dias. Tem uma cultura capitalista cada indivíduo que quer melhorar somente o que é seu. A visão socializante é mais gregária: em vez de se dizer "eu", se diz "nós". É muito mais social. Uma cultura de caráter social é aquela em que pensamos como espécie ou no interesse geral. Nós pensamos primeiro nos nossos próprios interesses. Isso é próprio de uma cultura capitalista. As relações de produção podem mudar, mas se a cultura não muda, a mudança das relações de produção não vai ter efeito. Quando se tentou construir o socialismo e se passou todos os bens importantes às mãos do Estado, as pessoas que foram trabalhar no Estados vieram com uma cultura também capitalista e isso acabou na burocracia. Um homem primitivo, um caçador de uma tribo, tinha um sentido social. Esse caçador de tribo, quando caçava um animal, sabia que esse animal não era dele, era da tribo e o levava para servir de comida à tribo. A sua cultura é gregária e social. Uso essa imagem para ver esse fenômeno, que é bastante difícil. O ser humano viveu 90% do tempo que está na Terra com uma cultura tribal. A história, a tecnologia, o comércio nos transformaram nisso que somos, com mentalidade e cultura capitalistas. Temos uma contradição entre o que somos e nossa herança histórica e o que acontece hoje. Superar isso vai custar muito à humanidade, e não sei se superamos isso. É uma espécie de bem perdido.
 
Companheira inseparável, a mascote Manuela perdeu perna em acidente
Foto: Félix Zucco

ZH — Quando o senhor tenta legalizar a produção da maconha, é uma maneira de fazer com que um aspecto perverso do capitalismo, que é o narcotraficante, seja afastado do processo?
Mujica — Nós não legalizamos a maconha. Regulamos um mercado que já existe. Nós não inventamos esse mercado. Ele já existe. Hoje. Aqui. Tratamos de regular e intervir nesse mercado. Porque o narcotráfico é pior que a droga. O narcotráfico nos traz outros problemas sociais terríveis. Ele degrada o mundo delituoso. Arruma tudo com dinheiro ou morte. Há um lema: dinheiro (plata) ou chumbo (plomo). O mundo delituoso também tinha uma escala de valores. O narcotráfico significa uma degradação na degradada consciência delituosa. É, dentro da cultura do delito, agravar o pior do delito. As consequências sociais vão além do narcotráfico. Toda a delinquência fica violenta, desproporcionalmente violenta. Nossa sociedade está coberta de uma violência irracional e estúpida, às vezes, por ser desproporcional. Sou capaz de matar um homem para tirar-lhe um dinheiro mínimo, de um trabalhador comum. No campo do delito, sempre houve uma certa proporção entre o que se podia fazer e o que não valia a pena. Isso se perde com o narcotráfico. Estamos tentando terminar com esse mercado, legalizando o consumo da maconha, mas controlando-o, dando uma ração mensal ao viciado. Se a pessoa quiser passar dessa ração, teremos que tratá-la. Se mantemos essas pessoas no mundo clandestino, não podemos identificá-las, e as deixamos para o narcotráfico. Queremos combater o narcotráfico ao roubar-lhe o mercado e o deixando sem negócio. Se conseguiremos, não sei. O que pedimos é o direito de experimentar, em frente ao evidente fracasso, em todos os lugares, que a repressão teve. A repressão não chega, acredite. Queremos fazer política por outro lado. O narcotráfico é um fenômeno capitalista típico. Como tem alto risco, tem alta taxa de lucro. E por que tem alta taxa de lucro? Porque é um monopólio, poucos o praticam porque tem alto risco. Mas é um fenômeno que se alimenta assim mesmo. A repressão asssegura o monopólio para os poucos que estão no negócio. Não há concorrência, ou há muito pouca. Esse é apenas um aspecto de tantos. O que queremos fazer é um teste social.

ZH — Se essa medida uruguaia for um sucesso, pode ser um modelo para outros países?
Mujica — Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros países possam aprender alguma coisa. E põe em xeque a ideia de que a única maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos de combinar. A repressão não é suficiente. Por um lado, é preciso reprimir, mas por outro, é preciso dar uma alternativa conduzida.

ZH — Nos anos 1970 e 1980, a maconha tinha glamour. O senhor nunca fumou?
Mujica — Não, nunca fumei. Nesse anos, estava preso. 

ZH — Mas conviveu com muitas pessoas...
Mujica — Sim. Não. A verdade é que não. As drogas são tão velhas quanto o mundo, sempre existiram. A guerra do ópio na China, que sei eu? A drogas são velhas, o narcotráfico é que é um fenômeno moderno. É muito pior, degrada toda a sociedade. Não defendo o consumo de maconha, nem nenhum vício. Mas uma coisa é o que pensamos, e outra é o que a sociedade faz. Sabemos que o cigarro faz mal, mas quanta gente fuma? Se você toma dois, três, quatro uísques por dia, é suportável, mas se toma uma garrafa por dia, temos que tratá-lo, pois é um alcoólatra. Acredito que com a droga é a mesma coisa. Temos que ver a quantidade que, mesmo que perigosa, pode ser suportável, e quando temos de tratar álcool. Com o álcool não acontece isso. Uma coisa é uma pessoa alcoólatra, outra é uma que bebe de vez em quando. Certo?

ZH — A presidente Dilma falou com o senhor alguma vez sobre essa lei?
Mujica — Ela tem muito medo pelas dimensões do Brasil. Não vê outro caminho a não ser reprimir, agora. 

ZH — Vocês conversaram sobre isso?
Mujica — São países muito diferentes. Brasil tem uma dimensão colossal. E tem muita experiência nessas coisas. O Uruguai foi um país em que o Estado, por quase 50 anos, foi o único que produzia álcool: grapa, cachaça, rum, conhaque, tudo isso era o Estado que produzia. Não era privado. O Estado vendia para as pessoas. Isso durou 50 anos, terminou por 1918, 1917, por aí. Tinha o "armazém" estatal. Foi um país que reconheceu a prostituição e a legalizou lá por 1914. O Uruguai inventou uma universidade para que as mulheres pudessem ir, nessa década também. Porque as pessoas não queriam mandar suas filhas para estudar. Com o tempo, o ensino passou a ser mesmo, mas no início tinha muita resistência. Se estabeleceu o divórcio pela vontade da mulher. O voto das mulheres... Temos a tradição de sermos muito abertos. O "armazém" estatal do álcool tinha 15 anos antes da Lei Seca dos Estados Unidos, que foi horrível. A Lei Seca foi pior do que nunca, não é? Temos a tradição de reconhecer os problemas. E tratar de legalizá-los e organizá-los da melhor maneira, e não escondê-los. Não é que a gente goste da prostituição ou do álcool. É outra coisa. A realidade é de temos que enfrentar e organizar para que seja o menos prejudicial possível. O que pedimos ao mundo é a capacidade de fazer um experimento. E ver se, por esse lado, recuperamos muita gente que estamos perdendo. Se estivermos errados, vamos dizer que estávamos errados. E aprendemos. E se descobrirmos algum caminho, podemos oferecê-lo ao mundo como experiência, e que cada um faça o que achar melhor. 

ZH — O senhor está certo de que essa medida será um sucesso ou há um temor?
Mujica — Tem seu perigo, porque temos que criar muitas coisas. Já se vão cem anos reprimindo as drogas, e estamos fracassando. Não quero dizer que isso que começamos a experimentar nos dê uma solução. O que sabemos é que o que foi feito até agora não é suficiente. E como não é suficiente, cada vez temos mais pessoas presas por envolvimento com drogas, temos de encontrar outro caminho. Não vamos mudar fazendo sempre o mesmo.

ZH — O Uruguai é um país pequeno que precisa de mais voz. O senhor tem falado muito com a presidente Dilma Rousseff a respeito do acordo entre Mercosul e União Europeia. É muito importante para o Uruguai esse acordo?
Mujica — É importante ter diversidade. O mundo se está organizando em um grande bloco. A comunidade européia tem 20 e tantos países, com história, idioma, cultura diferentes. Sem dúvida, por mais que se critiquem, estão se juntando. E criaram uma realidade econômica muito importante. Os Estados Unidos têm seu acordo com Canadá e com México. Do outro lado do oceano está a China, que é um estado multinacional milenar. Tem a Índia. Esse é o mundo em que vivemos. Nesta região, o principal comprador que temos é a China. É o principal cliente do Brasil, nosso, do Paraguai e da Argentina. É inteligente não depender de um único país. É inteligente diversificar o mercado. Precisamos da Europa como uma alternativa que ajude a equilibrar os pratos da balança. A relação com a Europa é importante pelo que a Europa significa. Mas também é importante porque nos dá uma alternativa diante da crescente dependência econômica do mercado chinês. Quanto mais equilíbrio e diversidade, mais seguros estaremos. Temos de discutir ao máximo com a comunidade européia, que, por razões culturais, está relativamente perto, muito da nossa população tem origens lá. Mas isso também depende do que nos pedirem.

ZH — Há uma resistência muito forte da Venezuela, da Bolívia, do Equador e também da Argentina. Isso é um problema?
Mujica — Entendemos essa resistência, mas acreditamos na diversidade. No mundo de hoje, não se pode ser independente total — e uso a palavra entre aspas. Temos de ser interdependentes para termos a maior margem de independência possível. Se dependemos de um somente, é perigoso. Se conseguimos diversificar, que nossa orientação exterior dependa de três ou quatro, e se possível mais, melhor. Então, sou a favor da política de diversificar.

ZH — Essa resistência da Argentina é o motivo de alguns desentendimentos?
Mujica — Não. Acredito que a Argentina tem um projeto, e tem todo o direito de tê-lo, no estilo 1960. Acreditam em solucionar os problemas e vão se fechando cada vez mais. Posso entender se essa for a política geral de todo o Mercosul, mas se fechar para os próprios países do Mercosul me parece que tira o sentido do Mercosul.

ZH — Mas isso é o que vem acontecendo. O que vocês podem fazer para mudar isso?
Mujica — Isso depende deles. Não podemos intervir. Essa é uma questão da política argentina.

ZH — O Brasil é um aliado do Uruguai?
Mujica — Sim, muito bom. O Brasil tem uma política federal. Às vezes, temos uma contraposição, porque, como federação, em algum estado pode surgir um obstáculo. Mas o governo federal sempre defende a relação. Mateamos bem.

ZH — A economia do Uruguai é muito parecida com a do Rio Grande do Sul.
Mujica — É parecida, mas o Brasil é muito grande. O melhor cliente que temos para a carne de cordeiro é São Paulo. Nosso problema para entrar no Brasil é produzir com qualidade. Tem um público de grande poder aquisitivo no Brasil. Pagam muito bem por qualidade.

ZH — O senhor crê no futuro do Mercosul?
Mujica — Creio na necessidade de integração. Mercosul e mais. Não podemos estar sozinhos. Até países grandes como o Brasil precisam de aliados. A comunidade econômica europeia tem com seus seiscentos e tantos milhões, com alto pode aquisitivo. Os Estados Unidos, com Canadá, e o México é um mercado gigantesco. A China e a Índia, com suas enormes populações. Todos eles são inalcançáveis se não tivermos a inteligência de juntar-nos.

ZH — Uruguai, Paraguai e países com populações menores sofrem mais com isso?
Mujica — Sim. E o Mercosul entendeu isso e, por isso, nos ajudou. Achamos que há projetos interessantes na economia brasileira, que devemos desenvolver e colaborar. Por exemplo, a conexão elétrica que estamos fazendo com o Rio Grande é importante. Porque não podíamos trazer energia ou mandar quando nos sobra. Agora podemos, com uma conexão de 500 megawatts. Vamos fazer um porto bi-nacional com o Brasil, e não é contra o Brasil, é para ajudar. Para que possa transportar coisas pelo Rio Paraná, pelo Rio Paraguai, porque o transporte por água é mais barato que por caminhões. Temos que criar coisas complementares com o interesse do Brasil, para que essas coisas sejam nos ajudem mutuamente.

ZH — Agora, no Brasil, o ex-deputado José Genoino, que esteve na guerrilha, está na prisão. Como o senhor vê isso?
Mujica — Não gosto da prisão por motivos políticos. Precisamos lutar por uma humanidade que possa superar essa contradição. Mas sobre esse assunto, não tenho informações para poder opinar.

ZH — No Brasil, há um sistema político no qual, para que o governo tenha a maioria, há muitas negociações, o que gerou o mensalão. No Uruguai, há um modelo diferente?
Mujica — Aqui não existe isso. No Uruguai, os partidos são muito sólidos. As pessoas não mudam de partido. Os partidos tradicionais são tão velhos quanto o país. E a nossa Frente Ampla, que está no governo, já tem 40 e poucos anos. Não existe essa prática. Aqui, não se compra ninguém nessas decisões. Estamos muito longe disso.

ZH — Esses partidos que existem há anos, essa raiz fortalece a ideologia?
Mujica — Acredito que temos de defender os partidos. Porque os partidos tendem a expressar vontades de caráter coletivo, que vão além das fraquezas individuais. Os indivíduos têm importância, mas não tanto quanto os partidos. Sei que o Brasil é muito grande, é um país continental, tem problemas de integração. E, às vezes, um Estado olha o mundo de maneira independente e aparecem coisas que podem ser criticadas. Mas é milagroso que um governo com minoria parlamentar tenha podido fazer as coisas que o governo Lula fez no Brasil. Não é fácil isso. Sei que lá as pessoas mudam de partido facilmente.
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Fonte: ZH on line, 27/11/2013