segunda-feira, 31 de março de 2014

O Grande Irmão no supermercado

Esther Vivas*

 

“As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e quando, podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo de que ‘necessitamos’ e o compramos encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se em uma nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência disso.” 

A reflexão é de Esther Vivas, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 29-03-2014. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Nós associamos a compra no supermercado a modernidade, autonomia, livre escolha, mas há poucos lugares no mundo, que fazem parte da nossa vida cotidiana, tão controlados e monitorados quanto estes estabelecimentos. Com a nossa compra, embora não pareça, há muito em jogo. Por isso, em um supermercado nada está por acaso. Tudo é pensado para que compremos, e quanto mais, melhor.

Um laboratório chamado ‘super’

Chegamos ao ‘super’ e cartazes, em geral de cores claras, nos dão as boas-vindas animando-nos a entrar, muitas vezes acompanhados de ofertas que anunciam preços muito baratos. Pegamos o carrinho, tão grande que precisamos muito para enchê-lo para que não pareça vazio, e começamos a busca do que precisamos por inúmeros corredores com estantes abarrotadas de produtos. O carrinho, por mais que ande reto sempre esbarra com a estante e ali você vê, como quem não quer a coisa, um novo artigo que não esperava e o acrescenta à lista de compras.

Tem necessidade de leite e iogurte e precisa atravessar todo o centro comercial para obtê-los. Por que sempre colocam aquilo de que mais necessitamos no fundo do mercado? No caminho, um fio de música ritmada toca. Quase não é possível ouvi-la, mas ela está aí, animando-o para comprar. Você olha preços e nunca entende porque os preços não são redondos, mas sempre terminam com decimais, dificultando a comparação entre uns e outros. Sorte que você se fixa em todos aqueles que acabam em nove, e assim economiza um pouco. Embora, talvez, também não haja tanta diferença entre pagar um centavo a mais ou a menos. Isso sim, o produto parece mais barato.

Às vezes é preciso parar, porque dois carrinhos com pessoas comprando se encontram. E me pergunto: por que fazem os corredores tão estreitos? Enfim. Aproveito para olhar uma estante e outra e ali está esse pacote de batatas fritas que não me convém olhando de frente. Vai, não virá daqui... ao carrinho! Avanço agora buscando o pacote de arroz que preciso, mas já o mudaram outra vez de lugar. Não entendo porque cada x de tempo mudam os produtos de lugar. Quando já sei o caminho de cor, devo, novamente, dar mil voltas antes de encontrar o que procuro. Isso sim, ao reaprender o caminho descubro novos produtos aos quais não havia me antenado antes.

Resta-me apenas pegar o detergente. Na sessão de limpeza e à altura dos olhos vejo essa marca que dizem, na televisão, deixa a roupa tão limpa. Pego uma unidade e, por acaso, olho o preço... que caro! Devolvo a unidade. Observo acima e abaixo na prateleira e ali encontro outra marca menos conhecida, mas mais barata. Abaixo-me e a pego. Por que será que a colocam em um lugar mais difícil para pegar? Chega a hora de passar pelo caixa. Na fila e cansada com a espera vejo chocolates, balas, guloseimas... e a apenas um palmo. Impossível dizer “não”. Vai para a cesta.

Analisando meu “percurso”, me pergunto: quantas coisas comprei e que não necessitava? Adquiri os produtos que me interessavam? Calcula-se que entre 25% e 55% da nossa compra é compulsiva, fruto de estímulos externos. Colocamos no carrinho, mesmo que não nos faça falta. E ao passar por uma prateleira, cerca de 20% compram antes a marca que se encontra na altura dos olhos do que outra qualquer, apenas por comodidade, embora as outras sejam mais baratas. Sem estarmos conscientes, somos porquinhos da índia em um grande laboratório chamado ‘super’.

Sorria, você está sendo filmado

Nossos movimentos em um supermercado nunca passam despercebidos. Uma câmera ou outra, colocada aqui ou ali, registra tudo. Mas, o que é feito com essas imagens? Sabemos quando estamos sendo filmados? Podemos ter acesso a essas imagens? O professor Andrew Clement, da Universidade de Toronto e fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança, assinala a nossa indefesa em relação a estas práticas. Segundo um estudo realizado por sua equipe no Canadá, nenhuma das câmeras colocadas nos maiores centros comerciais canadenses cumpria os requisitos de sinalização obrigatórios por Lei. Aqui, na Europa, a polêmica também está presente. Não temos ideia de que, nem como, nem quando filmam, nem o que fazem com as imagens.

A cadeia de supermercados Lidl protagonizou um dos maiores escândalos quando, em março de 2008, descobriu-se que espiava sistematicamente os seus trabalhadores em vários estabelecimentos na Alemanha com mini-câmeras colocadas em lugares estratégicos. Cada segunda-feira, estas câmeras serviam para controlar os trabalhadores, gravar suas conversas e elaborar perfis pessoais detalhados. Não se trata de um caso isolado. Sua concorrente, a Aldi, foi acusada, em março de 2013, de espiar os seus empregados em vários supermercados na Alemanha e na Suíça com câmeras ocultas, segundo a revista alemã Der Spiegel.

Aqui, a Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo sancionador contra a Alcampo por espiar os seus trabalhadores. No final de 2007, a Alcampo instalou secretamente em um hipermercado de Ferrol três câmeras ocultas em espaços reservados aos funcionários. Semanas depois, utilizou o conteúdo destas fitas para demitir um empregado e punir outros onze.

Os consumidores são, também, objeto de voyeurismo. O último foi estreado pela cadeia de supermercados Tesco, no final de 2013, na Grã-Bretanha. A empresa instalou em 450 postos de combustíveis pequenas câmeras com o objetivo de escanear o rosto de seus clientes na fila do estabelecimento com o objetivo de detectar sua idade e sexo e oferecer-lhes a publicidade mais apropriada aos seus perfis. O filme de ficção científica Minority Report de Steve Spielberg tornado realidade, mesmo que os anúncios personalizados a partir da leitura da retina, como aparecia no filme, não precisem, pelo que parece, esperar até 2054.

A nossa vida em um cartão

“Tem cartão de cliente?”, já é um ritual que nos perguntam quando passamos pelo caixa. E se não o tem, oferecem-nos um mar de vantagens, descontos e recompensas após a compra. Deste modo, corremos para preencher o formulário, anotando todos os nossos dados, sem sequer ler o que assinamos, para poder ter acesso o quanto antes a tão fantásticas promoções. No entanto, o que acontece com a informação que damos? Quem a usa? Para que finalidades? Isso é algo que não nos contam na hora de preencher o formulário.

Os supermercados são os reis dos cartões de fidelização. Oferecem-nos presentes, descontos, pontos... se passamos uma e outra e outra e outra vez no caixa. Além de contar com a nossa fidelidade, as empresas da grande distribuição buscam, mediante estes cartões cliente, conhecer tudo, ou quase tudo, sobre a nossa vida privada: quem somos, a nossa idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a ficha que preenchemos, as compras periódicas que realizamos ficam, a partir de então, registradas para sempre em nosso arquivo: se gostamos ou não de chocolate, se preferimos a carne ao peixe, qual café, massa, bebidas, conservas, verduras... Sabem tudo.

As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e quando, podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo de que “necessitamos” e o compramos encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se em uma nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência disso.

O rastro do que compramos

Dizem que comprar no supermercado do futuro será mais prático, cômodo, rápido e não precisaremos fazer fila nem passar pelo caixa. Tudo, graças, entre outras coisas, à tecnologia de identificação por radiofrequência ou etiquetas RFID. Etiquetas que contêm um microchip e que registram informação detalhada sobre a “vida” do produto no qual se encontram. São como um número de série único que armazena e emite, através de antena, dados específicos sobre esse artigo.

Assim, num futuro não tão distante, parece, poderemos entrar em um supermercado, pegar um carrinho de compras “inteligente”, carregar em sua base de dados a lista de compras, deixar que nos guie até os produtos indicados, dar-nos informações sobre os mesmos e indicar o quanto estamos gastamos. E ao sair, não será necessário passar pelo caixa. Pelo fato de cada produto trazer embutido uma destas etiquetas, uma antena receptora fará automaticamente a identificação e o total da compra será debitado diretamente em nossa conta... e sem fazer fila. O que mais podemos pedir?

O problema reside, como assinalaram grupos de consumidores nos Estados Unidos, como o Caspian (Consumidores contra a Invasão da Privacidade dos Supermercados) e o Epic (Centro de Informação sobre Privacidade Eletrônica), no controle que estes sistemas exercem sobre as pessoas. Nada impede, por exemplo, que estas etiquetas possam continuar acumulando informação uma vez fora do supermercado, seguindo cada um dos passos dos produtos e de nós como consumidores.

Hoje, encontramos estas etiquetas RFID em alguns produtos dos supermercados, que convivem com os tradicionais códigos de barra. Seu custo, no entanto, limita no momento e em parte uma maior generalização. Embora, segundo o Instituto Nacional de Tecnologias da Comunicação e a Agência Espanhola de Proteção de Dados cada vez seja mais frequente encontrá-las nas etiquetas de roupas e calçados assim como em sistemas para a identificação de mascotes, cartões de transporte, pagamentos automáticos de pedágios, passaportes, entre outros, colocando em risco a nossa privacidade.

Querem nos fazer crer que os centros comerciais são sinônimos de liberdade. Agora, o Supermercado Caprabo apela, em sua publicidade, ao “livre comprador” que está dentro de nós. “Damos-lhe tudo para que seja livre para escolher o que mais gosta”, disse. No entanto, a liberdade de escolha não está no supermercado, mas fora dele.
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* Colaboradora Internacional do Portal EcoDebate, escritora, ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares.
Fonte: IHU online, 31/03/2014
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Transição

 Marion Strecker*
 
 Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não vai mais ter importância
Olho as enormes estantes em volta de mim e penso na dureza deste momento de transição. Minha próxima casa talvez não tenha nem metade dessas prateleiras e desses livros. Temo sentir falta deles. Cresci numa casa com estantes generosas e muitas enciclopédias ilustradas para matar as tardes de tédio. 

Minha filha adolescente cresce cercada de fios e aparelhos que apitam, imersa na rede. Pergunto a ela se pensa que a casa dela no futuro terá grandes estantes. Ela diz que não sabe, mas avisa que prefere livros em papel ("gosto de segurar"), ainda que invista muito tempo na comunicação eletrônica. 

Talvez eu não devesse comparar essas coisas. A gente fica com medo da rua e tranca as crianças em casa, como se isso fosse saudável. Elas saem pelas janelas da internet. 

Fiquei pensando que faço parte de uma geração de transição: nasci analógica, cresci elétrica e amadureci eletrônica. Mas isso é bobagem. Minha geração ensinou os pais a programar videocassete e a usar controle remoto antes de ensinar a usar o computador e o e-mail. E a geração dos meus pais deve ter ensinado a geração dos meus avós a fazer outras coisas. Pensando bem, todas as gerações são de transição. 

Exceto a última, a derradeira, a que estiver por aqui quando o mundo acabar. Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não vai mais ter importância nenhuma. Tanto esforço para nada. Tanta informação para nada. Puf. Baubau. Acabou. 

Tanto satélite, tanto Google e tanto Google Earth e a gente ainda perde esse tempo todo para tentar descobrir que fim levou o avião que saiu da Malásia com 239 pessoas em direção a Pequim e nunca chegou. Essa é a nossa pequenez. Esse é o vasto mundo. Mais vasto ainda o nosso coração. 

Onde foram parar os discos em 78 rotações que herdei? E as fitas de rolo com as entrevistas que meu pai fazia com os filhos? Onde guardei o videoteipe do meu bebê? O que será de todas as músicas que baixei em tantos formatos e salvei em tantos aparelhos que já não existem mais? E as fotos, em tantos suportes e padrões? Para onde vão todas as fotos depois que o Facebook e o Instagram acabarem? 

Abandonamos as indexações manuais e os arquivos de aço, com as suas infinitas gavetinhas, pelos arquivos eletrônicos e sua memória infinita, onde perdemos todas as coisas e encontramos outras por acaso. E agora voltamos a precisar de indexações manuais, tagueamentos, etiquetas e zooms para encontrar as milhares de coisas que acumulamos sem pensar, por preguiça ou por desleixo, porque custoso é selecionar. 

Quando acabar a luz, a porta eletrônica pode não abrir. Mas alguém já pensou numa solução. Alguém já criou mais uma start-up. Alguém já lucrou com a venda. E três quartos dessas start-ups deixam investidores a ver navios, conforme pesquisa de Shinkhar Ghosh, conferencista sênior da escola de negócios da Universidade Harvard. Sem fracasso não há negócio. 

Nos Estados Unidos, a taxa de fracasso das empresas é de 25% no primeiro ano de vida, 55% no quinto ano e 71% em dez anos, segundo o site Statistic Brain (statisticbrain.com). A principal razão do fracasso? Incompetência (46%). É essa a nossa inspiração. 
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* Colunista da Folha

Fonte: Folha online, 31/03/2014
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Melhor impossível?

Luiz Felipe Pondé*

E se o livro do Eclesiastes estiver certo e não existir 
nada de novo sob o Sol?
 
Você lembra do filme com Jack Nicholson chamado "Melhor É Impossível"? Há uma cena em que ele, um obsessivo-compulsivo (diríamos, um caso grave de TOC), de repente, saindo do analista, se dá conta: "E se melhor do que isso for impossível?". Referia-se a seu quadro tenso, cheio de rituais obsessivos, mas rasgado por um esforço cotidiano de enfrentá-lo. 

Pois bem, outro dia, em meio a uma aula com alunos de graduação, discutindo se é melhor ser religioso ou não, essa questão apareceu: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". Ou: "E se uma vida melhor for impossível de se conseguir?". Que vida é essa da qual falávamos? O que pensa um jovem de 20 anos acerca do que seja qualidade de vida? 

A questão se apresentou quando ouvíamos uma menina, religiosa, dizer o quanto melhor era a qualidade de vida que se tinha vivendo dentro de uma comunidade religiosa. Melhores amizades, melhor namoro, meninos mais honestos, melhores férias, melhor convívio com os pais, enfim, melhor tudo que importa, apesar de nunca ser perfeito. 

Os semiletrados pensam que jovens gostam de ser "livres". 

Risadas? Jovens querem famílias estáveis, casa com segurança, futuro garantido, um grupo para dizer que é seu, códigos que os definam de forma clara e distinta, enfim, de um quadro de referências que torne o mundo significativo e seu. 

Quando encontram, aderem de forma muito mais direta do que pessoas com mais de 30. Estas já começam a entrar no desgaste cético que a vida impõe a todos nós. Da louça que lavamos, do sexo meia boca que fazemos à arte que cultivamos. 

Basta ver o caráter dogmático do movimento estudantil pra ver esse tipo de adesão direta e sem medo dos jovens. Às vezes temo que mais atrapalhamos os jovens do que os ajudamos com o conjunto de exigências que fazemos a eles: sejam diferentes, mudem o mundo, rompam com tudo, inventem-se.

Woodstock foi um surto do qual eles já se curaram, mas nós não. 

Mas, de volta a: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". 

O problema era: É melhor viver sem religião ou viver aceitando um código religioso claro? 

E vejam: no dia a dia, os poucos jovens religiosos que conheço no meio que frequento costumam ser melhores alunos, mais atentos ao que se fala em sala de aula, menos inseguros com relação a temas como sexo, drogas e rock and roll, assim como também quando se fala de futuros relacionamentos. Enfim, parecem saber mais o que querem e serem menos permeáveis às modinhas bobas que existem por aí. 

A conclusão parece ser que uma adesão a uma vida religiosa sem exageros de contenção de comportamento nutre mais esses meninos e meninas ao redor dos 20 anos do que a parafernália de teorias que a filosofia ou as ciências humanas produziram nos últimos séculos. 

É como se as religiões tradicionais (como digo sempre, se você quiser uma religião, pegue uma com mais de mil anos...) carregassem uma sabedoria mais instalada, apesar de silenciosa, com relação ao que de fato eles precisam. 

E se tivermos alcançado algum limite nas utopias propostas para a modernidade? E se o surto do século 18 pra cá tiver se esgotado como fórmula e chegarmos à conclusão que, como pequenos ajustes aqui e ali, pequenas correções de percurso (um cuidado com os recursos do meio ambiente, uma sensibilidade maior aos riscos de um materialismo extremado, maior longevidade, beijo gay na novela das nove), a vida se impõe em seu ritmo como sempre se impôs aos nossos ancestrais? 

E se o velho ritmo de nascer, crescer, plantar, colher, reproduzir e morrer, com variações criadas pela Apple, for tudo o que temos? E se for justamente essa "perenidade do esforço" impermeável às modas de comportamento a realidade silenciosa da vida? 

E se o Eclesiastes, livro que compõe o conjunto de quatro textos da Bíblia hebraica (que os cristãos chamam de Velho Testamento) conhecidos como Sabedoria Israelita (Provérbios, Eclesiastes, Livro de Jó e Cântico dos Cânticos) estiver certo, e não existir nada de novo sob o Sol? E se tudo for, como diz o sábio bíblico, vaidade e vento que passa? 
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* Filósofo. Escritor.
Fonte: Folha online, 31/03/2014
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Más notícias

Luis Fernando Veríssimo*
 
Um dia você se olhará no espelho e terá uma revelação estarrecedora. Sua mulher está dormindo com outro homem! Depois descobrirá que o que vê no espelho não é outro, é você mesmo. Só que, por uma razão inexplicável, você está mais velho.

Os espelhos são de uma franqueza brutal. Na era das relações públicas, é inadmissível que a sua imagem trate você com tanta crueza. É inaceitável que o espelho lhe diga “você está com 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70) anos assim, na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável.

Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação, seria diferente. Infelizmente, as piores notícias são sempre dadas por amadores. Num mundo mais justo, sua imagem no espelho poderia ser apresentada por um especialista em marketing, e em vez da sua cara no espelho revelador, você veria, por exemplo, a Patrícia Poeta.

– Patrícia! Você por aqui?

– Vim para lhe dizer que você ficará muito bem, com cabelo grisalho. Aumentará sua credibilidade. Será ótimo para os negócios.

– Eu acho que estou perdendo cabelos.

– E daí? Cabelo demais é desperdício. Os fios que ficam são os melhores.

– Será?

– As rugas realçarão seu caráter. E se um queixo já enfatiza sua masculinidade, imagine dois.

– Patrícia. Cabelos grisalhos, rugas, queixo duplo... Você quer me dizer que eu estou ficando... Velho?

– Maduro.

Ou então você deveria poder mergulhar de ponta-cabeça no espelho para descobrir como seria sua vida do outro lado dos 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70). E se consolar com o fato de que ela não será muito diferente da vida que você leva hoje – com alguns reajustes. Você terá que evitar carnes brancas, morenas e mulatas, principalmente depois das refeições. E deixar de frequentar motéis com escadaria. Fora isso... Que venham as rugas!
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* Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 31/03/2014
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Reintegrar-se no espaço e no tempo

 Leonardo Boff* 

 

A partir dos anos 70 do século passado ficou clara para grande parte da comunidade científica que a Terra não é apenas um planeta sobre o qual existe vida. A Terra se apresenta com tal dosagem de elementos, de temperatura, de composição química da atmosfera e do mar que somente um organismo vivo pode fazer o que ela faz. A Terra não contem simplesmente vida. Ela é viva, um super-organismo vivente, denominado pelos andinos de Pacha Mama e pelos modernos de Gaia, o nome grego para a Terra viva.

 

A espécie humana representa a capacidade de Gaia de ter um pensamento reflexo e uma consciência sintetizadora e amorosa. Nós humanos, homens e mulheres, possibilitamos à Terra a apreciar a sua luxuriante beleza, a contemplar a sua intrincada complexidade e a descobrir espiritualmente o Mistério que a penetra.

 

O que os seres humanos são em relação à Terra é a Terra em relação ao cosmos por nós conhecido. O cosmos não é um objeto sobre o qual descobrimos a vida. O cosmos é, segundo muitos cosmólogos contemporâneos, (Goswami, Swimme e outros) um sujeito vivente que se encontra num processo permanente de gênese. Caminhou 13,7 bilhões de anos, se enovelou sobre si mesmo e madurou de tal forma que num canto dele, na Via láctea, no sistema solar, no planeta Terra emergiu a consciência reflexa de si mesmo, de donde veio, para onde vai e qual é a Energia poderosa que tudo sustenta.

 

Quando um eco-agrônomo estuda a composição química de um solo é a própria Terra que estuda a si mesma. Quando um astrônomo dirige o telescópio para as estrelas, é o próprio universo que olha para si mesmo.


A mudança que esta leitura deve produzir nas mentalidades e nas instituições só é comparável com aquela que se realizou no século XVI ao se comprovar que a Terra era redonda e girava ao redor do sol. Especialmente a transformação de que as coisas ainda não estão prontas, estão continuamente nascendo, abertas a novas formas de auto-realização. Consequentemente a verdade se dá numa referência aberta e não num código fechado e estabelecido. Só está na verdade quem caminha com o processo de manifestação da verdade.

 

Importa, antes de mais nada, realizar a reintegração do tempo. Nós não temos a idade que se conta a partir do dia do nosso nascimento. Nós temos a idade do cosmos. Começamos a nascer há 13,7 bilhões de anos quando principiaram a se organizar todas aquelas energias e materiais que entram na constituição de nosso corpo e de nossa psiqué. Quando isso madurou então nascemos de verdade e sempre abertos a outros aperfeiçoamentos futuros.

 

Se sintetizarmos o relógio cósmico de 13,7 bilhões de anos no espaço de um ano solar, como o fez ingeniosamente Carl Sagan no seu livro Os Dragões do Eden (N.York 1977, 14-16) e querendo apenas realçar algumas datas que nos interessam, teríamos o seguinte quadro:

 

A primeiro de janeiro ocorreu o big bang. A primeiro de maio o surgimento da Via-Láctea. A nove de setembro, a origem do sistema solar. A 14 de setembro, a formação da Terra. A 25 de setembro, a origem da vida. A 30 de dezembro, o aparecimento dos primeiros hominídeos, avós ancestrais dos humanos. A 31 de dezembro, irromperam os primeiros homens e mulheres. Os últimos 10 segundos de 31 de dezembro inauguraram a história do homo sapiens/demens do qual descendemos diretamente. O nascimento de Cristo ter-se-ia dado precisamente às 23 horas 59 minutos e 56 segundos. O mundo moderno teria surgido no 58º segundo do último minuto do ano. E nós individualmente? Na última fracção de segundo antes de completar meia-noite.

 

Em outras palavras, somente há 24 horas que o universo e a Terra têm consciência reflexa de si mesmos. Se Deus dissesse a um anjo: “procure no espaço e identifique no tempo a Denise ou o Edson ou a Silvia”, certamente não o conseguiria porque eles são menos que um pó de areia vagando no vácuo interstelar e começaram a existir a menos de um segundo atrás. Mas Deus sim, porque Ele escuta o pulsar do coração de cada filho e filha seus, porque neles o universo converge em autoconsciência, em amorização e em celebração.

 

Uma pedagogia adequada à nova cosmologia nos deveria introduzir nestas dimensões que nos evocam o sagrado do universo e o milagre de nossa própria existência. Isso em todo o processo educativo, da escola primária à universidade.

 

Em seguida faz-se mister reintegrar o espaço dentro do qual nos encontramos. Vendo a Terra de fora da Terra, nos descobrimos um elo de uma imensa cadeia de seres celestes. Estamos numa das 100 bilhões de galáxias, a Via Láctea. Numa distância de 28 mil anos luz de seu centro; pertencemos ao sistema solar que é um entre bilhões e bilhões de outras estrelas, num planeta pequeno mas extremamente aquinhoado de fatores favoráveis à evolução de formas cada vez complexas e conscientizadas de vida: a Terra.

 

Na Terra nos encontramos num Continente que se independizou há cerca de 210 milhões de anos atrás quando a Pangea (o continente único da Terra) se fraturou e que ganhou a configuração atual. Estamos nesta cidade, nesta rua nesta casa, neste quarto, e nesta mesa diante do computador partir donde me relaciono e me sinto ligado à totalidade de todos os espaços do universo.

 

Reintegrados no espaço e no tempo nos sentimos como Pascal diria: um nada diante do Todo e um Todo diante do nada. E nossa grandeza resie em pensar e celebrar tudo isso.

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* Escritor. Teólogo.  Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/30/

“TODA A APROXIMAÇÃO É UM CONFLITO”

Tania Azevedo Garcia*
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 Para sobreviver à natureza e suas intempéries, o homem precisou conviver. Entretanto, estar com o outro, muitas vezes, significa conflito. Seja este de ordem pessoal, familiar ou mesmo social. O premiado filme argentino "O Homem ao lado"
 de Gastón Duprat e Mariano Cohn nos apresenta 
uma história muito interessante, que nos 
permite refletir profundamente sobre o tema.

Estar no mundo é estar com alguém, o que nem sempre significa felicidade. Freud em “O Mal Estar na Civilização” relata que o sofrimento humano advém de três fontes: do poder da natureza sobre nós; da fragilidade de nossos corpos, pois adoecemos e morremos; e das regras sociais que nos ajustam ao mundo. Segundo o autor, de todos esses males, o último é o que nos traz maior sofrimento.

É o que parece sentir Leonardo, arquiteto, professor, burguês, personagem do filme argentino “O Homem ao Lado”. Leonardo tem que conviver com um vizinho menos “nobre” que ele, Victor. Um homem de meia idade, simples, pouco civilizado, segundo os moldes do protagonista rico da história.
O conflito emerge no momento em que Victor resolve abrir uma janela no muro que divide sua simples moradia com a sofisticada casa de Leonardo, única construção na América Latina projetada pelo famoso arquiteto francês Le Corbusier.

Do ponto de vista da lei, Victor jamais poderia abrir a janela. Contudo, a despeito da legalidade, ele o faz, pois diz precisar dela para trazer um “poquito de sol” para sua humilde casa. Aqui começa o embate.

A princípio, o diretor do filme parece nos chamar a atenção para as contradições sociais que vivemos nas grandes cidades, mais precisamente, parece apresentar uma crítica à sociedade burguesa. Muitos amantes de arte arquitetônica visitam Buenos Aires e ficam à espreita observando a casa de Leonardo, já que ela não é aberta à visitação. De sua moradia, Victor consegue ver quase todos os movimentos que ocorrem na residência de Leonardo. E o incômodo reside no fato de que os moradores da casa desenhada por Le Corbusier querem manter a privacidade. O que se torna um paradoxo, já que também desejam ser vistos. É o que acontece, de certa forma, a muitas celebridades no mundo atual.

Para além do conflito entre as classes sociais, chamo a atenção para a forma como Leonardo reage à situação. Ele tenta demover Victor da ideia da janela. Usa primeiramente o argumento da lei; depois, diz que sua mulher é quem não concorda; em seguida, fala que seu sogro, sócio na casa, é quem não aceita a construção da janela. Ele se esquiva o tempo todo do confronto direto com Victor. Este, sem dúvida, muito mais sedutor, envolvente e ameaçador, consegue intimidar Leonardo sem ter uma atitude explícita de agressão. Seu corpo fala. Suas expressões faciais e corporais comandam o processo. Assim, os argumentos civilizados de Leonardo não conseguem vencer as pressões de seu oponente.

Um misto de drama e de comédia. Aliás, o personagem Victor é simplesmente hilário. Um excelente filme para refletirmos sobre o quanto somos capazes de lidar com os diversos e possíveis conflitos que emergem em nossas vidas e sobre a forma como reagimos a eles. Afinal, “toda aproximação é um conflito”, já dizia o poeta português Fernando Pessoa, e, como seres civilizados, não temos como escapar da convivência. Numa afirmação a qual o próprio psicanalista chama de espantosa, Freud nos convoca à reflexão:“… nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”.

Primitiva é a atitude de Leonardo no final surpreendente do filme, que nos traz desconforto e incômodo intensos. Quando assisti ao filme pela primeira vez, tive a sensação de que eu iria pular na tela e fazer alguma coisa. Isso é cinema de arte. Ele nos coloca em cena.

Referências

FREUD, S. O Mal Estar na Civilização – Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974

O HOMEM AO LADO. Direção: Gastón Duprat, Mariano Cohn: Imovision, 2009. DVD (100 min)
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* Psicóloga, professora universitária.
Fonte: © obvious: http://lounge.obviousmag.org/

Ditadura Nunca Mais! Dois olhares sobre os anos de chumbo: Cida Horta e Frei Betto

Por Marilza de Melo Foucher*

Cida Horta foi perseguida pela ditadura após se tornar professora e lutar por um país mais justo e igualitário
Cida Horta foi perseguida pela ditadura após se tornar professora e lutar por um país mais justo e igualitário

Nada melhor para escrever um texto de reflexão política do que o contato direto com segmentos da chamada sociedade civil organizada do Brasil, intelectuais, pessoas simples encontradas em encontros casuais, inclusive os taxistas. Nunca senti um país politicamente tão dividido, todavia, meus interlocutores me surpreenderam com suas analises pertinentes e outras inconsequentes, pois fugiam de toda regra da racionalidade política.

Aproveitei também para realizar uma série de entrevistas e recolher alguns depoimentos com pessoas que foram presas, torturadas, perseguidas durante a ditadura, assim como, aquelas que num trabalho de formiga levaram em frente o desafio de colaborar para a emergência da sociedade civil. Muitos militantes utilizaram do instrumento de educação popular segundo Paulo Freire, e adotam uma pratica educativa não autoritária, partindo da ótica que todo conhecimento é construído na relação das pessoas entre si e com o mundo, no sentido de apreender a realidade social de maneira critica desvelando suas contradições.

Aqui lhes apresento o depoimento da educadora popular Cida Horta, em seguida a entrevista de Frei Beto.

Boa Leitura. Ditadura Nunca Mais! Que nossa democracia se fortaleça sempre.

Uma vida pela Educação

Maria Aparecida Antunes Horta tem 68 anos e é professora desde 1966. Participante do movimento de resistência à ditadura foi obrigada a sair do país, tendo vivido em Cuba de 1973 a 1979. De volta ao Brasil, retomou seu trabalho na escola pública e num centro de educação popular dedicado á formação de educadores de jovens e adultos.

“A geração à qual pertenço, nascida nos anos 40, viveu sua juventude e começo da idade adulta sob a ditadura que dominou o Brasil de 1964 a 1984. Nossa caminhada de aprendizagem da vida democrática teve início ao final dos anos 70, a partir de uma chamada abertura lenta, gradual e segura que implicou em uma transição negociada com os antigos ditadores, que, entre outras coisas, se concederam uma auto anistia para seus crimes de usurpação do poder, tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos. Essa transição negociada também permitiu a realização de eleições indiretas para a presidência em 1985.

“Se refletirmos sobre o legado desses de 21 anos de regime ditatorial no Brasil, veremos que aquelas duas décadas em que fomos totalmente silenciados e impedidos de qualquer participação política foram marcadas pela entrega do país ao capital internacional, pela concentração da terra e capitalização do campo de onde foram expulsos os camponeses obrigados a se espremerem nas periferias das cidades, pela privatização da educação e desvalorização dos professores através da redução de seus salários, pelo arrocho salarial e repressão a qualquer ameaça de greve operária, além de uma perseguição feroz aos que participaram dos movimentos de resistência, que resultou em milhares de brasileiros torturados, presos, ou mortos e desaparecidos.

“A ditadura civil-militar roubou aos brasileiros a possibilidade de implementar as reformas de base que faziam parte do programa de governo do presidente João Goulart e que contavam com amplo apoio popular. Mataram os movimentos de cultura popular, suspenderam a campanha nacional de alfabetização que se anunciava sob a inspiração de Paulo Freire, que foi preso e exilado, aniquilaram as propostas de reforma urbana e reforma agrária, assim como, de controle sobre as remessas de lucros das empresas estrangeiras instaladas no País. Impôs-nos um atraso de 21 anos, aprofundando as desigualdades sociais, o desemprego, tornando explosiva a questão da moradia nas grandes cidades, tolhendo a nossa cultura enquanto favorecia o domínio da cultura norte-americana em nossos meios de comunicação. Ao mesmo tempo, fortaleceram com sua política os setores conservadores e reacionários, atendendo aos interesses dos grandes latifundiários, empreiteiras, banqueiros e monopólios internacionais.

“Não obstante toda a repressão e controle dos aparelhos repressivos, na década de 70, os movimentos sociais começaram a se reorganizar, as comunidades eclesiais de base inspiradas na Teologia da Libertação se multiplicaram e surgiram vários centros de educação popular que foram protagonistas a partir de meados daquela década de importantes movimentos por moradia, saúde, educação, participando também da luta pela redemocratização e pela anistia. Pude integrar um desses grupos de Educação Popular, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo a partir de 1979 e, ali, acompanhei de perto todos os desafios enfrentados pelos educadores populares ao longo dos últimos 30 anos.

“O trabalho de educação popular foi certamente um dos fatores que permitiram a vitória das candidaturas de esquerda ao parlamento e ao executivo eis que conseguiu detonar as rochas do reacionarismo fomentadas e alimentadas ao longo de nossa história. Foi determinante, por exemplo, para a eleição de Luíza Erundina à prefeitura de São Paulo em 1988 e de Lula à presidência em 2002 depois de uma caminhada exaustiva de mais de 10 anos. Conseguiu igualmente eleger vários militantes de esquerda a cargos no legislativo, alguns deles com história de atuação na Educação Popular.

“Naqueles momentos, o entusiasmo e o trabalho da militância supriram a falta de recursos materiais para as campanhas.

Nesse esforço de contribuir para a construção do processo democrático em nosso País, garantindo a participação nele dos trabalhadores da cidade e do campo, não foi pequeno o desafio que os educadores populares enfrentaram quando da Queda do Muro de Berlim seguida da crise e desmanche do socialismo nos países da Europa Oriental e na URSS.

“Após a perplexidade inicial, abriu-se um abismo de incertezas e de questionamentos. Mas a década de 90 acrescentou novos desafios com a implantação da política neoliberal principalmente nos dois governos de FHC com toda a mudança que imprimiu no mundo do trabalho e as políticas de privatização. Houve muita mobilização popular, muitos esforços dos educadores para entender o que era globalização, o Consenso de Washington, o neoliberalismo e fazer chegar esse entendimento a todos.

“Desenvolveram-se campanhas pelo questionamento da enorme dívida externa do País, campanhas contra as privatizações, principalmente da Vale do Rio Doce e da Petrobrás, contra o ingresso do Brasil na ALCA, etc. Foram anos de refundamentação da Educação Popular e de questionamentos sobre sua relação com o Estado uma vez que nossas organizações passaram a ser convidadas para participar das políticas públicas e foram muitas as discussões sobre se isso era ou não correto.

“O surgimento do Fórum Social Mundial foi muito importante ao se colocar como um espaço para a discussão do futuro de nossas utopias. Se o socialismo real não se mostrara capaz de construir um mundo novo, o Neoliberalismo experimentou um fracasso total para responder aos males produzidos pelo capitalismo nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário, ele só conseguiu agravar esses males, multiplicando a pobreza, o desemprego, a desigualdade e a violência social no planeta. Do Fórum surgem novas abordagens das questões ecológicas e a proposta de construção de uma economia sustentável.

“Esses temas passaram a ser objeto do trabalho de muitas entidades a partir dos anos 2000, juntamente com o surgimento de movimentos sociais de gênero, etnia, orientação sexual, etc. Também se destacam muitas experiências de economia solidária não só para fazer frente ao desemprego, mas principalmente para permitir a vivência de uma atividade econômica baseada no esforço coletivo e solidário dos trabalhadores.

“O trabalho educativo desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tornou-se um paradigma para aqueles que pensam a educação popular como instrumento de transformação social e como forma de empoderamento dos trabalhadores.

“Hoje, a complexidade social e política de nosso País chama a desenvolver ações em defesa dos direitos humanos, ações de formação da juventude ameaçada pelo desemprego e as drogas, ações de combate à violência social, à violência contra as mulheres, à violência doméstica, e, o mais grave, à violência policial, herança que trazemos intacta da ditadura. Com o agravamento da violência social, surgem também trabalhos que buscam uma justiça restaurativa que devolva a paz a famílias destroçadas pela perda de entes queridos. O movimento de alfabetização, que foi uma proposta anterior ao golpe, se reforçou nas últimas décadas e continua atuante agora como esforço complementar das políticas públicas de educação para atingir os alfabetizandos jovens e adultos.

“Ao longo dos quase 12 anos dos governos Lula e Dilma, os lutadores sociais foram compreendendo que ter o governo não significa ter o poder, e tomaram consciência da necessidade de pressionar por mudanças. Os movimentos por terra, os movimentos por moradia, os movimentos indígenas e outros grupos tem se manifestado sistematicamente em defesa de seus direitos, e outros novos surgem, com palavras de ordem e formas de organização diferentes, como o Movimento Passe Livre, o Levante Social da Juventude.

“Hoje, mais que nunca, os trabalhos de educação popular são necessários para fazer o contraponto aos setores que desejam aniquilar as conquistas alcançadas na última década e que contam com os meios de comunicação para alardear suas críticas e sua desinformação. São ainda poucos e um tanto tímidos os que defendem abertamente um golpe contra o governo, mas essas coisas podem crescer se a população não tem os instrumentos que lhes permitam conhecer como funcionam as engrenagens de uma sociedade injusta e desigual. Mais ainda quando os governantes do PT não criaram uma política de comunicação que lhes permita responder as sucessivas mentiras e campanhas levadas a cabo pela mídia”.
Frei Betto é teólogo e escritor, enfrentou a ditadura e segue uma linha de pensamento libertária
Frei Betto é teólogo e escritor, enfrentou a ditadura e segue uma linha de pensamento libertária

Frei Betto: “É preciso comemorar”

Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como o Frei Betto , (Belo Horizonte, 25 de agosto de 1944) é um escritor e religioso dominicano brasileiro.

Adepto da Teologia da Libertação, foi militante engajado em movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2004. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.

Frei Betto esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973.2 Após cumprir quatro anos de prisão, teve sua sentença reduzida pelo STF para dois anos. Sua experiência na prisão está relatada nos livros “Cartas da Prisão” (Agir), “Dário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) e Batismo de Sangue (Rocco). Premiado com o Jabuti de 1983, traduzido na França e na Itália, Batismo de Sangue descreve os bastidores do regime militar, a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito. Baseado no livro, o diretor mineiro Helvécio Ratton produziu o filme Batismo de Sangue, lançado em 2007.3

Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares.

– Frei Betto, você que foi preso, torturado durante a ditadura, como analisa esta data de 50 anos de golpe militar?
– É preciso comemorar, no sentido etimológico de fazer memória, os 50 anos da implantação da ditadura no Brasil. Como diria Marx, para que a história, uma tragédia, não se repita como farsa. As novas gerações precisam saber como foi, o que foi e o que fez a ditadura ao longo de 21 anos governando o Brasil. Ainda temos, em nosso país, “viúvas” da ditadura e quem apregoa que a volta dos militares haverá de melhorar o país…

– Como você analisa hoje o processo de redemocratização do Brasil? Quais os maiores avanços desta conquista?
– A ditadura foi derrubada pelo acúmulo político provocado pelas mobilizações dos movimentos sociais: CEBs, associações de bairros, luta pela terra, sindicatos, grupos de arte e cultura etc. Conseguimos eleger um metalúrgico – Lula – presidente da República, consolidando processo democrático. Grandes avanços ocorreram ao longo dos 11 anos de governo do PT: controle da inflação, elevação do salário mínimo, inclusão econômica de 55 milhões de pessoas etc. Porém, os arquivos da ditadura de posse das Forças Armadas não foram abertos até hoje e a Comissão da verdade, que apura os crimes do regime militar, não tem poder de punir. Além disso, nenhuma reforma de estrutura foi implementada nesses 11 anos de governo, nem a agrária, nem a política, nem a tributária etc

– O processo de democratização no Brasil forjou ao longo desses anos um Estado de direito?
– Sim, mas falta muito para aperfeiçoá-lo. Precisamos de uma nova carta constitucional, e esperamos que o povo brasileiro vote a favor disso no plebiscito que ocorrerá a 7 de setembro. Precisamos, após a inclusão econômica de inclusão política, pela qual os jovens se mobilizam nas ruas. Nossa democracia ainda é meramente “delegativa” e não participativa. Há muito a fazer e lutar!
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* Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.
Fonte:  http://correiodobrasil.com.br/30/03/2014

domingo, 30 de março de 2014

Para professores e escolas, é mudar ou morrer, diz estudioso

Entrevista: Ronaldo Mota

Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Educando para a Inovação”

 Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Educando para a Inovação” (Berenice Roth)

O professor emérito da UFSM, especialista em ensino e inovação tecnológica, diz que o atual sistema educacional é obsoleto e que o novo modelo só se erguerá se docentes e instituições ouvirem as lições de um ator: o aluno

Bianca Bibiano
Séculos depois do início da universalização do ensino e décadas após a introdução da formação profissional, a educação enfrenta uma terceira revolução. O motor é a tecnologia. Nem todos, porém, reagem bem ao terremoto, avalia Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria, ex-secretário de desenvolvimento tecnológico e inovação no Ministério da Ciência e ex-secretário de ensino superior do Ministério da Educação. "Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes", diz Mota, que acaba de lançar, em coautoria com David Scott, professor da universidade de Londres, o livro Educando para Inovação (Elsevier, 49,90 reais). A obra aborda o desafio das escolas de formar pessoas em um mundo de mudanças aceleradas em que a grande demanda é o aprendizado permanente. A despeito do atraso geral de instituições e mestres para lidar com a nova realidade — "O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também" —, ele diz que o Brasil pode aproveitar a crise do modelo de ensino para promover uma grande transformação. "Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação." Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

 "Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade."


Em Educando para Inovação, o senhor afirma que as mudanças a que assistimos hoje não são apenas tecnológicas e que esse movimento impulsiona também uma revolução de conceitos. Quais ideias estão em transformação? Inovação é muito associada a equipamentos e maquinário, mas as grandes mudanças deste século não têm necessariamente essa característica. Tomemos como exemplo uma inovação em outra área: o Cirque du Soleil. A partir do conceito tradicional do circo, o grupo canadense promoveu uma reestruturação radical e formatou um novo produto, criando um novo público. O conceito tradicional de inovação parte da ideia de que existe, antes de tudo, uma demanda para um produto ou processo. O que estamos vivendo neste século, porém, é o aparecimento de mudanças que não provêm da necessidade. Elas são tão revolucionárias que induzem a demanda após serem criadas. O tablet não foi feito após uma consultoria descobrir que havia demanda por computadores não portáteis. Ele surgiu como um produto inovador e criou a demanda a partir dele. Talvez você não necessite de uma impressora 3D agora, mas daqui a três anos vai querer uma em casa. O produto convence você de que é impossível viver sem ele.

Como a escola se insere nesse contexto de mudanças aceleradas? O que significa educar para a inovação? Significa que a escola precisa formar pessoas aptas a viver nesse cenário de constante inovação. No modelo fordista (sistema predominante no séxulo XX marcado pela linha industrial de produção), o papel da educação era formar técnicos competentes, aptos a atuar na produção tradicional para desenvolver tarefas com eficiência. Definitivamente, educação não é mais isso. O mundo não é mais fordista. Hoje, o sucesso ou não das empresas está associado diretamente à capacidade de inovar. O problema é que a escola segue se preparando para o antigo modelo. É como formar profissionais competentes que podem trabalhar em uma gráfica em vez de formar designers capazes de atuar em várias plataformas de comunicação. As instituições de ensino ainda não são, em geral, capazes de fazer esse raciocínio, pois carregam um atraso intrínseco. A título de comparação, tomemos o que aconteceu na área financeira nos últimos 30 anos: os bancos de hoje em nada lembram as instituições do passado devido à ascensão tecnológica. Enquanto isso, a escola permaneceu absolutamente a mesma. Ainda mantemos a figura clássica do professor que entra na sala de aula e apresenta o conteúdo para os alunos como se eles não soubessem nada. Isso, porém, não deve nos dar a ilusão de que a escola não será transformada: ela será.

Que tipo de transformação será essa? O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também. Ele poderá até receber outra denominação, como "designer educacional", um profissional dedicado à organização de conteúdos. Mas ele não poderá fazer essa tarefa sozinho: o processo de ensino e aprendizado será cada vez mais coletivo. O designer educacional de física que se propuser a colocar o conteúdo de aula em uma plataforma on-line contará com ajuda de gente que saiba usar a plataforma, alguém que entenda de design, usabilidade e ferramentas no ambiente virtual. Não será uma pessoa só, vai ser um time. No começo do processo de mudança, provavelmente ainda contaremos com um professor clássico, que domina o conteúdo de uma disciplina. Mas ao lado dele, veremos um menino de 14 anos, responsável por fazer a interface gráfica da plataforma. É um fenômeno que já está acontecendo: as grandes funcionalidades dos portais educacionais são desenvolvidas hoje por jovens que dominam os sistemas digitais graças à afinidade que possuem com o universo dos games. Se resolver ficar sozinho, o professor perderá essa corrida.

Nesse cenário, como será o ensino? Grande parte dos jovens já aprende parte do conteúdo escolar em canais que não dependem da escola. Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. Não é o fim da escola, mas uma chance que se apresenta para aqueles alunos que não aguentam permanecer em sala de aula e que procuram mecanismos alternativos para adquirir o próprio conhecimento. Há muitos adolescentes criativos, que serão profissionais muito competentes e que simplesmente vivem em conflito com a escola. É um processo que vai acontecer cada vez mais. Até pouco tempo, existia um conflito do professor, que era alguém não digital, com o aluno, um nativo digital. Já estamos na fase seguinte, do não diálogo. As crianças já chegaram a uma etapa em que abstraem o conflito e simplesmente aprendem por conta própria, independente da escola. Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade. Se a escola entender isso como um confronto, vai perder.

Se a escola não mudar, a evasão de alunos vai crescer? Sim. A escola já enfrenta esse fenômeno, ainda que se trate de uma evasão não contabilizada. O aluno é deixado pelos pais na escola, senta lá por algumas horas e finge prestar atenção às aulas. O professor, por sua vez, altamente desestimulado, deixa o aluno ali, muitas vezes evitando o conflito. Quando olhamos os resultados numéricos desse modelo educacional, concluímos que o ensino vai mal. Sim, está ruim, mas é mais grave que isso. Temos dois conflitos acontecendo ao mesmo tempo: o ensino tradicional vai mal no Brasil e vai mal em si. Para superar essa crise, precisamos melhorar a qualidade de ensino e, simultaneamente, transformá-lo. O Brasil tem uma real oportunidade de dar um salto significativo e mais rápido do que outros países se entender a importância da inovação.

Por quê? Tomemos como base os resultados do exame do Pisa (mais importante avaliação educacional do mundo, realizada em alunos com 15 anos de idade), da OCDE. A Finlândia está sempre nos primeiros lugares da prova, que avalia o ensino tradicional. Qual a consequência? Os professores finlandeses morrem de medo de mudar seu método de ensino: afinal, quem quer mexer em time que está ganhando? A Finlândia pode não conseguir enfrentar os desafios da inovação com tanta facilidade. O Brasil, por sua vez, não tem motivo para temer a mudança. Afinal, se olharmos para o ensino médio brasileiro, podemos afirmar que não há como piorar. Por isso, temos um campo vasto para aplicar metodologias revolucionárias. O Brasil tem 200 milhões de habitantes e 104 milhões de usuários da internet, que em média navegam mais do que pessoas de outros países. Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação.

Quais os caminhos para a inovação? Precisamos usar metodologias que valorizem a aprendizagem independente. Em caminho contrário, o Brasil deve ser o campeão mundial da aprendizagem dependente. Desde a pré-escola até o pós-doutorado, o que fazemos é estimular o estudante a ser dependente do professor. Por que o professor que termina o pós-doutorado na universidade tem medo de sair do laboratório? Porque ele é dependente. Nos países mais desenvolvidos, o estudante é estimulado a encontrar seus próprios caminhos. Aqui,  criamos uma estrutura de dependência tão grande que as pessoas são estimuladas a não abdicar da zona de conforto. O que mais precisamos é do oposto disso. Quando isso ocorre, temos a rebelião à que estamos assistindo, sem interferência do Estado, dos pais e muito menos da escola: essa rebelião é movida pela juventude à procura de mecanismos alternativos. Isso explica o sucesso de serviços de aprendizagem on-line como o Veduca, que já tem 3,5 milhões de inscritos.

Como o senhor avalia projetos que tentam colocar o tablet na sala de aula? Na maioria, são frustrantes, porque são feitos por gestores escolares que não são do campo da tecnologia digital aplicada à educação. Daí, cena comum, os pais pagam pelos tablets e, como as estatísticas comprovam, eles ficam jogados em casa. Em geral, os alunos recebem o aparelho com um material antiquado, com reproduções de apostilas idênticas ao material impresso. Mas a questão vai muito além do produto. O hábito de estimular o aluno a estudar em casa depois de ver o conteúdo em sala aula é falido, não há a menor chance de dar certo. A única forma de preparar alguém para a inovação e para a aprendizagem independente é oferecer o conteúdo antes da aula e fazer com que os momentos presenciais e coletivos passem por um filtro: só participam desses momentos aqueles que demonstrarem o mínimo interesse. Se a criança sequer tocar no conteúdo antes, ela simplesmente não deveria participar do convívio. Sabemos, por vários experimentos, que se metade da turma estiver prestando atenção e a outra metade não estiver, a parte desinteressada contamina o restante do grupo e o resultado é um desastre. Se o professor usar um filtro inicial baseado em interesse e realizar os momentos coletivos somente com aqueles que demonstraram o mínimo de interesse, os resultados vão lá para cima.

E o que o professor faria com o estudante que não se interessa? Ele pode mandá-lo para a biblioteca, para uma sala de informática, para qualquer outra atividade. Em uma metodologia tradicional, mesmo que o professor tenha toda a rotina sob seu controle, ele precisa reprovar aquele que não acompanhou o grupo. Isso não é negativo da mesma maneira? Uma nova metodologia implica mudança de cultura. Vai ser normal que o aluno assuma que não pode assistir à aula porque não se preparou para ela, e terá que ser aceitável tanto para o gestor escolar quanto para os pais. Na próxima aula, ele vai se preparar para participar.

Que mudanças de conceitos são necessárias para a transformação de que o senhor fala? Todo o processo educativo tradicional é baseado na cognição, ou seja, como se aprende e como se ensina. O mais importante no futuro será a metacognição: o aluno terá que entender o processo ao que está submetido e conhecer seus avanços, obstáculos e deficiências. Ele precisa se enxergar no processo educacional. Isso abre a porta para um novo ponto: a classe não se dividirá mais entre aqueles que sabem e os que não sabem, mas dará espaço para um terceiro, que não sabe o conteúdo, mas sabe onde encontrá-lo. No mundo atual e futuro, é mais relevante a atitude de uma pessoa diante de uma pergunta para a qual ela não tem resposta, porque o acesso à informação não é mais crítico. O professor tem que esquecer essa ideia de que vai disputar espaço com a tecnologia. Não há chance de ele dominar mais esse tema que um jovem. Ele tem que achar mecanismos para dizer ao aluno: "Eu não sei essa linguagem como você sabe, mas eu estou disposto a compartilhar o que eu sei e aprender com você." Mas fazer isso exige um alto nível de maturidade e metacognição para entender o papel de cada um. Ele não pode mais chegar na aula e dizer que sabe mais, pois não sabe mais sobre certas áreas, como as tecnologias digitais.

Não é, de fato, o que acontece hoje nas escolas, certo? Não, ainda temos a maior parte dos professores pedindo que seus alunos desliguem o celular durante as aulas. Mas eles não conseguem, cada vez que ele vira para frente, o estudante está lá teclando. O problema real não é esse, os jovens conseguem perfeitamente acompanhar os dois e não haverá como mudar isso. As crianças não vão mais aprender equação de segundo grau na escola. Elas vão procurar um vídeo, com um bom professor, e vão aprender na hora que querem, como querem, com algum nível de interatividade. O espaço tradicional de ensino hoje mais se assemelha à tortura do que ao ensino.Tenho a esperança de que a escola vá reconhecer esse movimento e se reconceitualizar.

Quais os avanços vistos em outros países? A Inglaterra é um país que está avançando muito. Eles fizeram uma ação interessante no ensino médio. Mudaram a obrigatoriedade de certas disciplinas, como química, física e biologia: não é mais necessário fazer as três ao mesmo tempo, e o aluno pode ter sua motivação voltada apenas para biologia, por exemplo. Mas a maior inovação está em garantir uma preparação dentro dessa disciplina para que o professor introduza elementos de química e física. O aluno pode estudar pressão, conteúdo da física, a partir do estudo da capilaridade das plantas, um capítulo da biologia. Isso introduz, de forma agradável, conceitos que são relevantes. O professor tradicional pode dizer que desse modo o estudante não aprende toda a física e a química. Mas eu pergunto: por acaso, ele aprende tudo com o atual sistema de aulas? Provavelmente não, e ainda deixa a escola com raiva das ciências. Se você apresenta um modelo em que o aluno desenvolve apreço pelo método científico e se sente parte do processo, não importa se ele escolheu cursar uma, duas ou três disciplinas, mas, sim, o fato de que, ao escolher, ele possa dizer: "Eu sou corresponsável pelo processo."
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Fonte:  http://veja.abril.com.br 30/03/2014

‘Ainda não temos crença na democracia’

 - Eduardo Nicolau/Estadão
 

Lamenta o intelectual que se escondeu da polícia, até ser pego pela política

Era jovem, mas já prestigiado como acadêmico. Equilibrava-se entre ser socialista nos modos e marxista nas ideias. E fazia a cabeça da estudantada da Faculdade de Filosofia da USP. Daí o golpe se consumou e o professor Fernando Henrique teve que sumir. Vazou, como se diz hoje. "Quando os policiais chegaram na Maria Antonia (nome da rua onde ficava a faculdade, em São Paulo) para me prender quase levaram o (filósofo) Bento Prado, achando que era eu", comenta o ex-presidente ao lembrar de um tempo em que precisou pular de casa em casa, de cidade em cidade, às escondidas, até se fixar no Chile, para onde seguiram a mulher, Ruth Cardoso, e os filhos pequenos.

Na entrevista que se segue, o trigésimo-quarto mandatário brasileiro reflete sobre a ditadura e conclui que ela não chegou a desmontar o Estado regulador. "Falam tanto em neoliberalismo, mas nunca tivemos isso no País. Já liberalismo político, esse eu até gostaria que houvesse mais". A 50 anos do golpe que o levou para o exílio e aos 82 de idade, 

Fernando Henrique, deixa passar uma nota de amargura: "Não estamos em condição de ensinar democracia a ninguém, porque há muito a aprender. Faltam-nos, sobretudo, crença na democracia e grandeza na vida política."

Onde estava quando tudo aconteceu, 50 anos atrás? Semanas antes do golpe, quando houve aquele comício da Central do Brasil, eu estava no Rio, onde vivia meu pai. Passei pelo comício e embarquei lá mesmo, rumo a São Paulo. Era 13 março. No trem estavam o (hoje ex-ministro) José Gregori, o (hoje ex-deputado federal) Plínio de Arruda Sampaio, com quem eu acabaria me reencontrando no exílio, e um rapaz chamado Marco Antonio Mastrobuono, que depois viria a casar com a Tutu, filha do Jânio Quadros. Viemos conversando ao longo da viagem sobre a situação. Ali ninguém era entusiasta do Jango, eu também não era. Embora meu pai fosse um militar nacionalista, que inclusive havia sido deputado pelo PTB. 

Seu pai era um nacionalista. E o senhor?Um socialista. Tivera contato com o comunismo nos anos 1950, mas àquela altura, depois do stalinismo, não sobravam ilusões. Também não tinha ilusão de que o Jango seria algo extraordinário ao País, porque ele era um populista e eu, um acadêmico. E, na universidade, tínhamos a convicção de que as mudanças viriam da luta de classes, não do populismo. Pois bem, chegando a São Paulo, encontrei um clima de grande agitação. Nessa época o Darcy (Ribeiro) já havia sido nomeado chefe da Casa Civil do Jango. E era muito amigo da minha família. Nós nos falamos algumas vezes por telefone naqueles dias e isso terminou me trazendo uma dor de cabeça tremenda, pois o aparelho do Darcy estava grampeado e fui grampeado, também. 

O que aconteceu exatamente?O Darcy um dia me disse que viria a São Paulo e eu comentei "vem com cuidado aí com o Grupo dos Onze" (grupo de resistência radical concebido em 1963 pelo então governador gaúcho Leonel Brizola). Disse aquilo por dizer, sem qualquer intenção, porque havia acontecido uma violência contra o ministro da Reforma Agrária do Jango, em São Paulo, algo assim. Esse comentário grampeado iria me complicar no futuro, quando fui processado na Justiça Militar. Mas, na noite do golpe, lá na Maria Antonia, havia mesmo muita confusão. Eu exercia certa influência sobre alunos e professores mais jovens, embora fosse jovem também - tinha só 33 anos, mas já fazia parte do Conselho Universitário. Muitos dos meus colegas achavam que o golpe era do Jango e dos generais leais a ele, o Amaury Kruel, o Osvino Ferreira Alves. A confusão era tanta que eu telefonei para o Luiz Hildebrando da Silva, que era da Medicina da USP e ligado ao Partidão, dizendo para ele vir até a Maria Antonia, pois estavam preparando um manifesto contra um golpe do presidente. E não um manifesto contra o golpe no presidente! Veja como estávamos perdidos na USP, isolados da vida política, mergulhados num marxismo teórico. Vou contar uma passagem estapafúrdia: naqueles dias soubemos que haveria uma resistência armada no Sul e então o Bento Prado, o (cientista social) Leôncio Martins Rodrigues, o Paulo Alves Pinto, que era sobrinho do general Osvino, e eu cogitamos tomar um aviãozinho no Campo de Marte para lutar no Sul. Ainda bem que não houve luta alguma (ri). Então, assim foi a minha última noite andando pela rua Maria Antonia. No dia seguinte, a polícia apareceu por lá para me prender. Quase levaram o Bento Prado, pensando que fosse eu.

Como escapou de ser preso na Maria Antonia?Alunos meus ficaram nas esquinas, à espreita, para me avisar que a polícia estava lá, assim que eu me aproximasse. Acabei não indo à faculdade e naquela noite dormi na casa de um amigo, o cineasta Bráulio Muniz. Continuei me escondendo, daí fui para o Guarujá na casa do (fotógrafo) Thomas Farkas, com o Leôncio. E a Ruth (Cardoso), minha mulher, ficou aqui, tentando entender o que se passava. Ruth procurou o Honório Monteiro, que fora ministro do presidente Dutra e era meu colega no Conselho Universitário. O Honório tentou interferir a meu favor junto ao Miguel Reale, então secretário de Segurança. Mas o Reale respondeu que no meu caso não havia o que fazer, porque "esse professor Cardoso não é só teórico, mas prático também". Outro amigo, o (economista, museólogo e autor teatral) Maurício Segall, que já se ocupava de organizar fugas, achou que eu tinha que cair fora, não havia condições de ficar no País. Saí por Viracopos e fui para Argentina, para a casa de um ex-colega meu na França, que mais tarde viria a ser ministro do Kirchner, o José Nun. Tive convite para lecionar na Universidade de Buenos Aires, mas também convite para trabalhar na Cepal, no Chile. Preferi ir para o Chile. Meses depois Ruth veio ao meu encontro, com as crianças, e lá ficamos anos.

Voltou ao Brasil nesse período?Duas vezes. Eu me encontrei em Paris com Antonio Candido, que dava aulas por lá, e ele me ajudou a voltar ao Rio para ver meu pai. Era 1965. Quando meu pai morreu, eu estava no Chile, mas já com passaporte validado, portanto voltei para o enterro. Houve uma missa com muitos oficiais e um deles chegou perto do meu irmão para dizer, referindo-se a mim: "Ou ele vai embora ou vai ser preso". Vim para a casa do empresário e editor) Fernando Gasparian, em São Paulo, dormi outra noite na casa do (sociólogo) Pedro Paulo Popovic, e regressei ao Chile. Acabei não sendo preso. Houve o processo contra mim na Justiça Militar, com acusações ridículas, entre as quais aquela envolvendo o telefonema grampeado do Darcy, e outras histórias vindas da universidade, de colegas que naquele momento dedo-duraram bastante, mas depois virariam ultra-esquerdistas. O general Peri Bevilacqua, neto do Benjamin Constant e homem ligado à minha família, foi quem me deu um habeas corpus anos depois. Mais tarde ele seria cassado, também. Pude devolver as medalhas do general para a família dele, quando estava na Presidência.

O que o senhor pesquisava na época do golpe?O empresariado brasileiro. Foi minha tese de livre-docência, defendi em 1963 e publiquei-a no ano seguinte. Contestava a visão da esquerda de que havia uma aliança dos latifundiários com os imperialistas, contra a burguesia nacional e o povo. Isso era bobagem. Os empresários tinham ligação com o campo e não eram antiimperialistas, com exceção de dois ou três. A esquerda apostava no papel progressista da burguesia nacional e eu tinha uma visão crítica em relação a isso.

Disse que não se entusiasmava por João Goulart. Como o definiria?Jango não era de assustar ninguém e hoje seria um político muito mais tranquilo do que qualquer um desses governantes populistas da América Latina. Mas, no contexto da Guerra Fria, e pelos contatos que tinha com os comunistas, representava o horror naquele momento. Vi isso acontecer de novo no Chile. Allende era um reformista e virou o belzebu. Enfim, Jango era um político brasileiro tradicional, populista, um latifundiário que nunca quis fazer revolução alguma. Levantava a bandeira das reformas de base e ninguém sabia exatamente o que eram. Olhando sociologicamente: tínhamos o mundo contingenciado pela Guerra Fria, porém o Brasil começava a se encaixar no eixo dos investimentos estrangeiros, desde o Juscelino. Havia crescimento industrial, forte migração campo-cidade e um Estado incompetente para atender às demandas de uma sociedade que crescia. Então, a população começou a se movimentar e ir para as ruas. Nós, acadêmicos, estávamos tão entretidos com os debates teóricos, que quando nos demos conta as ruas tinham entrado na universidade! 

Qual era o projeto dos militares em 1964? Submeter o País a uma modernização imposta de cima para baixo?Acho que nem tinham projeto. Setores pensavam de forma diferente e foram variando de posição até o final. O general Amaury Kruel (foi ministro da Guerra de Jango), por exemplo, foi um que variou até o momento do golpe. Mesmo o general Mourão, de Minas, não tinha noção do que deveria ser feito. Quem tinha? Os oficiais da Escola Superior de Guerra, o grupo do Castelo Branco. Esses sabiam que seria importante empreender no País a modernização conservadora. Mas, veja só, entregaram a economia ao (Otávio Gouveia de) Bulhões e ao (Roberto) Campos, que por sua vez saíram atrás da modernização capitalista - arrocho fiscal, arrocho salarial, tudo feito a machadinhas, o povo pagando um preço alto. Implantaram um programa austero, que deu na explosão econômica dos anos 70. Ora, quem fez isso não foram os militares, mas o Bulhões e o Campos. Havia necessidade de modernizar o capitalismo brasileiro. E, consequentemente, frear o avanço do setor estatal. Até porque o Juscelino já tinha feito o enganche do País com o setor produtivo global e os militares sabiam disso.

O senhor acha que o regime, no seu primeiro momento, tratou de sepultar o legado varguista?O Castelo, talvez. A verdade é que os militares já estavam claramente divididos, e isso era visível no Clube Militar: havia o setor ultranacionalista e o setor democrático-liberal. Este se aproximava dos Estados Unidos. E o ultranacionalista, embora não engolindo os russos, achava que eles funcionavam como contra-peso ao poderio americano. Isso, evidentemente, tem a ver com as posturas "ser Getúlio" ou "ser anti-Getúlio", levando-se em conta que o Getúlio simbólico foi sempre o nacionalista-estatizante. É interessante notar como era o contexto da época: os militares nacionalistas-estatizantes, que nunca confiaram nas forças do mercado, eram chamados de esquerda, o que era exagero. E os democráticos-liberais eram vistos como direita, outro exagero.

Daí o regime foi se radicalizando.
Exato, foi radicalizando a tendência autoritária. Isso não foi pretendido no começo, mas foi se formando. E virou um monstro que, não fosse o (general Ernesto) Geisel ter-se oposto, justo ele, um nacionalista-estatizante, correríamos o risco de cair numa direita fascista. Uma direita que se justificaria pelo apego à ordem, e não pelo desenvolvimento capitalista. Cabe ainda muita pesquisa sobre o período, para analisar com objetividade e entender como tudo aconteceu ao largo de um intenso processo de industrialização e urbanização. São Paulo, em meados da década de 70, crescia 5% ao ano. Havia mais de cinco milhões de pessoas vivendo aqui. Tivemos um crescimento econômico que não correspondeu ao social. Isso começa a ser corrigido com a redemocratização e vem até agora. Penso que hoje, de novo, vivemos algo parecido. Não se tem mais a mobilidade rural-urbana do passado, mas uma intensa mobilidade social. As pessoas querem mais e o Estado não tem como dar. Instalados no poder, os militares trataram de providenciar uma fachada de legalidade ao regime. Chegaram a falar em "democracia relativa".De fato, eles nunca aceitaram que o regime não fosse visto como democrático. 
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Reportagem por  Laura Greenhalgh
Foto:  Eduardo Nicolau/Estadão
Fonte: Estadão online, 28/03/2014