segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Luc Ferry: "A felicidade é a ideia mais idiota já inventada”


 
Escritor fecha o ciclo de palestra do Fronteiras do Pensamento deste ano

 "Quando não há mais ideias e utopias, o que resta: o cuidado de si visto por Michel Foucault. O comunismo morreu. Não há mais grandes causas. Só resta cuidar do próprio umbigo. Aí entra a terceira etapa, a felicidade. Se só resta o meu umbigo, preciso gozar ou encontrar a sabedoria no budismo, no estoicismo, no epicurismo ou no taoísmo, o que me permitirá viver bem comigo. É uma grande bobagem. A felicidade é impossível".

Casado há 22 anos com “uma linda mulher”, como faz questão de enfatizar, pai de três filhas “maravilhosas”, ex-ministro da Educação da França, autor de 70 livros, traduzido em 45 países, Luc Ferry, 68 anos, se vê como um liberal social que detesta os centristas como Emmanuel Macron, já votou no socialista Michel Rocard, mas se considera, antes de tudo, gaullista, republicano de direita, liberal em economia.

Convidado do Fronteiras do Pensamento, nesta entrevista, fala do “segundo humanismo” e da revolução do amor”. Afirma que nada é mais idiota do que a ideia de felicidade.

Caderno de Sábado – A democracia liberal tem futuro?
Luc Ferry – Ela triunfa por toda parte. Se comparamos com os anos 1930, está milhares de vezes melhor hoje. Os países do leste europeu, antes comunistas, viraram democracias. O Brasil é uma democracia. Bolsonaro foi eleito. Trump também. A democracia só não vence onde predomina o Estado Islâmico. O problema é que a globalização produz excluídos. São eles que engrossam as fileiras da extrema esquerda e da extrema direita. A saída, porém, não é o centrismo, nem trocar o debate esquerda/direita por centro versus extremismos. A globalização produz um efeito antidemocrático, mas mesmos os líderes de extrema-direita são eleitos democraticamente.

CS – Como fazer para superar esse efeito nefasto?
Ferry – Sem demagogia, o problema é que o mercado se tornou mundial, mas a política continua local. Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft e são mais poderosos que muitos Estados. Os gigantes chineses ­– Baidu, Alibaba, Tencent et Xiaomi – são muitos fortes. Os executivos dessas empresas têm mais poder que muitos chefes de Estado. A solução, contudo, ao contrário do que pretendem alguns, não é o retorno à nação para que nossas elites tenham influência. A moeda nacional não dará um poder real. O Brexit faz parte dessa ilusão nacionalista. É uma idiotice compreensível. Será necessário encontrar soluções dentro da própria globalização em curso.

CS – O filme “Coringa” mostra um sistema que produz humilhação e colhe tragédia, gera exclusão e resulta em ressentimento e fosso social.
Ferry – O capitalista cria gente humilhada e também gente muito rica. Ninguém faz melhor. Os franceses de hoje são três mais ricos que os de 1950. A expectativa de vida aumentou 40 anos desde 1900. A globalização liberal produz liberdade e riqueza, mas também sentimento de abandono, como a semente geneticamente modificada levada pelo vento que escapa ao controle dos pesquisadores. Isso, repito, nutre as ideologias extremistas.

CS – Há espaço para a felicidade nesse quadro da globalização?
Férry – A ideia de felicidade é a mais idiota, a mais absurda de toda a história da humanidade. Isso vem da psicologia positiva norte-americana dos anos 1980. A autoajuda tomou conta do mundo. A sua origem está numa sequência devastadora: desconstrução da transcendência, que começa com Schopenhauer e passa pela filosofia do martelo de Nietzsche, que quebra os ídolos, Heidegger e os filósofos da suspeita, Marx, Freud. O mundo, sem transcendência, torna-se materialista, numa imanência radical, tendo Spinoza como pensador. Quando não há mais ideias e utopias, o que resta: o cuidado de si visto por Michel Foucault. O comunismo morreu. Não há mais grandes causas. Só resta cuidar do próprio umbigo. Aí entra a terceira etapa, a felicidade. Se só resta o meu umbigo, preciso gozar ou encontrar a sabedoria no budismo, no estoicismo, no epicurismo ou no taoísmo, o que me permitirá viver bem comigo. É uma grande bobagem. A felicidade é impossível. Podemos ter momentos de alegria. Desde que se ama alguém, que se tem filhos, a felicidade se torna impossível, pois há preocupações. A “felicização” do mundo é uma mercadoria que se vende bem: livros, aplicativos, sem contar o coach que ganha dinheiro de quase todo mundo.

CS – O coach é um charlatão?
Ferry – Claro, quase estelionatário, impostores intelectuais, vendendo exercícios espirituais para enfrentar a morte e ser feliz. A verdadeira definição da felicidade é justo a possibilidade de sentir alegria. Não é algo estável ou que será permanente. O resto é pura falsificação.

CS – O que colocar no lugar da felicidade?
Ferry – Estou escrevendo um livro sobre isso: “Nem decrepitude nem morte: a sabedoria do segundo humanismo”, o do amor. Hoje, quem se preocupa com os outros, faz isso por se sentir bem. Altruísta por egoísmo. Utilitarista. O primeiro humanismo, o republicano, defendia a liberdade e os direitos humanos, mas ficou refém do nacionalismo e do cientificismo. O segundo humanismo é pós-Nietzsche. Existem quatro respostas para a pergunta sobre o sentido da vida: para os gregos, a vida boa é a da harmonia de si com o cosmos; para as religiões, a vida boa é da harmonia de si com Deus; para o primeiro humanismo, a vida boa é da harmonia de si com a humanidade inteira; quarta resposta, a tríada, desconstrução-cuidado de-si-felicidade. Proponho uma quinta resposta a partir de duas revoluções, a invenção do casamento por amor, que sacraliza o ser humano, e o aumento do tempo de vida. O sagrado é aquilo pelo que aceito morrer. Antes, pela pátria, por Deus, por uma ideologia. Hoje, só por quem se ama. Por quem amo ou por quem poderia ou poderei amar, o meu próximo.

CS – Seremos imortais?
Ferry – Sempre seremos mortais, mas viveremos 150 anos ou mais. Estudei biologia durante três anos. Sei do que estou falando. A longevidade vai mudar tudo. Talvez cheguemos a 200 anos. Já transformamos células senescentes em células-tronco. Muitas doenças serão controladas. A questão será mais de manter a liberdade na velhice. Haverá tempo para amar.

CS – Já o criticaram por romantismo.
Ferry – Sou o primeiro dos modernos. A revolução do amor é moderna. Quando eu era jovem, mulheres precisavam de autorização do pai para casar. Os casamentos de conveniência dominam o mundo não ocidental. O casamento por amor engendra o divórcio. A tradição não precisava disso, pois não sentir amor não era razão para separação. E havia bordeis, amantes e traições.

CS – A civilização ocidental está em perigo?
Ferry – O islamismo radical vai provocar ainda muito estrago, mas não estamos na Alemanha nazista. Não haverá uma autodestruição. Francis Fukuyama tinha razão sobre o fim da história. Podemos ter retrocesso, mas não se fará melhor do que a democracia, que poderá ser aperfeiçoada. Mesmo nos regimes ditos iliberais, a democracia resiste no direito ao voto. Putin, Orban, Trump e Marine Le Pen não querem acabar com as eleições. O problema é que na democracia se pode votar em idiotas. Faz parte do jogo.

CS – Há uma ameaça individualista?
Ferry – Ao contrário. O individualismo foi uma vitória contra a tradição. O casamento por amor resulta da liberdade individual. É emancipação. Nunca o mundo foi tão altruísta quanto hoje. A filantropia nunca arrecadou tanto. Não estamos colocando o vazio no lugar dos valores. É o amor que rege as escolhas. Tivemos duas guerras mundiais devastadoras. Não queremos mais isso. Nunca tivemos um mundo tão pleno de possibilidades positivas.

CS – O iluminismo não se apagou?
Ferry – O primeiro humanismo apagou-se. O segundo está aí. Pensemos na emancipação das mulheres e dos homossexuais. Era inimaginável há menos de 50 anos. Em 1980, homossexualismo era visto como doença pela Organização Mundial da Saúde. Sociólogos ainda pensam muito negativamente, mas estão em decadência. Pierre Bourdieu morreu. Esse velho marxismo expirou.

CS – Ele dizia que não era marxista.
Ferry – Era marxista chique. Não era um Althusser. As religiões ideológicas da salvação terrena acabaram. O liberalismo ganhou. Victor Hugo dizia que produzir riquezas é uma coisa; saber reparti-la, outra. A Inglaterra sabia produzir, mas não distribuir. O capitalismo sabe produzir riquezas. É preciso saber distribuí-las. O comunismo pretendia saber repartir, porém não conseguia produzir. O modelo socialdemocrata europeu é o que melhor dá conta desse desafio. O Estado deve garantir meios de promoção social. Eu vim de uma família muito modesta e ascendi pelo esforço e pela escolarização. Estados oriundos do autoritarismo agarram-se ao ultraliberalismo. É preciso ajudar a criar oportunidades para todos.

CS – A tecnologia não está afetando esse modelo?
Ferry – Está ajudando. Vamos resolver o problema do câncer. A tecnologia tem um papel nisso. Não se deve crer em livros como o de Yuval Harari. É o livro mais idiota que li nos últimos 20 anos. O trabalho não vai acabar. Quantas profissões sumiram de 1850 para cá. E quantas surgiram? A inteligência artificial vai gerar mais atividades do que extinguir. Haverá, claro, um tempo de transição e de formação para essa mutação.
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