MORDAZ - McEwan: o dia em que um inseto virou primeiro-ministro do reino David Levenson/Getty Images
Com a breve narrativa, escritor usa do humor corrosivo e da influência de Kafka para expor o absurdo do processo de saída da Inglaterra da União Europeia
“Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma
alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa
criatura gigantesca.” A frase inicial de A Barata, nova ficção do inglês Ian McEwan, graciosamente prepara o leitor para o que vem pela frente. A referência a A Metamorfose,
clássico de Franz Kafka em que Gregor Samsa desperta sob a forma de um
inseto enorme, é invertida. Desta vez, é uma barata, habitante do
Palácio de Westminster, que acorda transformada em um ser humano: apenas
quatro membros, “um pedaço de carne úmida e escorregadia” na boca e uma
visão terrivelmente estreitada. Acrescente-se: primeiro-ministro da
Inglaterra. No lugar do abismo existencial e metafísico de Kafka, a boa e
velha sátira política.
Essas não são as únicas inversões que o premiado autor de Amsterdam
(1998) opera em sua hilária narrativa: o grande projeto político que
divide o reino, objeto de radical polarização e de grave paralisia
institucional, é o resultado surpreendente — e, para muitos, absurdo —
de um referendo. A decisão popular, que o Parlamento e o
primeiro-ministro não conseguem implementar por meses, faz a roda da
História girar para trás. Bebendo nas frustrações de trabalhadores e de
velhos de todas as classes sociais, o país parece dar um salto no
escuro, animado por um sentimento de saudosismo, de revolta contra uma
servidão não identificada, de nacionalismo autêntico e insurgente contra
uma “ordem corrupta e desacreditada”, que se ocultava por trás de
“gráficos e projeções” e de uma “racionalidade árida”.
Diante desse enredo, é uma obviedade pensar no Brexit, o traumático
processo de saída da União Europeia adotado pela Inglaterra em 2016,
após um plebiscito que parece ter deixado as elites intelectuais e
tecnocratas na lona. Não tão óbvio é o fato de a palavra “brexit” não
ocorrer nem uma única vez nas 100 páginas do relato de McEwan. Tanto
melhor para a diversão do leitor: a decisão dos eleitores britânicos no
plebiscito de A Barata é pela adoção do “reversalismo”,
doutrina econômica que prega a inversão completa do fluxo do dinheiro —
os cidadãos pagam para trabalhar, e, quanto melhor o trabalho, mais
caro; por outro lado, todos correm às lojas para receber dinheiro pelos
produtos que desejam. Com seu talento, McEwan dá uma verdadeira
“biografia” à doutrina do reversalismo: considerada por muitos um
simples experimento mental, tida por praticamente todos como mera piada,
“domínio dos excêntricos, de homens solitários que escreviam
compulsivamente cartas lunáticas para os jornais”, a doutrina, uma vez
aceita, parecia purificadora de todo o sistema. De vez em quando “se
revelava atrativa na Europa Ocidental para grupos da direita ou extrema
direita porque parecia eliminar o poder do Estado”. E é para implementar
o reversalismo, vontade do povo expressa no plebiscito, que as baratas
de Westminster, até então acostumadas à serena condição de plateia
oculta do teatro parlamentar entre trabalhistas e conservadores, optam
por tomar de assalto o governo, assumindo a forma do primeiro-ministro e
a de seus assessores.
McEwan extrai tudo o que pode, em matéria de humor, da peculiar
confusão política que os ingleses criaram para si. As referências à
política real são evidentes. Há um primeiro-ministro que oferece a
oportunidade do plebiscito confiante em que sairia vitorioso, exatamente
como David Cameron; um líder trabalhista que é, na verdade, um ardoroso
defensor do reversalismo, como Jeremy Corbyn sempre foi inimigo da
União Europeia. Daí até as extravagantes consequências da implementação
do plano, McEwan ilumina uma barafunda que terá mais perdedores que
ganhadores. Na sátira mordaz de A Barata, a única que sai vitoriosa é a literatura.
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Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672Fonte: https://veja.abril.com.br/entretenimento/a-barata-de-ian-mcewan-a-comedia-do-brexit/
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