Filósofa holandesa Joke J.
Hermsen afirma que a epidemia de depressão que assola o mundo, juntamente com o
medo, ajuda a explicar a ascensão da extrema direita
Carmen Pérez-Lanzac
25 Jan 2020
Joke J. Hermsen (Middenmeer, Holanda, 1961),
doutora em Filosofia e especialista na vida e na obra das filósofas Hannah
Arendt e Lou Andreas-Salomé, analisa em seu último livro – La Melancolía
en Tiempos de Incertidumbre – um sentimento humano que, diz ela, explica em
parte a ascensão da extrema direita. Defende que a epidemia de depressão que
assola o mundo se deve ao fato de que não soubemos deter a melancolia em sua
versão insana, o que leva o ser humano a cair no lado escuro, na ira e no medo.
Pergunta. De que
maneira os políticos influenciam em nossa melancolia?
Resposta. Neste
momento temos muitos políticos que semeiam mais o medo do que a esperança. E
isso é perigoso. Nossa melancolia precisa de esperança, de amor, de luz, de
amizade... e quando a cercamos de medo corremos o risco de transformá-la em
depressão. A responsabilidade desses políticos é grande. Existe o perigo, como
dizia Hannah Arendt, de cair de novo em um sistema
totalitário. Nunca devemos pensar que isso não vai acontecer conosco.
P. E o que podemos fazer para
ir nessa direção?
R. Apontar a responsabilidade
desses políticos. Tudo o que podemos fazer é criticá-los e fazer propostas
esperançosas. Todos nós sofremos de fadiga parlamentar, não acreditamos mais em
nossa democracia.
Não acreditamos mais que os políticos vão consertar as coisas, temos que
inventar outros instrumentos. E o que eu proponho são comitês de cidadãos.
Pessoas escolhidas de modo rotativo por sorteio que tenham dias pagos por todos
para se informar, debater e tomar decisões. A principal vantagem é que as
pessoas se sentiriam mais responsáveis e representadas. Sentiriam de novo sua
liberdade política, porque não devemos esquecer que também somos seres
políticos. Temos que repensar nossa democracia, experimentar. Não
temos nada a perder.
P. A senhora diz que a
dificuldade que temos hoje para encontrar a calma é uma das causas da epidemia
de depressão no Ocidente.
R. Tento readaptar a
distinção feita por Aristóteles entre a melancolia criativa e solidária, a
melancolia zen e a melancolia que se transforma em uma depressão muito séria,
uma melancolia insana. Existem várias causas para essa evolução; uma delas é a
falta de esperança que torna a melancolia cada vez mais escura e que faz com
que nos sintamos ameaçados. E outra é a falta de horas de descanso, de calma,
de ataraxia, que faz com que nossa melancolia se transforme em cólera ou em
medo, em depressão. E este é um problema generalizado.
“Quando crescemos, é importante reaprender a ser
aquela criança que
fomos, que se sentia
una com o mundo”
P. Outra causa de nossa
melancolia, como a senhora diz, está na nostalgia que sentimos por nossos
primeiros anos de vida, de que não nos lembramos porque não tínhamos
desenvolvido a linguagem.
R. Escrevi minha tese em
parte sobre Lou Andreas-Salomé, que descobri através de Nietzsche.
Ela elaborou a ideia de que durante a primeira infância
temos a impressão de sermos unos, uma unidade com tudo o que nos rodeia. As
crianças dizem sempre nós, nunca eu. Se você se olhar no espelho com um bebê
nos braços, ele não verá diferenças entre ambos. Nascemos em algo que nos
transcende. Por isso é tão importante quando crescemos e nos tornamos esse eu,
ou esse ego completamente angustiado, reaprender a ser aquela criança que
fomos, que era mais do que apenas ela mesma. É uma forma de pensar sobre a
transcendência do eu para o nós. Sempre sentiremos melancolia por aquela
criança que fomos, por esse nós.
P. Em que momento começou a
falar sobre depressão?
R. Em praticamente todas as
culturas encontramos esse estado de alma melancólico ao qual cantamos descrito
na poesia, na literatura, na arte... Mas a partir de Freud passou a se chamar
depressão. E o que lamento é que percamos o lado positivo da melancolia. A
melancolia não é alegria nem tristeza, é algo que combina essas duas sensações.
Quando queremos alcançar uma verdade profunda, precisamos das
ambivalências, elas nos aproximam melhor da verdade de nossa existência como
seres humanos. A condição humana se desenvolve em uma ambivalência maior do
que supomos nesses momentos. Mas suportamos cada vez menos as ambivalências.
Quando vemos no cinema que todo mundo chora ou todo mundo ri... Pode ser muito
divertido, mas existe algo no fundo da alma que não se comove. Muitas vezes o
que nos chega realmente é algo melancólico, uma tristeza que sorri ou uma
alegria por estar triste.
“Sofremos de fadiga parlamentar. Proponho criar comitês
de cidadãos,
pessoas escolhidas de modo
rotativo por sorteio”
P. A senhora acredita que
para tratar a atual epidemia de depressão o mundo precisa de uma aproximação às
pessoas afetadas que integre o tratamento filosófico. Pode explicar melhor?
R. Não proponho isso como remédio. Quero ir mais longe. Nosso estado de alma é
melancólico porque estamos conscientes de nossas perdas, estamos conscientes de
que um dia morreremos e estamos conscientes dos anos e de tudo o que vamos
deixando para trás. E o que é importante é que criemos horizontes de esperança
em torno dessas nuvens, à sombra da melancolia. A melancolia precisa de esperança, amor, música, amizade, luz,
dança... para não se tornar escura. Não é uma terapia, o que proponho é que
percebamos que necessitamos, além da calma, também do amor. Não apenas com
relacionamentos românticos, também o amor mundi, o amor pelo mundo mencionado
por Hannah Arendt. Que nos sintamos em comunhão com o mundo e que sintamos esse
amor compartilhado com ele. Necessitamo-nos mutuamente.
P. As pessoas com depressão
são párias do sistema neoliberal?
R. Sim, elas são. O
neoliberalismo é quem as deixa doentes. O que é necessário para que a
melancolia seja saudável? Descanso, e no capitalismo isso não existe. O sistema
faz com que as pessoas fiquem deprimidas e, além disso, essas pessoas não são
cuidadas. Ele as afasta. A terapia que proponho não custa dinheiro, mas tempo,
entretanto o tempo se tornou o produto de luxo por excelência.
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Fonte: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-01-25/falta-de-horas-de-descanso-faz-com-que-nossa-melancolia-se-torne-raiva-ou-depressao.html?utm_campaign=oqel&utm_source=Newsletter
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