J.J. Camargo*
Cada vez mais, necessitamos do “coração compadecido” das outras pessoas
Nunca
cometa a insanidade de subestimar a força moral dos misericordiosos.
Eles são superiores e se alimentam da energia inesgotável de fazer o
bem, este combustível que dispensa aditivos.
Em
português, o termo “misericórdia” vem da junção de duas palavras
latinas, no caso, miseratio, que deriva de miserere e significa
“compaixão”, e cordis, que significa “coração”. Logo, misericórdia
significa algo como “coração compadecido”, no sentido de ter compaixão
pelo sofrimento e a dor de alguém.
Preparando
uma conferência na universidade e estimulado por uma crônica do Pondé,
fui à cata dos comentários rabínicos da Criação, onde reza a lenda que,
lá no início, quando Deus, pensando em criar o homem e a mulher,
resolveu consultar seu parlamento sobre se devia ou não fazê-lo.
Primeiro, ouviu a Justiça, que O desaconselhou: “Eles vão criar
problemas, não vão te obedecer, isto aqui vai virar um inferno, desista
da ideia”.
A seguir, buscando
um contraponto, chamou a Misericórdia, que argumentou: “Olha, é
provável que eles tragam algum incômodo sim, mas tenho certeza de que
algumas vezes eles serão tão maravilhosos que vai valer a pena”. Então,
Deus teria tomado a Misericórdia nas mãos e jogado ao chão com toda a
força para que se estilhaçasse em mil pedaços, e sentenciou: “Eu vou
criar o homem e a mulher, mas eles vão passar a vida catando cada pedaço
de misericórdia espalhado sobre a terra”.
A
sentença era explícita: como somos seres imperfeitos e pretensiosos,
arrogantes e egoístas, incapazes de almejar o bem absoluto, estamos
fadados ao erro, a enfiar os pés pelas mãos, a fazer coisas que
desagradam aos outros, a sentir inveja e ódio, ou seja, estaremos sempre
dependendo da generosidade alheia para sermos perdoados. E ninguém
discute que só merece perdão quem for capaz de perdoar.
A
agressividade crescente e a intolerância latente em cada gesto do outro
sugerem que, ou estamos imunes ao sentimento de culpa, ou não estamos
nem aí para sermos ou não perdoados.
Tenho
a sensação de que a grande qualificação da medicina, determinando a
progressiva protelação da morte, tem estimulado um conceito equivocado: a
longevidade não é sinônimo de eternidade, ainda que haja um número
crescente de interessados em confundi-la.
O
certo é que estamos cada vez menos preparados para a despedida.
Refugiados nas redes sociais, associamo-nos à maior usina de ilusões, e
na disputa por ver quem fantasia melhor falando bem de si mesmo,
estaremos sempre a um passo de acreditar que “essas coisas referidas aí
acima nunca acontecerão comigo”!
E,
nesse processo de negação protetora, vamos construindo o pior binômio
emocional para o adeus: a aliança da tristeza da doença com a tragédia
da solidão.
------------
* Médico. Escritor. Colunista da ZH
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/jj-camargo/noticia/2020/01/misericordia-nao-desista-de-merecer-ck62t7q1d0dc401mv77aqiwwv.html
------------
* Médico. Escritor. Colunista da ZH
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/jj-camargo/noticia/2020/01/misericordia-nao-desista-de-merecer-ck62t7q1d0dc401mv77aqiwwv.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário