“Como
Militar, sinto-me envergonhado por tantas ações atabalhoadas,
extravagantes, ridículas e mesquinhas.” As palavras do coronel da PM
paulista coronel Glauco Carvalho sobre o presidente Jair Bolsonaro causaram um rebuliço entre seus pares. Glauco tem experiência com crise. Enfrentou os ataques do PCC e chefiava quase 30 mil homens do Comando do Policiamento da Capital quando passou para a reserva.
Em
meio à crise do coronavírus, decidiu fazer o desabafo em um grupo de
policiais no WhatsApp. A postagem do coronel terminava assim: “E esse
presidente, despreparado para o cargo, me comparece à manifestações e
diz 'se eu pegar é responsabilidade minha'!!! Surreal. Deveria sofrer um
impeachment!!!”
Hoje Glauco é o vice-presidente do Clube dos Oficiais da PM.
E desde quinta-feira, 19, dia de sua manifestação, tornou-se uma voz
dissonante em um meio que majoritariamente apoia o presidente. Acabou
criticado por colegas bolsonaristas, mas também recebeu apoios,
principalmente de civis. Glauco conheceu Bolsonaro quando trabalhava na
assessoria parlamentar da PM no Congresso, nos anos 1990. Eis sua
entrevista:
Por que o senhor decidiu se manifestar agora?
No
meu entender há uma postura muito frágil do presidente da República em
relação à gravidade da difusão dessa doença em solo brasileiro. E a
inação dele vai gerar muitas mortes no Brasil - eu espero estar
sinceramente equivocado. Essa postura dele de minimizar o quadro só vai
agravar a situação e levar à perda de vidas. Isso me levou a me
envergonhar de ser militar como ele e sermos preparados para crises
graves. Fiz essa postagem me desculpando perante um grupo de pessoas
pela postura de um presidente que eu entendo não estar apto a exercer o
cargo político mais importante do País.
Qual a importância do planejamento e da gestão de uma crise para o senhor? E de que forma o presidente não estaria agindo segundo o que se esperava de um militar?
O militar é formado para evitar as crises e,
entrando nas crises, achar alternativas para sair delas. O grande
problema do Bolsonaro é minimizar e desprezar a crise. E ao desprezá-la,
não toma medidas.
Vou dar um exemplo concreto: fui oficial de
Estado-Maior da Polícia Militar por 15 anos. Você prepara cenários e,
sempre, prepara-se para o cenário mais agudo, o mais grave. Neste
momento, eu tenho certeza de que os oficiais e as praças do Centro de
Inteligência e do Departamento de Operações da PM de São Paulo devem
estar fazendo planejamentos para o pior cenário. Devem estar trabalhando
com as seguintes hipóteses: proteção de supermercados; proteção de
hospitais, pois em um caso de agravamento as pessoas podem desacatar
médicos e agredir enfermeiros; prevenção de saques; transporte de
cadáveres; incorporação de novos policiais, pois não vamos poder parar
de formar policiais; armazenamento de corpos, pois pode não haver locais
suficientes para mantê-los; cremação de cadáveres, como em Bergamo, na
Itália; infecção de policiais, pois eles estão na rua e terão contato
com pessoas; mecanismos de controle de pessoas e controle de portos,
aeroportos e rodoviárias, acompanhando enfermeiros para fazer exames em
quem chega a São Paulo; requisições de bens; check point com isolamento
total de determinadas áreas e outras medidas que contribuam para
controlar a doença.
Tenho a convicção plena de que meus
companheiros da ativa estão trabalhando com o pior cenário. Se vier o
melhor cenário, ótimo. Se não vier, a sociedade estará trabalhando para
enfrentá-lo. O mais grave erro de Bolsonaro é desprezar o quadro que a
sociedade está passando.
Prever esse cenário serve para se preparar se ele acontecer. É isso?
Eu
participei das crises contra o PCC de 1999, 2001, 2006 e 2012. Há um
grande temor no governo de como transmitir informações para a população
sem criar alarme. Por outro lado, a omissão pode gerar consequências
drásticas e um posicionamento contrário da sociedade em relação ao
governo. Em 2006, se fez isso, atrasou-se o aviso aos policiais do que
estava para acontecer (os ataques do PCC). E há quem atribua a morte de
policiais a essa decisão.
Eu não quero dizer que essas medidas
vão ser tomadas. Mas elas têm de estar preparadas e escritas em um plano
de operações. Se o quadro se agravar onde estão os hospitais, onde
estão as farmácias e os supermercados? Esse é o momento de se preparar
para o pior, pois se o caso se agravar você já tem plano de ações
pré-definidos. E é exatamente o que Angela Merkel está fazendo na
Alemanha, que está tomando medidas gradativas desde janeiro. Em que pese
terem pouco menos de 90 mortes, eles estão tomando medidas gradativas
de controle.
Nesse cenário, no pior dele, o presidente estaria errado em pensar em Estado de Sítio?
Eu
acho que ele não estaria errado, tanto que a região Leste dos Estados
Unidos admite adotar lei marcial caso as medidas de isolamento forem
descumpridas, mas para adotar o Estado de Sítio, Bolsonaro terá de
contar com grande legitimidade. A impressão que eu tenho é que a
legitimidade do presidente se esvai rapidamente.
Quando ele
compara um surto desse com uma “gripezinha”, quando ele autoriza que os
cultos e missas continuem ocorrendo e se põe contrário a governadores
que estão tomando medidas para conter a evolução da crise e difusão da
doença, e quando ele, principalmente, comparece a um ato público que é
um ato que se constitui em uma tragédia para a democracia - e não só do
ponto de vista político, no sentido de comparecer a um ato que atenta
contra outros Poderes, pois ele poderia estar com a gripe transmitindo
para outras pessoas -, ele perde a legitimidade. E, para aplicar o
Estado de Sítio numa democracia, você pressupõe uma legitimidade grande
de um presidente; e eu tenho a impressão de que ele terá sérios
problemas daqui para frente.
Qual seria o papel dos militares numa situação como essa?
Tenho
a impressão de que a Polícia Militar e a classe médica, esses dois
segmentos, vão ser os grandes líderes da saída institucional da crise
que se vislumbra. As pessoas ainda não têm ideia do que está ocorrendo
no dia a dia dos hospitais, entre os médicos e os policiais. Os médicos
serão os líderes no primeiro momento, e a PM vai assumir relevância
grande no segundo momento.
Só para lembrar: em 1904, a Força
Pública de São Paulo mandou dois batalhões para o Rio de Janeiro para
impor a vacina obrigatória, uma vez que a população do Rio não aceitava
ser vacinada. Nós temos história no tratamento de questões ligadas à
saúde pública. Os médicos para curar as pessoas, e a PM, no segundo
momento, pois acredito que pode haver desorganização social em função do
quadro econômico que se vislumbra para o Brasil.
Como um policial vai impor a ordem, se esse impor a ordem implica às vezes contato físico com quem pode estar doente. A polícia tem equipamento para isso? Está preparada para esse tipo de baixa?
A polícia
nesse momento não está, tanto quanto a área médica. Talvez a sociedade
não saiba, mas há grande aflição na área médica, pois nem todos têm
condições, equipamentos para seus profissionais, como avental
impermeável, óculos de proteção, luvas e toca e máscara N95. Se nos
hospitais não têm, imagina o policial, uma vez que se demorou a tomar
medidas. A minha grande insatisfação com o governo Bolsonaro, afora sua
postura autoritária, é o fato de ele ter demorado três meses para
agir. Nesse momento, já era para nós estarmos entrando em uma segunda
fase.
Minha maior preocupação é com as vidas das pessoas que
podem morrer por falta de atenção do serviço público de saúde e com a
vida de policiais militares, de médicos e enfermeiras. São os cabos e
soldados, tenentes e capitães, que estão na ponta de linha que muito
provavelmente vão contrair o vírus e vão transmitir às suas famílias.
Teremos um agravamento da crise. Temos de pensar na ponta da linha, no
policial que está no serviço. Temos de pensar no serviço operacional. O
atraso em tomar medidas pelo presidente da República e as suas atitudes
erráticas e contraditórias vão levar a uma dimensão da crise que o País
não tem ideia. Fui criticado por colegas, mas eu temo pelo pior.
Mas o que o presidente poderia ter feito há três meses?
O
surto na China teve início em novembro. Em dezembro, já sabendo da
dimensão do problema na China, ele já deveria ter adotado uma série de
medidas em relação ao fluxo de pessoas que entrava e saía do Brasil. Até
agora nós não temos quantidade de exames suficientes, equipamentos e
testes para atender à população. Se ele tivesse tomado algumas medidas
naquela época, provavelmente, agora já estaríamos em segundo etapa.
Teríamos testes, máscaras, luvas, aventais, esses EPIs
(Equipamentos de Proteção Individual) que as pessoas veem na televisão
na China e na Itália. Os nossos médicos e os nossos policiais e
bombeiros estão completamente vulneráveis.
Eu espero estar
errado, temos 40 milhões de trabalhadores informais e temos de pensar
nessa população vulnerável. Se você me perguntar, se Bolsonaro tivesse
agido antes, se poderia ter contido (a covid-19), é uma incógnita, mas
eu sei que a inação dele levou ao que a gente está vivendo hoje. Mas as
pessoas estão cegas pela ideologia. Tanto quanto o PT criou a ideologia
do Lula
livre e do Lula inocente, criou-se agora a do Bolsonaro salvador da
Pátria. Elas são apenas versões divergentes, mas no fundo são a mesma
coisa, e o tempo vai dizer isso para todos nós.
O senhor é filiado ao partido Novo e João Amoêdo fez uma declaração forte contra Bolsonaro. Essa posição do senhor tem relação com isso?
Nenhuma. Eu estou há dois anos afastado do partido Novo
por uma série de circunstâncias puramente pessoais. Particularmente,
acompanhei de longe as declarações do Amoêdo. Mas isso mostra a
fragilidade do governo Bolsonaro. Ele tem perdido apoio gradativamente
dos liberais e dos conservadores, como a deputada Janaína Paschoal. A legitimidade dele está entrando em erosão.
Por
enquanto, sou voz minoritária na Polícia Militar, mas temos efetivo de
90 mil pessoas que vai trabalhar cotidianamente. Um efetivo extremamente
exposto à doença, tanto quanto o segmento evangélico. Haverá corrosão
da legitimidade dele nos segmentos que lhe deram sustentação. Meu
posicionamento independe do ex-presidente do Novo, que eu respeito
muito. Meus posicionamentos em relação ao Bolsonaro já eram críticos
desde o ano passado, mas se avolumaram agora porque eu acho que a inação
dele vai gerar uma crise gravíssima no Brasil.
O senhor conheceu Bolsonaro nos anos 1990?
Eu
tive contato com ele quando eu era assessor parlamentar da PM em
Brasília, nos anos 1990. Naquele momento, havia a PEC 46, da Zulaiê Cobra, e a do Hélio Bicudo,
que extinguiam as Polícias Militares. E ele (Bolsonaro) nunca foi um
parlamentar atuante para conter o avanço tanto dessas PECs.
Quer dizer que no passado ele nada fez para impedir a extinção das PMs?
Nada fez. Eram outros parlamentares, de Minas, do Rio Grande do Sul e de São Paulo, o Hélio Rosas entre eles, que fizeram uma frente para impedir a extinção das PMs. Além do que havia uma contrariedade imensa nas Forças Armadas em relação a Bolsonaro.
Por quê?
Porque
eles consideravam o Bolsonaro uma pessoa desordeira, uma pessoa
desqualificada e indisciplinada. Essa era a visão das Forças Armadas.
E qual é a visão do senhor sobre Bolsonaro?
Essa
é também a minha visão sobre Bolsonaro. Na minha opinião, ele é uma
pessoa despreparada para ser o primeiro mandatário do País.
Lamentavelmente, o desgoverno do PT e a posição dúbia do partido em
relação aos que transgrediram as regras legais levaram à eleição dele.
Tanto que meus colegas dizem: ‘E se fosse o Lula, e se fosse o fulano ou
o beltrano?’ Mas nós não temos só essas alternativas. O Brasil se
radicalizou. Não existe só o preto e o branco. O Brasil se radicalizou
em razão do quadro grave e agudo. Bolsonaro era a alternativa que tinha.
As pessoas não queriam mais alguém que fosse do establishment e saiu o
Bolsonaro. Há que aparecer uma nova liderança de centro que tenha
condições de aglutinar a Nação e fazer com que a Nação ache solução para
seus problemas.
O senhor disse que Bolsonaro é autoritário. Por quê?
O
presidente Bolsonaro tem atitudes radicais e autoritárias. Na
literatura sobre o populismo dos anos 1970 e 1980 veremos que o quadro
se agravou na América Latina em razão de lideranças carismáticas que
desprezaram as instituições e os poderes de representação e se arvoraram
no papel de salvadores da pátria. Essa é uma literatura sólida e nós
assistimos à mesma coisa agora com uma roupagem um pouco diferente. Ele é
ainda autoritário porque representa setores autoritários da sociedade
brasileira.
Eu lembro o cientista político Guillermo O’Donnell,
que se radicou nos Estados Unidos, e que tem a teoria do autoritarismo
socialmente implantado nas sociedades latino-americanas. Bolsonaro é
resultado desse autoritarismo que existe no seio da sociedade, que faz
as pessoas não respeitarem regras, as pessoas se sentirem acima da lei e
desprezarem umas às outras e quererem impor de forma dramática e
descomunal sua vontade umas às outras. O Bolsonaro é um pouco o
resultado de tudo isso; e o Brasil não precisa disso. O Brasil tem
outros segmentos importantes da sociedade que não se coadunam com esse
tipo de comportamento.
Precisamos achar alternativas, pois o
radicalismo nunca é uma alternativa. Nós precisamos achar alternativas
democráticas, dentro do jogo institucional. Não podemos agravar o
descontrole social com o institucional; e ele não tem estatura para
isso. Esse é o grande problema. Precisamos achar alternativas que levem à
solução pacífica e dentro do quadro institucional e da Constituição
para que a nação possa continuar dentro de seu destino histórico.
O presidente da associação, coronel Antonio Chiari, disse que o senhor não fala em nome da associação?
Eu
respeito a opinião do presidente. Mas sou vice-presidente da
associação, pois fui eleito. Vamos passar por período complexo e, em que
pese a descortesia de ele não me consultar antes de se manifestar,
vamos ter de unir esforços para enfrentar esse período. Meu
pronunciamento, de fato, desde o começo foi e é em caráter pessoal e não
como vice-presidente da associação.
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REPORTAGEM Por Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
25 de março de 2020 | 17h10
Fonte: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,como-militar-me-sinto-envergonhado-pelas-acoes-de-bolsonaro-diz-coronel-da-pm-paulista,70003244358
Fonte: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,como-militar-me-sinto-envergonhado-pelas-acoes-de-bolsonaro-diz-coronel-da-pm-paulista,70003244358
Parabens pela postagem; bem elucidativo; não tive conhecimento.
ResponderExcluirGrato.