Michel
Maffesoli: “Cada vez que uma época se encerra, surge misteriosamente
a
emergência de uma pandemia” Foto: Didier Goupy / Divulgação
Para
sociólogo francês, crise sanitária aponta fim do individualismo e a
ressurgência de valores como o voluntarismo
Bolívar
Torres
04/04/2020
- 04:30 / Atualizado em 04/04/2020 - 08:10
Há mais de uma década, o sociólogo francês Michel
Maffesoli vem examinando as rachaduras escondidas no que ele chama de
“estruturas da modernidade”. Em livros como “Apocalipse” e “A palavra do
silêncio”, o ex-professor da extinta Universidade Paris-Descartes e atual
membro do Instituto Universitário Francês afirma que vivemos em função de
paradigmas arcaicos — e que em breve estarão obsoletos, como o racionalismo e o
progresso. Diante do avanço do coronavírus
e seus impactos no planeta, ele agora dobra a aposta: o fim da modernidade
nunca teria ficado tão evidente.
Segundo Maffesoli, há vislumbres de um novo mundo que vem
por aí, o da pós-modernidade. Uma cultura do sensível, focada na emoção e no
instante presente, e onde predominam valores como o compartilhamento e o
comunitarismo. O autor deixou Paris no início de março, e se recolheu em sua
cidade natal, na região do Cevénnes, sul da França, onde tem uma casa. De lá
falou ao GLOBO por telefone, em meio aos preparativos do seu novo livro, “La
nostalgie du sacré” (A nostalgia do sagrado, em tradução livre), que deve sair
por lá em abril, mas ainda não tem previsão de lançamento no Brasil. Neste mês,
ele deveria participar de uma conferência em Porto Alegre, que acabou adiada
por causa da pandemia. Não há nova data prevista por enquanto.
Minha teoria é que esta crise sanitária é sinal
de uma crise civilizatória. Vivemos o fim de um paradigma, e isso ficou ainda
mais evidente agora, com a presença da morte a nos rondar. Há cerca de 15 anos,
analiso a saturação desse modelo progressista, que é o grande modelo da
civilização moderna. Para mim, ele está acabando agora. A epidemia atual tem
uma expressão simbólica nesse sentido.
Vista
da Times Square completamente vazia: retrato do tamanho da crise
sanitária em
Nova York, o epicentro da covid-19 nos Estados Unidos Foto: ANGELA WEISS / AFP
O que esta pandemia tem de diferente em
relação a outras?
No início da decadência romana, no século II,
houve uma terrível peste que matou milhões de pessoas. A peste negra no século
XIV é o anúncio do fim da Idade Média e o início do Renascimento. A gripe
espanhola veio após a carnificina da Primeira Guerra, que marca o fim da
Europa. Vejo uma correlação a ser feita: cada vez que uma época se encerra,
surge misteriosamente a emergência de uma pandemia. Talvez haja algo de místico
nisso tudo.
O senhor diz que vivemos uma transição.
Já é possível entrever os valores desse novo mundo?
Na França, vemos celebrações e cantos coletivos
nas janelas, uma alegria impactante. Essas manifestações nas janelas trazem
elementos da pós-modernidade, como o estar-junto, o estar-com.
Para mim, são indícios de que não queremos mais nos fechar no individualismo,
ou numa organização muito racional da sociedade, que são, por sua vez, as
marcas da modernidade.
O que seria esse estar-junto?
A volta do compartilhamento, da troca, do
voluntarismo... Podemos encontrar várias palavras, digamos assim, espirituais.
Mas ocorre que é esse sentimento que está dominando, no lugar do economicismo,
do materialismo e do progressismo. Para mim, há uma volta de algo cultural e
espiritual. Uma espécie de ideal comunitário, que está tomando cada vez mais
força na contemporaneidade, como falei em um dos meus livros (“La France
étroite”, de 2015).
Anos atrás, o senhor já identificava esse
fenômeno em festivais eletrônicos, raves e outras grandes aglomerações. Vê
semelhança entre o que acontece nas janelas e esse tipo de manifestação
cultural?
Sim, pode haver. Mas, sejamos claros, a epidemia
é real. Essa possibilidade de perigo é simplesmente a possibilidade de morrer.
E, apesar da presença da morte, acho importante que haja essas manifestações
lúdicas, emocionais, através dessa ressignificação das janelas.
Que novo sentido a janela está ganhando?
Simbolicamente, a janela se abre para o mundo.
Estamos confinados, fechados em nossos apartamentos, e ao mesmo tempo todas
essas manifestações em torno das janelas nos tornam atentos ao desejo de
estarmos juntos. No século XVI, as janelas eram amplas e vastas. Pegue
Versalhes, por exemplo, ou os vitrais nas igrejas. Porém, a partir do século
XIX, com a arquitetura moderna, ela se reduziu e ficou estreita. Agora, por
outro lado, diria que ela está novamente se abrindo para a alteridade. O individual
só existe se estiver aberto ao mundo. A janela tem essa função.
Qual o papel das mudanças tecnológicas no
que estamos vivendo?
Temos nesse fenômeno algo do ativismo em redes. E
são as redes sociais, os fóruns virtuais, os blogs etc. que nos conectam para a
alteridade. É lá que as pessoas, durante o confinamento, estão se comunicando.
O que é bem paradoxal, eu diria.
Porque foi justamente a tecnologia moderna que
desencantou o mundo. Mas a tecnologia atual o está reencantando, na medida que
acentua o estar-junto. Insisto nesta palavra porque a considero muito
importante.
-----------
Nenhum comentário:
Postar um comentário