terça-feira, 1 de outubro de 2024

Seja humilde: é bom para o aprendizado e para a saúde dos relacionamentos

Por Richard Sima (The Washington Post)

Humildade intelectual faz bem para aprendizado e relacionamentos, mostram pesquisas.

 Humildade intelectual faz bem para aprendizado e relacionamentos, mostram pesquisas. Foto: calypso77/Adobe Stock

Pesquisas mostram que a humildade intelectual ajuda a ter mais conhecimento geral, protege contra desinformação e melhora as relações interpessoais; veja como cultivá-la

Ninguém sabe tudo. Reconhecer essa limitação e a possível falibilidade até mesmo de nossas crenças mais profundas é fundamental para o conceito de humildade intelectual.

“Ela ajuda a superar esse pensamento muito categórico, ou-preto-ou-branco, ao qual muitas vezes sucumbimos”, diz Igor Grossmann, professor de psicologia da Universidade de Waterloo.

A ideia de humildade intelectual está por aí há séculos: os filósofos sempre consideraram uma virtude reconhecermos nossas limitações. Mas o interesse experimental dos psicólogos ficou popular só na última década, em resposta à crescente polarização política. Eles viram a humildade intelectual como um possível antídoto.

“A humildade intelectual é difícil, porque queremos estar certos e achamos que estamos certos”, observa Tenelle Porter, professora assistente de psicologia da Universidade de Rowan, que trabalhou com Grossmann em uma revisão de 2022 sobre o assunto.

Mas as pesquisas sugerem que esses desafios trazem benefícios: a humildade intelectual é uma maneira de melhorar não apenas a nós mesmos, mas também nossos relacionamentos – ajudando-nos a aprender e a conviver uns com os outros.

Quando você estiver numa discussão acalorada – por exemplo, no jantar de Natal – vale a pena se concentrar na “humanidade compartilhada”, orienta Grossmann. “Ainda fazemos parte do mesmo planeta. Respiramos o mesmo ar”.

Isso pode ajudar você a pensar de forma diferente sobre a situação, informa. “Você fica menos na defensiva, porque não é uma questão de nós contra eles. A questão é todo mundo junto”.

Abrir a porta para o aprendizado

Embora a humildade intelectual não esteja associada a uma maior capacidade cognitiva, ela está relacionada a mais conhecimento geral, curiosidade e mente aberta.

“Se alguém percebe que ‘Ok, meu jeito de pensar não é perfeito’, é mais provável que consiga fazer correções e superar algumas dessas coisas”, analisa Elizabeth Krumrei Mancuso, professora de psicologia da Pepperdine University.

Em um estudo de 2019 com 1.189 pessoas, Elizabeth e seus colegas descobriram que as pessoas mais humildes intelectualmente também tinham maior probabilidade de apresentar características que ajudam a adquirir novos conhecimentos: pensamento reflexivo, curiosidade e abertura intelectual.

Um experimento solicitou que os participantes avaliassem sua familiaridade com dados de conhecimento geral (Napoleão, por exemplo). Crucialmente, o experimento também misturava dados falsos.

As pessoas que eram intelectualmente humildes tinham mais conhecimento geral e eram menos propensas a afirmar que sabiam algo que não existia.

Mas o estudo também descobriu que a humildade intelectual estava associada a um “efeito de modéstia” – ou seja, subestimar a própria capacidade.

Na sua forma ideal, a humildade intelectual não significa pensar menos de si, avisa Elizabeth. Você pode ter certeza de coisas para as quais tem boas evidências e, ao mesmo tempo, manter a possibilidade de se equivocar.

“A humildade intelectual não significa que tudo é relativo, que não há respostas, que não existe verdade, que não existem boas evidências”, acrescenta Tenelle.

Pesquisas descobriram que as pessoas com mais humildade intelectual são mais inclinadas a examinar as evidências e menos propensas a cair em desinformação e em teorias da conspiração.

“Você pode ser intelectualmente humilde e, ao mesmo tempo, intelectualmente corajoso”, afirma Elizabeth.

A humildade intelectual ajuda os relacionamentos e a cooperação

A humildade intelectual também pode ser fundamental nos nossos relacionamentos pessoais, pois está associada a valores pró-sociais, como empatia, tomada de perspectiva e disposição para ouvir os outros.

Ela nos ajuda a amenizar e perdoar diferenças e está associada a um melhor humor e a uma sensação de proximidade, mesmo após conflitos interpessoais.

Também pode haver benefícios sociais individuais. Ao contrário do que se poderia esperar, quando a pessoa admite que está errada ou que não sabe tudo, ela parece mais competente, e não menos. Pesquisas sugerem que os seguidores ficam satisfeitos com líderes intelectualmente humildes.

Nesses tempos de polarização, mais humildade intelectual em geral pode deixar as conversas mais frutíferas e abertas, se as pessoas derem um passo atrás e tiverem a consciência de que pode haver algo que elas não consideraram, ensina Tenelle.

“Temos que encontrar um jeito de ter uma sociedade coerente, que trabalhe em conjunto para fazer as coisas. (...) A humildade intelectual faz com que isso funcione melhor”.

Possíveis desvantagens da humildade intelectual

Os pesquisadores da humildade intelectual – talvez sem surpresa – reconhecem o quanto ainda não sabem sobre ela.

Por um lado, muitos dos benefícios individuais da humildade intelectual são correlacionais.

Por outro, muitos estudos se baseiam em questionários que avaliam a humildade intelectual em diferentes contextos. Embora esse método tenha fornecido percepções sobre as características e as consequências da humildade intelectual, ele tem desvantagens, como o paradoxo da humildade. (“Não se pode confiar em alguém que diz que é a pessoa mais humilde do mundo”, diz Grossmann).

Há também casos em que ser intelectualmente humilde demais pode não ser benéfico, embora se saiba menos sobre as desvantagens, porque isso não é tão bem estudado.

Mas é possível que haja circunstâncias em que você não queira expressar incerteza sobre seu conhecimento, como em um local de trabalho hostil ou em um contexto militar.

A humildade intelectual também é uma “estratégia cara”, pois leva tempo para ser avaliada. E, às vezes, não temos o luxo de ter tempo, avalia Grossmann.

Como cultivar a humildade intelectual

As pesquisas sobre intervenções de humildade intelectual estão em andamento, ressalta Grossmann, que teve o cuidado de não “prometer demais”. Mas há algumas coisas que podem ajudar, dizem os especialistas:

  • Tire um momento para refletir

Antes de entrar numa conversa potencialmente controversa, lembre-se dos benefícios da humildade intelectual e dos objetivos que você tem para a interação.

  • Mude de perspectiva

Em um estudo de 2021, Grossmann e seus colegas avaliaram 149 adultos que escreveram diários sobre a coisa mais significativa que aconteceu naquele dia durante um mês. Mas alguns participantes escreveram na terceira pessoa, de uma perspectiva menos egocêntrica, enquanto os participantes do grupo de controle escreveram na primeira pessoa.

Depois de um mês de experimento, os participantes que escreveram na terceira pessoa apresentaram maior crescimento no raciocínio sensato, com mais humildade intelectual e mente aberta, em comparação com as avaliações anteriores.

E, mais tarde, eles tiveram menos probabilidade de relatar sentimentos negativos em relação às pessoas que consideravam ter feito algo errado contra eles, conta Grossmann.

  • Tenha gratidão

Os sentimentos que nos ajudam a transcender a nós mesmos e a nos concentrar em algo maior parecem ajudar. Em um estudo, Elizabeth e seus colegas compararam aquilo que é conhecido como emoções autotranscendentes – como admiração, amor e gratidão – com outras emoções positivas e descobriram que as emoções autotranscendentes podem aumentar a humildade intelectual, pelo menos a curto prazo.

A gratidão foi o indicador mais forte de humildade intelectual. “Não dá para ter gratidão e, ao mesmo tempo, querer ganhar todos os créditos”, comenta a especialista.

Embora essas emoções geralmente não durem muito tempo, o bom dessas experiências autotranscendentes é que podemos encontrá-las várias vezes na nossa vida diária, diz ela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fonte:  https://www.estadao.com.br/saude/seja-humilde-e-bom-para-o-aprendizado-e-para-a-saude-dos-relacionamentos/?utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=saude-e-bem-estar&utm_term=20240930&utm_content=

Jovens negros carregam traumas de reconhecimento fotográfico injusto

 Por Francielly Barbosa*, Agência Brasil.

  

Carlos Alexandre Hidalgo. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

De 2012 a 2020, pessoas negras eram 81% das incriminadas injustament

Em 2018, o porteiro Carlos Alexandre Hidalgo foi a uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência por conta de um crime virtual que sofreu. O que deveria resolver um problema revelou a existência de outro muito mais grave: um policial afirmou que existiam dois processos criminais contra ele.

“Pensei que era mentira, porque os policiais têm essa mania de ficar inventando coisas para pressionar asos em entrevista à Agência Brasil. Esses dois foram os primeiros processos de uma série de acusações injustas que ele teve que responder.

Ao todo, Carlos foi acusado em cinco processos. Dois deles registravam crimes que ocorreram na mesma data e no mesmo horário, mas em locais diferentes. Em todos, o porteiro foi reconhecido por fotografia, mesmo sem ter sido responsável pelos crimes. “Ninguém acreditava no que eu falava. Eu dizia que era inocente e as pessoas que não eram próximas desconfiavam. Até advogados que procurei na época duvidavam”.

Situação semelhante foi vivida pelo educador social Danillo Felix Vicente de Oliveira, 29 anos. Em 2020, ele foi preso no Centro de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por policiais à paisana. Na 76ª Delegacia de Polícia, Danillo descobriu que foi apontado como autor de três assaltos na cidade.

Mesmo sendo inocente, o educador foi preso por 55 dias e chegou a passar por três presídios nesse período. Liberado no dia do seu aniversário, em 29 de setembro, ele relata que ainda precisou comparecer à delegacia na semana seguinte para um reconhecimento presencial: “Graças a Deus, a vítima alegou que não fui eu”.

“É uma coisa muito dura. Meu filho aprendeu a andar e eu não vi. Perdi o Dia dos Pais, o aniversário do meu pai, o da minha esposa, o meu aniversário”, lamenta Danillo.

“A pessoa que não cometeu nada não tem que ficar presa nem um dia, nem horas. Isso não existe, prender uma pessoa baseada apenas em reconhecimento fotográfico. E a investigação? De saber da vida da pessoa, de saber se a pessoa estava lá ou não estava, de saber como estava a aparência da pessoa no momento? Nem se preocupam com isso, de fazer minimamente o trabalho deles”, acrescentou.

Vítimas

Segundo relatórios produzidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), entre 2012 e 2020 ocorreram 90 prisões injustas por reconhecimento fotográfico, sendo 73 na cidade do Rio de Janeiro. Do total, 79 encarceramentos traziam informações sobre o perfil racial dos acusados, revelando que 81% deles eram pessoas negras, assim como Carlos e Danillo.

Brasília (DF) 17/09/2024 - O educador social Danillo Felix Vicente de Oliveira passou 55 dias preso por crimes que não cometeu em 2020. Foto: Danillo Felix Vicente de Oliveira/Acervo pessoal
Brasília (DF) 17/09/2024 – O educador social Danillo Felix Vicente de Oliveira passou 55 dias preso por crimes que não cometeu em 2020. Foto: Danillo Felix Vicente de Oliveira/Acervo pessoal – Danillo Felix Vicente de Oliveira/Acervo pessoal
“O reconhecimento fotográfico está muito ligado a um projeto da justiça criminal das pessoas negras e precarizadas precisarem de pouco esforço para estarem vulneráveis. O poder punitivo age para garantir essas condenações de pessoas negras pegas em flagrante, mesmo sem ter elementos criminosos”, afirma a advogada criminal e coordenadora jurídica do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), Maysa Carvalhal.

Para a advogada, o reconhecimento fotográfico é utilizado como uma punição antecipada pela Justiça para criminalizar a população negra e periférica. “Utilizam o reconhecimento fotográfico legal como uma ferramenta muito eficaz para produzir condenações injustas.

No fim das contas, esse método entra como prova quase irrefutável se a vítima reconheceu o suspeito, ainda que tenha outros elementos de prova que contradigam”. Ela destaca que esse cenário tem provocado inúmeros erros judiciários, condenando, sobretudo, pessoas negras por crimes preferenciais do sistema de Justiça Criminal, caso de roubos e assaltos.

“Ninguém vê um jovem negro sendo injustiçado pelo Estado”, denuncia Carlos. “Meu mundo desabou. Na época a minha ex-esposa estava grávida, com o meu filho para nascer. Se não fosse pelo IDPN, acho que eu não estaria mais aqui contando essa história, porque tem diversas pessoas encarceradas lá que não tiveram o direito de se defender. Eu não sou o primeiro e nem serei o último, esse massacre do Estado acontece o tempo todo, não apenas com prisões, mas também com as vidas ceifadas nas ruas”, afirma.

Quanto à identidade de gênero, a maioria dos acusados são homens jovens, segundo a também advogada criminal e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Juliana Sanches Ramos.

“São sempre homens negros vítimas desses reconhecimentos. Acredito que isso tem a ver com a questão de que as mulheres são principalmente encarceradas pelo delito de tráfico de drogas, enquanto os homens são os que mais são presos por crimes patrimoniais, justamente os delitos em que mais há o reconhecimento fotográfico”, analisa.

Reconhecimento

No Artigo 226 do Código de Processo Penal é descrito como reconhecimento deve ser feito. O texto diz que uma pessoa que tiver que fazer o reconhecimento, seja ele presencial ou fotográfico, deve primeiro descrever ao máximo o possível culpado. Além disso, é necessário que a pessoa que será reconhecida seja colocada ao lado de outras que compartilham de características físicas semelhantes.

A coordenadora jurídica do IDPN, Maysa Carvalhal, afirma, ainda, que pelo Código de Processo Penal tanto a pessoa que fará o reconhecimento quanto a que será reconhecida devem fazer a autodeclaração racial, “justamente porque as pesquisas já denunciam que existe uma atribuição da prática criminosa a pessoas negras. Isso faz com que quem está reconhecendo, se for uma pessoa branca, tenha mais inclinação para acusar a população negra”.

Rio de Janeiro - Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Rio de Janeiro – Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“Uma das indicações, quando alguém vai fazer o reconhecimento, é de que a testemunha dê as descrições mais precisas do suposto autor do crime, mas o que normalmente vemos são características super genéricas. Normalmente, descrevem um homem negro, de aproximadamente 1,70m, bermuda e camiseta. Ou seja, pode ser qualquer homem negro, mas, quando você vai ver, são pessoas completamente diferentes”, complementa Ramos.

O trabalho da polícia é, basicamente, recolher coisas e pessoas para cumprir com um sistema de metas, destaca o pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e professor do Departamento de Segurança Pública da UFF Pedro Heitor Barros Geraldo.

“A polícia pode prender quem ela quiser, desde que não seja uma pessoa branca”, defende. “É a polícia que reconhece quem ela deve prender, quem é mais fácil abordar e quem não tem acesso a direitos, cenário que tem relação com aspectos raciais, socioeconômicos e com o acesso à advocacia”, acrescenta.

O reconhecimento por foto tem ainda relação direta com o racismo algorítmico quando realizado com base em algoritmos.

Em entrevista à Agência Brasil, o doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e autor do livro Racismo Algorítmico: Inteligência artificial e discriminação nas redes digitais, Tarcízio Silva, esclarece que o conceito define o modo como sistemas de Inteligência Artificial (IA) ou similares podem aprofundar e ocultar determinadas desigualdades e opressões sociais, já que o funcionamento desses sistemas cria padrões de quem é suspeito ou não a partir de registros já existentes nos sistemas criminais, como as fotografias.

“As tecnologias de IA são baseadas no conceito de aprendizagem de máquina, em que os sistemas reproduzem modelos com base em dados históricos e boa parte deles representam desigualdades, opressões e violências. Então, quando o sistema é desenvolvido de modo a não levar isso em consideração, a tendência é o aprofundamento dessas desigualdades nos resultados”, explica. Para Silva, o reconhecimento fotográfico tradicional e o baseado em algoritmos possuem o mesmo problema: “São bases de dados construídas sem controle de qualidade, sem adequação a procedimentos de controle de supervisão que podem favorecer acusações injustas”.

Além disso, há muitos casos em que as fotos dos possíveis suspeitos são retiradas das redes sociais e apresentadas às vítimas do crime, que estão passando por uma situação de estresse ou de trauma, segundo o pesquisador. Nesses casos, é esperado que a pessoa tenda à acusação, por toda dor enfrentada, desconsiderando características individuais ao avaliar os supostos autores do crime e resumindo sua descrição à raça ou cor, o que favorece o racismo estrutural em casos em que os suspeitos apresentados são pessoas negras.

“Há muitos ativistas e pesquisadores que avaliam que o reconhecimento fotográfico ou presencial de uma possível pessoa acusada não pode ocorrer a menos que existam outras evidências”, avalia. O autor reconhece ainda que o método utilizado por polícias pode gerar outros malefícios, como “uma hipervigilância e um contexto de suspeição generalizada, que pode prejudicar os níveis de privacidade e até facilitar a erosão da democracia por facilitar a perseguição de pessoas sem motivos válidos”.

Fotografias

A seletividade do sistema criminal está presente ainda na forma como as delegacias têm acesso às fotografias utilizadas no reconhecimento, especialmente em casos em que os denunciados não têm passagens criminais. Ramos explica que, em audiências, os policiais são sempre questionados sobre a origem da fotografia utilizada como estratégia de defesa, mas essas perguntas raramente são respondidas. “Em regra, a autoridade policial nunca consegue explicar como essas fotos chegam na delegacia e formam os ‘álbuns de suspeitos’ ou os bancos de dados com essas fotografias, até porque a maioria dos casos envolve pessoas primárias, de bons antecedentes, que nunca tiveram passagem pela polícia”.

No caso do educador social, por exemplo, a foto utilizada era de 2017, três anos antes da abordagem. “A minha fisionomia e o meu cabelo estavam totalmente diferentes. Eles também alegavam que o culpado era uma pessoa negra de pele clara e eu sou negro retinto, totalmente diferente. Só quiseram apontar mesmo um negro para cumprir a função de preso”. Apesar dos processos terem sido concluídos, Danillo conta que até o momento a sua fotografia ainda não foi retirada do registro policial.

Procurada sobre como são obtidas as fotos dos acusados, sobretudo aqueles indiciados indevidamente, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) informou à Agência Brasil apenas que não orienta a utilização exclusivamente do reconhecimento por fotografia como única prova nos inquéritos policiais ou para pedidos de prisão.

“O reconhecimento por fotografias, método aceito por lei, é um instrumento importante para o início de uma investigação, mas quando possível deve ser corroborado por outras provas técnicas e testemunhais, conforme prevê a Portaria Sepol que regulamenta a questão, estabelecendo protocolos para utilização e norteando o trabalho das unidades policiais”, disse.

Impactos

A acusação indevida afeta não apenas a liberdade dos incriminados, mas também a rotina de pessoas inocentes processadas ou encarceradas por crimes que não cometeram. À Agência Brasil, Carlos compartilha que recentemente perdeu uma ótima proposta de trabalho em razão dos processos ligados ao seu nome. Também comenta que teve a sua saúde mental afetada e por um período precisou ser acompanhado por uma psicóloga.

“Teve uma época na minha vida em que fiquei bem abalado. Via a polícia na rua e trocava de calçada, porque tinha medo de ser abordado de novo. Por onde andava, sempre mandava a localização e foto para alguém, para sempre estar provando onde eu estava. Na minha cabeça, achava que a qualquer hora a polícia ia chegar na porta da minha casa e me prender, mesmo sem eu ter feito nada”, destacou.

Brasília (DF) 17/09/2024 - Porteiro Carlos Alexandre Hidalgo recebeu uma moção de louvor da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Foto: Carlos Alexandre Hidalgo/Acervo pessoal
Carlos Alexandre Hidalgo, por Carlos Alexandre Hidalgo/Acervo pessoal

Com quatro dos cinco processos pelos quais foi acusado encerrados, Carlos responde à última acusação acompanhado pelo IDPN. Para a sua fotografia ser apagada dos arquivos policiais, todas as absolvições são necessárias.

“Nesse momento mesmo alguém pode ter sido assaltado, estar na delegacia depondo, mostrarem a minha foto e a pessoa falar que possivelmente é esse o culpado e abrirem um novo processo contra mim. Tiveram conhecidos meus que foram assaltados, foram à delegacia prestar boletim de ocorrência e dentro do álbum de fotografia mostraram uma foto minha. Uma situação constrangedora”.

Em 2022, o porteiro recebeu uma moção de louvor da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) assinada pela deputada estadual Dani Monteiro (PSOL).

No texto, o documento reconhece a luta e a resistência do jovem “após ter sido vítima de uma prisão injusta pelo Estado do Rio de Janeiro, através do procedimento de Reconhecimento Fotográfico que há anos têm colocado vários inocentes em situação de privação da liberdade”.

No ano seguinte, em 2023, a Alerj também aprovou uma lei que impede que o reconhecimento fotográfico seja usado como única prova em pedidos de prisão.

Baseada na Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 448/22, a medida determina diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas com objetivo de evitar a condenação de inocentes.

*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

Fonte:  https://desacato.info/jovens-negros-carregam-traumas-de-reconhecimento-fotografico-injusto/