sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O fértil desânimo de J.P. Cuenca


Leonardo Aversa/Agência O Globo / Leonardo Aversa/Agência O Globo

 Cuenca: "Não penso no mercado quando escrevo. 
No entanto, confesso que adoraria ter nascido 
num país de leitores"

O limite entre a resistência e a desistência é muito estreito. Às vezes, é quase invisível. Também a fronteira entre o pessimismo e a coragem costuma nos confundir. São territórios limítrofes, em geral desérticos e habitados por nômades. João Paulo Cuenca (1978) é, sem dúvida, um nômade da nova literatura brasileira. Talvez o mais radical deles. Antes de tudo, porque não para de viajar.

"Nos últimos 12 meses, estive três vezes na Espanha, e em Jerusalém, Nova York, Berlim, Macau, Hong Kong, Tailândia, Camboja, Colômbia, Haiti e sei lá mais onde", rememora. Chega a um lugar, em busca talvez de um posto de resistência, mas logo parte para outro, e a resistência se transforma em desistência. Ou as duas são a mesma coisa, o que é mais provável.

Seus deslocamentos parecem ter como objetivo despedaçar a imagem luminosa dos escritores contemporâneos. Eles os descreve como sujeitos "que precisam ser exibidos em palcos iluminados para que ainda acreditem na existência de seres humanos envolvidos em atividade tão arcaica". Para Cuenca, o pessimista, "essas mitificações às vezes fazem mais sucesso do que a própria literatura". Pessimista ou, ao contrário, corajoso? Não é coragem a melhor palavra para definir aquele que decide despedaçar a própria imagem? Ou não será?
Cuenca é um escritor que nos enche de dúvidas, e só isso já é uma garantia da qualidade de seu trabalho. Mas não gosta de falar sobre sua vida de escritor. "É comum ser chamado a falar mais sobre como se escreve do que da própria escritura", diz Cuenca - contestando, de forma gentil, meu questionário. Propõe-me uma conversa forte, sem meios-tons. Antes que eu pergunte, ele já responde: "Nada que um escritor possa dizer sobre seu processo e sobre suas manias me interessa. Tenho associado esse discurso a um fetichismo desinteressante e vazio". Não é só porque não para de viajar que João Paulo Cuenca se transformou em um nômade. Sua fala - sua escrita - também é assim, sempre empenhada em desviar-se do esperado. Saber como funciona o trabalho de um escritor, para ele, é uma questão irrelevante. Um dos efeitos da exposição dos escritores como astros midiáticos. "Com todo o respeito, seria como ter curiosidade por ver como funciona uma fábrica de linguiça."

"Vejo apenas uma coisa em comum entre 
os escritores da minha geração - 
o desejo de não ter nada em 
comum uns com os outros", diz

Muitas vezes, ainda assim, Cuenca cai nas armadilhas do presente. Dá um exemplo: "Recentemente, cometi a grave indiscrição e publiquei o suposto início do meu suposto novo romance nessa 'Granta' que saiu agora", comenta, referindo-se à conceituada publicação da Alfaguara. Não sabe se fez a coisa certa. Não sabe o que o mundo contemporâneo realmente dele espera. Seu (suposto) livro em processo conta a história de um homem parecido com ele mesmo, que narra sua vida desde o futuro. Em outras palavras: que observa o presente como se o presente fosse o passado. "A pergunta não é o que eu estarei fazendo em 20 anos e, sim, o que eu pensarei da minha cidade e de mim mesmo", diz. E, para não deixar o pessimismo de lado, arremata: "Se eu sobreviver, é claro".

Cuenca é um escritor que desconfia do presente e por isso se desloca, se esquiva, talvez fuja, talvez se esconda. É um insatisfeito com o mundo contemporâneo e por isso prefere observá-lo de longe - de um remoto futuro - como se ele já estivesse desaparecido. Talvez o sinta, de fato, como morto e por isso fuja. Talvez não fuja, ao contrário: deslocar-se é, possivelmente, sua maneira radical de assinalar o valor do presente. De contorná-lo, tornando-o (como seu caminhar em moldura) ainda mais nítido.

Não há dúvida de que, mesmo saltando fora do presente, Cuenca é um escritor do presente. Não por uma questão cronológica, não por causa do registro em seu RG. "Não dá para negar que esse tipo de deslocamento me oferece alguma coisa nem que seja uma nova perspectiva de mim mesmo e de onde venho." De onde viemos: essa é uma questão muito importante para Cuenca. Ela se expressa, por exemplo, em "Nada Tenho de Meu" - série de vídeos realizados em parceria com a escritora e amiga Tatiana Salem Levy e com o diretor português Miguel Gonçalves Mendes. Os três se encontraram no 1º Festival Literário de Macau. Definem seu trabalho - que já foi exibido em parte na TV Brasil - como "uma mistura de cadernos de viagem e ficção". A série retrata um mundo vazio, onde os personagens deslizam, sem nenhuma preocupação com a busca de um sentido. Vivem o instante. São prisioneiros do instante, e isso é viver.
Walter Craveiro/Divulgação 
Tatiana Salem Levy, escritora e amiga: parceria na realização de vídeos
A viagem e a aventura estão entranhadas no trabalho de Cuenca. Talvez ele não concorde com isso, mas elas são o seu "processo". Mesmo lutando para escapar de todos os processos - como um K. contemporâneo -, Cuenca (todos nós) está sempre dentro de um deles. Talvez o seu possa ser chamado de "descontrole". A palavra melhor parece ser mesmo "nomadismo". Admite: "O problema, se é que é um problema, é que não tenho mais controle de onde as coisas surgem na minha literatura. Acho que prefiro assim".

O disperso - ou será concentrado? - Cuenca não crê que chegue a sofrer influências de seus colegas, os escritores contemporâneos. As influências vêm de outras partes. Há alguns meses, ele visitou uma exposição do escultor americano Richard Serra, que apresentava uma série de pinturas monocromáticas nas paredes. Comenta: "Apenas com o uso do preto em cortes geométricos nas paredes, Serra conseguia tirar o seu ponto de equilíbrio ao caminhar pela sala". O golpe do desequilíbrio lhe bateu forte: "Essa exposição me influenciou mais que qualquer leitura nesse último ano", afirma. Sofreu forte influência, também, de uma tarde passada em um templo budista de Hong Kong; de um show do grupo norueguês Supersilent, que trabalha com improviso em música eletrônica; e de uma entrevista do escritor mexicano Mario Bellatin. "Vê? Essas coisas são capazes de influenciar minha literatura hoje em dia mais que qualquer escritor."

Na perspectiva de Cuenca, a literatura se alarga e se derrama sobre o mundo. Está à beira de deixar de ser literatura, se é que já não deixou de ser. Restam os escritores, aqueles que ainda acreditam em seus scripts literários e em suas imagens reproduzidas nas publicações. Postura que ele, afirma, abandonou. Sobre eles, seus contemporâneos, diz Cuenca: "Vejo apenas uma coisa em comum entre os escritores da minha geração - o desejo de não ter nada em comum uns com os outros". Radicaliza a busca da diferença quando a transporta para dentro de si mesmo: "Como a proposta que tenho é ter pouco em comum até comigo mesmo, essa questão para mim passa ainda mais batida". Deslocado de si, Cuenca procura em sua ronda pelo mundo algo que não sabe o que é. E só porque não sabe o que busca, a busca o atrai.

Também não se interessa pela questão dos leitores, embora leitores o interessem, sim. "Não penso no mercado quando escrevo. No entanto, confesso que adoraria ter nascido num país de leitores. Não é o caso." Se a literatura lhe parece um território cada vez mais impreciso, Cuenca busca apoio - talvez seja melhor dizer alguma alegria - em outros campos da arte. Na intimidade, tem se dedicado à música. "Música que componho e gravo em camadas sobre camadas de repetição". Quer "tornar-se músico"? Não é o caso. Não se trata de buscar uma nova imagem que substitua a que se despedaçou. "Muitas vezes componho e gravo para fazer a trilha sonora de uma tarde em que estou em casa sozinho escrevendo." Fora dos campos da produção e do mercado, a arte, nessa música feita para um ouvinte só (ele mesmo), volta a ganhar a aparência de um jogo que, no fim, é o que define a arte livre.
Luciana Whitaker/LatinContent/Getty Images 
Bellatin: Cuenca conta que entrevista do autor mexicano o influenciou
Não é um apaixonado pelos avanços tecnológicos. Ao contrário, acha que a internet "é mortal para o processo de escritura", pois oferece uma distração constante. Nesse aspecto, o acaso o ajudou: "Há dois meses eu perdi o celular e não comprei outro. Estou pensando bem melhor". Sem o celular, livra-se um pouco dos estímulos externos que, hoje, grudam em nossos pensamentos. O contemporâneo se caracteriza pelas respostas instantâneas a estímulos exteriores, e não interiores. "E isso é péssimo não apenas para a literatura, mas para qualquer processo mental." Aqui, sem dizer claramente isso, Cuenca valoriza a solidão. O nômade aparece uma vez mais.

Não se considera pessimista, embora não se considere também um otimista. "Se estou pessimista ou otimista com minha vida ou minha literatura, depende muito do dia, hora e local." Depende, mais uma vez, dos efeitos provocados pelo nomadismo sobre seu espírito. Talvez não exista um escritor chamado João Paulo Cuenca. Exista apenas o Cuenca que está em um templo budista de Hong Kong, outro que faz vídeos em Macau, um terceiro que compõe dentro de casa. Uma longa série de Cuencas que, somados, no entanto, não chegam a uma identidade só. Não sei se é assim que Cuenca é. Talvez. Estou convencido de que é assim que ele se vê.

 "Escritores estão sempre tentando associar-se
 a outras marcas literárias, como se fossem boias 
num mar revolto. Quero deixar que se afoguem."

Não gosta nem de pensar em ascendentes literários. É duro: "Os escritores costumam cerrar o cenho e cercar-se de Tolstói, Goethe e Faulkner em suas entrevistas e isso me causa cada vez mais fastio". É o mesmo, ele compara, que exibir uma roupa de grife. "Escritores estão sempre tentando associar-se a outras marcas literárias, como se fossem boias num mar revolto. Quero deixar que se afoguem." Mais uma vez, a solidão como estratégia de sobrevivência. Mais uma vez, a necessidade de afastar-se. De deslocar-se, de modo que ninguém o pegue. De modo que imagem alguma - como um selo ou uma etiqueta - o classifique.

Afirma, assim, a literatura como experiência singular e artificial. E por isso mesmo irredutível a fórmulas. Escrever é encontrar uma maneira pessoal para enfrentar os obstáculos que impedem a escrita. "Toda a vida é um obstáculo que emperra e ameaça o processo de escritura", diz. "Escrever é artifício e todo o resto me parece infinitamente natural perto da literatura." Talvez a ronda pelo mundo - e o desânimo que ela parece camuflar - sejam, por fim, seu grande artifício. A maneira que inventou para, não sendo, não estando, encontrar a fertilidade.
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Reportagem por  Por José Castello | Para o Valor, de Curitiba

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