O limite entre a resistência e a desistência é muito estreito. Às
vezes, é quase invisível. Também a fronteira entre o pessimismo e a
coragem costuma nos confundir. São territórios limítrofes, em geral
desérticos e habitados por nômades. João Paulo Cuenca (1978) é, sem
dúvida, um nômade da nova literatura brasileira. Talvez o mais radical
deles. Antes de tudo, porque não para de viajar.
"Nos últimos 12 meses, estive três vezes na Espanha, e em Jerusalém,
Nova York, Berlim, Macau, Hong Kong, Tailândia, Camboja, Colômbia, Haiti
e sei lá mais onde", rememora. Chega a um lugar, em busca talvez de um
posto de resistência, mas logo parte para outro, e a resistência se
transforma em desistência. Ou as duas são a mesma coisa, o que é mais
provável.
Seus deslocamentos parecem ter como objetivo despedaçar a imagem
luminosa dos escritores contemporâneos. Eles os descreve como sujeitos
"que precisam ser exibidos em palcos iluminados para que ainda acreditem
na existência de seres humanos envolvidos em atividade tão arcaica".
Para Cuenca, o pessimista, "essas mitificações às vezes fazem mais
sucesso do que a própria literatura". Pessimista ou, ao contrário,
corajoso? Não é coragem a melhor palavra para definir aquele que decide
despedaçar a própria imagem? Ou não será?
Cuenca é um escritor que nos enche de dúvidas, e só isso já é uma
garantia da qualidade de seu trabalho. Mas não gosta de falar sobre sua
vida de escritor. "É comum ser chamado a falar mais sobre como se
escreve do que da própria escritura", diz Cuenca - contestando, de forma
gentil, meu questionário. Propõe-me uma conversa forte, sem meios-tons.
Antes que eu pergunte, ele já responde: "Nada que um escritor possa
dizer sobre seu processo e sobre suas manias me interessa. Tenho
associado esse discurso a um fetichismo desinteressante e vazio". Não é
só porque não para de viajar que João Paulo Cuenca se transformou em um
nômade. Sua fala - sua escrita - também é assim, sempre empenhada em
desviar-se do esperado. Saber como funciona o trabalho de um escritor,
para ele, é uma questão irrelevante. Um dos efeitos da exposição dos
escritores como astros midiáticos. "Com todo o respeito, seria como ter
curiosidade por ver como funciona uma fábrica de linguiça."
"Vejo apenas uma coisa em comum entre
os
escritores da minha geração -
o desejo de não ter nada em
comum uns com
os outros", diz
Muitas vezes, ainda assim, Cuenca cai nas armadilhas do presente. Dá
um exemplo: "Recentemente, cometi a grave indiscrição e publiquei o
suposto início do meu suposto novo romance nessa 'Granta' que saiu
agora", comenta, referindo-se à conceituada publicação da Alfaguara. Não
sabe se fez a coisa certa. Não sabe o que o mundo contemporâneo
realmente dele espera. Seu (suposto) livro em processo conta a história
de um homem parecido com ele mesmo, que narra sua vida desde o futuro.
Em outras palavras: que observa o presente como se o presente fosse o
passado. "A pergunta não é o que eu estarei fazendo em 20 anos e, sim, o
que eu pensarei da minha cidade e de mim mesmo", diz. E, para não
deixar o pessimismo de lado, arremata: "Se eu sobreviver, é claro".
Cuenca é um escritor que desconfia do presente e por isso se desloca,
se esquiva, talvez fuja, talvez se esconda. É um insatisfeito com o
mundo contemporâneo e por isso prefere observá-lo de longe - de um
remoto futuro - como se ele já estivesse desaparecido. Talvez o sinta,
de fato, como morto e por isso fuja. Talvez não fuja, ao contrário:
deslocar-se é, possivelmente, sua maneira radical de assinalar o valor
do presente. De contorná-lo, tornando-o (como seu caminhar em moldura)
ainda mais nítido.
Não há dúvida de que, mesmo saltando fora do presente, Cuenca é um
escritor do presente. Não por uma questão cronológica, não por causa do
registro em seu RG. "Não dá para negar que esse tipo de deslocamento me
oferece alguma coisa nem que seja uma nova perspectiva de mim mesmo e de
onde venho." De onde viemos: essa é uma questão muito importante para
Cuenca. Ela se expressa, por exemplo, em "Nada Tenho de Meu" - série de
vídeos realizados em parceria com a escritora e amiga Tatiana Salem Levy
e com o diretor português Miguel Gonçalves Mendes. Os três se
encontraram no 1º Festival Literário de Macau. Definem seu trabalho -
que já foi exibido em parte na TV Brasil - como "uma mistura de cadernos
de viagem e ficção". A série retrata um mundo vazio, onde os
personagens deslizam, sem nenhuma preocupação com a busca de um sentido.
Vivem o instante. São prisioneiros do instante, e isso é viver.
A viagem e a aventura estão entranhadas no trabalho de Cuenca. Talvez
ele não concorde com isso, mas elas são o seu "processo". Mesmo lutando
para escapar de todos os processos - como um K. contemporâneo -, Cuenca
(todos nós) está sempre dentro de um deles. Talvez o seu possa ser
chamado de "descontrole". A palavra melhor parece ser mesmo "nomadismo".
Admite: "O problema, se é que é um problema, é que não tenho mais
controle de onde as coisas surgem na minha literatura. Acho que prefiro
assim".
O disperso - ou será concentrado? - Cuenca não crê que chegue a
sofrer influências de seus colegas, os escritores contemporâneos. As
influências vêm de outras partes. Há alguns meses, ele visitou uma
exposição do escultor americano Richard Serra, que apresentava uma série
de pinturas monocromáticas nas paredes. Comenta: "Apenas com o uso do
preto em cortes geométricos nas paredes, Serra conseguia tirar o seu
ponto de equilíbrio ao caminhar pela sala". O golpe do desequilíbrio lhe
bateu forte: "Essa exposição me influenciou mais que qualquer leitura
nesse último ano", afirma. Sofreu forte influência, também, de uma tarde
passada em um templo budista de Hong Kong; de um show do grupo
norueguês Supersilent, que trabalha com improviso em música eletrônica; e
de uma entrevista do escritor mexicano Mario Bellatin. "Vê? Essas
coisas são capazes de influenciar minha literatura hoje em dia mais que
qualquer escritor."
Na perspectiva de Cuenca, a literatura se alarga e se derrama sobre o
mundo. Está à beira de deixar de ser literatura, se é que já não deixou
de ser. Restam os escritores, aqueles que ainda acreditam em seus
scripts literários e em suas imagens reproduzidas nas publicações.
Postura que ele, afirma, abandonou. Sobre eles, seus contemporâneos, diz
Cuenca: "Vejo apenas uma coisa em comum entre os escritores da minha
geração - o desejo de não ter nada em comum uns com os outros".
Radicaliza a busca da diferença quando a transporta para dentro de si
mesmo: "Como a proposta que tenho é ter pouco em comum até comigo mesmo,
essa questão para mim passa ainda mais batida". Deslocado de si, Cuenca
procura em sua ronda pelo mundo algo que não sabe o que é. E só porque
não sabe o que busca, a busca o atrai.
Também não se interessa pela questão dos leitores, embora leitores o
interessem, sim. "Não penso no mercado quando escrevo. No entanto,
confesso que adoraria ter nascido num país de leitores. Não é o caso."
Se a literatura lhe parece um território cada vez mais impreciso, Cuenca
busca apoio - talvez seja melhor dizer alguma alegria - em outros
campos da arte. Na intimidade, tem se dedicado à música. "Música que
componho e gravo em camadas sobre camadas de repetição". Quer "tornar-se
músico"? Não é o caso. Não se trata de buscar uma nova imagem que
substitua a que se despedaçou. "Muitas vezes componho e gravo para fazer
a trilha sonora de uma tarde em que estou em casa sozinho escrevendo."
Fora dos campos da produção e do mercado, a arte, nessa música feita
para um ouvinte só (ele mesmo), volta a ganhar a aparência de um jogo
que, no fim, é o que define a arte livre.
Não é um apaixonado pelos avanços tecnológicos. Ao contrário, acha
que a internet "é mortal para o processo de escritura", pois oferece uma
distração constante. Nesse aspecto, o acaso o ajudou: "Há dois meses eu
perdi o celular e não comprei outro. Estou pensando bem melhor". Sem o
celular, livra-se um pouco dos estímulos externos que, hoje, grudam em
nossos pensamentos. O contemporâneo se caracteriza pelas respostas
instantâneas a estímulos exteriores, e não interiores. "E isso é péssimo
não apenas para a literatura, mas para qualquer processo mental." Aqui,
sem dizer claramente isso, Cuenca valoriza a solidão. O nômade aparece
uma vez mais.
Não se considera pessimista, embora não se considere também um
otimista. "Se estou pessimista ou otimista com minha vida ou minha
literatura, depende muito do dia, hora e local." Depende, mais uma vez,
dos efeitos provocados pelo nomadismo sobre seu espírito. Talvez não
exista um escritor chamado João Paulo Cuenca. Exista apenas o Cuenca que
está em um templo budista de Hong Kong, outro que faz vídeos em Macau,
um terceiro que compõe dentro de casa. Uma longa série de Cuencas que,
somados, no entanto, não chegam a uma identidade só. Não sei se é assim
que Cuenca é. Talvez. Estou convencido de que é assim que ele se vê.
"Escritores estão
sempre tentando associar-se
a outras marcas literárias, como se fossem
boias
num mar revolto. Quero deixar que se afoguem."
Não gosta nem de pensar em ascendentes literários. É duro: "Os
escritores costumam cerrar o cenho e cercar-se de Tolstói, Goethe e
Faulkner em suas entrevistas e isso me causa cada vez mais fastio". É o
mesmo, ele compara, que exibir uma roupa de grife. "Escritores estão
sempre tentando associar-se a outras marcas literárias, como se fossem
boias num mar revolto. Quero deixar que se afoguem." Mais uma vez, a
solidão como estratégia de sobrevivência. Mais uma vez, a necessidade de
afastar-se. De deslocar-se, de modo que ninguém o pegue. De modo que
imagem alguma - como um selo ou uma etiqueta - o classifique.
Afirma, assim, a literatura como experiência singular e artificial. E
por isso mesmo irredutível a fórmulas. Escrever é encontrar uma maneira
pessoal para enfrentar os obstáculos que impedem a escrita. "Toda a
vida é um obstáculo que emperra e ameaça o processo de escritura", diz.
"Escrever é artifício e todo o resto me parece infinitamente natural
perto da literatura." Talvez a ronda pelo mundo - e o desânimo que ela
parece camuflar - sejam, por fim, seu grande artifício. A maneira que
inventou para, não sendo, não estando, encontrar a fertilidade.
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Reportagem por Por José Castello | Para o Valor, de Curitiba
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