Por João Luiz Rosa — De São Paulo
“O Pensador”, de Auguste Rodin: reflexão mais crítica sobre
privilégios obtidos com a violência — Foto: Heritage Art/Heritage Images via
Getty Imagens
Debate sobre a condição masculina ganha novos elementos na
busca por uma repactuação social
30/08/2024
Os vídeos estão por toda parte nas redes sociais. Para saber
o sexo do bebê e compartilhar a novidade com amigos e familiares, casais
estouram balões, explodem bombas de fumaça, cortam bolos recheados. Se for
menino, prevalece a cor azul; menina, rosa. São os chás-revelação, que se
tornaram mania em vários países, inclusive no Brasil.
Essas celebrações têm chamado a atenção de especialistas,
que observam que, até os anos 70, os enxovais tinham cores neutras - branco,
bege, verde - porque o ultrassom não estava disponível. Atribuir gênero antes
do nascimento, dizem, denota e reforça uma lógica binária - é um ou outro - e
demarca territórios bem definidos. Garotos são muitas vezes associados à
energia, força e determinação atribuídas ao azul; às meninas cabe a beleza,
delicadeza e fragilidade do rosa.
“Existe uma progressão contínua dos debates de gênero pela
sociedade, que ganharam força com os movimentos feministas, principalmente a
partir dos anos 1960, e, mais tarde, pela movimentação política para colocar o
tema em pauta”, diz Tulio Custodio, membro do conselho consultivo do Pacto
Global da ONU e sócio da Inesplorato, de curadoria de conhecimento para
empresas.
Ligia Diniz: “Na literatura, o homem tem inteligência mais
cínica; é o elogio da seriedade ” — Foto: Luciana Whitaker/Valor
Em 1975, ressalta o sociólogo, as Nações Unidas deram início
à “Década das Mulheres”, com um plano para destacar a equidade de gênero nos
dez anos seguintes. Nos anos 90 e 2000, governos de vários países passaram a
fazer mudanças jurídicas para proteger os direitos das mulheres.
No Brasil, foram aprovadas legislações como a Lei Maria da
Penha (2006), que enquadra a violência doméstica como crime; a Lei do
Feminicídio (2015), que tipificou os casos de mulheres assassinadas por serem
mulheres; e a Lei do Minuto Seguinte (2022), que estabeleceu o atendimento
obrigatório a vítimas de violência sexual imediatamente depois de serem
atacadas.
Mais recentemente, o debate de gênero ganhou ôlego com
movimentos em diversas áreas: da visibilidade dada a casais do mesmo sexo pela
TV e a publicidade - “RuPaul’s Drag Race, um reality show de drag queens,
tornou-se um dos programas mais populares nos Estados Unidos, com 29 prêmios
Emmy - às políticas de contratação nas empresas para admitir mais pessoas
transexuais.
Tulio Custodio, sociólogo: “Colonização europeia definiu
quem é sujeito e quem não é” — Foto: Rogerio Vieira/Valor
E o homem?
Todas essas mudanças têm levado as fileiras masculinas, ou
pelo menos parte delas, a refletirem de maneira mais crítica sobre sua
condição: afinal, o que faz de um homem um homem?
A facilidade de comunicação proporcionada pelas tecnologias
digitais e a livre troca de ideias na internet têm ajudado a ampliar as
discussões, com o ingresso de novas vozes. “As redes sociais amplificam
múltiplas expressões de masculinidades ao oferecer visibilidade a
representações diversas e desafiar narrativas dominantes. Elas também promovem
um processo de responsabilização necessário ao expor comportamentos machistas e
preconceituosos”, diz Guilherme Valadares, diretor de pesquisa do Instituto PDH
e fundador do portal PapodeHomem. “Masculinidade, no singular, perde espaço.
Entram em cena as masculinidades, no plural.”
A visão dominante de masculinidade, afirma Custodio, é a
expressão de um projeto hegemônico, de caráter patriarcal, cuja origem é fonte
de dúvida na sociologia - entre as possibilidades estão a época de
sedentarização do homem no Neolítico e da invenção da escrita. Para o
sociólogo, a hipótese mais provável remonta aos processos europeus de colonização,
que enfatizaram a autoridade masculina.
“É um projeto que se organiza eticamente e está baseado em
dois pontos: binaridade e hierarquia”, diz Custodio. Ao atribuir ao homem
características consideradas desejadas - força, agressividade, noção de
autoridade, exercício da honra -, a condição feminina ficou restrita ao campo
do que é frágil, sensível ou vulnerável. “A colonização definiu quem é e quem
não é sujeito. Quem é fica em cima; quem não é, em baixo.”
Biologia vs. história
Uma das polêmicas da Olimpíada de Paris, encerrada há pouco
mais de duas semanas, envolveu a boxeadora argelina Imane Khelif, alvo de uma
campanha de fake news segundo a qual teria vantagem sobre as adversárias por
ser uma mulher transexual. Medalha de ouro em sua categoria, a atleta é
cisgênero - se identifica com o gênero que nasceu -, e, segundo o Comitê
Olímpico de seu país, tem altos índices de hormônio masculino por uma condição
médica.
O episódio dividiu opiniões e ultrapassou a fronteira das
regras esportivas ao levantar discussão sobre o quanto o comportamento de
homens e mulheres é determinado pela biologia. Características como resiliência
e iniciativa são comumente atribuídas ao homem como parte de sua constituição
genética, como se fosse algo intrínseco e inevitável. Mas essa posição tem sido
contestada como parte de um processo para legitimar os privilégios masculinos.
“O discurso de que competir é da natureza humana, da mesma
maneira como é natural para o homem bater [nos outros], é uma leitura
ideológica da realidade”, diz Pedro Ambra, doutor em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo (USP) e em psicanálise e psicopatologia pela
Universidade de Paris. “Qualquer tentativa de aproximar um traço de caráter de
uma característica biológica é terraplanismo”, afirma o psicanalista e
professor da PUC-SP.
Nos anos 1930, estudos feitos pela antropóloga americana
Margaret Mead (1901-1978) com habitantes na Papua Nova Guiné já mostravam
comunidades onde a mulher controlava a economia e o homem cuidava do lar, assim
como grupos nos quais tanto homens como mulheres eram muito agressivos ou
extremamente pacíficos, cita Ambra.
“A História tem um impacto muito maior na construção
psíquica do indivíduo do que o elemento biológico. Não existe gene de hétero
top, assim como não existe gene de racismo”, diz o psicanalista. “Projetamos no
biológico aquilo que não queremos assumir que é histórico, mas o fato de não
ser biológico não significa que não tenha permanência [na sociedade].”
Perda ilusória
Seja na conversa de bar ou na internet, são comuns as
queixas de homens sobre a perda de atributos ou direitos do passado, embora não
seja nítido o que, de fato, teria se perdido.
Boa parte das reclamações é sobre a competição da mulher por
vagas de trabalho e restrições legais que estariam deixando o homem mais
vulnerável, como a obrigatoriedade de
pagar pensão, sob pena de prisão. Na internet, proliferam grupos como os “red
pills”, que acreditam que as normas sociais protegem as mulheres e punem os
homens, e os “incels”, que se declaram celibatários involuntários porque não se
acham atraentes ou pensam que as mulheres simplesmente não valem a pena.
Ambra observa que os homens continuam ganhando mais que as
mulheres [em média, 19% mais, podendo chegar a 25%, segundo estudo dos
ministérios das Mulheres e do Trabalho e Emprego], e a exercitar a força bruta
e a violência. Matam mais, morrem mais, são mais presos (ver infográfico). A
percepção de que “antes era bom” apela para um passado idealizado, que não
corresponde à realidade. “É a fantasia de algo que já se teve e se perdeu”, diz
o psicanalista.
Essa postura mostra que não há compreensão de que as
vantagens acumuladas pelos homens em séculos de história foram obtidas à custa
de muita violência e que se requer, agora, uma repactuação social para
responder aos dilemas contemporâneos. Não se trata de perseguição, perda de
direitos naturais ou crise de valores.
O mesmo mecanismo alimenta as críticas de grupos que
defendem regimes políticos mais autoritários, de cunho conservador, por
acreditarem que ao longo do processo democrático a sociedade perdeu princípios
tradicionais, formadores da nação, que precisam ser recuperados. Há uma
confluência entre a defesa da masculinidade hegemônica e o alinhamento a
ideologias autoritárias. O retrato dessa comunhão, diz Ambra, é o extremista
americano Jacob Chansley, o “Xamã Qanon”, que costumava participar de
manifestações políticas sem camisa, com pinturas de guerra e chifres de búfalo,
mesmo figurino que usou na invasão do Capitólio, em Washington, em 2021.
Obsessão pelo pênis
A discussão sobre masculinidade não afeta só os homens. Para
as mulheres também é um desafio compreender para onde caminha o debate e que
efeitos as transformações no universo masculino terão na condição feminina.
A escritora e crítica literária Ligia Gonçalves Diniz diz
que passou a ser vista como uma especialista em masculinidade, embora não o
seja. A razão é seu mais recente livro, “O homem não existe: Masculinidade,
desejo e ficção” (Editora Zahar, 2024), em que aborda as complexidades do homem
a partir de personagens da ficção.
Na maior parte de sua formação, Diniz afirma ter lido livros
escritos por homens, sobre homens e para homens, que representam a maior parte
do cânone ocidental. “Fui educada culturalmente para sentir coisas [de homem]
que o mundo acha estranho que eu sinta”, diz.
O título da obra, explica a autora, que é professora de
literatura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), brinca com a frase
polêmica do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), “a mulher não existe”,
sobre a ausência de algo que pudesse definir o prazer feminino do ponto de
vista psicanalítico.
Nas páginas do livro desfilam personagens sedutores, apesar
de machistas ou misóginos, como Nathan Zuckerman, do americano Philip Roth
(1933-2018), e o capitão Ahab, o antagonista de “Moby Dick”, obra-prima de
Herman Melville (1819-1891). Entre seus preferidos está Julien Sorel, o
ambicioso protagonista de “O vermelho e o negro”, do francês Stendhal
(1783-1842). “Ele acha que é um herói romântico, mas vive em um mundo mais
cínico que ele. É um personagem muito masculino, mas que sofre com os revezes
do universo dos homens.”
A literatura não é um espelho da realidade, mas tem efeito
sobre as pessoas, ressalta a escritora. Desde a “Odisseia”, de Homero, o homem
é ensinado a se aventurar como fez Ulisses, rei de Ítaca e protagonista do
poema, que passa dez anos na Guerra de Troia e mais dez tentando voltar para
casa. Enquanto isso, sua mulher, Penélope, permanece no palácio real. A obra,
diz ela, define a esfera pública como lugar masculino por excelência, deixando
à mulher o domínio íntimo da casa.
Um terço do livro aventurar como fez Ulisses, rei de Ítaca e
protagonista do poema, que passa dez anos na Guerra de Troia e mais dez
tentando voltar para casa. Enquanto isso, sua mulher, Penélope, permanece no
palácio real. A obra, diz ela, define a esfera pública como lugar masculino por
excelência, deixando à mulher o domínio íntimo da casa.
Um terço do livro de Diniz aborda uma obsessão masculina: o
pênis. “É impressionante como esse assunto sempre aparece. Vários autores
trataram do tema, incluindo Platão, Santo Agostinho e Montaigne”, diz ela.
Fora do campo ficcional, o órgão masculino também foi
abordado em clássicos da psicanálise. No livro “O segundo sexo”, Simone de
Beauvoir (1908-1986) rebate a tese de Freud de que a mulher sentiria inveja do
pênis. Em vez disso, afirmou, a inveja era das vantagens que ter um pênis dava
ao homem.
A abordagem mais comum na literatura é a do membro masculino
com vontade própria, quase como se fosse um organismo separado. O pano de
fundo, explica a escritora, é a perturbação que o desejo sexual provoca na
racionalidade masculina.
“[Na literatura ocidental] o homem é sério, tem uma
inteligência mais cínica, desconfiada. É o elogio da seriedade”, diz a
professora. O pênis visto como ente autônomo, que nem sempre cumpre as
expectativas, faz do homem um ser dividido entre duas vontades. Também indica
que a ausência de desejo e a impotência estão sempre rondando, o que ameaça a
figura do herói, mesmo que o indivíduo cumpra os requisitos dominantes:
ascendência europeia, independência econômica, status social etc.
Para pessoas que fogem a esse molde de alguma maneira, como
homens negros ou moradores da periferia, a questão da masculinidade e do desejo
é pontuada por outros marcadores sociais, como preconceito racial e
desigualdade econômica, diz Custodio.
No caso do homem negro, as características físicas costumam
ser superestimadas e erotizadas. A imagem que vem à mente é a do “negão”, que
remete a um homem alto, viril, musculoso, descreve o sociólogo. Soa lisonjeiro,
mas não é.
“Isso está associado ao processo de escravização. Uma das
coisas que o racismo faz é atribuir ao outro aquilo que nega em si mesmo”,
afirma Custodio. A potência física foi atribuída ao negro africano como forma
de valorizar a capacidade intelectual do senhor de terras e destacar seu
estrato superior. Como ao homem escravizado já estava reservado o trabalho
físico, braçal, essa projeção conferiu uma aura de animalidade ao negro,
incluindo uma disposição extrema para o sexo. “A forma como esse corpo é visto
e desejado não lhe atribui humanidade. Existe para dar prazer ao outro. É o
pênis sem falo”, diz o sociólogo.
Na periferia urbana, o fenômeno que trespassa a
representação da masculinidade é de ordem econômica. Sem poder exercer
plenamente o poder de compra - uma condição do modelo hegemônico -, alguns
homens da “quebrada” aderiram à persona do “gangsta”. Essa estética,
frequentemente associada ao universo do rap e do hip hop, é caracterizada por
uma profusão de acessórios como correntes e anéis, sempre grandes e brilhantes,
além de bonés, cortes de cabelo e roupas de destaque. A ideia é exacerbar
aquilo que está disponível para demonstrar domínio. “Não é rico, mas parece
rico”, diz Custodio.
Um sexo só
À medida que ficam mais conhecidas, diferentes vivências de
gênero - como a transexualidade e a assexualidade, quando a pessoa não sente
desejo erótico, nem tem vida sexual ativa - vêm despertando reações diferentes.
Para parte da sociedade, há uma aceitação dessa experiência, mesmo que não seja
imediata ou total. A palavra “travesti”, por exemplo, perdeu o tom pejorativo e
passou a ser usada como sinônimo de trans, uma pessoa que não se identifica com
o gênero a ela atribuída no nascimento. Outra parte reage, com ataques verbais
e, no extremo, violência física.
De maneira geral, no entanto, é aceita a lógica binária, de
que existem dois sexos, homem e mulher. Mas nem sempre foi assim, diz Ambra.
Segundo o psicanalista, houve épocas e contextos históricos específicos em que
praticamente só havia um sexo - o masculino.
Era essa, por exemplo, a concepção dos gregos antigos, que
consideravam o homem a medida da perfeição. A literatura comprova. Na “Ilíada”,
comenta Diniz, Aquiles é descrito em detalhes, enquanto Helena, a despeito de
sua beleza extraordinária, só recebe adjetivos vagos. As mulheres não eram
vistas como um sexo diferente, mas como “quase homens”.
Na Era Moderna, quando os europeus começaram a dissecar
corpos humanos para estudar anatomia, os órgãos de homens e mulheres eram
vistos como semelhantes. No livro “Inventando o sexo” (Relume-Dumerá, 2001), de
Thomas Laqueur, são apresentadas imagens da Renascença em que o aparelho
reprodutor feminino é mostrado como uma versão dos órgãos masculinos - a vagina
era um pênis e o útero, um escroto. E isso não advinha de erro ou imprecisão.
Era como os cientistas viam e traduziam a anatomia à luz de suas convicções.
Coletivo, não individual
Nos últimos anos, o mundo da moda tem embaralhado os
guarda-roupas masculino e feminino, com as passarelas mostrando homens de saia,
blusas curtas, acessórios coloridos. A indústria da beleza surfa na mesma onda,
com mais cosméticos para o público masculino, inclusive maquiagem.
Astros como o britânico Harry Styles encarnam essa nova
postura. Heterossexual, branco, rico e atraente - o ideal de macho top -, ele
já subiu as escadas do MET Gala, em Nova York, com uma blusa transparente da
Gucci, adornada com babados, e calça de cintura alta. Também já usou vestidos e
saias.
Em suas aulas de literatura, Diniz diz que são perceptíveis
as mudanças no comportamento dos alunos homens. “Eles estão mais atentos aos
clichês da masculinidade, sobretudo o machismo, e se sentem com mais liberdade
para explorar outros modelos. Às vezes, percebo até um autopoliciamento
excessivo”, relata a professora.
Exemplos individuais são importantes porque indicam
possibilidades de mudança no código comportamental, mas a questão de gênero,
mais especificamente do poder hegemônico dos homens, precisa ser tratada sob
uma perspectiva coletiva, afirma Custodio, como reação a um sistema criado para
perpetuar essa situação. “A atitude de um homem usar saia não faz a mulher
passar a ganhar mais, da mesma forma que usar maquiagem não reduz os
feminicídios.”
O que falta, diz o sociólogo, é um processo de educação
amplo e profundo. “Se o debate continuar superficial, e não for acompanhado de
educação, os erros tendem a se aprofundar, o que vai mais confundir que
ajudar.”
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2024/08/30/com-as-mudancas-da-sociedade-hoje-o-que-faz-de-um-homem-um-homem.ghtml