Estudo alerta para retrocessos em 31 dos 60 países com eleições em 2024, considerado ‘tudo ou nada’ para o sistema democrático
Quando
2024 chegar ao fim, metade da população mundial terá participado de
eleições, espalhadas por dezenas de países. Na metade deles, no entanto,
a democracia está em declínio. É que, a exemplo do que se viu na Venezuela, o voto pode não se traduzir em poder popular de fato.
O
relatório anual do V-Dem, instituto com sede na Universidade de
Gothenburg, na Suécia, que mede o nível de democracia no mundo, aponta declínio em 31 dos 60 países com eleições este ano. A lista inclui a Índia, onde Narendra Modiconquistou o terceiro mandato consecutivo, e o México, que elegeu Claudia Sheinbaum, a sucessora que Andrés Manuel López Obrador.
“Por
um lado, a democracia nunca foi apenas sobre eleições. Por outro, o
modelo da zona cinza, em que os países tentam emular a democracia,
parecer que são democracias embora não sejam seja, ficou mais comum nos
últimos anos”, explica o diretor do V-Dem, Staffan I. Lindberg, em
entrevista ao Estadão.
Em
apenas três países há sinais de melhora. São eles: Macedônia do Norte,
Maldivas e a Tunísia. Em todos os casos, ocorre o que o instituto define
como democratização “U-Turn”, ou seja, um inversão de marcha, quando os
indicadores melhoram depois de piorar. O Brasil é apontado como um
destaque nessa categoria.
Os
outros 26 países com eleições nacionais previstas para 2024 não
apresentaram mudanças significativas no último ano a ponto de indicar
uma tendência, seja de democratização ou de autocratização. É aqui que
entram os Estados Unidos, onde as eleições são consideradas um grande
teste para a democracia.
O ‘tudo ou nada’ para a democracia
Com
tantas eleições em disputa, o estudo destaca que este ano pode ser
considerado o “tudo ou nada” para a democracia. No caso dos países que
avançam em direção à autocracia, as votações são processos críticos. Por
um lado, tem o potencial para provocar mudanças. Por outro, podem ser
instrumentos de poder para legitimar regimes e aprofundar a
autocratização.
“É importante destacar que muito do movimento da Índia em direção ao autoritarismo está conectado BJP (Bharatiya Janata Party, o partido de Narendra Modi)”,
lembra Ursula Daxecke, cientista política da Universidade de Amsterdã
(UvA), especializada em estudos sobre a democracia. Ela afirma que há
problemas crescentes no país, como controle sobre a imprensa, pressão
sobre acadêmicos e ativistas e violência contra minorias religiosas.
“Isso gera reações contrárias.”
Apoiadores de proeminente opositor indiano, soltam fogos para celebrar a
decisão da Suprema Corte que libertou Arvind Kejriwal após cinco meses
na prisão. Foto: Money Sharma/AFP
Outro
sinal de mudanças veio da África do Sul ― onde os índices democráticos
estão em lento declínio há mais de uma década, segundo o V-Dem. O
partido de Nelson Mandela (Congresso Nacional Africano) perdeu a maioria
no Parlamento pela primeira vez em 30 anos de democracia e precisou
formar alianças para governar.
Antes de passar a faixa para a pupila, ele conseguiu aprovar uma reforma do Judiciária sem precedentes.
Em caso único no mundo, todos os juízes serão escolhidos por voto
popular, inclusive, os ministros da Suprema Corte. Os críticos acusam o
governo de minar a independência da Justiça e temem que o México volte a
viver sob a hegemonia de um único partido, como aconteceu até o início
da transição democrática nos anos 2000.
É que nos processos de corrosão das democracias, a Justiça tem sido alvo frequente de governos com aspirações autoritárias.
“O
mais comum hoje em dia são os retrocessos democráticos, os processos em
que as instituições são gradualmente corroídas”, contextualiza Nik de
Boer, líder do projeto de pesquisa da UvA sobre os fundamentos da
democracia. “Uma característica comum é a eliminação dos freios
institucionais, frequentemente envolvendo a politização do Judiciário.
Tribunais constitucionais que, em tempos normais, atuariam como freio
tornam-se instrumentos do governo quando politizados.”
Limitar
a atuação da oposição e das organizações não-governamentais, restringir
a liberdade de imprensa e politizar a burocracia do Estado, afirma de
Boer, são outras formas formas de minar a democracia por dentro. Além, é
claro, de manipular as eleições.
Em El Salvador, as eleições deste ano confirmaram o domínio de Nayib Bukele,
no país onde todos os ganhos democráticos conquistados a partir da
década de 1990 foram revertidos nos últimos anos, segundo o relatório do
V-Dem. Sob a justificativa de combater o crime, Bukele implementou o
plano autoritário, que inclui prisões arbitrárias, violações dos
direitos humanos, cerco à imprensa, e manobras para se manter no poder,como mostrou o Estadão em série de reportagens.
Bukele,
em tese, não poderia disputar a reeleição, mas ignorou a regra com aval
da Corte Constitucional, nomeada por ele, e saiu vitorioso. Conquistou
mais de 80% dos votos, e uma base de apoio que chega a 58 dos 60
deputados na Assembleia de El Salvador.
Eleições na mira de autocratas
Diferentes
estudos apontam que as eleições estão na mira de autocratas em busca de
poder. O relatório anual da Freedom House, organização com sede em
Washington, apontou que as eleições manipuladas, como a de El Salvador,
foram uma das principais causas para o declínio da liberdade no mundo.
Essa
manipulação pode ocorrer antes, com o controle da disputa — restrições
de candidaturas, mudanças nas regras eleitorais, uso do Estado em
benefício do grupo no poder — ou depois, com a tentativa de alterar os
resultados.
O
estudo da Fredom House foi publicado antes das eleições na Venezuela,
mas a ditadura de Nicolás Maduro pode ser enquadrado em praticamente
todas as formas de manipulação. Impediu a principal líder da oposição,
María Corina Machado, de disputar; criou regras que praticamente
impediram milhões de imigrantes de votar; restringiu a presença de
observadores internacionais; e declarou vitória suspeita de fraude, sem
apresentar os dados das urnas.
“A
Venezuela está no extremo dessa escala, onde as eleições são apenas um
teatro, uma farsa. É quase o mesmo que acontece em países como a Rússia e
Belarus. Existe um espectro bastante amplo até chegarmos à Hungria,
onde as condições são muito melhores, mesmo que ainda não seja
democracia”, afirma.
EUA e o grande teste para a democracia
Em
5 de novembro, os americanos vão fechar o ciclo de eleições decisivas,
embora outros países continuem votando pelo menos até 22 de dezembro. A
escolha se dará entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente
Donald Trump, apontado pelos críticos como uma ameaça à democracia.
O
líder republicano é réu por tentar reverter a derrota para Joe Biden em
2020, com pressão sobre autoridades eleitorais, esquema de eleitores
falsos e o ataque ao Capitólio. Enquanto tenta voltar à Casa Branca, o
republicano conseguiu evitar o julgamento com o recurso na Suprema
Corte, de maioria conservadora, que concedeu lhe concedeu ampla
imunidade.
Em
caso de vitória, os críticos alertam para o que seria Donald Trump sem
freios. O republicano rompeu com antigos aliados, que se posicionaram
contra ataque ao Capitólio, consolidou o domínio sobre o partido e tem
buscado se cercar de pessoas mais leais ao seu projeto político.
É
o caso do companheiro de chapa J.D. Vance. Convertido de crítico a
defensor ferrenho, ele afirma que, se estivesse no lugar do
vice-presidente Mike Pence naquele 6 de janeiro de 2021, teria feito
mais para impedir que o resultado fosse certificado pelo Congresso
americano. Por se recusar a anular a eleição, Pence entrou na mira dos
radicais, que gritaram “enforque Mike Pence” na invasão do Capitólio, e
na lista de desafetos de Trump.
‘Desta
vez, veríamos muito menos controle dos “adultos na sala”, ou seja,
menos pessoas para moderar as ações de Trump. Na primeira vez, ele não
tinha um grupo coeso ao seu redor que acreditasse no que ele estava
fazendo, e agora ele está cercado por pessoas que apoiam suas intenções,
o que resulta em menos freios e contrapesos’, avalia o historiador Jack
Thompson, professor de Estudos Americanos na Universidade de Amsterdã.
Em
caso de derrota, o temor é que as cenas de violência se repitam. Mesmo
sem qualquer evidência de irregularidades no sistema eleitoral os EUA, o
republicano nunca reconheceu a derrota na última eleição que afirma,
sem provas, ter sido roubada, e tem dito que só aceitará os resultados
desta vez se a disputa for “justa”.
Se Trump ganhar ou perder, o risco de distúrbios significativos ou desafios à democracia nos Estados Unidos ainda é alto. Staffan I. Lindberg, diretor do instituto V-Dem
“Muitos
cientistas políticos estão preocupados com algum tipo de conflito civil
de baixa intensidade. Especialmente se Trump perder. Se eles não
aceitarem o resultado, como não aceitaram da última vez. Dois terços dos
membros do Partido Republicano ainda acreditam que a eleição foi
roubada”, alerta Lindberg.
Do
outro lado, o republicano, alvo de duas tentativas de assassinato
durante a campanha, culpou o discurso dos seus adversários pelos
ataques. Ele disse à Fox News que o atirador encontrado no seu campo de golfe agiu de acordo com a retórica democrata.
“A
retórica deles está fazendo com que eu seja alvejado, quando sou eu
quem vai salvar o país, e são eles que estão destruindo o país, tanto
por dentro quanto por fora”, disse. Trump rejeitou o rótulo de “ameaça à
democracia” e apontou os democratas como o perigo para os Estados
Unidos. “Isso é chamado de inimigo interno. Eles são a verdadeira
ameaça”.
Agentes na cena do crime onde Donald Trump foi alvo de tiroteio investigado como tentativa de homicídio. Foto: Chandan Khanna/AFP
Em
sua maioria, os americanos expressam preocupação com a violência
política em pesquisas. Mas as sondagens também têm alertado para o
número crescente daqueles que estariam dispostos ao vale-tudo.
A
primeira do Public Religion Research Institute sobre o tema, ainda em
2021, mostrou que 15% dos entrevistados concordaram com a seguinte
afirmação: “Como as coisas saíram tanto dos trilhos, os verdadeiros
patriotas americanos talvez tenham que recorrer à violência para salvar
nosso país”. No ano passado, esse número era de 23%, chegando a 33% no
recorte dos republicanos.
Outra pesquisa feito pela cientista político da Universidade de Chicago Robert Pape e noticiada pelo NY Times após
a primeira tentativa de assassinato contra Trump mostra que a propensão
à violência com fins políticos não é exclusividade da direita. Entre os
entrevistados, 10% disseram apoiar o uso da força para impedir que o
republicano se torne presidente. Outros 7% disseram o contrário: que
apoiam o uso da força para levá-lo de volta a Casa Branca. E a
quantidade de armas espalhadas pelos EUA, torna os dados ainda mais
alarmantes.
“Estamos
saindo do âmbito conhecido para o incerto”, afirma Jack Thompson. “Não
se pode afirmar com certeza se a violência política vai ocorrer, mas as
condições para que isso aconteça mudaram de tal forma que a violência se
tornou mais provável, independente do resultado das eleições.”
Estamos em um daqueles momentos da história que
pode ser considerado um “ponto de não retorno”: colapsos climáticos
generalizados, desemprego em massa intensificado pela inteligência
artificial (IA), plataformização da política sob hegemonia técnica e
ideológica da extrema direita e a assustadora sofisticação das
tecnologias de morte. Precisamos discutir urgente a dimensão geopolítica
e a base material das tecnologias eletrônicas e digitais.
Publicado em 19/09/2024 // 1 comentário
Como é possível e o que significa a explosão coordenada de pagers e walkie-talkies
no Líbano? Estamos em um daqueles momentos da história que pode ser
considerado um “ponto de não retorno”: colapsos climáticos
generalizados, desemprego em massa intensificado pela inteligência
artificial (IA), plataformização da política sob hegemonia técnica e
ideológica da extrema direita e a assustadora sofisticação das
tecnologias de morte. Precisamos discutir urgente a dimensão geopolítica
e a base material das tecnologias eletrônicas e digitais.
Na última
terça-feira, o mundo foi surpreendido com a notícia de um ataque
terrorista promovido pelo Estado de Israel que feriu mais de 2800 pessoas e matou vinte
– entre os quais estão a população civil síria e libanesa e os
militantes do partido islâmico paramilitar Hezbollah – através da
explosão coordenada de aparelhos de pagers Modelo AR-924. Os
aparelhos foram distribuídos pela própria organização aos militantes,
para evitar a interceptação de seus celulares, algo sabidamente possível
desde as denúncias de vigilantismo digital em massa oferecidas por
Snowden em referência ao Projeto PRISM, em 2013. Há pelo menos uma
vítima infantil: Fatima Abdullah, de nove anos, que foi atingida pela explosão no vilarejo de Saraain, Líbano.
Pager Ar-924, imagem do site da Gold Apollo, fabricado em Taiwan.
No dia
seguinte, enquanto estávamos distraídos com o retorno ilegal do X
(antigo Twitter) à internet brasileira, o mundo foi surpreendido,
novamente, com a notícia de novas explosões fatais no Líbano, agora
promovidas por walkie-talkies IC-V82 VHF, fabricados pela
corporação japonesa ICOM Inc., também utilizados por militantes do
Hezbollah e por autoridades estatais libanesas. Há relatos sobre outros
dispositivos, como sistemas de placa solares que explodiram em bases da
organização libanesa, mas também fotos de dispositivos biométricos de identificação.
O que está acontecendo? Como isso é possível e o que nos informam sobre
a geopolítica capitalista contemporânea e sua base infraestrutural?
Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana,
chamamos atenção para a centralidade da dimensão material e
infraestrutural das tecnologias digitais. Sem desconsiderar a
importância decisiva das camadas lógicas e de aplicações da internet
para a compreensão das transformações sociais em curso, argumentamos que
o digital também é real (material) e, portanto, sujeito às leis causais da física e da economia política:
Ao contrário do
que se pode intuir, o virtual não é contrário do real nem pode ser
confundido com o digital. O digital é o armazenamento e o processamento
de dados em computadores em forma de códigos que representam letras,
números, imagens, sons etc., enquanto o virtual é um atributo potencial
da realidade que pode ser apreendido pelo trabalho do pensamento
(Faustino, Lippold, 2023).
Ao mesmo tempo,
tentamos demonstrar que, com o desenvolvimento vertiginoso das
tecnologias digitais, as guerras contemporâneas dispõem de novas e mais
eficazes tecnologias de destruição e morte que permitem um novo
repertório de ataques cibernéticos tanto à ambientes virtuais
(vigilantismo e espionagem) quanto físicos (ataques a instalações
militares e nucleares). Sabemos que “o Robocop do Governo é frio, não
sente pena…” (Racionais MC’s, 1997). Não é de hoje que se estuda a
ciborguização da guerra e o ápice de seu desenvolvimento com a
introdução de drones no campo de batalha (Chamayou, 2015).
No entanto, o
genocídio palestino – o primeiro genocídio acompanhado e ignorado em
“tempo real” através da internet – tem nos provocado a rediscutir as
implicações dessas inovações para as formas de vigilância e assassinato
em massa. Mais do que isso, levanta a suspeita de que estamos diante de
um novo patamar sociotécnico de prática de genocídio, o que exige
atenção.
As condições sociotécnicas do genocídio
Longe de uma
postura tecnofóbica, mas atentos às diferentes formas pelas quais os
seres humanos servem-se de meios técnicos e sociais para satisfazer
determinadas necessidades, há que se reconhecer que no capitalismo o
desenvolvimento das capacidades produtivas acaba sendo direcionado mais
para a autodestruição humana do que para a satisfação de suas
necessidades.
Da expropriação
portuguesa e espanhola às terras indígenas ao genocídio dos hererós na
Namíbia, da Shoah nazista contra os judeus europeus ao atual genocídio
palestino cometido pelo Estado de Israel, o desenvolvimento dos meios
sociotécnicos representou a ampliação da capacidade de matar. Não é
possível assassinato em massa sem a existência de uma massiva indústria
da morte que articule sempre o que há de mais sofisticado em termos
bélicos e informacionais.
Podemos começar
a mostrar a relação entre grandes corporações e a destruição das
liberdades observando o período nazista. Há provas consistentes da
importância decisiva da tecnologia Hollerith de cartões perfurados da
IBM para a execução do holocausto. Os códigos da IBM eram gravados nos
braços dos prisioneiros do nazismo e permitiam a identificação, a
seleção e o controle massivo do processo de extermínio. Mas a atual e
persistente demolição dos direitos não é tão evidente como a praticada
no período nazista (Silveira, 2015, p. 12).
Alguns exemplos
recentes são o emprego da IA Lavender na eleição de alvos palestinos a
partir da coleta para perfilamento de dados disponibilizados pelas
plataformas digitais ao exército israelense e a disseminação de vírus em
instalações militares inimigas. Têm sido cada vez mais frequentes as
notícias de uso de IAs em guerras, assim como ciberataques, e os
primeiros de grande potencial destrutivo foram executados pelos vírus
Stuxnet, flame, Duqu e Gauss, utilizados no início da década de 2010
para sabotar o programa nuclear iraniano.
Em termos de
ciberarmas e guerra eletrônica, Israel é uma vanguarda tecnológica que
usa a Palestina, mas também o Líbano e Síria, como um nefasto
laboratório-vitrine para desenvolver e propagandear suas armas de última
geração. Alguns exemplos são o dispositivo de guerra eletrônica scorpius e o drone Harop da Israel Aerospace Industries (IAI),1 além da IA Lavender – produzida pela Unit 82002 e do Pegasus, o famoso spyware negociado pelo governo Bolsonaro com a NSO, empresa israelense.
A capacidade de
difusão da tecnologia, mesmo aquela considerada obsoleta, permite a
inovação nas técnicas de ataque. Certamente é um ato de terrorismo de
Estado que, apesar de toda ideologia midiática, desumaniza os alvos,
para se regozijar com a eficiência do ataque. Temos ouvido o termo
“guerra cirúrgica” desde 1991, com a invasão do Iraque e,
posteriormente, as guerras nas ex-Iugoslávia. Esses termos visam iludir a
opinião pública de que somente os “bad guys” serão
neutralizados, dentro da lógica maniqueísta estadunidense. “Projetar
poder, sem projetar vulnerabilidade” (lema da dronificação e de muitos
ataques remotos) (Chamayou, 2015). O que se tem visto, na realidade, é
justamente a precisão em destruir vidas civis, instalações públicas e
infraestruturas vitais no território inimigo.
Mas o que isso tem a ver com pagers e walkie-talkies
dilacerando corpos de militantes e civis nas ruas do Líbano? Desde as
denúncias de Snowden, é sabido que os celulares são vulneráveis. Os
dispositivos móveis podem ser vigiados por agentes políticos de todo
tipo para fins de coleta de dados que permita o direcionamento de
propaganda, perfilamento de comportamento e até localização
georreferenciada de alvos militares. O militante subversivo que ignora
essa realidade técnica – em contextos bélicos de altos interesses
geopolíticos – é, antes de mais nada, um alvo fácil.
A preocupação
com esse fato aumentou na Palestina quando se revelou que Israel estava
utilizando programas de inteligência artificial para selecionar os
possíveis alvos dos drones bélicos automatizados. O programa de
inteligência artificial varria as redes sociais em busca de
palavras-chave consideradas subversivas ou contato de usuários com
membros de grupos políticos/militares inimigos a fim de eliminá-los.
Uma vez
identificados e selecionados, os alvos eram rastreados por biometria
facial e geolocalização instantânea – oferecidas por seus celulares –
para então serem atacados. Se houvesse um alvo em um prédio de dez
andares, todo o prédio seria – e foi – bombardeado. Processo que dizimou
não apenas dezenas de milhares de palestinos em Gaza e Cisjordânia como
varreu essas cidades e sua infraestrutura física do mapa.
Tendo esse
cenário em mente, as lideranças islâmicas passaram a buscar meios
alternativos de comunicação. Ao que se sabe, as lideranças do Hezbollah
proibiram que seus quadros utilizassem celulares e ofereceram como
alternativa o uso do pagers e walkie-talkies – que ainda são amplamente utilizados em países cujo acesso à tecnologia informacional de ponta ainda é privilégio de alguns.3
Mas a organização islâmica não contava com um fator completamente
inesperado: a possibilidade de intervenção israelense na cadeia
produtiva dos dispositivos móveis.
Os pagers e walkie-talkies
explodiram ferindo milhares e matando mais de dez pessoas na primeira
onda, catorze na segunda, deixando centenas em estado crítico com
ferimentos graves, colocando a população libanesa em pânico. Mais do que
um ataque de passagem cibernética para cinética, como foi o stuxnet,
podemos denominá-lo como operação de infiltração logística para
sabotagem.
Mas como isso foi possível?
Ainda há muito a
ser explicado mas, aparentemente, estamos diante de uma sabotagem na
cadeia de suprimentos e peças e componentes dos pagers,
supostamente fabricados pela empresa Gold Apollo, de Taiwan. A empresa
logo anunciou que este lote foi feito em Budapeste, Hungria, pela
empresa BAC Consulting KFT, que possui um acrônimo do nome de sua
fundadora e CEO, a cientista Cristiana Bársony-Arcidiacono. O governo de
Orbán negou que os pagers estiveram na Hungria, e que a BAC é somente uma intermediária comercial.
A princípio se
desconfiou de um ciberataque que teria hackeado o hardware dos
dispositivos superaquecendo-os ou que as baterias tivessem sido
programadas para explodir a partir de determinado ciclo. Os pagers
AR-924 possuem uma bateria de lítio que tem 85 dias de duração, sendo
recarregáveis por USB, por isso não são usados só por militantes, mas
também por civis devido às constantes quedas de energia elétrica. Mas é pouco plausível que elas tenham descarregado na mesma velocidade para milhares de pessoas.
O mais provável é que uma carga de um a três gramas de tetranitrato de pentaeritritol (PETN)
tenha sido injetado na bateria de lítio íon ou em um componente da
placa a mando da inteligência israelense durante o processo de
fabricação em algum elo da cadeia de fornecimento. Provavelmente, a
explosão sincronizada foi acionada de forma remota, via sinal de rádio.
Isso difere do
histórico ataque do stuxnet, reconhecido em 2010, em que a tecnologia
cibernética buscou efeitos cinéticos. O alvo do stuxnet, produzido pelos
Estados Unidos e por Israel, era o controle dos programas digitais das
centrífugas de enriquecimento de urânio no Irã. Mas o tiro saiu pela
culatra, segundo o documentário Zero Days
(2016), o vírus, com modificações efetivadas por Israel, saiu do
controle e acabou infectando as cadeias logísticas digitais do próprio
atacante, no caso os EUA.
Não é algo
simples a passagem do cibernético ao cinético. Se assim fosse, com o
avanço da internet das coisas (IoT) seria possível que smart-geladeiras, smart-lâmpadas, smart-dildos, smart–escovas de dente controlados
remotamente com IA, se tornem armas de guerra. Talvez já seja, se
concordarmos que a tecnologia é guerra e política, por outros meios, Mas
aqui não se trata de uma arma, no sentido que estamos analisando no
presente artigo.
É importante
lembrar que, ainda que atuem em conjunto, a guerra eletrônica difere-se
da ciberguerra. Os primeiros sinais de guerra eletrônica foram em 1899,
na Guerra Anglo-Boer, em solo africano, com a interferência no envio de
código Morse por telégrafo. Depois com o uso de radiodifusão, na Guerra
Russo-Japonesa em 1905, começaram a usar o jamming ou “empastelamento” da transmissão de ondas, prejudicando a transmissão do sinal de rádio. Fanon em Sociologia de uma Revolução (1959) analisa o jamming utilizado
pelos colonialistas franceses para atacar as transmissões da rádio
rebelde “A Voz da Argélia Combatente”. Podemos dizer que a guerra
eletrônica e colonialismo são velhos conhecidos.
Este tipo de
ataque que visa atingir soldados e militantes por meio de seus
equipamentos, matando-os ou os ferindo gravemente nas mãos, lembra o uso
da chamada spiked ammo, ou munição explosiva, que era inserida
através de infiltração nas cadeias de suprimento de atores estatais e
não estatais. Quando acionada, a munição explode a arma e as mãos de
quem a opera. Armas como fuzis, lança-granadas e morteiros são as mais
conhecidas para aplicação deste tipo de sabotagem. A técnica de spiked ammo
foi primeiramente utilizada pelos ingleses na África, nos territórios
do atual Zimbabue, para atingir os matabeles e xonas, em 1896. Utilizada
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ficou mais conhecida na Guerra
do Vietnã, usada pelos Estados Unidos (Projeto Eldest Son) e
recentemente na Guerra da Síria. O uso de spiked ammo faz parte do que se denomina guerra não convencional.
A explosão simultânea de pagers e walkie-talkies
inaugurou um novo estágio na corrida necrotecnológica capitalista,
porque retoma a velha guerra eletrônica a partir de um novo patamar que
combina a interferência sigilosa na cadeia produtiva do dispositivo com
uma engenharia social e logística que permitiu que os dispositivos
alterados – cujo componentes foram produzidos em diferentes países –
chegassem aos alvos e explodissem no momento desejado. Suspeita-se que
as bombas tenham sido disparadas a partir de sinal de rádio emitido pelo
próprio comando do Hezbollah. A conexão desse sinal com o desfecho
explosivo ainda precisa ser estudada, mas já aponta para novas
possibilidades de mortes orquestradas pelas grandes potências
capitalistas.
Que lições podemos tirar do ocorrido?
Se em tempos de
paz a dependência de tecnologia estrangeira, dentro dos quadros do
imperialismo e do colonialismo digital fere diretamente a soberania
nacional e a autodeterminação dos povos, agora sabemos de forma
explícita da ameaça desta dependência durante uma guerra. A corrida
bélico-tecnológica não se resume aos softwares, mas ocorre também em
termos de hardware. Não esqueçamos da frase mais pedagógica dos então
chefões da Google, Eric Schmidt e Jared Cohen: “O que a Lockheed Martin
foi para o século XX, as empresas de tecnologia e segurança serão para o
século XXI” (Cf. Assange, 2015, p.40), declarando o novo papel
geopolítico das big techs.
A guerra
eletrônica, a ciberguerra e estes novos ataques “não convencionais”
possuem a sua materialidade, perpassadas pelas esferas de produção e
circulação do capital, suas cadeias lógicas e empresas “sombrias”, que
aparentemente mal sabem o que as terceirizadas fazem em seu nome. A
cadeia logística de hardware, dos componentes eletrônicos necessita de
meios de produção, ou seja, matéria-prima, ferramentas, força de
trabalho e a nuvem digital que só podem existir a partir deste processo.
Para a nuvem digital etérea existir, é preciso emitir vapor do
resfriamento necessário para conter o superaquecimento dos processadores
e placas.
Dentre as
fantasias de nosso tempo está a negação da ubiquidade do capital e a
materialidade implícita ao modo sociometabólico de reprodução. Para
importantes intelectuais, o modo de produção capitalista estaria em uma
espécie de regressão neofeudal, ou tecnofeudal que valoriza o valor pela
rentabilização do intangível ou na própria circulação – convidando
marxistas a saírem do “pensamento de fábrica”. No entanto, como afirma
Terezinha Ferrari, a fábrica não deixou de existir, mas se expandiu,
fabricando a cidade e frações cada vez mais substanciais da vida privada
(Faustino, Lippold, 2023).
Terezinha
Ferrari argumenta que a introdução da informática e da robótica no
processo produtivo capitalista permitiram não a tão falada superação da
linha fordista de produção, mas a sincronização dos tempos sociais do
trabalho de forma a viabilizar a articulação de diferentes unidades
produtivas em um contexto geográfico em que as vias públicas são
convertidas em esteiras produtivas à céu aberto. Não à toa o jargão, por
excelência, da fabricalização da cidade é o famoso “Just in time” criado pela Toyota Motor Corporation na década de 1940 e 1950, adotado como mantra ideológico da acumulação flexível.
As explosões no
Líbano e na Síria, em uma espécie de fabricalização da guerra, parecem
realizar esse mantra ao inaugurar a explosão just in time. O
ocorrido nos coloca diante do fenômeno da manipulação e engenharia
social da própria insurgência: Israel, com sua vanguarda tecnológica em
vigilantismo digital, além das condições do parque de energia elétrica
libanesa, levou o Hezbollah e civis a contornar o uso de telefones
celulares, voltando a dispositivos como pagers e walk-talkies.
Até que ponto tudo isso era parte do plano, só o tempo dirá. Mas o caso
levanta o alerta para a complexidade dos meios técnicos e sociais
empregados.
Notas 1Ver o site da necrocoporação IAI. É impressionante a diversificação do poderio bélico no catálogo da empresa. 2 Divisão de inteligência das forças armadas israelenses, estilo NSA, mas militar, mesma que fez o stuxnet. 3
Uma inovação tecnológica que lembra a sofisticação argelina contra o
exército francês, quando a engenharia militar da Frente de Libertação
Nacional da Argélia reorganizou sua estrutura para que cada membro só se
comunicasse e conhecesse um número muito restrito de militantes (caso
fosse capturado e torturado, não teria muitas informações para
entregar).
Referências ASSANGE, Julian Assange.WikiLeaks: quando o Google encontrou o WikiLeaks (trad. Cristina Yamagami). São Paulo, Boitempo, 2015. CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do Drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015. FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023. FERRARI, Terezinha. Fabricalização da cidade e a ideologia da circulação. São Paulo, Coletivo Editorial, 2008. RACIONAIS MC’s. Mano Brown. Diário de um Detento. São Paulo Cosa Nostra, 1997. SILVEIRA, Sérgio Amadeu da Silveira. WikiLeaks e as tecnologias de controle. In: ASSANGE, Julian Assange. WikiLeaks: quando o Google encontrou o WikiLeaks (trad. Cristina Yamagami). São Paulo, Boitempo, 2015.
Como a Alemanha, símbolo da força do
Ocidente, entrou em declínio acelerado e está se rendendo à
ultradireita. Por que a coalizão neoliberal no governo meteu-se numa
camisa-de força-política. Que esperar de uma nova esquerda, que emerge
Foi apenas a partir do século XVII, e graças a biólogos como o toscano Francesco Redi e o francês Louis Pasteur, que humanidade descartou a ideia de geração espontânea
da vida. Prevalecia antes a noção, expressa entre muitos outros por
Aristóteles, de que a matéria inanimada possui “princípios ativos”; e
estes, em certas condições, germinam. Estas concepções estavam
enraizadas não só no senso comum (acreditava-se que camisas sujas podiam
dar origem a ratos), mas também nos meios científicos. Ainda no século
XVI, o médico e filósofo renascentista Paracelso,
um precursor da assepsia, descreveu a geração espontânea de seres
complexos como sapos, roedores, enguias e tartarugas a partir de fontes
como ar, água, madeira podre e palha… Uma crença semelhante parece
cercar hoje a maior parte das análises sobre o crescimento de correntes
políticas que ameaçam a democracia. Elas resultariam de uma espécie de
“onda de ultradireita” que, assim como emergiu, algum dia retornará às
profundezas – guardando pouca relação, portanto, com as escolhas
políticas adotadas pelos governos dos países acometidos.
No início de setembro, a “onda” chegou forte a dois estados do Leste
da Alemanha – a Turíngia e a Saxônia – que elegeram seu parlamento e
governo. Pela primeira vez, desde Hitler, um partido de extrema-direita
venceu um pleito estadual. Na Turíngia, onde 63% da população vive em
áreas rurais, a AfD (Alternativa para a Alemanha, xenófoba e supremacista) foi a mais votada, saltando de 23,4% (em 2019) para 32,8%. Em seguida veio a direita tradicional (CDU,
que se diz democrata-cristã, 23,6%). Na Saxônia, fronteiriça à Polônia e
à República Tcheca, e onde estão as cidades de Dresden e Leipzig, o
avanço foi menor, mas também expressivo: de 27,5% para 30,6%. Lá, a CDU
venceu por pequena margem (atingindo 31,9%) e a AfD ficou em segundo.
Trata-se, nos dois casos, de ramos especialmente agressivos do partido.
Um de seus líderes, Björn Höcke, chegou a repetir em discurso a saudação das SA nazistas, e até mesmo dirigentes nacionais do partido pediram sua expulsão.
Como já ocorrera nas eleições europeias de junho,
os eleitores castigaram os três partidos da coalizão que governa a
Alemanha. Suas marcas políticas principais são o amplo envolvimento na
guerra contra a Rússia e manutenção de um “ajuste fiscal” contra os
serviços públicos. Os social-democratas (SDP) ainda conseguiram manter-se nos dois parlamentos, mas sua proporção de votos despencou para 6,1% na Turíngia e 7,3% na Saxônia (em 2019, o SDP alcançara 8,2% e 12,4%, respectivamente. Os liberais (FDP) estão fora dos dois parlamentos, tendo obtido em torno de 1% dos votos nos dois estados. Os verdescaíram
fora do legislativo da Turíngia (3,2%, abaixo da cláusula de barreira
de 5%) e mantiveram-se por muito pouco na Saxônia (5,1%, bem menos que
os 8,6% em 2019).
Turíngia e Saxônia têm juntas apenas 6,2
milhões de habitantes – ou 7% da população alemã. Mas os sinais de que
impopularidade grave do governo liderado pelo primeiro-ministro Olaf
Scholz (SPD) estão em toda parte. As eleições para o governo federal
ocorrerão em setembro de 2025. Se fossem realizadas hoje,
social-democratas, verdes e liberais alcançariam, juntos,
pouco mais de 30% dos votos – em queda brusca frente aos 51,9% obtidos
em 2020 e sem possibilidade de formar coalizão majoritária. O declínio
pode agravar-se já no próximo domingo (22/9), quando haverá eleições
em mais um estado do Leste – o Brandemburgo. É provável que o SPD perca
o governo (tem menos de 20% das intenções de voto) e que tanto Verdes
quanto Liberais fiquem abaixo da cláusula de barreira e saiam do
legislativo. Mas… e a esquerda?
II.
“Agora, entramos na cena política”, disse a escritora, filósofa e
deputada alemã Sahra Wagenknecht na primeira entrevista coletiva que
concedeu após as eleições na Turíngia e Saxônia. Nascida há 55 anos na
então Alemanha Oriental, ela é a fundadora e líder de um partido de que
se tornou exceção notável, numa Europa em que a esquerda vive, na grande
maioria dos países, prolongado declínio. Batizado provisoriamente com o
nome de sua criadora, a BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht, ou Aliança Sahra Wagenknecht) surgiu em há apenas oito meses.
Mas obteve 15,8% dos votos na Turíngia e 11,8% na Saxônia. Despontou
como terceira força nos dois Estados, bem à frente dos
social-democratas, verdes, liberais e da esquerda tradicional (o Linke). E já chegara a 6,2% em junho, nas eleições para o Parlamento Europeu.
Tão incomuns quanto a rápida emergência da BSW são as opiniões de
Wagenknecht sobre dois temas contemporâneos cruciais. Ela acredita que a
ascensão da ultradireita pode ser contida, precisamente por não se
tratar de uma “onda” – mas resultado direto da camisa de força em que os
partidos do establishment se meteram. Suas políticas
impopulares levam-nos a sangrar – a perder apoio popular continuamente.
Porém, sua rendição ao neoliberalismo impede-os de buscar saídas, ao
contrário do que fizeram por cerca de três décadas, no pós-II Guerra. O
poder econômico e a mídia ampliam a cegueira, pois bloqueiam qualquer
tentativa de sair da ortodoxia. Abre-se assim uma avenida para os
extremistas, por mais bizarros que sejam.
A esquerda não cresce – e aqui está a segunda opinião disruptiva de
Wagenknecht – porque afastou-se de forma arrogante das maiorias. Incapaz
de formular políticas para os novos dramas populares (a precarização,
por exemplo), refugia-se em seu próprio círculo. Adota como programa
prioritário pautas comportamentais, que seduzem principalmente os
setores intelectualizados das sociedades (em geral, mais favorecidos que
a média, em termos econômicos). Passa a ser vista como parte de uma
elite esnobe e indiferente – daí sua impotência. As ideias centrais da
fundadora da BSW estão expressas numa longa entrevista que ela concedeu à edição de março-abril da New Left Review. Dizem muito também à esquerda brasileira e seu labirinto.
III.
Ao longo do diálogo, Wagenknecht põe a nu as dimensões da crise alemã
– algo pouco apresentado nas mídias ocidentais. O governo do chanceler
Olaf Sholz aderiu sem críticas ou mediações à guerra na Ucrânia e, em
especial, às sanções econômicas que visavam levar a economia russa ao
colapso. Berlim é o segundo maior fornecedor de armas a Kiev (17,7 bilhões de euros até abril deste ano) e generais alemães já consideraram enviar seus soldados ao front – algo
que sequer Joe Biden cogitou. Os gastos com armamentos, que haviam se
mantido em patamares muito baixos por décadas, saltaram a 3% do PIB – o
que contribuiu para achatar as despesas sociais. Porém o choque mais
grave foi causado pela decisão de interromper a compra de gás natural
russo, trocando-o pelo gás liquefeito norte-americano muito mais caro (e
ambientalmente daninho, pois é transportado em navios).
As contas domésticas de eletricidade subiram cerca de 40%, em dois
anos. E a antes poderosa indústria alemã foi especialmente atingida. O
economista Michael Roberts registra:
os altos preços da energia sufocaram os gastos em inovação, transição
energética e mesmo nas atividades centrais da maior parte das
indústrias. Além disso, aceleraram os planos de transferir fábricas para
outros países. Em maio último, por exemplo, os executivos da
emblemática Volkswagen anunciaram intenção de fechar fábricas na Alemanha, pela primeira vez nos 87 anos da empresa.
Muito mais devastador, acrescenta a deputada alemã, é o efeito sobre o
núcleo do tecido industrial de seu país, aquilo que tornou o modelo
alemão distinto, por exemplo, do anglo-saxão. Trata-se do chamado Mittelstand, constituído
por milhares de empresas médias (normalmente, entre 100 e 200
empregados), altamente especializadas do ponto de vista tecnológico e
imbricadas nas cadeias produtivas – como fabricantes de partes elétricas
e autopeças, por exemplo. São, em geral, de propriedade familiar. Ao
contrário das grandes corporações, sua cultura empresarial não é
obcecada com o lucro do trimestre seguinte – mas com o longo prazo, a
próxima geração. Por isso, procuram reter seus trabalhadores
especializados. O acesso ao gás russo foi, por décadas, um dos fatores
que permitiram seu sucesso e reputação internacionais. Entre 2022 e 23,
porém aquelas que fazem uso intensivo de energia tiveram queda de 25% em
suas receitas – algo sem precedentes. Agora, iniciaram demissões em
massa, o que pode ter efeitos dramáticos sobre a média dos salários, o
poder de compra dos trabalhadores e a própria coesão das comunidades.
Ainda que suas consequências sejam dramáticas, a submissão de Berlim à
política de guerra dos EUA apenas tornou mais grave uma crise social
que se armara antes, relata Wagenknecht. A resposta da Europa à Grande
Recessão de 2008-09 e à longa estagnação que se seguiu tem sido um
ataque permanente ao Estado de Bem-estar social e à infraestrutura, em
nome da “disciplina fiscal” e dos “orçamentos equilibrados”. Na
Alemanha, o fenômeno assumiu aos poucos tons dramáticos. No grupo
populacional entre 20 e 34 anos (as gerações pós-2008), uma em cada
cinco pessoas já não tem uma qualificação escolar formal. A cada ano, 50
mil estudantes, deixam a escola sem concluir seus estudos. Há um
déficit habitacional de 700 mil moradias. Uma contrarreforma trabalhista
adotada na primeira década do século criou um duplo mercado de
trabalho. Agora, 25% dos assalariados tem direitos reduzidos e salários
ao menos 33% inferiores ao mediano. O sistema de trens, antes impecável,
sofre atrasos constantes e foi em parte privatizado. Há três mil pontes
em estado precário, e sem reparo.
O desencanto com a democracia (e a brecha para a ultra-direita)
crescem porque a degradação das condições de vida da maioria é
acompanhada pela sensação de que já não há amparo nos partidos do establishment. No
início deste século, as duas famílias políticas que deram sentido ao
sistema institucional alemão – social-democratas e democrata-cristãos –
abandonaram suas antigas convicções e o que as diferenciava, ao aderirem
sem críticas à ortodoxia neoliberal. Começou com o SPD. Foi no governo
do chanceler Gerard Schöeder
(1998-2005), frisa Wagenknect, que se descaracterizou a “economia
social de mercado alemã”. Marcada por regulação, participação ativa dos
sindicatos na gestão das empresas e presença de bancos locais ou
comunitários (que inclusive eram acionistas influentes das indústrias),
ela deu lugar a um modelo tecnocrático, orientado apenas pelas lógicas
de lucro. A descaracterização do SPD aprofundou-se com o tempo, de modo
que hoje seus líderes “já não têm política própria e poderiam estar
confortavelmente nas fileiras do CDU ou nos liberais”. Alguma semelhança
com o Brasil?
Os democrata-cristãos (CDU) descaracterizaram-se igualmente.
Wagenknecht lembra que também eles sustentavam posições favoráveis aos
direitos e garantias sociais. Ao contrário do SPD (muito ligado aos
sindicatos), as igrejas eram a base de seus laços sociais com a
população, seu canal para dialogar com a “gente comum”. Fazia parte da
“doutrina social da igreja”. A nova face do partido, porém, é a de Friedrich Merz,
seu atual líder. Em relação à guerra, é ainda mais beligerante que
Scholz, liderando com frequência, no Parlamento, pressões sobre o
governo, por maior envolvimento na campanha contra a Rússia. No terreno
interno, defende um capitalismo Black Rock (megafundo do qual foi
executivo): elevação da idade de aposentadoria, congelamento do salário
mínimo e fim de benefícios sociais.
A dissolução das referências fica completa quando se observa a
tragédia dos Verdes, cuja origem (em 1980), está associada ao vastíssimo
movimento anti-guerra nuclear daquela década. Duas posturas
caracterizam o partido hoje, segundo a criadora do BSW. Primeiro, a
atitude mais agressiva pró-guerra e pró-OTAN de todo o espectro
partidário alemão – a ponto de a ministra (verde) das Relações
Exteriores, Annalena Baerbock afirmar que sustentará a participação no
conflito independentemente do que pensem os eleitores (segundo sondagem recente,
65% são favoráveis a um cessar-fogo e 68% a negociações de paz).
Segundo, política “ambientalista” baseada não no investimento público
(os fundos públicos para transição energética estão congelados), mas em
relacionar a crise climática com decisões individuais e em impor à
população o ônus da mudança.
Boa parte da impopularidade da coalizão no governo deve-se, aliás, à
elevação do preços do diesel para agricultores e exigência de uso de
bombas de calor, muito caras, para aquecimento das residências (a medida
foi revogada por sua repercussão especialmente negativa). E tudo pode
ficar pior. Às vésperas das eleições na Turíngia e Saxônia, sempre em
nome do “déficit zero”, o ministro das Finanças, Christian Lindner,
líder do FDP liberal, insistia em novo corte nos gastos sociais, agora
de 50 bilhões de euros…
Por fim, o próprio Partido de Esquerda (Die Linke), do qual a BSW surgiu no início do ano como dissidência, mostrou-se pouco capaz de confrontar o establishment, talvez
por prezar demais seus vínculos como o poder. O governo da Turíngia,
governado até as últimas eleições pela agremiação, somou-se, há muitos
meses, ao movimento pelo envio de armas à Ucrânia.
“Até que lançássemos a BSW, a ultradireita era a única que criticava este leque de políticas”, diz Sahra Wagenknecht à New Left Review. A
frase explica tanto o sucesso do novo partido quanto a cilada em que
estão se trancando o antigo centro político e também a esquerda que
insiste em mimetizá-lo – bem no momento histórico de seu colapso… O
cientista político alemão Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck, descreve o fenômeno com ácida ironia, no livro Entre Globalismo e Democracia(ainda sem tradução para o português):
“A resistência das elites em crise e de suas escolas de pensamento
desprovidas de senso de realidade parece não ter limites. Até mesmo em
tempos de crise, elas insistem em manter a mesma rota, ocasião após
ocasião, muito convencidas de poder arrombar o muro na próxima
tentativa, com sua cabeça tão dura como o cimento”…
IV.
Sahra Wagenknecht é uma intelectual pública, um tipo cada vez mais
raro nos parlamentos e governos contemporâneos. Formada em Filosofia e
Literatura, publicou em 1988, ao graduar-se, o primeiro livro – um
estudo sobre Goethe e sua poesia, em que ela vê uma crítica precoce do capitalismo. Chegou à militância após a leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Migrou para a Economia, tendo escrito duas dezenas de obras,
entre as quais um exame da crítica do jovem Marx a Hegel, uma análise
das conferências de Rosa Luxemburgo, e trabalhos teóricos voltados à
intervenção política, como “Liberdade sem capitalismo”, “Os mitos
modernizadores”, “Contraprograma para a comunidade e a coesão”,
“Liberdade sem capitalismo” e “Contra a esquerda neoliberal” (nenhum
deles foi ainda traduzido ao português). Mas este amor à cultura e à
teoria não a impediram de afastar-se do que chama de esquerda lifestyle – cuja prepotência e desejo de diferenciar-se das minorias são, para ela, uma das causas do crescimento da ultradireita.
Esta atitude estaria na base do que Wagenknecht vê como ênfase
exagerada nas pautas de costume. Por um lado, ela pensa, a esquerda
renunciou compreender as novas realidades em que estão mergulhadas as
maiorias, e a formular saídas para seus dramas atuais. Por outro,
encantou-se com um novo público: a classe média que descola-se dos
velhos preconceitos relacionados a sexo, gênero, “raça” e comportamento –
mas que não está disposta a refletir (e, menos ainda, a agir) sobre as estruturas que produzem a desigualdade e a opressão.
O resultado é algo que – o leitor reconhecerá – ocorre também no
Brasil. Salvo raras exceções, não há mais “trabalho de base”. Nas
periferias, por exemplo, quase só atuam as igrejas evangélicas. Mas será
fácil encontrar múltiplos “ativismos” críticos (dos partidários aos
antirracistas e antipatriarcais) nos shows (às vezes caríssimos) de
artistas bem-pensantes, em restaurantes e bares diferenciados (em
especial, os étnicos), nas mostras de cinema, nos entrepostos de comida
orgânica, nos lançamentos de livros que saúdam a condição LGBTIA+.
Surge uma cisão indesejável. Esta esquerda estilo de vida afasta-se
do quotidiano popular e de seus símbolos (“Narciso acha feio o que não é
espelho”…). “O ecossistema progressista rejeita tudo o que vem da
cultura de massas”, como aponta, num vídeo inspirado,
a comunicadora Débora Baldin. Ao mesmo tempo as maiorias, que
identificam a esquerda com esta classe média descolada, veem-na não
apenas como distante – mas como afetada, normativa e, em última
instância, parte do establishment que as oprime.
“Ninguém gosta de que os políticos lhe ‘ensinem’ o que comer, que
termos usar, como pensar”, frisa Wagenknecht. A ultradireita tem sido
extremamente sagaz em preencher a brecha. No terreno comportamental,
exalta seus vínculos com os aspectos mais sombrios da formação cultural e
psíquica das sociedades. Ergue o espantalho da masculinidade e da
branquitude supostamente ameaçadas. No campo das relações de classe,
seus laços com o grande capital – e em especial, o rentismo – são
notórios (vide a relação Bolsonaro – Paulo Guedes). Mas, como a esquerda
não propõe outro horizonte às maiorias (por estar aprisionada por sua
obsessão com a “disciplina fiscal”), é fácil aos neofascistas fazer
discursos genéricos em favor do bem-estar. Ao conversar com os
assistentes de um comício da AfD na Turíngia, o repórter da revista Economist notou
que eles pareciam atraídos não pelo discurso de ódio aos imigrantes,
mas pelo fechamentos de hospitais e ausência de professores nas escolas.
V.
A BSW e sus líder são às vezes acusados, por alguns setores de esquerda, de adotarem postura antiimigrante. Na entrevista à New Left Review, a deputada contra-ataca, ao classificar como “neoliberais” as políticas migratórias defendidas por seus opositores. ´
A partir de 2010, chegaram à Alemanha ondas sucessivas de imigrantes e refugiados.
São hoje cerca de 15 milhões, pouco menos de 20% da população. Ao
contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte
deles tem, além de abrigo (majoritariamente, nos estados do Leste),
direito a escolas e hospitais públicos. Todas as pesquisas de opinião
apontam que este fenômeno está diretamente associado ao crescimento da
ultradireita. Como ele coincide com o ataque ao estado de bem-estar
social, abundam os casos em que os imigrantes disputam com os alemães
mais pobres o acesso aos serviços sociais.
Wagenknecht pensa que a política de acolhimento fácil é generosa
apenas na aparência – por dois motivos. Do ponto de vista imediato, o
agigantamento da imigração, frisa ela, é resultado direto das guerras
promovidas pelo Ocidente (com participação direta ou apoio da Alemanha).
Os refugiados provêm, muito majoritariamente, de países (Iraque,
Afeganistão, Líbia, Síria, Yêmen, Ucrânia) em que as intervenções da
OTAN destruíram as relações sociais, a infraestrutura e, em alguns
casos, o próprio Estado nacional). De que serve receber alguns milhões
de refugiados, depois de destruir seu país e deixar para trás um número
muito maior de pessoas vivendo em condições indignas?
Numa análise a médio e longo prazos, prossegue a deputada, a
“política neoliberal de imigração” reforça – ao invés de amenizar – as
desigualdades internacionais e as relações colonialistas. Na Alemanha,
ela devasta as condições de luta e barganha do conjunto dos
trabalhadores. Os imigrantes são pressionados, pelas próprias políticas
públicas que supostamente os favorecem, a encontrar qualquer trabalho, o
mais rapidamente possível. Tendem a aceitar salários e direitos
rebaixados.
Nos países de origem, a situação é ainda pior. A imigração priva as
sociedades, em geral, dos trabalhadores mais capacitados, anulando o
enorme esforço social dispendido em sua formação. Um dos casos mais
dramáticos é o das enfermeiras. Há cerca de um ano, o site Peoples’
Health Dispatch mostrou, em matéria (traduzida por Outra Saúde) como,
para tapar buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca
sistemas de saúde ao redor do mundo – violando inclusive códio de
práticas da Organização Mundial de Saúde.
Wagenknecht frisa que sua posição não é xenófoba. Lembra que tanto a
liderança quanto a representação parlamentar da BSW são as mais
multiculturais do espectro político alemão (ela mesma é filha de uma
alemã e um iraniano, e alterou seu nome – de Sarah para Sahra – para
deixar claro o vínculo). Propõe alternativas concretas. Em primeiro
lugar, tentar interromper as guerras do Ocidente, cessando completamente
a participação da Alemanha na campanha da OTAN contra a Rússia na
Ucrânia e o apoio (vultosíssimo) ao massacre de Israel contra ao
palestinos. Além disso, inaugurar políticas de redistribuição
internacional de riquezas, com transferência obrigatórias (e não
“caritativas”) de recursos para financiar o desenvolvimento sustentável
dos países do Sul.
VI.
O futuro da BSW é incerto. No curto prazo dos próximos doze mses, há três deafios. Obter, no próximo domingo, nas eleições do estado de Brandenburgo
(que faz o entorno de Berlim), um novo resultado positivo, quer permita
chegar ao Parlamento local. Participar, em seguida, de modo que impacte
o eleitorado, das negociações para formação dos governos da Turńgia,
Saxônia e do próprio Brandenburgo. (O partido é essencial para formar
maioria que supere a AfD; mas tem dito que não busca cargos – e que não
apoiará nenhum governo que não assuma posição clara contra a guerra.
Nessas condições, um impasse parece contratado).
Por fim, o partido prepara-se para as eleições federais alemãs,
que ocorrerão no máximo até setembro de 2025. Nelas, o multimilionário
Friedrich Merz, que liderou o CDU para posições ultraliberais, aparece
hoje como favorito; mas mas políticas surpreendentes da BSW podem
levá-la a exercer um papel destacado, como frisa o cientista político Antonious Souris, ouvido pela agência de notícias Deutsche Welle.
No médio e longo prazos é que tudo se complica. No Ocidente, a
esquerda segue sem perspectivas claras, pelo menos desde a crise de
2008. Cada novo intento tem resultado em esperança seguida de
frustração. Em 2011, a ocupação das praças espanholas
levou à criação do Podemos – um partido-movimento que se embriagou com a
possibilidade de dividir o poder; esqueceu sua base e sua proposta de
sacudir a velha política com um banho de participação direta; e ao
fazê-lo, terminou tragado. Entre 2011 e 2013, houve gigantescas
manifestações pelos direitos sociais em Portugal (12), na Turquia e no Brasil,
mas os movimentos que as convocaram e dirigiram não tinham programa
claro para continuá-las (e, no caso brasileiro, nem estofo organizativo
para evitar que fossem caputuradas pela direita). De 2015 a 2020, Jeremy Corbyn manteve-se na liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido, e ao fazê-lo transformou-o
numa ferramenta de reflexão política e mobilização social
(especialmente dos jovens). Porém, fracassou no plano tático, ao aceitar
o desafio dos conservadores para disputar uma eleição que não poderia
vencer. Em 2019, os jovens e os movimentos sociais chilenos enfrentaram
repressão duríssima da polícia, provocaram o fim de um governo
conservador e chegaram a eleger um presidente da República e uma
Assembleia Constituinte em que as forças anticapitalistas tinham ampla
maioria. Mas sucumbiram em poucos meses, devido à ausência de um
programa claro de mudanças e à ilusão de que, à falta dele, poderiam
bastar gestos simbólicos, como a eleição de uma mulher Mapuche para a
presidência da Assembleia.
Exemplos semelhantes abundam – e não é algo inteiramente novo. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx
lembrou Shakespeare para comparar o proletariado – a classe
revolucionária de seu tempo – a uma velha toupeira. Ela avança com
desenvoltura sob a terra, cava a possível ruína de seus opressores mas,
uma vez emersa à superfície, mostra-se cega e incapaz de encontar os
caminhos que levarão à transformação social.
Ainda assim, cada tentativa acrescenta uma peça ao quebra-cabeças da
reviravolta possível. Com o Movimento Passe Livre brasileiro aprendemos
que, em tempos de crise, vinte centavos podem levar milhões às ruas. O
Chile mostrou a força das coalizões de movimentos sociais díspares, mas
sintonizados na mesma busca de vida livre das lógicas neoliberais. Com
Corbyn, soubemos que os mesmos Estados que imprimem dinheiro para
multiplicar a riqueza dos rentistas podem fazê-lo em favor dos serviços
públicos de excelência e da garantia de ocupações dignas para todos.
Seja qual for o futuro do BSW e de Sarah Wagenknecht, estamos
compreendendo com sua emergência notável que a ultradireita não nasce
por geração espontânea – mas das grandes brechas abertas pelas ausências
da esquerda; que é possível reparar estes vazios; mas que, para isso,
os movimentos empenhados em superar o capitalismo precisam, como disse
certa vez Bertolt Brecht, “saber abandonar a si mesmos”
Pequim vê os candidatos como dois potes do
mesmo veneno. Trump promete elevar ainda mais as tarifas punitivas, algo
que a gestão Biden já fez. A certeza é que a guerra comercial seguirá:
com diplomacia cínica dos democratas ou a truculência republicana
Perguntado sobre qual dos candidatos às eleições presidenciais nos
Estados Unidos em novembro próximo seria melhor (ou pior) para a China,
Zhao Minghao, professor do Instituto de Estudos Internacionais e Centro
de Estudos Americanos da Universidade Fudan, afirmou que “Trump e Kamala
Harris são duas tigelas de veneno para Pequim.” (Financial Times, 26/8/2024).
O problema é que, parafraseando o que Mário Henrique Simonsen disse
sobre inflação e câmbio, existem venenos que aleijam e outros que matam.
Muito embora a China seja o saco de pancadas preferido tanto de
republicanos e democratas e um dos pontos em que as discordâncias entre
ambos sejam mais de forma do que conteúdo, o fato é que há diferenças
nas propostas dos dois candidatos em relação à China que precisam ser
levadas em conta. Se tais diferenças nos discursos irão resultar em
linhas de ação muito diferentes já é outra questão.
Começando pelos discursos de Trump e Kamala nas respectivas
convenções que os sacramentaram como candidatos de seus respectivos
partidos para as eleições de novembro, é importante notar que Kamala fez
uma única menção à China ao passo que Trump mencionou a China 14 vezes.
Segundo o Financial Times (26/08/2024), “Harris mencionou a
China apenas uma vez em seu discurso na convenção democrata, prometendo
garantir ‘que a América — não a China — vença a competição pelo século
XXI’”. Trump, por outro lado, referiu-se à China 14 vezes na Convenção
Nacional Republicana no mês passado, incluindo a bazófia de que ele
havia mantido Pequim “à distância” durante sua presidência e lamentando a
perda da Base Aérea de Bagram no Afeganistão, que alegou estar “a uma
hora de distância de onde a China fabrica suas armas nucleares”, uma
ameaça implícita.
A desistência de Biden e sua substituição por Kamala Harris como
candidata do Partido Democrata para as eleições de novembro pegou todo
mundo de surpresa e há pouca informação sobre o que ela pensa ou
pretende fazer em relação à China, ao passo que todos sabem o que Trump
pensa sobre o assunto. O que cada um fará, caso seja eleito, entretanto,
depende de uma série de fatores.
Trump tem dito que elevará as tarifas de importação dos produtos
chineses para 60%. Na prática isso equivale a fechar o mercado
norte-americano para produtos chineses. Se, de um lado, a medida poderia
causar algum impacto na economia chinesa, por outro lado é difícil
imaginar os Estados Unidos abrindo mão de uma hora para outra de tudo
que importa da China. Muito do que os Estados Unidos importam de
empresas chinesas eles não produzem internamente e nem possuem
fornecedores alternativos. Os Estados Unidos importaram US$ 427 bilhões
em bens da China em 2023. Basta imaginar o quanto uma tarifa de 60%
sobre essas importações impactaria na inflação nos Estados Unidos e no
bolso dos consumidores norte-americanos.
É preciso considerar ainda que não há consenso sobre o assunto entre
republicanos. A ala mais tradicional dos republicanos é avessa a tarifas
de importação elevadas, enquanto Trump e alguns dos seus assessores
diretos são protecionistas radicais. Apesar de as empresas
norte-americanas que competem com as importações chinesas serem a favor
de tarifas de importação mais altas, a maioria das grandes corporações
com sede nos Estados Unidos não pode abrir mão do mercado chinês e não
vê com bons olhos uma escalada protecionista.
Segundo a agência Reuters (26/08/2024), desde que o presidente Joe
Biden anunciou, em maio, uma quadruplicação das tarifas sobre veículos
elétricos chineses para 100%, uma duplicação dos impostos sobre
semicondutores e células solares para 50%, bem como novas tarifas de 25%
sobre baterias de íons de lítio e outros bens estratégicos, incluindo
aço, para proteger as empresas americanas do excesso de produção
chinesa, mais de 1.100 comentários públicos foram postados no site do
USTR (Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, o
equivalente ao Ministério do Comércio) expressando preocupações com os
aumentos de custos gerados pelas novas tarifas. Até o momento a
aplicação das novas tarifas vem sendo adiada, o que revela falta de
consenso sobre o assunto.
Kamala Harris, por seu turno, também não renunciará às tarifas.
Apesar de todas as críticas que fez a Trump, Joe Biden não só manteve as
tarifas que Trump impôs à China na guerra comercial iniciada em 2018,
como acrescentou novas restrições. Não haveria por que pensar que com
Kamala Harris seria diferente, sobretudo se ela mantiver cuidando do
assunto as mesmas pessoas que estiveram a cargo disso no governo Biden,
como o secretário de Estado Antony Blinken, seu vice Kurt Campbell e o
conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, bem como outros altos
funcionários que foram fundamentais para políticas agressivas em relação
à China. Mas dificilmente um eventual governo de Kamala Harris
adotaria uma tarifa de 60% como Trump diz que vai fazer. Possivelmente
recorreria a tarifas específicas sobre determinados produtos, de acordo
com a política industrial implementada pelo governo Biden, como já vem
ocorrendo.
A respeito dessa questão o Wall Street Journal (13/08/2024)
afirma o seguinte: “Patrick Zweifel, economista-chefe da Pictet Asset
Management, estima que, se a presidência de Kamala Harris mantiver a
política tarifária mais seletiva do governo Biden, poderá reduzir talvez
0,03 ponto percentual do crescimento econômico chinês no próximo ano.
Ao aumentar as tarifas para 60% sobre todos os produtos chineses, como
Trump propôs, o impacto seria muito maior, talvez em 1,4 ponto
percentual, o que, em suas previsões, reduziria o crescimento [da China]
em 2025 para cerca de 3,4%, de 4,8% esperados. O UBS estima que as
tarifas de 60% sobre as importações norte-americanas de produtos
chineses impediriam o crescimento do PIB em cerca de 2,5 pontos
percentuais nos 12 meses após a imposição, embora o arrasto possa ser de
apenas 1,5 ponto percentual se a China tomar ações compensatórias.
Entre essas ações os formuladores de políticas chineses poderiam deixar
sua moeda enfraquecer ainda mais, estender descontos de impostos e
outras vantagens aos exportadores e reduzir as taxas de juros. Eles
poderiam tentar forçar os EUA a reconsiderar, retaliando como aumentar
as tarifas sobre produtos dos EUA, reter o fornecimento de minerais
críticos e possivelmente vender ativos dos EUA, como títulos do Tesouro,
de acordo com o Goldman Sachs.”
Visto de conjunto, apesar da convergência bipartidária em relação à
China, considerada tanto por republicanos e democratas como uma
“potência revisionista”, um competidor estratégico e uma ameaça para o american way of live,
certamente a política externa de Harris em relação à China seria de
gerenciamento das relações bilaterais por meio dos canais diplomáticos
convencionais. Já para Trump, o objetivo seria o de “vencer” a China em
uma nova guerra fria, o que certamente o levaria a desprezar a
diplomacia tradicional e partir para ações intempestivas cujas
consequências poderiam ser catastróficas, sobretudo se envolvessem
Taiwan e o Mar do Sul da China.
Nunca é demais lembrar que se o “pivô para China” foi uma ideia do
democrata Obama, as ações recentes mais abertamente anti-China foram
iniciadas no governo Trump. De acordo com o Financial Times (21/8/2024),
“Durante seu primeiro mandato, Trump reviveu a aliança Quad com Japão,
Austrália e Índia, promulgou a Lei de Viagens de Taiwan, permitindo que
funcionários de alto nível de cada país a visitassem e iniciou
hostilidades comerciais contra a China. Outros apontaram para o
antagonismo de Trump em relação a Pequim sobre a pandemia de Covid-19,
que ele rotulou de “vírus da China”.”
Em artigo publicado na Foreign Affairs (01/08/2024) intitulado “Does China Prefer Harris or Trump? Why Chinese Strategists See Little Difference Between the Two”,
três acadêmicos da Universidade de Pequim (Wang Jisi, Hu Ran, and Zhao
Jianwei) afirmam que “Começando com o comércio, o governo Trump iniciou
com tarifas punitivas sobre as importações chinesas e depois expandiu
sua campanha para incluir maior escrutínio e restrições aos
investimentos chineses, controles de exportação de alta tecnologia mais
rígidos e ações direcionadas contra empresas chinesas específicas com
grandes presenças no exterior, como a Huawei. Em questões de segurança, o
governo Trump também tomou novas medidas para manter a supremacia dos
EUA no que os estrategistas agora chamam consistentemente de região
‘Indo-Pacífico’, um termo geográfico que havia sido usado apenas
ocasionalmente antes. O governo Trump deu a Taiwan garantias especiais
de segurança e minimizou a política de longa data de ‘uma China’;
colocou novos recursos no Quad (o agrupamento da Austrália, Índia, Japão
e Estados Unidos) em um esforço para equilibrar coletivamente a China; e
intensificou as atividades militares dos EUA no Pacífico Ocidental para
desafiar as reivindicações territoriais da China.”
Afirmam ainda que “Quanto à relação política entre os Estados Unidos e
a China, Trump não tinha visões rigidamente ideológicas sobre o sistema
e a liderança chineses, mas permitiu que seus funcionários do governo e
o Congresso dos EUA criticassem estridentemente o partido governante da
China e sua governança doméstica, particularmente suas políticas em
relação a Xinjiang e Hong Kong. E como seu governo adotou uma narrativa
mais ampla de ‘ameaça da China’, prejudicou gravemente os intercâmbios
acadêmicos, científicos e sociais que existiam há décadas entre os dois
países. Na diplomacia multilateral, Washington também começou a
demonizar Pequim e a contrariar fortemente sua influência internacional,
tentando restringir o papel global em expansão da China em sua
Iniciativa do Cinturão e Rota e em seu crescente envolvimento nos órgãos
das Nações Unidas.”
Já com relação a Biden, afirma: “Biden trabalhou em estreita
colaboração com o Congresso para implementar investimentos em
infraestrutura em larga escala e políticas industriais destinadas a
tornar os Estados Unidos mais competitivos e menos dependentes da China.
Para competir melhor em tecnologias avançadas, o governo Biden também
buscou controles de exportação mais rígidos, novas tarifas sobre os
produtos de tecnologia verde da China e esforços internacionais mais
coordenados, como a aliança Chip 4 – uma parceria de semicondutores
entre Japão, Coreia, Taiwan e Estados Unidos. Na Ásia-Pacífico, o
governo Biden intensificou sua presença militar no Estreito de Taiwan e
no Mar da China Meridional e acrescentou uma dimensão econômica regional
às alianças de segurança asiáticas dos Estados Unidos. Biden também
reuniu líderes do G-7 para impulsionar a iniciativa Build Back Better
World e a Parceria para Infraestrutura e Investimento Global – ambas
destinadas a fornecer uma resposta ocidental à Iniciativa do Cinturão e
Rota da China. Motivado pelos crescentes laços da China com a Rússia em
meio à guerra na Ucrânia, o governo Biden impôs sanções às empresas
chinesas que negociam com a Rússia. Washington também deu à disputa com a
China uma nova camada de ideologia – o que o governo chama de
“democracia versus autocracia” – em um esforço para construir uma grande
aliança contra Pequim.”
Um outro fato que talvez possa influir nas relações com a China,
ainda que indiretamente, num eventual governo de Kamala Harris, é o seu
vice, Tim Walz, ter uma longa história de interação com aquele país,
ainda que de forma nem sempre amigável. Conhecer bem a China não
significa necessariamente ser amigo da China.
Conforme informou o Financial Times (21/8), “Walz viveu na
China como um jovem professor, não como diplomata, e voltou dezenas de
vezes ao longo de sua vida adulta, primeiro como instrutor para
estudantes americanos interessados na China e depois como político (…)
Ainda assim, a conexão de Walz com o país vai além do turista americano
normal. Antes de ser eleito para o Congresso, Walz e sua esposa dirigiam
uma empresa que trazia estudantes americanos para a China.”
Ainda segundo o jornal, “No Congresso, Walz assumiu posições que
incomodaram Pequim, incluindo o apoio ao ativista democrático de Hong
Kong Joshua Wong. Quando Wong foi preso, em 2017, por seu envolvimento
na ‘revolução dos guarda-chuvas’ de Hong Kong, Walz twittou uma selfie
que eles haviam tirado em Washington um ano antes, junto com uma citação
de Wong: “Você pode trancar nossos corpos, mas não nossas mentes!”.
No mencionado artigo da Foreing Affairs, os autores concluem que “no
geral, do ponto de vista chinês, as políticas chinesas de um novo
governo Trump e de um governo Harris provavelmente serão
estrategicamente consistentes. Como presidentes, ambos os candidatos
apresentariam desafios e desvantagens para a China, e nenhum deles
parece querer um grande conflito militar ou cortar todos os contatos
econômicos e sociais. Portanto, é improvável que Pequim tenha uma
preferência clara. Além disso, a China tem fortes incentivos para manter
um relacionamento estável com os Estados Unidos e evitar confrontos ou
grandes interrupções. Dadas as sensibilidades políticas em relação à
eleição e às relações EUA-China, qualquer ação chinesa para interferir
provavelmente sairia pela culatra.” Trata-se de uma posição sensata da
China e coerente com seus cinco princípios de política externa baseados
na não-interferência em questões internas de outros países.