sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Democracia está em declínio em metade dos 60 países que votam no ‘ano das eleições’

Por Jéssica Petrovna

Ranking das democracias no mundo

VERMELHO CLARO AUTOCRACIA

ELEITORAL

CINZA

ZONA

CINZA

ROXO

DEMOCRACIA

LIBERAL

VERMELHO ESCURO

AUTOCRACIA

FECHADA

LILÁS

DEMOCRACIA

ELEITORAL

Estudo alerta para retrocessos em 31 dos 60 países com eleições em 2024, considerado ‘tudo ou nada’ para o sistema democrático


Quando 2024 chegar ao fim, metade da população mundial terá participado de eleições, espalhadas por dezenas de países. Na metade deles, no entanto, a democracia está em declínio. É que, a exemplo do que se viu na Venezuela, o voto pode não se traduzir em poder popular de fato.

O relatório anual do V-Dem, instituto com sede na Universidade de Gothenburg, na Suécia, que mede o nível de democracia no mundo, aponta declínio em 31 dos 60 países com eleições este ano. A lista inclui a Índia, onde Narendra Modi conquistou o terceiro mandato consecutivo, e o México, que elegeu Claudia Sheinbaum, a sucessora que Andrés Manuel López Obrador.

“Por um lado, a democracia nunca foi apenas sobre eleições. Por outro, o modelo da zona cinza, em que os países tentam emular a democracia, parecer que são democracias embora não sejam seja, ficou mais comum nos últimos anos”, explica o diretor do V-Dem, Staffan I. Lindberg, em entrevista ao Estadão.

Em apenas três países há sinais de melhora. São eles: Macedônia do Norte, Maldivas e a Tunísia. Em todos os casos, ocorre o que o instituto define como democratização “U-Turn”, ou seja, um inversão de marcha, quando os indicadores melhoram depois de piorar. O Brasil é apontado como um destaque nessa categoria.

Os outros 26 países com eleições nacionais previstas para 2024 não apresentaram mudanças significativas no último ano a ponto de indicar uma tendência, seja de democratização ou de autocratização. É aqui que entram os Estados Unidos, onde as eleições são consideradas um grande teste para a democracia.

O ‘tudo ou nada’ para a democracia

Com tantas eleições em disputa, o estudo destaca que este ano pode ser considerado o “tudo ou nada” para a democracia. No caso dos países que avançam em direção à autocracia, as votações são processos críticos. Por um lado, tem o potencial para provocar mudanças. Por outro, podem ser instrumentos de poder para legitimar regimes e aprofundar a autocratização.

Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi, acusado de erodir a democracia e perseguir minorias mulçumanas, saiu da maior eleição do mundo com um resultado meio amargo: venceu, mas ficou bem aquém da maioria que esperava e viu a oposição sair fortalecida no Parlamento.

“Com a aura de invencibilidade de Modi arranhada, uma vitória da oposição no próximo ciclo eleitoral parece, de repente, inteiramente factível”, escreveu o analista político e professor de Relações Internacionais da FGV Oliver Stuenkel em coluna no Estadão. Ele notou que o resultado das urnas foi claro: o eleitorado preferiu preservar o sistema democrático, mesmo com suas imperfeições.

“É importante destacar que muito do movimento da Índia em direção ao autoritarismo está conectado BJP (Bharatiya Janata Party, o partido de Narendra Modi)”, lembra Ursula Daxecke, cientista política da Universidade de Amsterdã (UvA), especializada em estudos sobre a democracia. Ela afirma que há problemas crescentes no país, como controle sobre a imprensa, pressão sobre acadêmicos e ativistas e violência contra minorias religiosas. “Isso gera reações contrárias.”

 Apoiadores de proeminente opositor indiano, soltam fogos para celebrar a decisão da Suprema Corte que libertou Arvind Kejriwal após cinco meses na prisão.

 Apoiadores de proeminente opositor indiano, soltam fogos para celebrar a decisão da Suprema Corte que libertou Arvind Kejriwal após cinco meses na prisão.  Foto: Money Sharma/AFP

Outro sinal de mudanças veio da África do Sul ― onde os índices democráticos estão em lento declínio há mais de uma década, segundo o V-Dem. O partido de Nelson Mandela (Congresso Nacional Africano) perdeu a maioria no Parlamento pela primeira vez em 30 anos de democracia e precisou formar alianças para governar.

Já no caso mexicano, os resultados podem inspirar menos otimismo. O popular López Obrador garantiu a continuidade do seu partido, Morena, no poder com a vitória esmagadora de Claudia Sheinbaum para presidência, com maioria na Câmara e no Senado.

Antes de passar a faixa para a pupila, ele conseguiu aprovar uma reforma do Judiciária sem precedentes. Em caso único no mundo, todos os juízes serão escolhidos por voto popular, inclusive, os ministros da Suprema Corte. Os críticos acusam o governo de minar a independência da Justiça e temem que o México volte a viver sob a hegemonia de um único partido, como aconteceu até o início da transição democrática nos anos 2000.

É que nos processos de corrosão das democracias, a Justiça tem sido alvo frequente de governos com aspirações autoritárias.

“O mais comum hoje em dia são os retrocessos democráticos, os processos em que as instituições são gradualmente corroídas”, contextualiza Nik de Boer, líder do projeto de pesquisa da UvA sobre os fundamentos da democracia. “Uma característica comum é a eliminação dos freios institucionais, frequentemente envolvendo a politização do Judiciário. Tribunais constitucionais que, em tempos normais, atuariam como freio tornam-se instrumentos do governo quando politizados.”Deputados se juntam a protesto contra a reforma do Judiciário no México. "Sem Justiça, não há futuro", diz frase estampada nas camisetas.

Deputados se juntam a protesto contra a reforma do Judiciário no México. "Sem Justiça, não há futuro", diz frase estampada nas camisetas. Foto: Silvana Flores/AFP

Limitar a atuação da oposição e das organizações não-governamentais, restringir a liberdade de imprensa e politizar a burocracia do Estado, afirma de Boer, são outras formas formas de minar a democracia por dentro. Além, é claro, de manipular as eleições.

Em El Salvador, as eleições deste ano confirmaram o domínio de Nayib Bukele, no país onde todos os ganhos democráticos conquistados a partir da década de 1990 foram revertidos nos últimos anos, segundo o relatório do V-Dem. Sob a justificativa de combater o crime, Bukele implementou o plano autoritário, que inclui prisões arbitrárias, violações dos direitos humanos, cerco à imprensa, e manobras para se manter no poder, como mostrou o Estadão em série de reportagens.

Bukele, em tese, não poderia disputar a reeleição, mas ignorou a regra com aval da Corte Constitucional, nomeada por ele, e saiu vitorioso. Conquistou mais de 80% dos votos, e uma base de apoio que chega a 58 dos 60 deputados na Assembleia de El Salvador.

Eleições na mira de autocratas

Diferentes estudos apontam que as eleições estão na mira de autocratas em busca de poder. O relatório anual da Freedom House, organização com sede em Washington, apontou que as eleições manipuladas, como a de El Salvador, foram uma das principais causas para o declínio da liberdade no mundo.

Essa manipulação pode ocorrer antes, com o controle da disputa — restrições de candidaturas, mudanças nas regras eleitorais, uso do Estado em benefício do grupo no poder — ou depois, com a tentativa de alterar os resultados.

O estudo da Fredom House foi publicado antes das eleições na Venezuela, mas a ditadura de Nicolás Maduro pode ser enquadrado em praticamente todas as formas de manipulação. Impediu a principal líder da oposição, María Corina Machado, de disputar; criou regras que praticamente impediram milhões de imigrantes de votar; restringiu a presença de observadores internacionais; e declarou vitória suspeita de fraude, sem apresentar os dados das urnas.

A Venezuela se encaixa no que Lindberg chama de extremo da escala de autocracias, assim como a Rússia, onde Vladimir Putin venceu este ano mais uma eleição de cartas marcadas, avançando para se tornar o líder mais longevo desde a revolução.

“A Venezuela está no extremo dessa escala, onde as eleições são apenas um teatro, uma farsa. É quase o mesmo que acontece em países como a Rússia e Belarus. Existe um espectro bastante amplo até chegarmos à Hungria, onde as condições são muito melhores, mesmo que ainda não seja democracia”, afirma.

EUA e o grande teste para a democracia

Em 5 de novembro, os americanos vão fechar o ciclo de eleições decisivas, embora outros países continuem votando pelo menos até 22 de dezembro. A escolha se dará entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump, apontado pelos críticos como uma ameaça à democracia.

O líder republicano é réu por tentar reverter a derrota para Joe Biden em 2020, com pressão sobre autoridades eleitorais, esquema de eleitores falsos e o ataque ao Capitólio. Enquanto tenta voltar à Casa Branca, o republicano conseguiu evitar o julgamento com o recurso na Suprema Corte, de maioria conservadora, que concedeu lhe concedeu ampla imunidade.

Em caso de vitória, os críticos alertam para o que seria Donald Trump sem freios. O republicano rompeu com antigos aliados, que se posicionaram contra ataque ao Capitólio, consolidou o domínio sobre o partido e tem buscado se cercar de pessoas mais leais ao seu projeto político.

É o caso do companheiro de chapa J.D. Vance. Convertido de crítico a defensor ferrenho, ele afirma que, se estivesse no lugar do vice-presidente Mike Pence naquele 6 de janeiro de 2021, teria feito mais para impedir que o resultado fosse certificado pelo Congresso americano. Por se recusar a anular a eleição, Pence entrou na mira dos radicais, que gritaram “enforque Mike Pence” na invasão do Capitólio, e na lista de desafetos de Trump.

‘Desta vez, veríamos muito menos controle dos “adultos na sala”, ou seja, menos pessoas para moderar as ações de Trump. Na primeira vez, ele não tinha um grupo coeso ao seu redor que acreditasse no que ele estava fazendo, e agora ele está cercado por pessoas que apoiam suas intenções, o que resulta em menos freios e contrapesos’, avalia o historiador Jack Thompson, professor de Estudos Americanos na Universidade de Amsterdã.

Em caso de derrota, o temor é que as cenas de violência se repitam. Mesmo sem qualquer evidência de irregularidades no sistema eleitoral os EUA, o republicano nunca reconheceu a derrota na última eleição que afirma, sem provas, ter sido roubada, e tem dito que só aceitará os resultados desta vez se a disputa for “justa”.

Se Trump ganhar ou perder, o risco de distúrbios significativos ou desafios à democracia nos Estados Unidos ainda é alto. Staffan I. Lindberg, diretor do instituto V-Dem

“Muitos cientistas políticos estão preocupados com algum tipo de conflito civil de baixa intensidade. Especialmente se Trump perder. Se eles não aceitarem o resultado, como não aceitaram da última vez. Dois terços dos membros do Partido Republicano ainda acreditam que a eleição foi roubada”, alerta Lindberg.

Do outro lado, o republicano, alvo de duas tentativas de assassinato durante a campanha, culpou o discurso dos seus adversários pelos ataques. Ele disse à Fox News que o atirador encontrado no seu campo de golfe agiu de acordo com a retórica democrata.

“A retórica deles está fazendo com que eu seja alvejado, quando sou eu quem vai salvar o país, e são eles que estão destruindo o país, tanto por dentro quanto por fora”, disse. Trump rejeitou o rótulo de “ameaça à democracia” e apontou os democratas como o perigo para os Estados Unidos. “Isso é chamado de inimigo interno. Eles são a verdadeira ameaça”.

 Agentes na cena do crime onde Donald Trump foi alvo de tiroteio investigado como tentativa de homicídio.

 Agentes na cena do crime onde Donald Trump foi alvo de tiroteio investigado como tentativa de homicídio.  Foto: Chandan Khanna/AFP

Em sua maioria, os americanos expressam preocupação com a violência política em pesquisas. Mas as sondagens também têm alertado para o número crescente daqueles que estariam dispostos ao vale-tudo.

A primeira do Public Religion Research Institute sobre o tema, ainda em 2021, mostrou que 15% dos entrevistados concordaram com a seguinte afirmação: “Como as coisas saíram tanto dos trilhos, os verdadeiros patriotas americanos talvez tenham que recorrer à violência para salvar nosso país”. No ano passado, esse número era de 23%, chegando a 33% no recorte dos republicanos.

Outra pesquisa feito pela cientista político da Universidade de Chicago Robert Pape e noticiada pelo NY Times após a primeira tentativa de assassinato contra Trump mostra que a propensão à violência com fins políticos não é exclusividade da direita. Entre os entrevistados, 10% disseram apoiar o uso da força para impedir que o republicano se torne presidente. Outros 7% disseram o contrário: que apoiam o uso da força para levá-lo de volta a Casa Branca. E a quantidade de armas espalhadas pelos EUA, torna os dados ainda mais alarmantes.

“Estamos saindo do âmbito conhecido para o incerto”, afirma Jack Thompson. “Não se pode afirmar com certeza se a violência política vai ocorrer, mas as condições para que isso aconteça mudaram de tal forma que a violência se tornou mais provável, independente do resultado das eleições.”

Fonte:  https://www.estadao.com.br/internacional/democracia-esta-em-declinio-em-metade-dos-60-paises-que-votam-no-ano-das-eleicoes/

A explosão “just in time” dos pagers e as novas tecnologias da morte

Por Deivison Faustino e Walter Lippold

 Fonte: CNN World

Estamos em um daqueles momentos da história que pode ser considerado um “ponto de não retorno”: colapsos climáticos generalizados, desemprego em massa intensificado pela inteligência artificial (IA), plataformização da política sob hegemonia técnica e ideológica da extrema direita e a assustadora sofisticação das tecnologias de morte. Precisamos discutir urgente a dimensão geopolítica e a base material das tecnologias eletrônicas e digitais.



Como é possível e o que significa a explosão coordenada de pagers e walkie-talkies no Líbano? Estamos em um daqueles momentos da história que pode ser considerado um “ponto de não retorno”: colapsos climáticos generalizados, desemprego em massa intensificado pela inteligência artificial (IA), plataformização da política sob hegemonia técnica e ideológica da extrema direita e a assustadora sofisticação das tecnologias de morte. Precisamos discutir urgente a dimensão geopolítica e a base material das tecnologias eletrônicas e digitais.

Na última terça-feira, o mundo foi surpreendido com a notícia de um ataque terrorista promovido pelo Estado de Israel que feriu mais de 2800 pessoas e matou vinte – entre os quais estão a população civil síria e libanesa e os militantes do partido islâmico paramilitar Hezbollah – através da explosão coordenada de aparelhos de pagers Modelo AR-924. Os aparelhos foram distribuídos pela própria organização aos militantes, para evitar a interceptação de seus celulares, algo sabidamente possível desde as denúncias de vigilantismo digital em massa oferecidas por Snowden em referência ao Projeto PRISM, em 2013. Há pelo menos uma vítima infantil: Fatima Abdullah, de nove anos, que foi atingida pela explosão no vilarejo de Saraain, Líbano.

Pager Ar-924, imagem do site da Gold Apollo, fabricado em Taiwan.


No dia seguinte, enquanto estávamos distraídos com o retorno ilegal do X (antigo Twitter) à internet brasileira, o mundo foi surpreendido, novamente, com a notícia de novas explosões fatais no Líbano, agora promovidas por walkie-talkies IC-V82 VHF, fabricados pela corporação japonesa ICOM Inc., também utilizados por militantes do Hezbollah e por autoridades estatais libanesas. Há relatos sobre outros dispositivos, como sistemas de placa solares que explodiram em bases da organização libanesa, mas também fotos de dispositivos biométricos de identificação. O que está acontecendo? Como isso é possível e o que nos informam sobre a geopolítica capitalista contemporânea e sua base infraestrutural?

Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, chamamos atenção para a centralidade da dimensão material e infraestrutural das tecnologias digitais. Sem desconsiderar a importância decisiva das camadas lógicas e de aplicações da internet para a compreensão das transformações sociais em curso, argumentamos que o digital também é real (material) e, portanto, sujeito às leis causais da física e da economia política:

Ao contrário do que se pode intuir, o virtual não é contrário do real nem pode ser confundido com o digital. O digital é o armazenamento e o processamento de dados em computadores em forma de códigos que representam letras, números, imagens, sons etc., enquanto o virtual é um atributo potencial da realidade que pode ser apreendido pelo trabalho do pensamento (Faustino, Lippold, 2023).

Ao mesmo tempo, tentamos demonstrar que, com o desenvolvimento vertiginoso das tecnologias digitais, as guerras contemporâneas dispõem de novas e mais eficazes tecnologias de destruição e morte que permitem um novo repertório de ataques cibernéticos tanto à ambientes virtuais (vigilantismo e espionagem) quanto físicos (ataques a instalações militares e nucleares). Sabemos que “o Robocop do Governo é frio, não sente pena…” (Racionais MC’s, 1997). Não é de hoje que se estuda a ciborguização da guerra e o ápice de seu desenvolvimento com a introdução de drones no campo de batalha (Chamayou, 2015).

No entanto, o genocídio palestino – o primeiro genocídio acompanhado e ignorado em “tempo real” através da internet – tem nos provocado a rediscutir as implicações dessas inovações para as formas de vigilância e assassinato em massa. Mais do que isso, levanta a suspeita de que estamos diante de um novo patamar sociotécnico de prática de genocídio, o que exige atenção.

As condições sociotécnicas do genocídio

Longe de uma postura tecnofóbica, mas atentos às diferentes formas pelas quais os seres humanos servem-se de meios técnicos e sociais para satisfazer determinadas necessidades, há que se reconhecer que no capitalismo o desenvolvimento das capacidades produtivas acaba sendo direcionado mais para a autodestruição humana do que para a satisfação de suas necessidades.

Da expropriação portuguesa e espanhola às terras indígenas ao genocídio dos hererós na Namíbia, da Shoah nazista contra os judeus europeus ao atual genocídio palestino cometido pelo Estado de Israel, o desenvolvimento dos meios sociotécnicos representou a ampliação da capacidade de matar. Não é possível assassinato em massa sem a existência de uma massiva indústria da morte que articule sempre o que há de mais sofisticado em termos bélicos e informacionais.

Podemos começar a mostrar a relação entre grandes corporações e a destruição das liberdades observando o período nazista. Há provas consistentes da importância decisiva da tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM para a execução do holocausto. Os códigos da IBM eram gravados nos braços dos prisioneiros do nazismo e permitiam a identificação, a seleção e o controle massivo do processo de extermínio. Mas a atual e persistente demolição dos direitos não é tão evidente como a praticada no período nazista (Silveira, 2015, p. 12).

Alguns exemplos recentes são o emprego da IA Lavender na eleição de alvos palestinos a partir da coleta para perfilamento de dados disponibilizados pelas plataformas digitais ao exército israelense e a disseminação de vírus em instalações militares inimigas. Têm sido cada vez mais frequentes as notícias de uso de IAs em guerras, assim como ciberataques, e os primeiros de grande potencial destrutivo foram executados pelos vírus Stuxnet, flame, Duqu e Gauss, utilizados no início da década de 2010 para sabotar o programa nuclear iraniano.

Em termos de ciberarmas e guerra eletrônica, Israel é uma vanguarda tecnológica que usa a Palestina, mas também o Líbano e Síria, como um nefasto laboratório-vitrine para desenvolver e propagandear suas armas de última geração. Alguns exemplos são o dispositivo de guerra eletrônica scorpius e o drone Harop da Israel Aerospace Industries (IAI),1 além da IA Lavender – produzida pela Unit 82002 e do Pegasus, o famoso spyware negociado pelo governo Bolsonaro com a NSO, empresa israelense.

A capacidade de difusão da tecnologia, mesmo aquela considerada obsoleta, permite a inovação nas técnicas de ataque. Certamente é um ato de terrorismo de Estado que, apesar de toda ideologia midiática, desumaniza os alvos, para se regozijar com a eficiência do ataque. Temos ouvido o termo “guerra cirúrgica” desde 1991, com a invasão do Iraque e, posteriormente, as guerras nas ex-Iugoslávia. Esses termos visam iludir a opinião pública de que somente os “bad guys” serão neutralizados, dentro da lógica maniqueísta estadunidense. “Projetar poder, sem projetar vulnerabilidade” (lema da dronificação e de muitos ataques remotos) (Chamayou, 2015). O que se tem visto, na realidade, é justamente a precisão em destruir vidas civis, instalações públicas e infraestruturas vitais no território inimigo.

Mas o que isso tem a ver com pagers e walkie-talkies dilacerando corpos de militantes e civis nas ruas do Líbano? Desde as denúncias de Snowden, é sabido que os celulares são vulneráveis. Os dispositivos móveis podem ser vigiados por agentes políticos de todo tipo para fins de coleta de dados que permita o direcionamento de propaganda, perfilamento de comportamento e até localização georreferenciada de alvos militares. O militante subversivo que ignora essa realidade técnica – em contextos bélicos de altos interesses geopolíticos – é, antes de mais nada, um alvo fácil.

A preocupação com esse fato aumentou na Palestina quando se revelou que Israel estava utilizando programas de inteligência artificial para selecionar os possíveis alvos dos drones bélicos automatizados. O programa de inteligência artificial varria as redes sociais em busca de palavras-chave consideradas subversivas ou contato de usuários com membros de grupos políticos/militares inimigos a fim de eliminá-los.

Uma vez identificados e selecionados, os alvos eram rastreados por biometria facial e geolocalização instantânea – oferecidas por seus celulares – para então serem atacados. Se houvesse um alvo em um prédio de dez andares, todo o prédio seria – e foi – bombardeado. Processo que dizimou não apenas dezenas de milhares de palestinos em Gaza e Cisjordânia como varreu essas cidades e sua infraestrutura física do mapa.

Tendo esse cenário em mente, as lideranças islâmicas passaram a buscar meios alternativos de comunicação. Ao que se sabe, as lideranças do Hezbollah proibiram que seus quadros utilizassem celulares e ofereceram como alternativa o uso do pagers e walkie-talkies – que ainda são amplamente utilizados em países cujo acesso à tecnologia informacional de ponta ainda é privilégio de alguns.3 Mas a organização islâmica não contava com um fator completamente inesperado: a possibilidade de intervenção israelense na cadeia produtiva dos dispositivos móveis.

Os pagers e walkie-talkies explodiram ferindo milhares e matando mais de dez pessoas na primeira onda, catorze na segunda, deixando centenas em estado crítico com ferimentos graves, colocando a população libanesa em pânico. Mais do que um ataque de passagem cibernética para cinética, como foi o stuxnet, podemos denominá-lo como operação de infiltração logística para sabotagem.

Mas como isso foi possível?

Ainda há muito a ser explicado mas, aparentemente, estamos diante de uma sabotagem na cadeia de suprimentos e peças e componentes dos pagers, supostamente fabricados pela empresa Gold Apollo, de Taiwan. A empresa logo anunciou que este lote foi feito em Budapeste, Hungria, pela empresa BAC Consulting KFT, que possui um acrônimo do nome de sua fundadora e CEO, a cientista Cristiana Bársony-Arcidiacono. O governo de Orbán negou que os pagers estiveram na Hungria, e que a BAC é somente uma intermediária comercial.

A princípio se desconfiou de um ciberataque que teria hackeado o hardware dos dispositivos superaquecendo-os ou que as baterias tivessem sido programadas para explodir a partir de determinado ciclo. Os pagers AR-924 possuem uma bateria de lítio que tem 85 dias de duração, sendo recarregáveis por USB, por isso não são usados só por militantes, mas também por civis devido às constantes quedas de energia elétrica. Mas é pouco plausível que elas tenham descarregado na mesma velocidade para milhares de pessoas.

O mais provável é que uma carga de um a três gramas de tetranitrato de pentaeritritol (PETN) tenha sido injetado na bateria de lítio íon ou em um componente da placa a mando da inteligência israelense durante o processo de fabricação em algum elo da cadeia de fornecimento. Provavelmente, a explosão sincronizada foi acionada de forma remota, via sinal de rádio.

Isso difere do histórico ataque do stuxnet, reconhecido em 2010, em que a tecnologia cibernética buscou efeitos cinéticos. O alvo do stuxnet, produzido pelos Estados Unidos e por Israel, era o controle dos programas digitais das centrífugas de enriquecimento de urânio no Irã. Mas o tiro saiu pela culatra, segundo o documentário Zero Days (2016), o vírus, com modificações efetivadas por Israel, saiu do controle e acabou infectando as cadeias logísticas digitais do próprio atacante, no caso os EUA.

Não é algo simples a passagem do cibernético ao cinético. Se assim fosse, com o avanço da internet das coisas (IoT) seria possível que smart-geladeiras, smart-lâmpadas, smart-dildos, smartescovas de dente controlados remotamente com IA, se tornem armas de guerra. Talvez já seja, se concordarmos que a tecnologia é guerra e política, por outros meios, Mas aqui não se trata de uma arma, no sentido que estamos analisando no presente artigo.

É importante lembrar que, ainda que atuem em conjunto, a guerra eletrônica difere-se da ciberguerra. Os primeiros sinais de guerra eletrônica foram em 1899, na Guerra Anglo-Boer, em solo africano, com a interferência no envio de código Morse por telégrafo. Depois com o uso de radiodifusão, na Guerra Russo-Japonesa em 1905, começaram a usar o jamming ou “empastelamento” da transmissão de ondas, prejudicando a transmissão do sinal de rádio. Fanon em Sociologia de uma Revolução (1959) analisa o jamming utilizado pelos colonialistas franceses para atacar as transmissões da rádio rebelde “A Voz da Argélia Combatente”. Podemos dizer que a guerra eletrônica e colonialismo são velhos conhecidos.

Este tipo de ataque que visa atingir soldados e militantes por meio de seus equipamentos, matando-os ou os ferindo gravemente nas mãos, lembra o uso da chamada spiked ammo, ou munição explosiva, que era inserida através de infiltração nas cadeias de suprimento de atores estatais e não estatais. Quando acionada, a munição explode a arma e as mãos de quem a opera. Armas como fuzis, lança-granadas e morteiros são as mais conhecidas para aplicação deste tipo de sabotagem. A técnica de spiked ammo foi primeiramente utilizada pelos ingleses na África, nos territórios do atual Zimbabue, para atingir os matabeles e xonas, em 1896. Utilizada na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ficou mais conhecida na Guerra do Vietnã, usada pelos Estados Unidos (Projeto Eldest Son) e recentemente na Guerra da Síria. O uso de spiked ammo faz parte do que se denomina guerra não convencional.

A explosão simultânea de pagers e walkie-talkies inaugurou um novo estágio na corrida necrotecnológica capitalista, porque retoma a velha guerra eletrônica a partir de um novo patamar que combina a interferência sigilosa na cadeia produtiva do dispositivo com uma engenharia social e logística que permitiu que os dispositivos alterados – cujo componentes foram produzidos em diferentes países – chegassem aos alvos e explodissem no momento desejado. Suspeita-se que as bombas tenham sido disparadas a partir de sinal de rádio emitido pelo próprio comando do Hezbollah. A conexão desse sinal com o desfecho explosivo ainda precisa ser estudada, mas já aponta para novas possibilidades de mortes orquestradas pelas grandes potências capitalistas.

Que lições podemos tirar do ocorrido?

Se em tempos de paz a dependência de tecnologia estrangeira, dentro dos quadros do imperialismo e do colonialismo digital fere diretamente a soberania nacional e a autodeterminação dos povos, agora sabemos de forma explícita da ameaça desta dependência durante uma guerra. A corrida bélico-tecnológica não se resume aos softwares, mas ocorre também em termos de hardware. Não esqueçamos da frase mais pedagógica dos então chefões da Google, Eric Schmidt e Jared Cohen: “O que a Lockheed Martin foi para o século XX, as empresas de tecnologia e segurança serão para o século XXI” (Cf. Assange, 2015, p.40), declarando o novo papel geopolítico das big techs.

A guerra eletrônica, a ciberguerra e estes novos ataques “não convencionais” possuem a sua materialidade, perpassadas pelas esferas de produção e circulação do capital, suas cadeias lógicas e empresas “sombrias”, que aparentemente mal sabem o que as terceirizadas fazem em seu nome. A cadeia logística de hardware, dos componentes eletrônicos necessita de meios de produção, ou seja, matéria-prima, ferramentas, força de trabalho e a nuvem digital que só podem existir a partir deste processo. Para a nuvem digital etérea existir, é preciso emitir vapor do resfriamento necessário para conter o superaquecimento dos processadores e placas.

Dentre as fantasias de nosso tempo está a negação da ubiquidade do capital e a materialidade implícita ao modo sociometabólico de reprodução. Para importantes intelectuais, o modo de produção capitalista estaria em uma espécie de regressão neofeudal, ou tecnofeudal que valoriza o valor pela rentabilização do intangível ou na própria circulação – convidando marxistas a saírem do “pensamento de fábrica”. No entanto, como afirma Terezinha Ferrari, a fábrica não deixou de existir, mas se expandiu, fabricando a cidade e frações cada vez mais substanciais da vida privada (Faustino, Lippold, 2023).

Terezinha Ferrari argumenta que a introdução da informática e da robótica no processo produtivo capitalista permitiram não a tão falada superação da linha fordista de produção, mas a sincronização dos tempos sociais do trabalho de forma a viabilizar a articulação de diferentes unidades produtivas em um contexto geográfico em que as vias públicas são convertidas em esteiras produtivas à céu aberto. Não à toa o jargão, por excelência, da fabricalização da cidade é o famoso “Just in time” criado pela Toyota Motor Corporation na década de 1940 e 1950, adotado como mantra ideológico da acumulação flexível.

As explosões no Líbano e na Síria, em uma espécie de fabricalização da guerra, parecem realizar esse mantra ao inaugurar a explosão just in time. O ocorrido nos coloca diante do fenômeno da manipulação e engenharia social da própria insurgência: Israel, com sua vanguarda tecnológica em vigilantismo digital, além das condições do parque de energia elétrica libanesa, levou o Hezbollah e civis a contornar o uso de telefones celulares, voltando a dispositivos como pagers e walk-talkies. Até que ponto tudo isso era parte do plano, só o tempo dirá. Mas o caso levanta o alerta para a complexidade dos meios técnicos e sociais empregados.

Notas
1Ver o site da necrocoporação IAI. É impressionante a diversificação do poderio bélico no catálogo da empresa.
2 Divisão de inteligência das forças armadas israelenses, estilo NSA, mas militar, mesma que fez o stuxnet.
3 Uma inovação tecnológica que lembra a sofisticação argelina contra o exército francês, quando a engenharia militar da Frente de Libertação Nacional da Argélia reorganizou sua estrutura para que cada membro só se comunicasse e conhecesse um número muito restrito de militantes (caso fosse capturado e torturado, não teria muitas informações para entregar).

Referências
ASSANGE, Julian Assange. WikiLeaks: quando o Google encontrou o WikiLeaks (trad. Cristina Yamagami). São Paulo, Boitempo, 2015.
CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do Drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023.
FERRARI, Terezinha. Fabricalização da cidade e a ideologia da circulação. São Paulo, Coletivo Editorial, 2008.
RACIONAIS MC’s. Mano Brown. Diário de um Detento. São Paulo  Cosa Nostra, 1997.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da Silveira. WikiLeaks e as tecnologias de controle. In: ASSANGE, Julian Assange. WikiLeaks: quando o Google encontrou o WikiLeaks (trad. Cristina Yamagami). São Paulo, Boitempo, 2015.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2024/09/19/a-explosao-just-in-time-dos-pagers-e-as-novas-tecnologias-da-morte/ 

Assim suicidam-se as democracias

 por

  Imagem: Édouard Manet, O Suicida (1877-81)

Como a Alemanha, símbolo da força do Ocidente, entrou em declínio acelerado e está se rendendo à ultradireita. Por que a coalizão neoliberal no governo meteu-se numa camisa-de força-política. Que esperar de uma nova esquerda, que emerge

Foi apenas a partir do século XVII, e graças a biólogos como o toscano Francesco Redi e o francês Louis Pasteur, que humanidade descartou a ideia de geração espontânea da vida. Prevalecia antes a noção, expressa entre muitos outros por Aristóteles, de que a matéria inanimada possui “princípios ativos”; e estes, em certas condições, germinam. Estas concepções estavam enraizadas não só no senso comum (acreditava-se que camisas sujas podiam dar origem a ratos), mas também nos meios científicos. Ainda no século XVI, o médico e filósofo renascentista Paracelso, um precursor da assepsia, descreveu a geração espontânea de seres complexos como sapos, roedores, enguias e tartarugas a partir de fontes como ar, água, madeira podre e palha… Uma crença semelhante parece cercar hoje a maior parte das análises sobre o crescimento de correntes políticas que ameaçam a democracia. Elas resultariam de uma espécie de “onda de ultradireita” que, assim como emergiu, algum dia retornará às profundezas – guardando pouca relação, portanto, com as escolhas políticas adotadas pelos governos dos países acometidos.

No início de setembro, a “onda” chegou forte a dois estados do Leste da Alemanha – a Turíngia e a Saxônia – que elegeram seu parlamento e governo. Pela primeira vez, desde Hitler, um partido de extrema-direita venceu um pleito estadual. Na Turíngia, onde 63% da população vive em áreas rurais, a AfD (Alternativa para a Alemanha, xenófoba e supremacista) foi a mais votada, saltando de 23,4% (em 2019) para 32,8%. Em seguida veio a direita tradicional (CDU, que se diz democrata-cristã, 23,6%). Na Saxônia, fronteiriça à Polônia e à República Tcheca, e onde estão as cidades de Dresden e Leipzig, o avanço foi menor, mas também expressivo: de 27,5% para 30,6%. Lá, a CDU venceu por pequena margem (atingindo 31,9%) e a AfD ficou em segundo. Trata-se, nos dois casos, de ramos especialmente agressivos do partido. Um de seus líderes, Björn Höcke, chegou a repetir em discurso a saudação das SA nazistas, e até mesmo dirigentes nacionais do partido pediram sua expulsão.

Como já ocorrera nas eleições europeias de junho, os eleitores castigaram os três partidos da coalizão que governa a Alemanha. Suas marcas políticas principais são o amplo envolvimento na guerra contra a Rússia e manutenção de um “ajuste fiscal” contra os serviços públicos. Os social-democratas (SDP) ainda conseguiram manter-se nos dois parlamentos, mas sua proporção de votos despencou para 6,1% na Turíngia e 7,3% na Saxônia (em 2019, o SDP alcançara 8,2% e 12,4%, respectivamente. Os liberais (FDP) estão fora dos dois parlamentos, tendo obtido em torno de 1% dos votos nos dois estados. Os verdes caíram fora do legislativo da Turíngia (3,2%, abaixo da cláusula de barreira de 5%) e mantiveram-se por muito pouco na Saxônia (5,1%, bem menos que os 8,6% em 2019).

Turíngia e Saxônia têm juntas apenas 6,2 milhões de habitantes – ou 7% da população alemã. Mas os sinais de que impopularidade grave do governo liderado pelo primeiro-ministro Olaf Scholz (SPD) estão em toda parte. As eleições para o governo federal ocorrerão em setembro de 2025. Se fossem realizadas hoje, social-democratas, verdes e liberais alcançariam, juntos, pouco mais de 30% dos votos – em queda brusca frente aos 51,9% obtidos em 2020 e sem possibilidade de formar coalizão majoritária. O declínio pode agravar-se já no próximo domingo (22/9), quando haverá eleições em mais um estado do Leste – o Brandemburgo. É provável que o SPD perca o governo (tem menos de 20% das intenções de voto) e que tanto Verdes quanto Liberais fiquem abaixo da cláusula de barreira e saiam do legislativo. Mas… e a esquerda?

II.

“Agora, entramos na cena política”, disse a escritora, filósofa e deputada alemã Sahra Wagenknecht na primeira entrevista coletiva que concedeu após as eleições na Turíngia e Saxônia. Nascida há 55 anos na então Alemanha Oriental, ela é a fundadora e líder de um partido de que se tornou exceção notável, numa Europa em que a esquerda vive, na grande maioria dos países, prolongado declínio. Batizado provisoriamente com o nome de sua criadora, a BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht, ou Aliança Sahra Wagenknecht) surgiu em há apenas oito meses. Mas obteve 15,8% dos votos na Turíngia e 11,8% na Saxônia. Despontou como terceira força nos dois Estados, bem à frente dos social-democratas, verdes, liberais e da esquerda tradicional (o Linke). E já chegara a 6,2% em junho, nas eleições para o Parlamento Europeu.

Sahra Wagenknecht

Tão incomuns quanto a rápida emergência da BSW são as opiniões de Wagenknecht sobre dois temas contemporâneos cruciais. Ela acredita que a ascensão da ultradireita pode ser contida, precisamente por não se tratar de uma “onda” – mas resultado direto da camisa de força em que os partidos do establishment se meteram. Suas políticas impopulares levam-nos a sangrar – a perder apoio popular continuamente. Porém, sua rendição ao neoliberalismo impede-os de buscar saídas, ao contrário do que fizeram por cerca de três décadas, no pós-II Guerra. O poder econômico e a mídia ampliam a cegueira, pois bloqueiam qualquer tentativa de sair da ortodoxia. Abre-se assim uma avenida para os extremistas, por mais bizarros que sejam.

A esquerda não cresce – e aqui está a segunda opinião disruptiva de Wagenknecht – porque afastou-se de forma arrogante das maiorias. Incapaz de formular políticas para os novos dramas populares (a precarização, por exemplo), refugia-se em seu próprio círculo. Adota como programa prioritário pautas comportamentais, que seduzem principalmente os setores intelectualizados das sociedades (em geral, mais favorecidos que a média, em termos econômicos). Passa a ser vista como parte de uma elite esnobe e indiferente – daí sua impotência. As ideias centrais da fundadora da BSW estão expressas numa longa entrevista que ela concedeu à edição de março-abril da New Left Review. Dizem muito também à esquerda brasileira e seu labirinto.

III.

Ao longo do diálogo, Wagenknecht põe a nu as dimensões da crise alemã – algo pouco apresentado nas mídias ocidentais. O governo do chanceler Olaf Sholz aderiu sem críticas ou mediações à guerra na Ucrânia e, em especial, às sanções econômicas que visavam levar a economia russa ao colapso. Berlim é o segundo maior fornecedor de armas a Kiev (17,7 bilhões de euros até abril deste ano) e generais alemães já consideraram enviar seus soldados ao frontalgo que sequer Joe Biden cogitou. Os gastos com armamentos, que haviam se mantido em patamares muito baixos por décadas, saltaram a 3% do PIB – o que contribuiu para achatar as despesas sociais. Porém o choque mais grave foi causado pela decisão de interromper a compra de gás natural russo, trocando-o pelo gás liquefeito norte-americano muito mais caro (e ambientalmente daninho, pois é transportado em navios).

As contas domésticas de eletricidade subiram cerca de 40%, em dois anos. E a antes poderosa indústria alemã foi especialmente atingida. O economista Michael Roberts registra: os altos preços da energia sufocaram os gastos em inovação, transição energética e mesmo nas atividades centrais da maior parte das indústrias. Além disso, aceleraram os planos de transferir fábricas para outros países. Em maio último, por exemplo, os executivos da emblemática Volkswagen anunciaram intenção de fechar fábricas na Alemanha, pela primeira vez nos 87 anos da empresa.

Muito mais devastador, acrescenta a deputada alemã, é o efeito sobre o núcleo do tecido industrial de seu país, aquilo que tornou o modelo alemão distinto, por exemplo, do anglo-saxão. Trata-se do chamado Mittelstand, constituído por milhares de empresas médias (normalmente, entre 100 e 200 empregados), altamente especializadas do ponto de vista tecnológico e imbricadas nas cadeias produtivas – como fabricantes de partes elétricas e autopeças, por exemplo. São, em geral, de propriedade familiar. Ao contrário das grandes corporações, sua cultura empresarial não é obcecada com o lucro do trimestre seguinte – mas com o longo prazo, a próxima geração. Por isso, procuram reter seus trabalhadores especializados. O acesso ao gás russo foi, por décadas, um dos fatores que permitiram seu sucesso e reputação internacionais. Entre 2022 e 23, porém aquelas que fazem uso intensivo de energia tiveram queda de 25% em suas receitas – algo sem precedentes. Agora, iniciaram demissões em massa, o que pode ter efeitos dramáticos sobre a média dos salários, o poder de compra dos trabalhadores e a própria coesão das comunidades.

Ainda que suas consequências sejam dramáticas, a submissão de Berlim à política de guerra dos EUA apenas tornou mais grave uma crise social que se armara antes, relata Wagenknecht. A resposta da Europa à Grande Recessão de 2008-09 e à longa estagnação que se seguiu tem sido um ataque permanente ao Estado de Bem-estar social e à infraestrutura, em nome da “disciplina fiscal” e dos “orçamentos equilibrados”. Na Alemanha, o fenômeno assumiu aos poucos tons dramáticos. No grupo populacional entre 20 e 34 anos (as gerações pós-2008), uma em cada cinco pessoas já não tem uma qualificação escolar formal. A cada ano, 50 mil estudantes, deixam a escola sem concluir seus estudos. Há um déficit habitacional de 700 mil moradias. Uma contrarreforma trabalhista adotada na primeira década do século criou um duplo mercado de trabalho. Agora, 25% dos assalariados tem direitos reduzidos e salários ao menos 33% inferiores ao mediano. O sistema de trens, antes impecável, sofre atrasos constantes e foi em parte privatizado. Há três mil pontes em estado precário, e sem reparo.

O desencanto com a democracia (e a brecha para a ultra-direita) crescem porque a degradação das condições de vida da maioria é acompanhada pela sensação de que já não há amparo nos partidos do establishment. No início deste século, as duas famílias políticas que deram sentido ao sistema institucional alemão – social-democratas e democrata-cristãos – abandonaram suas antigas convicções e o que as diferenciava, ao aderirem sem críticas à ortodoxia neoliberal. Começou com o SPD. Foi no governo do chanceler Gerard Schöeder (1998-2005), frisa Wagenknect, que se descaracterizou a “economia social de mercado alemã”. Marcada por regulação, participação ativa dos sindicatos na gestão das empresas e presença de bancos locais ou comunitários (que inclusive eram acionistas influentes das indústrias), ela deu lugar a um modelo tecnocrático, orientado apenas pelas lógicas de lucro. A descaracterização do SPD aprofundou-se com o tempo, de modo que hoje seus líderes “já não têm política própria e poderiam estar confortavelmente nas fileiras do CDU ou nos liberais”. Alguma semelhança com o Brasil?

Os democrata-cristãos (CDU) descaracterizaram-se igualmente. Wagenknecht lembra que também eles sustentavam posições favoráveis aos direitos e garantias sociais. Ao contrário do SPD (muito ligado aos sindicatos), as igrejas eram a base de seus laços sociais com a população, seu canal para dialogar com a “gente comum”. Fazia parte da “doutrina social da igreja”. A nova face do partido, porém, é a de Friedrich Merz, seu atual líder. Em relação à guerra, é ainda mais beligerante que Scholz, liderando com frequência, no Parlamento, pressões sobre o governo, por maior envolvimento na campanha contra a Rússia. No terreno interno, defende um capitalismo Black Rock (megafundo do qual foi executivo): elevação da idade de aposentadoria, congelamento do salário mínimo e fim de benefícios sociais.

A dissolução das referências fica completa quando se observa a tragédia dos Verdes, cuja origem (em 1980), está associada ao vastíssimo movimento anti-guerra nuclear daquela década. Duas posturas caracterizam o partido hoje, segundo a criadora do BSW. Primeiro, a atitude mais agressiva pró-guerra e pró-OTAN de todo o espectro partidário alemão – a ponto de a ministra (verde) das Relações Exteriores, Annalena Baerbock afirmar que sustentará a participação no conflito independentemente do que pensem os eleitores (segundo sondagem recente, 65% são favoráveis a um cessar-fogo e 68% a negociações de paz). Segundo, política “ambientalista” baseada não no investimento público (os fundos públicos para transição energética estão congelados), mas em relacionar a crise climática com decisões individuais e em impor à população o ônus da mudança.

Boa parte da impopularidade da coalizão no governo deve-se, aliás, à elevação do preços do diesel para agricultores e exigência de uso de bombas de calor, muito caras, para aquecimento das residências (a medida foi revogada por sua repercussão especialmente negativa). E tudo pode ficar pior. Às vésperas das eleições na Turíngia e Saxônia, sempre em nome do “déficit zero”, o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder do FDP liberal, insistia em novo corte nos gastos sociais, agora de 50 bilhões de euros…

Por fim, o próprio Partido de Esquerda (Die Linke), do qual a BSW surgiu no início do ano como dissidência, mostrou-se pouco capaz de confrontar o establishment, talvez por prezar demais seus vínculos como o poder. O governo da Turíngia, governado até as últimas eleições pela agremiação, somou-se, há muitos meses, ao movimento pelo envio de armas à Ucrânia.

“Até que lançássemos a BSW, a ultradireita era a única que criticava este leque de políticas”, diz Sahra Wagenknecht à New Left Review. A frase explica tanto o sucesso do novo partido quanto a cilada em que estão se trancando o antigo centro político e também a esquerda que insiste em mimetizá-lo – bem no momento histórico de seu colapso… O cientista político alemão Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck, descreve o fenômeno com ácida ironia, no livro Entre Globalismo e Democracia (ainda sem tradução para o português):

“A resistência das elites em crise e de suas escolas de pensamento desprovidas de senso de realidade parece não ter limites. Até mesmo em tempos de crise, elas insistem em manter a mesma rota, ocasião após ocasião, muito convencidas de poder arrombar o muro na próxima tentativa, com sua cabeça tão dura como o cimento”…

IV.

Sahra Wagenknecht é uma intelectual pública, um tipo cada vez mais raro nos parlamentos e governos contemporâneos. Formada em Filosofia e Literatura, publicou em 1988, ao graduar-se, o primeiro livro – um estudo sobre Goethe e sua poesia, em que ela vê uma crítica precoce do capitalismo. Chegou à militância após a leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Migrou para a Economia, tendo escrito duas dezenas de obras, entre as quais um exame da crítica do jovem Marx a Hegel, uma análise das conferências de Rosa Luxemburgo, e trabalhos teóricos voltados à intervenção política, como “Liberdade sem capitalismo”, “Os mitos modernizadores”, “Contraprograma para a comunidade e a coesão”, “Liberdade sem capitalismo” e “Contra a esquerda neoliberal” (nenhum deles foi ainda traduzido ao português). Mas este amor à cultura e à teoria não a impediram de afastar-se do que chama de esquerda lifestyle – cuja prepotência e desejo de diferenciar-se das minorias são, para ela, uma das causas do crescimento da ultradireita.

Esta atitude estaria na base do que Wagenknecht vê como ênfase exagerada nas pautas de costume. Por um lado, ela pensa, a esquerda renunciou compreender as novas realidades em que estão mergulhadas as maiorias, e a formular saídas para seus dramas atuais. Por outro, encantou-se com um novo público: a classe média que descola-se dos velhos preconceitos relacionados a sexo, gênero, “raça” e comportamento – mas que não está disposta a refletir (e, menos ainda, a agir) sobre as estruturas que produzem a desigualdade e a opressão.

O resultado é algo que – o leitor reconhecerá – ocorre também no Brasil. Salvo raras exceções, não há mais “trabalho de base”. Nas periferias, por exemplo, quase só atuam as igrejas evangélicas. Mas será fácil encontrar múltiplos “ativismos” críticos (dos partidários aos antirracistas e antipatriarcais) nos shows (às vezes caríssimos) de artistas bem-pensantes, em restaurantes e bares diferenciados (em especial, os étnicos), nas mostras de cinema, nos entrepostos de comida orgânica, nos lançamentos de livros que saúdam a condição LGBTIA+.

Surge uma cisão indesejável. Esta esquerda estilo de vida afasta-se do quotidiano popular e de seus símbolos (“Narciso acha feio o que não é espelho”…). “O ecossistema progressista rejeita tudo o que vem da cultura de massas”, como aponta, num vídeo inspirado, a comunicadora Débora Baldin. Ao mesmo tempo as maiorias, que identificam a esquerda com esta classe média descolada, veem-na não apenas como distante – mas como afetada, normativa e, em última instância, parte do establishment que as oprime.

“Ninguém gosta de que os políticos lhe ‘ensinem’ o que comer, que termos usar, como pensar”, frisa Wagenknecht. A ultradireita tem sido extremamente sagaz em preencher a brecha. No terreno comportamental, exalta seus vínculos com os aspectos mais sombrios da formação cultural e psíquica das sociedades. Ergue o espantalho da masculinidade e da branquitude supostamente ameaçadas. No campo das relações de classe, seus laços com o grande capital – e em especial, o rentismo – são notórios (vide a relação Bolsonaro – Paulo Guedes). Mas, como a esquerda não propõe outro horizonte às maiorias (por estar aprisionada por sua obsessão com a “disciplina fiscal”), é fácil aos neofascistas fazer discursos genéricos em favor do bem-estar. Ao conversar com os assistentes de um comício da AfD na Turíngia, o repórter da revista Economist notou que eles pareciam atraídos não pelo discurso de ódio aos imigrantes, mas pelo fechamentos de hospitais e ausência de professores nas escolas.

V.

A BSW e sus líder são às vezes acusados, por alguns setores de esquerda, de adotarem postura antiimigrante. Na entrevista à New Left Review, a deputada contra-ataca, ao classificar como “neoliberais” as políticas migratórias defendidas por seus opositores. ´

A partir de 2010, chegaram à Alemanha ondas sucessivas de imigrantes e refugiados. São hoje cerca de 15 milhões, pouco menos de 20% da população. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte deles tem, além de abrigo (majoritariamente, nos estados do Leste), direito a escolas e hospitais públicos. Todas as pesquisas de opinião apontam que este fenômeno está diretamente associado ao crescimento da ultradireita. Como ele coincide com o ataque ao estado de bem-estar social, abundam os casos em que os imigrantes disputam com os alemães mais pobres o acesso aos serviços sociais.

Wagenknecht pensa que a política de acolhimento fácil é generosa apenas na aparência – por dois motivos. Do ponto de vista imediato, o agigantamento da imigração, frisa ela, é resultado direto das guerras promovidas pelo Ocidente (com participação direta ou apoio da Alemanha). Os refugiados provêm, muito majoritariamente, de países (Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Yêmen, Ucrânia) em que as intervenções da OTAN destruíram as relações sociais, a infraestrutura e, em alguns casos, o próprio Estado nacional). De que serve receber alguns milhões de refugiados, depois de destruir seu país e deixar para trás um número muito maior de pessoas vivendo em condições indignas?

Numa análise a médio e longo prazos, prossegue a deputada, a “política neoliberal de imigração” reforça – ao invés de amenizar – as desigualdades internacionais e as relações colonialistas. Na Alemanha, ela devasta as condições de luta e barganha do conjunto dos trabalhadores. Os imigrantes são pressionados, pelas próprias políticas públicas que supostamente os favorecem, a encontrar qualquer trabalho, o mais rapidamente possível. Tendem a aceitar salários e direitos rebaixados.

Nos países de origem, a situação é ainda pior. A imigração priva as sociedades, em geral, dos trabalhadores mais capacitados, anulando o enorme esforço social dispendido em sua formação. Um dos casos mais dramáticos é o das enfermeiras. Há cerca de um ano, o site Peoples’ Health Dispatch mostrou, em matéria (traduzida por Outra Saúde) como, para tapar buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca sistemas de saúde ao redor do mundo – violando inclusive códio de práticas da Organização Mundial de Saúde.

Wagenknecht frisa que sua posição não é xenófoba. Lembra que tanto a liderança quanto a representação parlamentar da BSW são as mais multiculturais do espectro político alemão (ela mesma é filha de uma alemã e um iraniano, e alterou seu nome – de Sarah para Sahra – para deixar claro o vínculo). Propõe alternativas concretas. Em primeiro lugar, tentar interromper as guerras do Ocidente, cessando completamente a participação da Alemanha na campanha da OTAN contra a Rússia na Ucrânia e o apoio (vultosíssimo) ao massacre de Israel contra ao palestinos. Além disso, inaugurar políticas de redistribuição internacional de riquezas, com transferência obrigatórias (e não “caritativas”) de recursos para financiar o desenvolvimento sustentável dos países do Sul.

VI.

O futuro da BSW é incerto. No curto prazo dos próximos doze mses, há três deafios. Obter, no próximo domingo, nas eleições do estado de Brandenburgo (que faz o entorno de Berlim), um novo resultado positivo, quer permita chegar ao Parlamento local. Participar, em seguida, de modo que impacte o eleitorado, das negociações para formação dos governos da Turńgia, Saxônia e do próprio Brandenburgo. (O partido é essencial para formar maioria que supere a AfD; mas tem dito que não busca cargos – e que não apoiará nenhum governo que não assuma posição clara contra a guerra. Nessas condições, um impasse parece contratado).

Por fim, o partido prepara-se para as eleições federais alemãs, que ocorrerão no máximo até setembro de 2025. Nelas, o multimilionário Friedrich Merz, que liderou o CDU para posições ultraliberais, aparece hoje como favorito; mas mas políticas surpreendentes da BSW podem levá-la a exercer um papel destacado, como frisa o cientista político Antonious Souris, ouvido pela agência de notícias Deutsche Welle.

No médio e longo prazos é que tudo se complica. No Ocidente, a esquerda segue sem perspectivas claras, pelo menos desde a crise de 2008. Cada novo intento tem resultado em esperança seguida de frustração. Em 2011, a ocupação das praças espanholas levou à criação do Podemos – um partido-movimento que se embriagou com a possibilidade de dividir o poder; esqueceu sua base e sua proposta de sacudir a velha política com um banho de participação direta; e ao fazê-lo, terminou tragado. Entre 2011 e 2013, houve gigantescas manifestações pelos direitos sociais em Portugal (1 2), na Turquia e no Brasil, mas os movimentos que as convocaram e dirigiram não tinham programa claro para continuá-las (e, no caso brasileiro, nem estofo organizativo para evitar que fossem caputuradas pela direita). De 2015 a 2020, Jeremy Corbyn manteve-se na liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido, e ao fazê-lo transformou-o numa ferramenta de reflexão política e mobilização social (especialmente dos jovens). Porém, fracassou no plano tático, ao aceitar o desafio dos conservadores para disputar uma eleição que não poderia vencer. Em 2019, os jovens e os movimentos sociais chilenos enfrentaram repressão duríssima da polícia, provocaram o fim de um governo conservador e chegaram a eleger um presidente da República e uma Assembleia Constituinte em que as forças anticapitalistas tinham ampla maioria. Mas sucumbiram em poucos meses, devido à ausência de um programa claro de mudanças e à ilusão de que, à falta dele, poderiam bastar gestos simbólicos, como a eleição de uma mulher Mapuche para a presidência da Assembleia.

Exemplos semelhantes abundam – e não é algo inteiramente novo. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx lembrou Shakespeare para comparar o proletariado – a classe revolucionária de seu tempo – a uma velha toupeira. Ela avança com desenvoltura sob a terra, cava a possível ruína de seus opressores mas, uma vez emersa à superfície, mostra-se cega e incapaz de encontar os caminhos que levarão à transformação social.

Ainda assim, cada tentativa acrescenta uma peça ao quebra-cabeças da reviravolta possível. Com o Movimento Passe Livre brasileiro aprendemos que, em tempos de crise, vinte centavos podem levar milhões às ruas. O Chile mostrou a força das coalizões de movimentos sociais díspares, mas sintonizados na mesma busca de vida livre das lógicas neoliberais. Com Corbyn, soubemos que os mesmos Estados que imprimem dinheiro para multiplicar a riqueza dos rentistas podem fazê-lo em favor dos serviços públicos de excelência e da garantia de ocupações dignas para todos.

Seja qual for o futuro do BSW e de Sarah Wagenknecht, estamos compreendendo com sua emergência notável que a ultradireita não nasce por geração espontânea – mas das grandes brechas abertas pelas ausências da esquerda; que é possível reparar estes vazios; mas que, para isso, os movimentos empenhados em superar o capitalismo precisam, como disse certa vez Bertolt Brecht, “saber abandonar a si mesmos

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/assim-suicidam-se-democracias/

EUA: As eleições vistas pela China

 Por Luís Antônio Paulino, no Vermelho

 Foto: Saul Loeb/AFP

Pequim vê os candidatos como dois potes do mesmo veneno. Trump promete elevar ainda mais as tarifas punitivas, algo que a gestão Biden já fez. A certeza é que a guerra comercial seguirá: com diplomacia cínica dos democratas ou a truculência republicana

Perguntado sobre qual dos candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro próximo seria melhor (ou pior) para a China, Zhao Minghao, professor do Instituto de Estudos Internacionais e Centro de Estudos Americanos da Universidade Fudan, afirmou que “Trump e Kamala Harris são duas tigelas de veneno para Pequim.” (Financial Times, 26/8/2024).

O problema é que, parafraseando o que Mário Henrique Simonsen disse sobre inflação e câmbio, existem venenos que aleijam e outros que matam. Muito embora a China seja o saco de pancadas preferido tanto de republicanos e democratas e um dos pontos em que as discordâncias entre ambos sejam mais de forma do que conteúdo, o fato é que há diferenças nas propostas dos dois candidatos em relação à China que precisam ser levadas em conta. Se tais diferenças nos discursos irão resultar em linhas de ação muito diferentes já é outra questão.

Começando pelos discursos de Trump e Kamala nas respectivas convenções que os sacramentaram como candidatos de seus respectivos partidos para as eleições de novembro, é importante notar que Kamala fez uma única menção à China ao passo que Trump mencionou a China 14 vezes. Segundo o Financial Times (26/08/2024), “Harris mencionou a China apenas uma vez em seu discurso na convenção democrata, prometendo garantir ‘que a América — não a China — vença a competição pelo século XXI’”. Trump, por outro lado, referiu-se à China 14 vezes na Convenção Nacional Republicana no mês passado, incluindo a bazófia de que ele havia mantido Pequim “à distância” durante sua presidência e lamentando a perda da Base Aérea de Bagram no Afeganistão, que alegou estar “a uma hora de distância de onde a China fabrica suas armas nucleares”, uma ameaça implícita.

A desistência de Biden e sua substituição por Kamala Harris como candidata do Partido Democrata para as eleições de novembro pegou todo mundo de surpresa e há pouca informação sobre o que ela pensa ou pretende fazer em relação à China, ao passo que todos sabem o que Trump pensa sobre o assunto. O que cada um fará, caso seja eleito, entretanto, depende de uma série de fatores.

Trump tem dito que elevará as tarifas de importação dos produtos chineses para 60%. Na prática isso equivale a fechar o mercado norte-americano para produtos chineses. Se, de um lado, a medida poderia causar algum impacto na economia chinesa, por outro lado é difícil imaginar os Estados Unidos abrindo mão de uma hora para outra de tudo que importa da China. Muito do que os Estados Unidos importam de empresas chinesas eles não produzem internamente e nem possuem fornecedores alternativos. Os Estados Unidos importaram US$ 427 bilhões em bens da China em 2023. Basta imaginar o quanto uma tarifa de 60% sobre essas importações impactaria na inflação nos Estados Unidos e no bolso dos consumidores norte-americanos.

É preciso considerar ainda que não há consenso sobre o assunto entre republicanos. A ala mais tradicional dos republicanos é avessa a tarifas de importação elevadas, enquanto Trump e alguns dos seus assessores diretos são protecionistas radicais. Apesar de as empresas norte-americanas que competem com as importações chinesas serem a favor de tarifas de importação mais altas, a maioria das grandes corporações com sede nos Estados Unidos não pode abrir mão do mercado chinês e não vê com bons olhos uma escalada protecionista.

Segundo a agência Reuters (26/08/2024), desde que o presidente Joe Biden anunciou, em maio, uma quadruplicação das tarifas sobre veículos elétricos chineses para 100%, uma duplicação dos impostos sobre semicondutores e células solares para 50%, bem como novas tarifas de 25% sobre baterias de íons de lítio e outros bens estratégicos, incluindo aço, para proteger as empresas americanas do excesso de produção chinesa, mais de 1.100 comentários públicos foram postados no site do USTR (Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, o equivalente ao Ministério do Comércio) expressando preocupações com os aumentos de custos gerados pelas novas tarifas. Até o momento a aplicação das novas tarifas vem sendo adiada, o que revela falta de consenso sobre o assunto.

Kamala Harris, por seu turno, também não renunciará às tarifas. Apesar de todas as críticas que fez a Trump, Joe Biden não só manteve as tarifas que Trump impôs à China na guerra comercial iniciada em 2018, como acrescentou novas restrições. Não haveria por que pensar que com Kamala Harris seria diferente, sobretudo se ela mantiver cuidando do assunto as mesmas pessoas que estiveram a cargo disso no governo Biden, como o secretário de Estado Antony Blinken, seu vice Kurt Campbell e o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, bem como outros altos funcionários que foram fundamentais para políticas agressivas em relação à China.  Mas dificilmente um eventual governo de Kamala Harris adotaria uma tarifa de 60% como Trump diz que vai fazer. Possivelmente recorreria a tarifas específicas sobre determinados produtos, de acordo com a política industrial implementada pelo governo Biden, como já vem ocorrendo.

A respeito dessa questão o Wall Street Journal (13/08/2024) afirma o seguinte: “Patrick Zweifel, economista-chefe da Pictet Asset Management, estima que, se a presidência de Kamala Harris mantiver a política tarifária mais seletiva do governo Biden, poderá reduzir talvez 0,03 ponto percentual do crescimento econômico chinês no próximo ano. Ao aumentar as tarifas para 60% sobre todos os produtos chineses, como Trump propôs, o impacto seria muito maior, talvez em 1,4 ponto percentual, o que, em suas previsões, reduziria o crescimento [da China] em 2025 para cerca de 3,4%, de 4,8% esperados. O UBS estima que as tarifas de 60% sobre as importações norte-americanas de produtos chineses impediriam o crescimento do PIB em cerca de 2,5 pontos percentuais nos 12 meses após a imposição, embora o arrasto possa ser de apenas 1,5 ponto percentual se a China tomar ações compensatórias. Entre essas ações os formuladores de políticas chineses poderiam deixar sua moeda enfraquecer ainda mais, estender descontos de impostos e outras vantagens aos exportadores e reduzir as taxas de juros. Eles poderiam tentar forçar os EUA a reconsiderar, retaliando como aumentar as tarifas sobre produtos dos EUA, reter o fornecimento de minerais críticos e possivelmente vender ativos dos EUA, como títulos do Tesouro, de acordo com o Goldman Sachs.”

Visto de conjunto, apesar da convergência bipartidária em relação à China, considerada tanto por republicanos e democratas como uma “potência revisionista”, um competidor estratégico e uma ameaça para o american way of live, certamente a política externa de Harris em relação à China seria de gerenciamento das relações bilaterais por meio  dos canais diplomáticos convencionais. Já para Trump, o objetivo seria o de “vencer” a China em uma nova guerra fria, o que certamente o levaria a desprezar a diplomacia tradicional e partir para ações intempestivas cujas consequências poderiam ser catastróficas, sobretudo se envolvessem Taiwan e o Mar do Sul da China.

Nunca é demais lembrar que se o “pivô para China” foi uma ideia do democrata Obama, as ações recentes mais abertamente anti-China foram iniciadas no governo Trump. De acordo com o Financial Times (21/8/2024), “Durante seu primeiro mandato, Trump reviveu a aliança Quad com Japão, Austrália e Índia, promulgou a Lei de Viagens de Taiwan, permitindo que funcionários de alto nível de cada país a visitassem e iniciou hostilidades comerciais contra a China. Outros apontaram para o antagonismo de Trump em relação a Pequim sobre a pandemia de Covid-19, que ele rotulou de “vírus da China”.”

Em artigo publicado na Foreign Affairs (01/08/2024) intitulado “Does China Prefer Harris or Trump? Why Chinese Strategists See Little Difference Between the Two”,  três acadêmicos da Universidade de Pequim (Wang Jisi, Hu Ran, and Zhao Jianwei) afirmam que “Começando com o comércio, o governo Trump iniciou com tarifas punitivas sobre as importações chinesas e depois expandiu sua campanha para incluir maior escrutínio e restrições aos investimentos chineses, controles de exportação de alta tecnologia mais rígidos e ações direcionadas contra empresas chinesas específicas com grandes presenças no exterior, como a Huawei. Em questões de segurança, o governo Trump também tomou novas medidas para manter a supremacia dos EUA no que os estrategistas agora chamam consistentemente de região ‘Indo-Pacífico’, um termo geográfico que havia sido usado apenas ocasionalmente antes. O governo Trump deu a Taiwan garantias especiais de segurança e minimizou a política de longa data de ‘uma China’; colocou novos recursos no Quad (o agrupamento da Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos) em um esforço para equilibrar coletivamente a China; e intensificou as atividades militares dos EUA no Pacífico Ocidental para desafiar as reivindicações territoriais da China.”

Afirmam ainda que “Quanto à relação política entre os Estados Unidos e a China, Trump não tinha visões rigidamente ideológicas sobre o sistema e a liderança chineses, mas permitiu que seus funcionários do governo e o Congresso dos EUA criticassem estridentemente o partido governante da China e sua governança doméstica, particularmente suas políticas em relação a Xinjiang e Hong Kong. E como seu governo adotou uma narrativa mais ampla de ‘ameaça da China’, prejudicou gravemente os intercâmbios acadêmicos, científicos e sociais que existiam há décadas entre os dois países. Na diplomacia multilateral, Washington também começou a demonizar Pequim e a contrariar fortemente sua influência internacional, tentando restringir o papel global em expansão da China em sua Iniciativa do Cinturão e Rota e em seu crescente envolvimento nos órgãos das Nações Unidas.”

Já com relação a Biden, afirma: “Biden trabalhou em estreita colaboração com o Congresso para implementar investimentos em infraestrutura em larga escala e políticas industriais destinadas a tornar os Estados Unidos mais competitivos e menos dependentes da China. Para competir melhor em tecnologias avançadas, o governo Biden também buscou controles de exportação mais rígidos, novas tarifas sobre os produtos de tecnologia verde da China e esforços internacionais mais coordenados, como a aliança Chip 4 – uma parceria de semicondutores entre Japão, Coreia, Taiwan e Estados Unidos. Na Ásia-Pacífico, o governo Biden intensificou sua presença militar no Estreito de Taiwan e no Mar da China Meridional e acrescentou uma dimensão econômica regional às alianças de segurança asiáticas dos Estados Unidos. Biden também reuniu líderes do G-7 para impulsionar a iniciativa Build Back Better World e a Parceria para Infraestrutura e Investimento Global – ambas destinadas a fornecer uma resposta ocidental à Iniciativa do Cinturão e Rota da China. Motivado pelos crescentes laços da China com a Rússia em meio à guerra na Ucrânia, o governo Biden impôs sanções às empresas chinesas que negociam com a Rússia. Washington também deu à disputa com a China uma nova camada de ideologia – o que o governo chama de “democracia versus autocracia” – em um esforço para construir uma grande aliança contra Pequim.”

Um outro fato que talvez possa influir nas relações com a China, ainda que indiretamente, num eventual governo de Kamala Harris, é o seu vice, Tim Walz, ter uma longa história de interação com aquele país, ainda que de forma nem sempre amigável. Conhecer bem a China não significa necessariamente ser amigo da China.

Conforme informou o Financial Times (21/8), “Walz viveu na China como um jovem professor, não como diplomata, e voltou dezenas de vezes ao longo de sua vida adulta, primeiro como instrutor para estudantes americanos interessados na China e depois como político (…) Ainda assim, a conexão de Walz com o país vai além do turista americano normal. Antes de ser eleito para o Congresso, Walz e sua esposa dirigiam uma empresa que trazia estudantes americanos para a China.”

Ainda segundo o jornal, “No Congresso, Walz assumiu posições que incomodaram Pequim, incluindo o apoio ao ativista democrático de Hong Kong Joshua Wong. Quando Wong foi preso, em 2017, por seu envolvimento na ‘revolução dos guarda-chuvas’ de Hong Kong, Walz twittou uma selfie que eles haviam tirado em Washington um ano antes, junto com uma citação de Wong: “Você pode trancar nossos corpos, mas não nossas mentes!”.

No mencionado artigo da Foreing Affairs, os autores concluem que “no geral, do ponto de vista chinês, as políticas chinesas de um novo governo Trump e de um governo Harris provavelmente serão estrategicamente consistentes. Como presidentes, ambos os candidatos apresentariam desafios e desvantagens para a China, e nenhum deles parece querer um grande conflito militar ou cortar todos os contatos econômicos e sociais. Portanto, é improvável que Pequim tenha uma preferência clara. Além disso, a China tem fortes incentivos para manter um relacionamento estável com os Estados Unidos e evitar confrontos ou grandes interrupções. Dadas as sensibilidades políticas em relação à eleição e às relações EUA-China, qualquer ação chinesa para interferir provavelmente sairia pela culatra.” Trata-se de uma posição sensata da China e coerente com seus cinco princípios de política externa baseados na não-interferência em questões internas de outros países.

Fonte:  https://outraspalavras.net/outrasmidias/eua-eleicoes-vistas-pela-china/