sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

DEMolição

Gaudêncio Torquato*

É sabido que, em se tratando dos nossos trópicos, tudo é possível. Até mesmo a tentativa de juntar Deus e o diabo em uma mesma oração. Pois foi o que se viu num dos mais excêntricos atos de cunho religioso-político de nossa curvilínea história: três figuras rezando e agradecendo ao Senhor por ter escolhido um deles como “instrumento de bênção” para a vida delas. A cerimônia continha os elementos da liturgia cristã: contrição, louvação a Deus, solidariedade. O detalhe: tratava-se de uma arapuca. Coisa armada para pegar fiéis da propina. Durval Barbosa, o “abençoado instrumento” de Deus naquela reza, ex-secretário de Relações Institucionais do governo do Distrito Federal, deve ter feito grande esforço para não gargalhar, pois gravava a cena em que dois deputados, um deles presidente da Câmara Legislativa, abraçados a ele, rezavam.

A prece, dirigida ao Senhor, ganha o troféu de ouro da hipocrisia nacional pela antinomia de símbolos que encarna: agradecimento à Providência Divina pela existência de um “homem da mala”. Nunca a estética da corrupção alcançou grau tão elevado de sofisticação. O espetáculo, digno de Macunaíma, marcará a história do caixa 2 não apenas pela abordagem inusitada, mas pelo fato de que terá consequências no pleito de 2010.

Os parlamentares agraciados com pacotes de cédulas não desconfiaram da armadilha e recitaram com fervor a reza, que, tempos depois, surgiu como profecia: “A sentença é o Senhor que determina, o parecer e o despacho é o Senhor que faz acontecer”. Se o Senhor fez ou não acontecer, o fato é que o flagrante até parece coisa do diabo. O diabo, no caso, foi o próprio “instrumento” Durval, que deixou os devotos em maus lençóis. A morfologia de nossa cultura explica o fervoroso gesto, a começar pela lembrança de que o santo nome de Deus sempre frequenta os mais comezinhos atos do cotidiano. Inédito, porém, é usá-lo como escudo para abrigar desvios criminosos. Eis a mania da velha malandragem: cobrir o espaço profano com o manto sagrado, esperando que esse recurso consiga atenuar a gravidade de delitos praticados. Ou seja, o escudo dos céus serve como pronto-socorro psicológico de hipócritas e oportunistas.

O flagrante que ameaça afastar do cargo o governador José Roberto Arruda mostra por inteiro a semântica e a estética do propinoduto. Diálogos entre corruptos e corruptores, agentes com a tarefa de coletar propina, repartição de dinheiro entre figurantes e o gesto hilário de esconder dinheiro na roupa. A crônica da corrupção flagrada apresenta densa coleção de imagens. Cenas foram vistas por milhões de brasileiros. Como é sabido, mais vale a visão do que a expressão. Maquiavel ensinava: “Os homens em geral julgam antes com os olhos do que com as mãos. Todo mundo vê muito bem o que aparentas por fora, mas poucos percebem o que há por dentro”.

Ao contrário do que pensa o presidente Lula — “as imagens não falam por si só” —, estamos em plena era da telepolítica. O cidadão reage à imagem do que vê, e não ao argumento dos envolvidos.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.
FONTE: Correio Popular online, 11/12/2009

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