terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Leitura de banheiro

Moacyr Scliar*

“Alguém dirá que se trata de um lugar inusitado, e é, mas reúne algumas condições importantes para quem quer ler em paz: é quieto, é isolado, a pessoa está sentada e dificilmente será interrompida”

Neste 2009, A origem das espécies, livro com que Charles Darwin revolucionou as ciências naturais e o pensamento moderno, completa 150 anos. Não é de admirar, portanto, o interesse despertado por um exemplar da primeira edição, leiloado pela Christie\'s, de Londres. Surpreendente é o lugar de onde esse livro veio: do banheiro de uma família britânica. Ali, numa estante, a obra permanecera intocada por vários anos até que um parente, depois de visitar uma exposição sobre o pai do evolucionismo, deu-se conta de que aquilo era uma verdadeira preciosidade.

A existência de uma estante mostra que ler no banheiro era um hábito dessa família. E de muitas outras pessoas. Alguém dirá que se trata de um lugar inusitado, e é, mas reúne algumas condições importantes para quem quer ler em paz: é quieto, é isolado, a pessoa está sentada e dificilmente será interrompida. Claro, há problemas. Muitos proctologistas dirão que ler no banheiro pode estar associado ao surgimento de hemorroidas.

Apesar disso, os adeptos da leitura no WC formam legião; é só entrar na internet para constatá-lo. O número de textos sobre o assunto é imenso, e incluem historietas, comentários, conselhos. Que começam pela pergunta: o que se deve ler nessas ocasiões? Uma das respostas fala na “biblioteca de banheiro”, algo semelhante ao que tinha essa família britânica. Que, sugerem os entendidos, deve ser cuidadosamente selecionada. O mordaz Lord Chesterfield (1694-1773) escreveu uma carta para seu filho, recomendando que ele tivesse no banheiro uma coletânea de poetas latinos (à época muito citados), o que, além da leitura, forneceria depois material para a limpeza — naquele tempo não havia ainda papel higiênico.

A verdade é que, como diz um dos sites, poemas — e textos curtos de maneira geral (contos, crônicas, citações) — representam o tipo de leitura ideal para o recinto; a menos, claro, que a pessoa sofra de prisão de ventre ou que, por alguma razão, resolva passar boa parte de seu tempo no banheiro. Revistas e jornais também têm aí o seu lugar, e numa época cumpriam uma dupla função: forneciam material de informação e material de limpeza, neste último caso com certos problemas, pois o papel impresso jamais tem a maciez do papel higiênico, sobretudo quando se trata dessas revistas caras, aquelas que os americanos chamam de glossy magazines. Um problema embaraçoso pode ocorrer, sobretudo para adolescentes, com revistas de sexo; afinal, o isolamento do banheiro facilita as práticas autoeróticas. Finalmente, é preciso lembrar as publicações com palavras cruzadas e sudoku; para o aficionado, podem ser uma boa, mas ai de quem estiver lá fora esperando para entrar.

No entanto, o material impresso não se limita àquilo que é adquirido em livrarias e em bancas de jornais. Buscando atender às necessidades dos leitores de banheiro, uma empresa japonesa criou o drop. Que é, nada mais nada menos, que papel higiênico com textos impressos, incluindo livros completos. Custa o equivalente a US$ 2, bem mais barato que o livro comum, mas, claro, não proporciona muita escolha.

E no banheiro público, onde em geral não há nada para ler? Bem, aí temos as inscrições do próprio banheiro: versinhos, em geral safados, pensamentos (sim, filósofos aparecem quando menos se espera), e denúncias, em geral, referentes ao comportamento sexual de algum sicrano ou alguma beltrana. O grande sanitarista Noel Nutels, que hoje dá nome a um instituto da Fundação Oswaldo Cruz, e que foi um pioneiro do atendimento de saúde aos índios, era um entusiasta colecionador desse “folclore de banheiro” que, dizia, era muito revelador de um Brasil desconhecido.

É verdade que os hábitos de leitura estão mudando, e aí está o kindle, este novo equipamento que permite baixar livros num pequeno computador de mão. Os fabricantes ainda não falaram a respeito, mas a pergunta se impõe: dá para levar o kindle para o banheiro? Será cômodo ler o kindle sentado ao vaso?

Conclusão: o episódio do livro de Darwin é apenas o topo de um verdadeiro iceberg cultural. Ainda leremos muito sobre o tema. No banheiro, claro.

*Médico. Escritor. Cronista de vários jornais.
Fonte:Correio Braziliense online, 15/12/2009

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