quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O trem das onze e cinquenta e dois

MARTHA MEDEIROS*

Eu já tinha a crônica de hoje pronta. Era sobre o atraso da classe política e sobre a nossa imobilidade diante da corrupção, mas me incomodava a sensação de estar chovendo no molhado. Foi então que li ontem na Zero Hora um depoimento sobre outro tipo de atraso, feito pela torrense Nilda de Jesus Silva, que declarou: “Estranho os jovens se atrasarem para a prova do Enem. Se fosse jogo de futebol, estariam esperando por várias horas, e para shows, vão para as filas dois ou três dias antes, mas quando o assunto é colégio...”. Acabei postando o texto sobre corrupção no meu blog e resolvi dedicar esta coluna à observação perspicaz da Nilda.

Costumo dizer que sou a pessoa mais impontual que conheço: chego sempre 10 minutos antes do horário, e às vezes espero dentro do carro até que os minutos passem, a fim de não ficar sozinha na mesa do restaurante ou mofando na sala de espera. Mas como os manuais de segurança pública não recomendam que se fique dentro de um carro estacionado, acabo exercitando minha paciência em mesas de restaurantes e salas de espera, fazer o quê? Sem falar em quando me esforço em chegar numa festa um pouco depois do que pede o convite, e mesmo assim pego o anfitrião ainda no banho.

Porém, em dia de prova de vestibular, exame para carteira de motorista, cirurgia com hora marcada, audiência com o juiz e reunião secreta para receber propina, atrasos são injustificáveis. Você pode ter dificuldade de ser honesto, mas nada é mais fácil do que ser pontual. A palavra imprevisto não existe para quem tem um compromisso que pode mudar a vida. Telefones tocam quando você está com a chave na porta, o elevador enguiça, o trânsito congestiona. Acontece. Mas isso nunca é problema para quem costuma sair de casa com o mesmo fanatismo de quem deseja assistir à Madonna na fila do gargarejo, ou seja, com antecedência suficiente.

Escrevi a palavra fanatismo e senti um mal-estar: será que virei uma aiatolá do relógio? Não, nem poderia: a cultura local não incentiva o radicalismo quando o assunto é pontualidade. Já estou habituada a esperar pela noiva na igreja, pela decolagem dos voos e pela entrega do marcineiro, sempre com um sorriso no rosto, sem reclamar, sem rogar praga. Aproveito o tempo de espera para sonhar acordada. Abstraio e me visualizo numa estação ferroviária de Paris, com um bilhete na mão para viajar para Amsterdã no trem que sairá às 11h52min. Entro no meu vagão (às 11h42min, lógico), me acomodo no meu assento, pego uma revista e desfruto 10 minutos de uma paz que só a segurança oferece. Minha confiança e meu humor não sofrerão abalos. Então, exatamente às 11h52min, o trem parte e eu confirmo que nada pode ser mais moderno e pró-eficiente do que cumprir o combinado.

Isso também valeria para a classe política, não fosse outro sonho.

*Escritora e cronista da ZH
FONTE: ZERO HORA, online, 09/12/2009  
http://zerohora.clicrbs.com.br

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