domingo, 6 de dezembro de 2009

A pior idade

Rubem Alves*

Os aeroportos são delicados. Ao chamar os passageiros para o embarque eles dão preferência às gestantes, às crianças, às pessoas com dificuldade de locomoção, terminando a lista com o delicado título de aqueles que pertencem à privilegiada classe da “melhor idade”.

Ah! Melhor idade! Os mais fortes, os de pele mais lisa, os mais bonitos, os de passos mais firmes...

Mas basta pensar sobre o sentido das palavras para se dar conta que se trata de um eufemismo, uma mentira delicada que não humilhe os velhos. O velhos se vestem de eufemismos... Porque, pra ser verdadeiro mesmo, ao invés de chamar os cidadãos da melhor idade, os alto-falantes deveriam chamar os “cidadãos da pior idade.” Porque é só o fato de haver algo de ruim nessa idade que permite que ela seja batizada com título tão delicado.

Falo por experiência própria: envelheci, piorei. O grau de pioreza da minha idade pode ser medido pela atenção que tenho de aplicar às mínimas coisas que vou fazer. Quando jovem a atenção vinha embutida naturalmente no corpo. Não precisava pensar. Eu descia uma escada com a mesma rapidez com que um pianista toca uma escala de dó.

Quando eu era jovem eu corria lépido. Não precisava prestar atenção. O corpo se encarregava dela automaticamente. O corpo tropeçava, caia, ralava, levantava, trombava, corria, carregava pesos, dispensava corrimãos. Hoje, cair é quase ter certeza de uma fratura...

O tempo passou. O mundo ficou o mesmo. Mas o meu corpo mudou. E agora tenho de observar atentamente por onde vão minhas pernas, meus pés, minhas mão, meus olhos. Constantemente.

Era o mês de junho. Tudo estava bem. Corpo em ordem, musculação, alongamentos, atravessava a piscina várias vezes a piscina, e havia as caminhadas na Fazenda Santa Elisa. Eu tinha ido mesmo visitar numa manhã uma muda meio esquecida de um caquiquizeiro que eu ajudara a plantar como símbolo do triunfo da morte sobre a vida. O caquizeiro foi eleito pelos japoneses como símbolo do triunfo da morte sobre a vida porque em Nagasaki, depois da bomba atômica, um caquizeiro que todos julgavam morto floresceu... Eu sempre sonho em espalhar minhas cinzas no pé daquele caquizeiro, espero que não haja nenhuma lei que proíba... Naqueles tempos eu tinha asas nos pés. Mas o tempo passou. Junho ficou para trás. Daquele dia de junho até hoje me aconteceram duas grandes cirurgias: estômago e coração. Deu tudo certo, competentemente, não sofri, mas não sou mais o mesmo. Definitivamente, não estou vivendo minha melhor idade. Estou fraco.

Acabo de voltar de minha longa e cansativa caminhada: uma única volta no quarteirão onde vivo... E não sem cuidadosas precauções. É preciso estar atento aos transeuntes enquanto se anda. Para evitar colisões. Uma colisão entre jovens é apenas uma colisão. Mas quando é um velho que colide com um jovem ou uma criança pode acontecer uma fratura... Calçadas são armadilhas, buracos e pedras que desequilibram os pés. Por isso é importante não largar a bengala que além de contribuir para o equilíbrio dá, como consolo, um certo ar de dignidade.

As Escrituras Sagradas são realistas. Para elas a velhice é a pior idade. Por isso é preciso vivê-la com sabedoria, prudência e intensidade.

“Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos em que dirás: Não tenho neles prazer.

Antes que se escureçam o sol, a lua e as estrelas, luzes da tua vida, e tornem a vir as nuvens depois do aguaceiro;
No dia em que tremerem os guardas da casa, os teus braços,
E se curvarem os homens outrora fortes, as tuas pernas,
E cessarem de moer os moedores da tua boca, por já serem poucos,
E se cerrarem as janelas, os teus olhos,
E os teus lábios se fecharem: o dia em que não puderes falar em voz alta,
E te levantares ao canto das aves, e não mais ouvires o som da música.
Quando tiveres medo do que é alto,
E te espantares no caminho,
E o teu cabelo ficar branco,
E um simples gafanhoto for muito peso para tuas forças,
E não tiveres mais fome.
Porque vais para a casa eterna
E os pranteadores já estão andando pela praça.
Antes que se rompa o fio de prata,
E se despedace o copo de ouro,
E se quebre o cântaro junto à fonte,
E o pó volte à terra
E o sopro da vida volte a Deus, que o soprou.”

Pode acontecer de repente, como aconteceu com a minha amiga Lúcia Ribeiro: uma freada brusca, um tombo no ônibus, traumatismo craniano e a visão dupla com a qual tem estado convivendo.

Ou pode ir acontecendo aos poucos, tal como está acontecendo comigo e com todas as pessoas que estão envelhecendo. Vão-se as asas; ficam as memórias dos vôos. Por isso é importante ter amigos. Porque conversar sobre vôos dá tanta alegria quando um vôo de verdade.
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
FONTE: Correio Popular, 06/12/200

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