sábado, 16 de janeiro de 2010

A pastoral do Soro Caseiro

Dom Geraldo M. Agnelo*

A Pastoral da Criança nasceu em Florestópolis, Paraná, na Arquidiocese de Londrina, município muito pobre, ladeado por plantações de cana-de-açúcar, onde a única fonte de trabalho para os mais pobres, sem mão de obra qualificada, era cortar cana ou trabalhar na usina de açúcar do então Grupo Atala. Eram pessoas que não recebiam salários, mas tíquete para compras no próprio mercado da Usina de Porecatu, bem vizinha de Florestópolis.

Saíam de madrugada homens e mulheres com os filhos de mais de 10 anos. As outras crianças ficavam em casa com o irmão mais velho. Muitos moradores da cidade iam para o corte de cana, e os colonos viviam nas fazendas sem o mínimo de estrutura digna, casa de chão, sem água encanada, uma única torneira aonde todos iam para se servirem. Sem energia elétrica, tudo muito rudimentar.

Foi quando, em 1983, eu acabara de chegar a Londrina como 2º arcebispo. O cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, tinha recebido do presidente internacional do Unicef uma demonstração do recémdescoberto soro caseiro que miraculosamente estava salvando pessoas, particularmente crianças que até então morriam em número indescritível. Pedia fosse feita uma experiência em comunidades de igreja muito pobres com o seu uso unido a outras ações básicas de saúde, a fim de diminuir a mortalidade infantil e melhorar a qualidade de vida da criança.

Dom Paulo indicou-me para, com sua irmã e técnicos também do Unicef, preparar um projeto piloto. Propus à Paróquia de Florestópolis, município com elevado índice de mortalidade infantil. Para tal ninguém mais preparada na área de saúde e com aceitação da Igreja Católica que a dra. Zilda Arns Neumann, médica pediatra, sanitarista, funcionária da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, com grande experiência em saúde pública, acostumada a trabalhar em equipe, capaz de montar o projeto e executá-lo. Já a conhecia em São Paulo por ser irmã de Dom Paulo, com quem trabalhei como sacerdote. Empenhamo-nos na elaboração e execução com muita confiança e certeza de que seria uma inovação benéfica para aquela realidade.

Após a delineação do projeto, teve início a organização da comunidade. Foi mapeado todo o município com a colaboração de professores e lideranças da comunidade, dividida em setores, selecionadas pessoas apontadas pelas mães quando precisavam de algum conselho ou ajuda para socorrer uma criança ou gestante. A partir daí, as líderes identificadas foram convidadas a receber treinamento em cinco ações básicas de saúde: acompanhamento da gestante, aleitamento materno, soro caseiro de reidratação oral, acompanhamento do peso e desenvolvimento da criança, vacinas. Para tal treinamento, dra. Zilda era responsável, assessorada por funcionários da Secretaria de Saúde do Estado.

O treinamento foi feito durante cinco dias. O grupo, muito numeroso foi dividido em cinco subgrupos. Na maioria eram mulheres simples, analfabetas, mas de liderança incrível. Participaram também pessoas de outras Igrejas, inclusive uma das enfermeiras, evangélica, ajudou e foi liberada para compor a Coordenação Arquidiocesana. Pessoa maravilhosa, disponível, que acreditou no trabalho, infelizmente falecida ainda jovem, acometida por um câncer. Outra pessoa, assistente social funcionária do estado, trabalhou desde o começo com grande dedicação. Muitas outras pessoas contribuíram e se dedicaram com afinco. Deus lhes conhece o nome, inscrito no livro da vida.

A Pastoral da Criança, desde seu primeiro momento, começou salvando vidas. No primeiros treinamento, o serviço de saúde local nos mandou uma criança totalmente desidratada, como a nos provar. Naqueles inícios, encontramos muitas resistências de organismos de saúde dos municípios, não obstante dra. Zilda e suas colaboradoras serem do Serviço de Saúde do Estado. Essa criança estava quase morta e lhe foi dado o milagroso soro caseiro. Aos poucos reagiu como uma flor murcha que recebe água e vai se abrindo. Eis o primeiro milagre!

Dra. Zilda Arns foi a grande batalhadora, a incansável. Quando queria uma coisa, lutava até as últimas consequências. Não media esforços nem sacrifícios para se doar em prol das crianças. Ultimamente, criou a Pastoral da Pessoa Idosa. Falar de dra. Zilda é falar de uma mulher forte, determinada, lutadora, de fé, comprometida com a caridade, de amor e confiança no que fazia, certa de que era o caminho certo.

Sem dúvida seu exemplo de esposa e mãe de cinco filhos, médica, sua perseverança em fazer o bem jamais será apagada da memória de quem a conheceu. Tenho certeza de que a Pastoral da Criança vai continuar seu caminho, pois é obra de Deus e o que é de Deus não passa. Dra. Zilda vai continuar intercedendo, pois está na visão beatífica.

Dra. Zilda acreditou na Palavra do Senhor: “O que fizerdes ao menor de meus irmãos, a mim fareis”. Quem é meu irmão? O mais sofrido, o que tem fome, aquele que é considerado sem valor aos olhos do mundo. O que ela acreditou, ela amou, ela deu a vida, como ela o fez desde a primeira hora da Pastoral da Criança até a última hora de vida, falando e amando, e por isso morrendo. Nós cremos que o Senhor a acolheu junto de si: serva bondosa e fiel, entra no gozo de teu Senhor. Descanse em paz.

*Cardeal arcebispo de Londrina
Fonte: Correio Braziliense online, 16/01/2010

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