Rubem Alves*
Estiquei o braço para pegar o colírio que estava sobre o criado-mudo. Meus olhos estavam cheios de areia. Defeito do mecanismo ótico cujo função é lubrificar a córnea com lágrimas. O meu oftalmo me disse que essas lágrimas são uma reminiscência dos tempos em que vivíamos dentro d’água, milhões de anos atrás. Saímos da água mas o corpo teve de arranjar um artifício que continuasse a lubrificar os olhos. Com a idade ele já não funciona direito. Daí a necessidade do colírio.
Acendi a luz, pinguei o colírio, consultei o relógio, cinco e meia, não acordei nem uma vez durante a noite, nem mesmo para fazer xixi. Lembrei-me do jantar feliz da noite anterior. Duas amigas me visitaram (segundo elas mesmas foi uma visita atrasada; deveria ter sido feita pelo menos dois meses antes, quando estava me recuperando da costura de 50 centímetros que os cirurgiões fizeram na minha barriga, estômago e coração). Trouxeram o jantar pronto. Enquanto as esperava fui me aquecendo com meu sacramento Jack Daniel’s e daí passamos para o vinho tinto. Se alguém me perguntasse como tinha sido a minha noite eu responderia automático “Foi bem, graças a Deus...”
Ainda no automático eu iria tomar um banho e comer uma banana e chupar uma manga, mas logo me lembrei de que eu tinha de fazer um exame de sangue em jejum para ver o estado das plaquetas (não me perguntem o que são plaquetas) que haviam descido a um nível perigoso em consequência das cirurgias.
Peguei o jornal sem interesse. Chamou a minha atenção com tristeza e com um sentimento de “assim é a vida” a notícia da morte daquela mulher paradigmática que foi a senhora Zilda Arns, irmã do cardeal Arns, totalmente dedicada à causa das crianças. Setenta e cinco anos. Eu, setenta e seis... Com a idade nos setenta é normal e esperado que se morra. Ela morreu, eu quase, estive bem perto do buraco negro. Tristeza mas não espanto. Morrer faz parte da normalidade da vida.
Só li as letras grandes. As pequenas não consigo ler. Pus os óculos. Aí a mundo ficou absurdo. Zilda Arns que só vivia para as crianças havia sido morta atingida por escombros de um terremoto grau 7 enquanto caminhava numa missão de paz, para que as crianças do Haiti sofressem menos. Logo o Haiti, um dos países mais pobres do mundo.
O jornal New York Times, no dia seguinte ao ataque terrorista às torres do World Trade Center publicou um editorial com o título “Onde estava Deus no dia 11 de setembro de 2001?” Era a pergunta certa a ser feita. Milhares de perguntas técnicas poderiam e foram feitas. Mas a pergunta crucial não tinha a ver com segurança militar, nem com a economia e nem com a morte de centenas de pessoas. A pergunta crucial seria aquela que atinge o nervo da alma. A pergunta crucial tem a ver com a última palavra que se pronuncia quando “o destino bate à porta”. Valem, para aquele momento, as palavras de Unamuno: “O que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia.” Os Estados Unidos são um país cheio de templos, moradas de Deus. Muitas pessoas foram chorar nos templos naquele dia. Mas Deus, onde estava ele naquele dia? Deus é confiável? Se ele tivesse querido bastaria ter movido um dedo... Pode-se acreditar nas palavras sagradas do salmista que declarou: “Caem mil à tua esquerda e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido.” — O sentido da pergunta era a resposta que ninguém se atrevia a dizer: “Não temos mais um Deus em quem confiar...”
Misturei a pergunta teológica com a manchete do jornal. Fui para a Clínica Lane. A televisão dava notícias graves sobre o acontecido no Haiti mas logo passou a dar notícias alegres sobre futebol. É difícil viver num mundo em que a tragédia e o banal aparecem juntos, na mesma tela. O certo é chorar ou é rir? Ou tudo será uma farsa?
Uma senhora lia um Novo Testamento enquanto esperava sua vez. Há Novos Testamentos por todos os lugares, distribuídos pelos “Gedeões”. Pensei que um bom versículo para ser lido seria Romanos 8:28: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus... “ Confesso não entender: qual o bem que acontece aos milhares de velhos, crianças, homens e mulheres mortos por um deslizamento de terra, terremoto ou tsunami? Segundo dizem os teólogos Deus, onisciente e onipotente, sabia com antecedência de milênios que as tragédias iriam acontecer e ele poderia tê-las evitado apenas com um piscar de olhos. Não evitou porque não quis.
Com a morte de dona Zilda Arns o mundo ficou mais triste. Sentimo-nos mais órfãos. Podemos gritar. Não haverá resposta: “Nenhuma palavra veio ao homem ajoelhado. Ele só ouviu a canção do vento. Ou o barulho seco de asas que não via, não eram anjos, eram morcegos no alto do forro da igreja. Ele não virá mais...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, Campinas, 17/01/201
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
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