José Tolentino Mendonça*
Quando penso no contributo que a experiência religiosa
pode dar num futuro próximo à cultura, ao tempo e ao modo da
existência humana, penso que mais até do que a palavra será a partilha
desse património imenso que é o silêncio. Já a bíblica narrativa de
Babel ponha a nu os limites do impulso totalitário da palavra. Mesmo
que construamos a palavra como uma torre, temos de aceitar que ela não
só não toca cabalmente o mistério dos céus, como muitas vezes nos
incapacita para a comunicação e a compreensão terrenas. Precisamos do
auxílio de outra ciência, a do silêncio. Já Isaac de Nínive, lá pelos
finais do século VII, ensinava: «A palavra é o órgão do mundo presente.
O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar».
Na diversidade das tradições religiosas e espirituais
da humanidade, o silêncio é um traço de união extraordinariamente
fecundo. Na tradição muçulmana, por exemplo, o centésimo Nome de Deus é
o nome inefável que não pode ser rezado senão no silêncio. Os místicos
não se cansaram de explorar essa via. Veja-se o persa Rûmi (1207-1247)
que aconselha ao seu discípulo: «Àquele que conhece Deus faltam-lhe as
palavras». Noutra geografia temos a anotação espiritual de Lao-Tsé, «o
som mais forte é o silencioso», ou a de Bashô, «silêncio/ uma rã
mergulha/ dentro de si», ou a de Eléazar Rokéah de Worms, cabalista
judeu que afirmava: «Deus é silêncio».
Também a Bíblia coteja minuciosamente o silêncio de
Deus. E este nem sempre é um silêncio fácil, mesmo se somos chamados a
acreditar na verdade do dístico que nos oferece o Livro das Lamentações:
«É bom esperar em silêncio a salvação de Deus». O silêncio de Deus
fustiga os salmistas: «Ó Deus, não fiques em silêncio; não fiques mudo
nem impassível!» (83,2); leva Job a erguer-se numa destemida teologia
de protesto; e faz o inconformado profeta Habacuc dizer: «Tu contemplas
tudo em silêncio» (Hab 1, 13). O silêncio do Pai será particularmente
enigmático na agonia no Getsémani e na experiência da Cruz, onde Jesus
lança o grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?».
Contemplamos neste grito o mistério de Deus e o do Homem no mais
devastador silêncio que o mundo conheceu. Contudo, é no lancinante
silêncio que sucede ao seu grito que reside a revelação pascal de
Deus.
------------------* Teólogo. Escritor. Poeta.
Fonte: http://www.snpcultura.org/o_elogio_do_silencio.html
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