O amor tal como descrito em 'A soberania do Bem' exige um
esvaziamento de si ausente no Eros grego.
(imagem: Julgamento de Paris/
Enrique Simonet/ Wikimedia Commons)
No sobreCultura, resenha analisa três ensaios filosóficos publicados pela irlandesa Iris Murdoch nos anos 1960 e agora reunidos no livro ‘A soberania do Bem’. Preciosidade na história da filosofia moral, volume tem o amor como tema central.
A filósofa se inscreve na linhagem de Platão, embora o amor tal como descrito em A soberania do Bem
exija um esvaziamento de si ausente no Eros grego. Seu propósito é
mostrar a insuficiência explicativa – e o caráter “demoníaco” – das
“filosofias existencialistas” (definidas de forma ampla de modo a
incluir a filosofia moral analítica), que fazem da vontade o núcleo da
moral.
O livro apresenta uma tese central, metafísica,
sobre a natureza da moralidade: o bem é real
e não algo subjetivo ou
fruto
de escolha arbitrária
Apresenta também uma tese central, metafísica, sobre a natureza da
moralidade: o bem é real e não algo subjetivo ou fruto de escolha
arbitrária. Prova disso é que ninguém acredita, a não ser que
“corrompido pela filosofia”, que o bem seja fruto de nossa invenção.
Estes e outros pontos afastam a autora das concepções morais mais
estabelecidas a partir da modernidade, que dissociam de forma radical
conhecimento e moral, e cuja fonte está em Immanuel Kant (1724-1804).
Ela define sua filosofia como um “naturalismo inclusivo não dogmático” e
entende que o Bom, o Verdadeiro e o Belo só podem ser compreendidos se
articulados entre si.
No entanto, a autora se declara ateia e habita o mesmo mundo
desencantado que os existencialistas que combate: “O mundo não tem
nenhum propósito, é incerto, imenso”. Sua nada fácil tarefa será então a
de conceber o Bem como realidade na ausência de uma finalidade externa.
Mesmo descrente, ela recolhe da religião ideias como pecado,
peregrinação e prece (além da noção de atenção de Simone Weil), que são
suas fortes aliadas nessa empreitada, juntamente com uma concepção da
arte como lugar da verdade e do bem.
Seguindo a direção de um projeto traçado na década anterior pela
também filósofa Elizabeth Anscombe, Murdoch contribui para a chamada
‘ética das virtudes’ ao propor que a filosofia moral se ocupe menos com
os termos gerais e indefiníveis como “bem” ou “certo” e utilize palavras
morais secundárias e concretas, como justiça, compaixão ou humildade.
Escritora exímia e pensadora arguta, Murdoch nos apresenta um texto
no qual verdadeiros aforismos iluminam uma argumentação que se constrói
um tanto elipticamente. Pois no interior de um mesmo ensaio ou entre os
três ensaios presentes no livro, ideias são retomadas e reconstruídas a
partir de diferentes perspectivas e exemplos.
Uma das mais recorrentes é a de que há uma realidade a ser
descoberta, da qual nosso eu é inimigo, pois o amor de si e o orgulho
nos desviam da realidade. Tal realidade tem um sentido normativo, pois
real é o que se mostra depois de vencidos os desvios do eu.
Embate com os filósofos
No ensaio ‘A ideia de perfeição’ (1964), o embate com os filósofos é
mais explícito e a autora argui a insuficiência de uma filosofia da
mente inspirada em Wittgenstein e que pensa a moral a partir das ações
exteriores. Ao retrato da vida moral e da escolha apresentado pelas
filosofias “existencialista, behaviorista e utilitarista”, ela quer opor
outro que pretende explicar melhor o processo de decisão e também
combater o autoengano, irmão do orgulho, daquelas filosofias, cujas
consequências seriam ou o “fatalismo ou a irresponsabilidade”.
À alardeada liberdade de uma vontade sem substância e sem
personalidade que, ao modo de Jean-Paul Sartre (1905-1980), cria o valor
no ato mesmo da escolha, ela opõe, a partir de um exemplo imaginário,
uma trajetória interior de aperfeiçoamento moral dirigida pela atenção à
realidade. O exemplo pretende mostrar que conhecimento e bem habitam o
mesmo mundo: o verdadeiro conhecimento é justo e amoroso.
O segundo ensaio na ordem da tradução, ‘Sobre ‘Deus’ e o ‘Bem’’, foi
na verdade o último a ser publicado (1969). Aqui a autora busca uma
concepção adequada de pecado original, a seu ver imprescindível para a
ética e ausente nas concepções contemporâneas.
O bem deve ser entendido a partir da imagem de Deus:
a maior realidade e,
ao mesmo tempo,
indefinível
A psicanálise é mobilizada para apresentar “um retrato realista e
detalhado do homem decaído”. A arte, na medida em que pinta um quadro
compassivo e justo da natureza humana, faz ver a realidade para além da
apreensão cotidiana e ilusória e, juntamente com Weil, indica caminhos
para a purificação e a aproximação do bem. O bem deve ser entendido a
partir da imagem de Deus: a maior realidade e, ao mesmo tempo,
indefinível. Reelaborando a metáfora platônica do Sol, o bem, misterioso
e irrepresentável, é a luz que faz ver as coisas como realmente são.
O ensaio ‘A soberania do Bem sobre outros conceitos’ (1967) também
enfoca a arte como algo que “se opõe totalmente à pressão egoísta” e
revela o real e o verdadeiro no meio do despropósito. Aqui se introduz
com maior força o tema da fragilidade humana e da aceitação da morte
como aproximação do bem. Aceitar a morte é aceitar a nulidade, mas a
aceitação do vazio, para ser boa, tem que ser o oposto do desespero
existencialista. Pois este – que sem dúvida requer coragem – é base para
o orgulho: lugar da distorção da realidade e da falsa crença numa
liberdade absoluta. “O homem humilde, por se ver como nada, pode ver
outras coisas como elas são.”
Um ponto realmente problemático me parece ser
que, ao identificar o conhecimento e o bem, Murdoch tem que trabalhar
com uma noção um tanto vaga de conhecimento
Poderíamos talvez acusar a linguagem por vezes alusiva da escritora
ao defender seus pontos. Mas creio que isso não seria justo com alguém
que propõe compreender o bem como mistério e afirma que a argumentação
em moral, embora se relacione com o verdadeiro, não é demonstrativa.
Ademais, o caráter misterioso do bem em nada impediria sua realidade,
penso eu: pois não seria a realidade ela mesma nosso mistério cotidiano?
Um ponto realmente problemático me parece ser que, ao identificar o
conhecimento e o bem, Murdoch tem que trabalhar com uma noção um tanto
vaga de conhecimento.
Iris Murdoch, desconfiada da filosofia analítica, afirma que “fazer
filosofia é explorar nosso próprio temperamento, e ao mesmo tempo tentar
descobrir a verdade”. Esta resenhista que, por temperamento, tende a
acreditar em David Hume (1711-1776) e na distância entre ser e dever,
recomenda a leitura destes ensaios a interessados em ética de todos os
temperamentos.
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Reportagem por Telma de Souza Birchal
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2014/319/a-natureza-da-moralidade/view
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