Pedro Gonzaga*
A escritora polonesa Anna Swir
Em seu discurso ao receber o Nobel de
Literatura em 1995, o poeta irlandês Seamus Heaney tocou num ponto que
me parece essencial para a compreensão da experiência lírica: um poema é
uma maneira de perceber o estar no mundo a partir de uma visão que é,
ao mesmo tempo, estrangeira e particular. Uma organização capaz de
“satisfazer todos os apetites da inteligência aderindo-lhes os afetos.
Evento estático e extático, que torna “possível o fluido restaurador que
relaciona o centro da mente com sua circunferência, a criança que
escutava a palavra Estocolmo na esfera do rádio, com o homem que hoje
está em frente a vocês em Estocolmo, neste momento privilegiado.” Heaney
conclui o trecho agradecendo à poesia “em nossa época e em todos os
tempos, por sua fidelidade à vida, em todo o sentido inerente à
expressão.”
Quero
destacar esta ideia de “fidelidade à vida”, acrescentando que nenhuma
experiência artística se assemelha mais ao movimento natural da
consciência em seu deslocar no tempo e no espaço e sua capacidade de
dizê-lo, como queria Santo Agostinho, do que a vivenciada num poema. Com
suas memórias feito imagens, com seus ontens e amanhãs agora, com sua
perplexidade infinita diante da natureza e do mundo de que somos parte e
dos quais estamos irreparavelmente apartados, a poesia ultrapassa a
mera simulação mimética, conferindo-nos uma espécie de mapa da condição
humana, que nos une ao outro por nossos próprios trajetos, como se não
houvera dias, séculos e milênios, distâncias ou geografias.
Fidelidade à vida, como se pode notar neste poema exemplar de Wang Jian, poeta chinês do século VIII:
A nova esposa
No terceiro dia ela desceu até a cozinha,
Lavou as mãos, preparou o caldo.
Sem saber ainda os gostos da sogra,
Pediu à cunhada para experimentá-lo.
Ainda
que nossos costumes sejam diferentes, conhecemos o constrangimento das
relações familiares, o medo de decepcionar as pessoas próximas, a
insegurança dos começos. A história do outro é também a nossa história,
num só lugar, visível e sensível como se fosse nossa própria
experiência. Fiel à vida, o poema não compartimenta os acontecimentos.
Não é apenas racional como a filosofia, lógico como a matemática,
sensível como a carne, documental como a memória. É ocorrência
indivisível, simultânea, é a voz que dentro de nós organiza o banco de
dados, como no belíssimo poema de Anna Swir, poeta polonesa da segunda
metade do século XX:
Eu lavo a camisa
Pela última vez lavo a camisa
de meu pai morto.
A camisa cheira a suor. Lembro
desse suor na minha infância,
por tantos anos
lavei suas camisas e roupas de baixo,
sequei-as
junto ao fogão à lenha na garagem,
ele que as vestia sem passar.
Entre todos os corpos do mundo,
animais, humanos,
apenas um exsudava esse suor.
Inalei-o
pela última vez. Ao lavar esta camisa
destruí-o
para sempre.
Agora
de meu pai restam apenas os quadros
que cheiram a óleo.
Criada
pelo pai que era pintor, Swir compõe uma elegia que nos assusta
fisicamente se temos os pais vivos, que produz evocações entre aqueles
que já os têm mortos. O cheiro de suor do poema tem o cheiro sentido
particularmente por cada um de nós, nas pessoas que amamos. Uma
impressão indivisível, incapaz de ser repartida, exceto por meio da
fidelidade dos versos.
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* Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada e Falso Começo (Editora Ar do Tempo). Acaba de lançar O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica.
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/poesia-em-casa-fidelidade/
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