João Luiz Sampaio*
Aos 13 anos de idade, Paul Nurse encantou-se com uma borboleta. Amarela e trêmula, ele lembra, ela voava de um lado para o outro de uma cerca. Até que uma sombra a assustou, fazendo com que voasse para longe, em busca de refúgio.
Aos 52 anos, já um biólogo e geneticista reconhecido pelos seus pares, professor da Universidade de Oxford, Nurse recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta de moléculas de proteína que controlam a divisão, ou duplicação, de células.
Nos quase quarenta anos que separam o menino do profissional, Nurse colocou-se constantemente uma mesma pergunta: o que é a vida? E aquilo que descobriu está reunido no livro não por acaso batizado de O Que É a Vida? – Compreendendo a Biologia em Cinco Passos, agora lançado no Brasil pela editora Intrínseca em tradução de Livia de Almeida.
Os cinco passos referem-se ao que Nurse chama de “cinco grandes ideias da Biologia”: a célula, o gene, a evolução por seleção natural, a vida enquanto química e a vida enquanto informação. A ideia, ele explica, é “usá-las como passos que podemos dar, um de cada vez, para melhor percebermos o modo como a vida funciona”.
À primeira vista, pode soar como um tema de difícil compreensão – capaz de evocar as memórias nem sempre felizes das aulas e provas de Biologia na escola. Mas o livro se escreve como um romance, em que uma história nos é contada. No caso, a história de como, com o tempo, a compreensão sobre os seres vivos foi sendo desenvolvida e elaborada. De maneira ágil, Nurse passeia pela história, mostra o momento em que estamos e o que podemos esperar do futuro, tanto na pesquisa como em sua aplicação.
“Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. O que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo”, conta ele. “Fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito”, completa.
Na entrevista a seguir, ele fala ao Estadão sobre a gênese do livro, lançado no ano passado na Inglaterra, o modo como ele ganhou sua forma final e sobre temas atuais, como a relativização do conhecimento científico e a desconfiança de certos grupos com relação a vacinas, evidente durante a pandemia.
Como surgiu a ideia de escrever este livro?
As livrarias estão cheias de livros de ciência destinados ao público em geral, resumindo e apresentando as grandes ideias da Física, como a Mecânica Quântica, por exemplo. Se na Física essa é uma prática comum, no campo da Biologia, isso não acontece. Isso se dá talvez pelo fato de que estamos sempre olhando para o futuro, pensando em como transformar a Medicina, por exemplo, especulando sobre possibilidades, sobre coisas que ainda não aconteceram, acreditando no poder do nosso campo de ajudar a construir esse futuro. Mas isso não significa que não devemos celebrar aquilo que nós já sabemos, o que já descobrimos, as ideias centrais sobre nosso funcionamento, e apresentá-las em conjunto.
O livro trata de questões técnicas específicas, mas, de alguma forma, pode ser lido como um romance, há uma história sendo contada, despertando a curiosidade. Em que medida essa foi uma preocupação durante a escrita?
É uma obrigação nossa tentar popularizar essas ideias, oferecendo um olhar diferente sobre a vida. Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. A Biologia é estudada nas escolas, e os leitores provavelmente vão reconhecer termos e palavras sobre os quais precisaram responder em provas e testes. Mas o que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo.
Em diversos momentos do livro, a filosofia se faz bastante presente na narrativa. E as ideias de pensadores como Aristóteles, Humboldt e Kant se tornam importantes na compreensão da ciência da qual o senhor está tratando na obra.
A Biologia carrega um aspecto filosófico. Ela não é uma ilha e você se dá conta disso quando olha com clareza a filosofia básica das coisas. A presença de Immanuel Kant em um livro sobre Biologia pode gerar surpresa, claro, mas é possível pensar a ideia de uma filosofia moral no fato de estarmos vivos. Ter uma compreensão das ideias de Kant ou de vários outros pensadores importantes pode ser fundamental para qualquer biólogo.
O senhor mostra como a membrana externa delimita o que está dentro ou fora da célula, colocando uma ideia de limite e de como se dá a relação entre o indivíduo e o ambiente em que vive. Poderíamos encontrar nesse fato científico uma metáfora das próprias relações humanas, ou seja, daquilo que é individual e como ele colabora com o coletivo?
Seres vivos são marcados pela interação e essa interação ajuda a entender o que é a vida. A interação entre indivíduos da mesma espécie, nesse sentido, pode bem ser uma metáfora. Estamos falando da Sociobiologia, um campo que nos últimos quarenta anos tem pensado a natureza biológica do ser humano levando em consideração as relações humanas. E muitas das descobertas nesse sentido têm de fato múltiplas implicações.
No livro, o senhor chama atenção para a necessidade de entendermos a Biologia como um conjunto de ideias e não apenas de fatos. Por quê?
Isso é fundamental. Estamos afogados em dados, informações. E para mim essa é a importância desse livro. Não se trata de um livro técnico, que costuma ser uma lista de fatos. Pois fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto, tratando de ideias mais amplas sobre a química da vida. Daquilo que é particular, dos detalhes, podemos partir em direção a contextos mais amplos, nos quais se torna mais fácil discutir princípios básicos da vida. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito.
O livro é, em certa medida, uma defesa da ciência como ponto de partida para transformações não apenas pessoais, mas também para questões como a preocupação com o ecossistema, por exemplo. Vivemos, porém, em uma época na qual a relativização do conhecimento científico é flagrante, desde a crença de que a Terra é plana até a certeza de que há, nas vacinas, pequenos chips que permitirão o controle das pessoas que forem vacinadas. O que fizemos para chegar a esse ponto?
A humanidade sempre pode ser um pouco estranha. O Iluminismo e a idade da razão, claro, mudaram um pouco as coisas, permitindo que as pessoas buscassem e entendessem a natureza do mundo. E, em geral, seguimos nesse caminho. Mas sempre haverá a loucura de algumas pessoas. Isso, acredito, não é novo. Mas as redes sociais acabaram colocando essas pessoas em contato umas com as outras e isso fez delas uma força. E precisamos estar atentos a isso. O exemplo do chip do qual você me conta me parece impressionante, e há muitas outras teorias absurdas. E o caso das vacinas é interessante, porque em outros momentos da história também houve questionamento a elas. Enfim, não estaremos livres dos aspectos mais ridículos da natureza humana. Mas é preciso que continuemos a informar, a dar segurança às pessoas, da forma mais educada possível, e com paciência, para não amplificar ainda mais aquilo que é irracional.
Leia um trecho de 'O que é a Vida?'
“A partir de uma perspectiva mais ampla sobre a vida, desenvolve-se uma visão mais rica do mundo vivo. A vida na terra pertence a um único ecossistema, imensamente interligado, que incorpora todos os seres vivos.
Tal conexão fundamental vem não apenas da profunda interdependência, mas também do fato de que toda a vida é geneticamente relacionada por raízes evolutivas compartilhadas. Essa perspectiva de uma relação profunda e interligada é defendida há muito tempo pelos ecologistas. Tem sua origem no pensamento do explorador e naturalista do século XIX Alexander von Humboldt, que defendia que toda vida é ligada por uma teia holística de conexões. Por mais inesperada que seja, essa teia é central à vida, e deveria nos dar bons motivos para pensar com mais profundidade sobre o impacto da atividade humana no resto do mundo vivo.
(...) Se toda vida é parte da mesma árvore da família, que tipo de semente deu origem a ela? De algum modo, em algum lugar, há muito tempo, produtos químicos inanimados e desordenados se combinaram em formas mais organizadas, capazes de se perpetuar, se copiar e, enfim, ganhar a importantíssima capacidade de evoluir pela seleção natural. Mas como essa história, que acabou sendo a nossa, teve seu início?"
*Jornalista
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