sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Homem, deus para o homem

André Gonçalves Fernandes*
Desde seu advento, o evolucionismo tende cada vez mais a deixar de ser uma simples hipótese científica para se tornar uma explicação da humanidade e de sua estrutura moral. Vira lei universal. Tal concepção invade todas as ciências: anatomia, genética, geologia, antropologia, sociologia, psicologia e economia. Houve quem disse que a inteligência de um povo se mede pela fé na evolução...
O evolucionismo, ao lado do cientificismo (Correio, 18/09), juntam-se para fundar o denominador comum do pensamento moderno: o mito do progresso. Desde que desceu da árvore, com perdão da troça darwinista, a humanidade nunca mais deixou de avançar para um tipo mais perfeito, para formas de civilização mais bem organizadas, graças à ciência e aos meios cada vez mais poderosos de que esta dispõe, até que se domine o mundo e a vida.
A ascensão triunfante do homem é coisa certa. Tudo deve ser ordenado para o progresso, como, aliás, diz a bandeira nacional. Mesmo após os terríveis avisos do Holocausto e de Hiroshima, a ideia ainda fascina as consciências atuais. É preciso dizer que esta mentalidade recusa o transcendente e os mistérios que nos cercam?
O evolucionismo e o cientificismo vão muito além do axioma (pouco confortável, diga-se) relativo à nossa descendência símia. Inauguram uma concepção de mundo e de homem oposta a tudo o que fora dito durante os 18 séculos anteriores. A própria ideia de uma origem intencional do mundo e de uma finalidade é inadmissível: a criação é tão absurda quanto a Providência.
Por que razão o homem havia de se sentir dependente de um ser superior, a quem devesse adoração? Ao que parece, o laboratório substituiu o oratório... Também a imagem de debilidade do homem perde o sentido se uma evolução fatal conduzirá a humanidade para um estado de perfeição superior.
Há outro aspecto do pensamento atual que deve ser visto, se for para compreender a sentença de morte de Deus, assinada por Nietzsche: as negações enumeradas acima são reforçadas por afirmações determinantes para o processo da irreligião. Não se trata apenas de ateísmo, mas de um humanismo ateu.
No vácuo deixado pela crença divina, tão grande para o homem é a necessidade de crer, que uma outra fé se hospeda: a fé no próprio homem. Opera-se a substituição da religião, o único meio de assegurar a sua total destruição.
O humanismo ateu não é mais inovador do que as doutrinas da irreligião, que nasceram e cresceram com a rebelião da inteligência. A Revolução Francesa formulara-lhe a doutrina e Feuerbach sintetizou numa fórmula: Homo homini deus. O homem, deus para o homem. A mesma idéia invadiu os meios científicos, motivou os arautos do progresso e os idealistas, para quem o pensamento inclui até mesmo esse mundo e o chama à existência.
O homem medida de tudo, a única razão de ser: eis a imagem cada vez mais marcante, mas falaciosa, conforme mostrarão os anos e os fatos que se irão surgir cada vez mais catastróficos. Paradoxalmente, a glorificação do homem caminhará ao lado de sua degradação e não tardará a vir a sua radical negação. Se o ser humano não vai além de um punhado de moléculas regido, no comportamento, por forças cegas (como na cantata Carmina Burana), onde se funda sua grandeza?
Na época do humanismo ateu, surgem os monstros totalitários, com os seus métodos de redução dos indivíduos à escravidão do coletivo, de reengenharia social e de aniquilamento daquilo que faz o homem: a possibilidade e o direito de realizar um destino pessoal. Parece que a hybris grega, a insolência decorrente da pretensão de competir com a divindade e sempre punida com catástrofes, deixou o campo da mitologia e deu o ar de sua graça...
Para que o homem seja deus, é preciso que não haja Deus, o obstáculo decisivo à realização do homem, entrave que importa superar para sermos o que somos, verdadeiramente livres. A irreligião tira daí sua originalidade, que é também seu extremo e sua ruína.
*André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré
http://cpopular.cosmo.uol.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1655113&area=2190&authent=08DAD56559C8823048EDF7615ABAA2

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