domingo, 11 de outubro de 2009

(Não) Amo, logo penso

Marie Lemonier*



O cupido também flechou os mais agudos pensadores da história. Nem todos se apaixonaram de fato, é verdade, mas muitos deles dedicaram-se a filosofar sobre o amor. As jornalistas francesas com especialização em Filosofia Aude Lancelin e Marie Lemonnier revisaram os escritos e a biografia de 12 dos maiores nomes do pensamento ocidental para provar que, ao contrário do que se convencionou acreditar, também os filósofos versaram sobre o jogo amoroso.


Os Filósofos e o Amor percorre reflexões e (des)amores de Platão, Lucrécio, Montaigne, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Hanna Arendt, Sartre e Simone de Beauvoir: um achado para conhecedores de filosofia e um convite saboroso para os não-iniciados. De um capítulo a outro, o leitor encontrará amantes libertários, solteirões empedernidos, misóginos radicais, idealizadores do amor, detratores do casamento e da monogamia, apaixonados desiludidos... Mudam as ideias e os amores, mas se mantêm o texto instigante e as observações perspicazes das autoras, que nos brindam com comentários acurados e cotejam teses e escritos contundentes com a vida amorosa e – como sugeriria Freud – até mesmo a relação de seu autor com a mãe. Mas Os Filósofos e o Amor tem muito mais a oferecer do que curiosidades ou frases de efeito. Resume um percurso de dois milênios de reflexões provocativas e surpreendentes sobre o amor, ora tolices datadas, ora iluminações visionárias, desnudando grandes pensadores. As autoras só não garantem que os filósofos possam oferecer consolo para dores de amor. Isso, elas deixam a critério do leitor.

Leia a entrevista concedida desde a França, por Marie Lemonier


Donna – A ideia da alma gêmea, apresentada em O Banquete, de Platão, é desconstruída por muitos filósofos e também pelas decepções amorosas que enfrentamos na vida. Por que, apesar de tudo, tantas pessoas ainda acreditam em um par perfeito?

Marie Lemonnier - Talvez porque o amor seja nosso único consolo contra a angústia da morte. E sem dúvida porque a ideia da alma gêmea aparece desde as origens da filosofia em O Banquete. Trata-se do mito da metade da laranja da qual nós fomos originalmente separados pela vontade de Zeus. Nós o encontraremos mais tarde na imagem do sapatinho da Cinderela, que simbolizará em nosso imaginário esse ser único, desconhecido, que nos espera em algum lugar. A lógica gostaria que o reencontro das duas metades oferecesse um sentimento de completude, mas seguidamente as condições da vida, nossos fracassos, nossos múltiplos desejos e contrariedades refutam esta ilusão. No entanto, esta crença inconsciente persiste. Por quê? Segundo Platão, a razão disso reside no trágico da condição humana.

Donna - O livro mostra o quanto a biografia dos filósofos influenciou suas reflexões sobre o amor e nos leva a pensar se alguns deles seriam menos cínicos ou céticos sobre este tema se tivessem tido uma vida amorosa mais feliz. Até que ponto as experiências pessoais podem comprometer as teorias de um pensador sobre o amor?

Marie - É verdade que os filósofos são prudentes, por vezes desconfiados diante do sentimento amoroso, que perturba sua calma interior. Mas não são tão céticos. Há duas grandes correntes de pensamento: de um lado, aqueles que exaltam o amor, que veem nele um acesso à eternidade, como Platão ou Kierkegaard, ou ainda uma força civilizatória como Rousseau. De outro, há efetivamente os Lucrécios, os Schopenhauers, que veem o amor como uma fonte potencial de sofrimento, do qual seria melhor se afastar. Podemos encontrar numerosas ligações entre o olhar desses grandes homens sobre o amor e suas vidas pessoais. Não se entende nada da filosofia de Kierkegaard se ignoramos a ruptura enigmática de seu noivado com Régine Olsen. Que alguns tenham vivido poucas relações amorosas, ou que as tenham mal vivido, não os desqualifica em nada. Acho consolador que esses espíritos brilhantes tenham conhecido os mesmos problemas que nós.


Donna – Os relacionamentos efêmeros, o hedonismo, o individualismo e a dificuldade de lidar com a dor são sinais da atualidade das ideias de Lucrécio, que propunha amores plurais em vez de se submeter aos riscos e sofrimentos de um único amor?


Marie - A contemporaneidade das ideias desse pensador romano
é difícil de delinear. Chega a ser um problema. Lucrécio tem uma visão negra, angustiada do amor, muito próxima do niilismo da nossa época. Ele nos fala do medo de sofrer, da cegueira diante do ser amado. Qual é o remédio dele para desmontar o quebra-cabeça? A libertinagem. É preciso, diz ele, cultivar os amores plurais. Mas percebe-se bem a tentativa desesperada. A promessa de nos libertar do sofrimento amoroso não é senão um engano. O que Lucrécio teve o mérito de revelar, malgrado ele próprio, é que é por despeito e por obsessão que o amor exclusivamente físico se torna um refúgio.



*Jornalista francesa com especialização em Filosofia.


Reportagem de PATRÍCIA ROCHA - Zero Hora - Caderno DONNA - 11/10/2009

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