Katie Zezima*
Vizinhos do escritor que morreu na semana passada
garantem que ele era simpático e nada recluso
Seu personagem mais famoso, Holden Caulfield, disse que é impossível encontrar um lugar "agradável e de muita paz", mas parece que J.D. Salinger descobriu algo muito próximo nos bosques desta minúscula cidadezinha. Aqui, Salinger era apenas Jerry, um homem tranquilo que chegava cedo ao jantar da igreja, cumprimentava com a cabeça enquanto comprava um jornal no armazém e, certa vez, deixou um bilhete agradecendo aos bombeiros que apagaram um incêndio na sua casa, ajudando-o a salvar seus papéis e manuscritos.
Apesar da fama, Salinger "não era um recluso", segundo Nancy Norwalk, bibliotecária da Philip Read Memorial Library de Plainfield, que Salinger costumava frequentar. "Ele era uma pessoa da cidade." E na semana passada, depois da sua morte, os vizinhos não falaram dele, obedecendo ao código do lugar. "Ninguém queria invadir sua privacidade, e todos a preservavam - do contrário ele não teria permanecido aqui todos esses anos", comentou Sherry Boudro, da vizinha Windsor, Vermont, cujo pai, Paul Sayah, foi amigo de Salinger na década de 70. "A comunidade o via como uma pessoa, não apenas como o autor de O Apanhador no Campo de Centeio. Ela o respeitava. Ele era um indivíduo que só queria viver sua vida."
Os curiosos costumavam chegar a Cornish perguntando como chegar à casa de Salinger. Em vez de encontrar a casa, os intrusos iam parar às vezes no meio do mato. Dependendo da arrogância dos estranhos, estes poderiam ir parar bem mais longe, conta Mike Ackerman, proprietário da Cornish General Store.
"Salinger era como o ícone do Batman. Todos sabem que Batman existe, e todos sabem que existe uma batcaverna, mas ninguém revela onde ela está." Cornish, uma cidadezinha com cerca de 1.700 habitantes à margem do Rio Connecticut, tem dois armazéns, uma agência dos Correios, uma igreja e quilômetros de bosques de pinheiros, carvalhos, campos cultivados e colinas a perder de vista. O lugar sempre foi um refúgio de artistas e escritores durante o verão, um esconderijo no meio dos bosques para os amantes da solidão.
Parece que Salinger adorava este lugar. Até poucos anos atrás, votava nas eleições, participava das reuniões na Escola Elementar de Cornish e todos os dias fazia uma visita ao Plainfield General Store antes do fechamento. Muitas vezes era visto no supermercado Price Chopper em Windsor, que é separada de Cornish por uma ponte coberta e agora pelo rio coberto de gelo, e costumava almoçar sozinho no Windsor Diner.
Dizem também que Salinger ia à biblioteca do Dartmouth College e, vez por outra, participava de festas na casa dos vizinhos. Na década de 50, Salinger gostava de sair com os estudantes do Colégio Windsor, contam os habitantes, reunindo-se com eles no Nap"s Lunch, uma lanchonete.
Salinger e a mulher, Colleen O"Neill, eram "muito generosos" com a cidadezinha de Cornish, disse Keith L. Jones, vereador e proprietário da Cornish Automotive. Colleen, que se casou com Salinger no fim dos anos 80, é uma pessoa de qualidades excepcionais e participa ativamente da vida da comunidade. É também uma defensora do meio ambiente: adquiriu lotes de terra ameaçados pelas incorporadoras por toda a região. Em meados do ano passado, preservou um velho celeiro da propriedade do casal, que dá para o Monte Ascutney e de onde se descortina a paisagem do Vermont.
"Ela dizia: "Jerry quer que eu ponha abaixo o celeiro. Mas quero conservá-lo"", conta Taylor. Nos últimos anos, Salinger saía pouco de casa, mas "adorava o jantar da igreja", diz Jones.
O escritor era um dos frequentadores mais assíduos dos almoços com rosbife de US$ 12, da Primeira Igreja Congregacional de Hartland, Vermont. Costumava chegar antes do horário, e matava o tempo escrevendo num caderninho de espiral, diz Jeannie Frazer, que é membro da Igreja. Salinger usava quase sempre calça de veludo cotelê e uma malha, e não abria a boca. Sentava-se na cabeceira da mesa, perto do lugar onde as tortas ficavam expostas.
Compareceu ao jantar costumeiro pela última vez em dezembro, e Colleen buscou a comida nos dois últimos sábados. Salinger era um dos poucos frequentadores que davam alguns trocados às crianças. "Nem todos dão uma gorjeta", conta Stuart Farnham, cujo filho uma vez recebeu uma gorjeta de US$ 2 do escritor.
Merilyn Bourne, presidente da Câmara dos Vereadores de Cornish, comprou uma casa da ex-mulher de Salinger na década de 80. A casa tinha um túnel que levava da garagem até o edifício principal, e cuja finalidade era preservar a sua privacidade. Bourne contou que, um dia, logo depois que comprou a casa, estava consertando um cano furado na cozinha quando ouviu um vozeirão perguntar, "Quem está aqui?", no outro cômodo. Era Salinger, que queria saber quem estava lá. Depois de ouvir a explicação, foi embora e os dois nunca mais voltaram a se falar.
Anos mais tarde, Bourne se mudou para outro imóvel mais perto de Salinger. Ele costumava parar em seu Toyota Land Cruiser bege para conversar com os filhos de Bourne, que brincavam na frente da casa. Fazia perguntas sobre a escola, os brinquedos. No inverno, as crianças batiam à porta de Salinger pedindo para escorregar de trenó na colina ao lado da sua casa, e ele sempre deixava. "Compreendo por que, depois de ser perseguido por tantos anos, ele achava os adultos suspeitos e as crianças não", diz Bourne. Peter Burling, que vive na cidadezinha e foi senador estadual, viveu perto da casa de Salinger e lembra dele como um vizinho comunicativo, que sempre cumprimentava as pessoas.
Anos atrás, Burling pintou de vermelho o poste da parada de ônibus no pé da colina para o filho. Os sites ensinavam às pessoas que procuravam a casa de Salinger para virar na parada. Mais tarde, Burling a vendeu para Christian Karl Gerhartsreiter, um alemão que se dizia parente dos Rockefeller e mais tarde foi condenado pelo sequestro de um filho. Um dia, um visitante curioso acabou na casa de Gerhartsreiter, lembra Burling. "As pessoas viravam e iam até a sua casa, pedindo para conhecer Salinger."
O autor não aprovava todos os costumes e o estilo de vida da Nova Inglaterra. Há gerações, todos os anos, estas cidadezinhas nomeiam numa reunião na prefeitura um apanhador honorário de porcos - uma pessoa que consegue apanhar um animal em fuga. Em Cornish, por brincadeira, todos os anos eram nomeados recém-casados. Na década de 50, Salinger e sua primeira esposa, Claire, receberam o título honorífico, conta Taylor. "Mas, pelo que sei, ele não gostou muito."
________________________________________
*THE NEW YORK TIMES, CORNISH, NEW HAMPSHIRE
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA:
POSTADO ESTADÃO ONLINE, 03/02/2010

Nenhum comentário:
Postar um comentário