domingo, 5 de dezembro de 2010

O discurso do Universo

MARCELO GLEISER*
Imagem da Internet
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"É verdade que tenho certo xodó
pelos seres humanos,
encontro neles uma magia que
vai além do sobreviver"

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Gostaria de começar agradecendo aos membros da raça humana que, usando sua criatividade e diligência, têm aprendido tanto sobre minhas propriedades nos últimos milênios. Neste discurso, para manter a clareza, usarei a noção humana de tempo, a qual, apesar de sua inocência, é bem prática.
Continuo em expansão, como é o caso já há 13,7 bilhões de anos. Confesso que, durante a maior parte desse tempo, me senti bem sozinho.
O silêncio era profundo, nenhuma mente perscrutando os mistérios que criei para me distrair durante a passagem das eras.
Na infância, meu volume era repleto de partículas e de radiação que, devido ao enorme calor e à grande pressão, interagiam furiosamente sem criar qualquer estrutura mais complexa.
Apenas após 400 mil anos surgiram os primeiros átomos. Mesmo assim, só os mais simples estavam presentes- os que os humanos chamam de "hidrogênio" e "hélio".
É verdade que tenho certo xodó pelos humanos. Existem muitas formas de vida espalhadas pelo meu domínio. Embora algumas sejam bem curiosas, a maioria não faz nada mais do que sobreviver. Já nos humanos, encontro aquela mágica que faz toda a diferença, uma apreciação por coisas que vão além do mero sobreviver. Inventaram conceitos como dignidade, respeito e amor, que considero muito criativos.
Talvez sejam eles a razão pela qual outras formas de vida inteligente se autodestroem após atingir uma certa sofisticação tecnológica, enquanto os humanos permanecem vivos.

"Acho que estão finalmente entendendo
que é melhor manterem suas cabeças abertas
e olhar para a Natureza com humildade.
Quanto mais estudarem os meus mistérios,
mais surpresas encontrarão."

Esses primeiros átomos de hidrogênio, devido à ação da gravidade, condensaram-se em esferas gigantes, as estrelas. No seu centro, temperaturas de 15 milhões de graus Celsius levam o hidrogênio a virar hélio, o segundo elemento.
É essa transmutação que mudou a minha história. Nada é mais importante do que ela! Dela, estrelas em ignição produzem a energia e a luz que aquecem seus planetas; dela, a vida extrai energia; dela, quando as estrelas se aproximam do fim de suas vidas, outros elementos químicos são formados e distribuídos pelo espaço, tornando a vida possível por todo o meu domínio.
Para o meu deleite, esses humanos entenderam tudo isso em apenas 400 anos. Mesmo assim, adorei ver a cara de alguns de seus cientistas quando descobriram, recentemente, que minha expansão está em aceleração. Acho que estão finalmente entendendo que é melhor manterem suas cabeças abertas e olhar para a Natureza com humildade. Quanto mais estudarem os meus mistérios, mais surpresas encontrarão. Espero que os outros brutos que existem em meu domínio, que passam sua existência lutando e se matando por razões patéticas, aprendam essa lição e comecem a se dedicar à busca pelo conhecimento.
Sei que fui parcial quando deixei a Terra se formar 4,6 bilhões de anos atrás. É mesmo um mundo especial. Estranho que os humanos estejam demorando tanto para entender isso. Especialmente agora, que podem estudar outros mundos. Espero que acordem logo. Nesse meio tempo, continuarei a criar e destruir mundos. Assim, me divirto e inspiro os humanos a aprenderem mais sobre mim. Afinal, preciso ser franco.
Até mesmo eu sou uma invenção das suas mentes.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha online, 05/12/2010

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