Robert Fisk*
Imagem da Internet
“Um julgamento preocuparia mais pessoas que Bin Laden.
Afinal, ele poderia ter falado sobre seus contatos com a CIA
durante a ocupação soviética do Afeganistão,
ou sobre suas reuniões íntimas em Islamabad com o príncipe Turki,
o chefe da inteligência da Arábia Saudita.
Como Saddam – que foi julgado pela morte de apenas 153,
em vez dos milhares de curdos que morreram em câmaras de gás –
foi enforcado antes de ter uma chance de falar
sobre os componentes do gás que vieram dos Estados Unidos,
sobre sua amizade com Donald Rumsfeld,
sobre a assistência militar que recebeu dos Estados Unidos
quando invadiu o Irã, em 1980”.
Uma pessoa insignificante, de meia idade, um fracasso político ultrapassado pela história – por milhões de árabes que exigem liberdade e democracia no Oriente Médio – morreu no Paquistão ontem. E então o mundo enlouqueceu.
Logo depois de nos ter mostrado uma cópia de sua certidão de nascimento, o presidente norte-americano apareceu no meio da noite para nos mostrar uma certidão de óbito de Osama Bin Laden, morto em uma cidade cujo nome é de um major do exército do velho Império Britânico. Um único tiro na cabeça, nos disseram. Mas o voo secreto do corpo para o Afeganistão e um sepultamento igualmente secreto no mar? O estranho e arrepiante destino do corpo – sem túmulos, por favor – foi tão assustador quanto o homem e sua impiedosa organização.
Os norte-americanos estavam bêbados de alegria. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, pensou que representava um “grande passo para frente”. A Índia o descreveu como “um marco vitorioso”. “Um triunfo retumbante”, jactou-se o primeiro-ministro israelense Netanyahu. Mas depois de 3.000 norte-americanos mortos no 11 de setembro e incontáveis outros no Oriente Médio, até meio milhão de muçulmanos mortos no Iraque e no Afeganistão e dez anos de tentativas de achar Bin Laden, por favor, não tenhamos outros “triunfos retumbantes”. Ataques de vingança? Talvez eles venham de pequenos grupelhos do Ocidente sem contato com a Al Qaeda. Com certeza tem alguém pensando numa Brigada do Mártir Osama Bin Laden. Talvez no Afeganistão, entre os talibãs.
Mas as revoluções massivas no mundo árabe nos últimos quatro meses significam que a Al Qaeda estava politicamente morta. Bin Laden disse ao mundo – na verdade, me disse pessoalmente – que queria destruir os regimes pró-ocidentais no mundo árabe, as ditaduras dos Mubaraks e dos Ben Alis. Ele queria criar um novo Califado Islâmico. Mas nos últimos meses, milhões de muçulmanos árabes se levantaram e estavam preparados para seu próprio martírio – não pelo islã, mas por liberdade e democracia. Bin Laden não se livrou dos tiranos. Mas o povo. E o povo não queria um califa.
Reuni-me com o homem três vezes e fiquei com apenas uma pergunta para lhe fazer: o que ele pensava enquanto assistia às revoluções que surgiram este ano, sob as bandeiras de países em vez da do Islã, feitas por cristãos e muçulmanos juntos, o tipo de pessoas que os homens da Al Qaeda estavam prontos para assassinar?
Para ele, a conquista tinha sido a criação da Al Qaeda, a instituição que não tinha membros de carteirinha. Você simplesmente acordava de manhã, queria ser da Al Qaeda, e era. Ele era o fundador. Mas ele nunca foi um guerreiro experimentado. Não havia computador em sua caverna, nem telefone celular para detonar bombas. Enquanto os ditadores árabes governavam sem contestação com o nosso apoio, negavam-se a condenar a política norte-americana; somente Bin Laden dizia isso. Os árabes nunca quiseram jogar aviões contra prédios altos, mas admiravam um homem que dizia o que eles gostariam de dizer. Mas agora, cada vez mais, eles podem dizer essas coisas. Não precisam de Bin Laden. Ele tinha se tornado uma pessoa insignificante.
Mas, falando em cavernas, a morte de Bin Laden coloca o Paquistão em um foco desconfortável. Por meses, o presidente Ali Zadari nos dizia que Bin Laden vivia em uma caverna no Afeganistão. Agora sabemos que ele estava morando numa mansão no Paquistão. Traído? Naturalmente que foi. Pelo exército do Paquistão ou pelos serviços de inteligência do Paquistão? Possivelmente pelos dois. O Paquistão sabia onde ele estava.
Abbottabad era não apenas sede do colégio militar do país – a cidade foi fundada pelo major James Abbott, do exército britânico, em 1853 –, mas é também a sede do quartel-general da Segunda Divisão do Exército do Norte do Paquistão. Cerca de um ano atrás, tentei entrevistar outro dos “homens mais procurados” – o líder do grupo que teria sido responsável pelos massacres de Mumbai. Eu o encontrei na cidade paquistanesa de Lahore, custodiado por policiais paquistaneses uniformizados, armados de metralhadoras.
Naturalmente, há uma questão mais óbvia sem resposta: os norte-americanos não poderiam ter capturado o Bin Laden em vez de matá-lo? A CIA ou os Seals da Marinha, as forças especiais dos Estados Unidos, ou qualquer que tenha sido o grupo que matou Bin Laden, não tinham meios de jogar uma rede sobre o tigre? “Justiça”, disse Barack Obama referindo-se à sua morte. Nos velhos tempos, naturalmente, “justiça” significava um processo, um tribunal, uma audiência, uma defesa, um julgamento. Assim como os filhos de Saddam, Bin Laden foi morto a tiros. Certamente, ele nunca queria ser preso – e havia baldes de sangue no quarto onde morreu.
Mas um julgamento preocuparia mais pessoas que Bin Laden. Afinal, ele poderia ter falado sobre seus contatos com a CIA durante a ocupação soviética do Afeganistão, ou sobre suas reuniões íntimas em Islamabad com o príncipe Turki, o chefe da inteligência da Arábia Saudita. Como Saddam – que foi julgado pela morte de apenas 153, em vez dos milhares de curdos que morreram em câmaras de gás – foi enforcado antes de ter uma chance de falar sobre os componentes do gás que vieram dos Estados Unidos, sobre sua amizade com Donald Rumsfeld, sobre a assistência militar que recebeu dos Estados Unidos quando invadiu o Irã, em 1980.
Estranhamente, Bin Laden não era o “homem mais procurado” pelos crimes internacionais contra a humanidade do 11 de setembro de 2001. Ele ganhou o status do Velho Oeste por conta dos ataques anteriores contra as embaixadas dos Estados Unidos na África e contra o quartel dos Estados Unidos em Dhahran [Arábia Saudita]. Bin Laden sempre estava esperando pelos mísseis cruzeiro – eu também, quando o encontrei. Ele vinha esperando pela morte antes, nas cavernas de Tora Bora, em 2001, quando os guarda-costas não permitiram que ele se levantasse e lutasse e o forçaram a atravessar as montanhas do Paquistão. Passava parte do tempo em Karachi, ele era obcecado por Karachi; chegou a me dar duas fotografias de pichações pró-Bin Laden nas paredes da ex-capital paquistanesa e elogiou os ímãs da cidade.
As relações de Bin Laden com outros muçulmanos eram misteriosas; quando o encontrei no Afeganistão, ele inicialmente temia os talibãs, negando-se a permitir que eu viajasse para Jalalabad de seu campo de treinamento, à noite – me entregou para que subordinados da Al Qaeda me protegessem na jornada do dia seguinte. Seus seguidores odiavam os muçulmanos xiitas como hereges e todos os ditadores como infiéis – embora estivesse preparado para cooperar com os ex-baasistas do Iraque na sua luta contra os invasores norte-americanos e disse isso numa gravação de áudio que a CIA ignorou por completo. Bin Laden nunca elogiou o Hamas e desprezava os “guerreiros santos” que, nesta segunda-feira jogavam a favor de Israel.
Nos anos pós-2001, mantive fraca comunicação indireta com Bin Laden, certa vez encontrando-me com um de seus sócios de confiança da Al Qaeda num lugar secreto do Paquistão. Escrevi uma lista de 12 perguntas, a primeira das quais sendo óbvia: que tipo de vitória ele poderia declarar se suas ações tinham resultado na ocupação de dois países muçulmanos? Não houve nenhuma resposta por semanas. Então, num fim de semana, esperando para dar uma palestra em Saint Louis, nos Estados Unidos, fui informado de que a Al Jazeera tinha divulgado uma nova gravação de Bin Laden. E uma a uma – sem me mencionar – ele respondeu minhas 12 perguntas. E, ele queria que os norte-americanos fossem ao mundo muçulmano, assim poderia destruí-los.
Quando o jornalista Daniel Pearl, do Wall Street Journal, foi sequestrado, escrevi um longo artigo no Independent, pedindo a Bin Laden que tentasse salvar a vida dele. Pearl e a mulher tinham me protegido quando fui espancado na fronteira afegã em 2001; Pearl até me deu os contatos da agenda dele. Bem mais tarde, fui informado de que Bin Laden havia lido meu texto com tristeza, mas Pearl já tinha sido assassinado. Pelo menos foi o que disse.
Mas as próprias obsessões de Bin Laden arruinavam também a sua família. Uma mulher o deixou, outras duas parece que foram mortas no ataque norte-americano de domingo. Conheci um dos seus filhos, Omar, no Afeganistão, com o pai, em 1994. Era um menino bonito e eu perguntei se ele era feliz. Ele disse “sim” em inglês. Mas, no ano passado, ele publicou um livro chamado “Vivendo com Bin Laden” e – relembrando como o seu pai matou um de seus cães favoritos em um experimento com agentes químicos de guerra – descreveu-o como um “homem malvado”. No livro, Omar também relembra o nosso encontro. Concluiu que deveria ter dito que não, que ele não era uma criança feliz.
Até o meio dia de ontem [segunda-feira], eu recebi três ligações de árabes, todos certos de que um dublê de Bin Laden tinha sido morto pelos norte-americanos – assim como sei que muitos iraquianos ainda acreditam que os filhos de Saddam não foram mortos em 2003, nem Saddam foi realmente enforcado. No seu devido tempo, a Al Qaeda vai nos informar. Naturalmente, se estivermos todos equivocados e tiver sido um dublê, seremos convidados a ver mais um vídeo de Bin Laden, e o presidente Barack Obama perderá a próxima eleição.
---------------------------* The Independent Robert Fisk em artigo publicado no jornal Página/12, 04-05-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU 05/05/2011
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