quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"A ascensão da nova classe média vai bater no teto"

Entrevista: Vladimir Safatle
O filósofo e professor da USP analisa o atual momento da esquerda, o futuro da “nova classe média”, os oito anos de Lula, o governo de Dilma e a democracia brasileira
A oportunidade da esquerda brasileira está em usar a vontade de ascensão da nova classe média para recolocar em circulação o discurso do conflito de classe, “assim como a exposição dos malefícios da desigualdade”. A opinião é do filósofo Vladimir Safatle, professor do departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
Em entrevista à Caros Amigos, Safatle afirma que tal ascensão vai “bater no teto” até o final do mandato de Dilma, embora avalie como um erro parte da esquerda negar sua existência. “Não concordo com setores da esquerda que parecem tratála como uma ilusão. Os números são bastante claros e a autopercepção da população também”.
Sobre a oposição de esquerda ao PT, ele acredita que até agora ela foi “ineficiente”. “O PSOL, por exemplo, assumiu durante um bom tempo o figurino de uma espécie de UDN vermelha, que parecia se pautar pelos escândalos da imprensa para definir suas ações”.
Durante a entrevista, Safatle também faz um balanço do governo Lula, que, segundo ele, “conseguiu estabelecer uma política bipolar por meio da qual ações contraditórias foram vistas como astúcia política natural”, e diz não ter muitas expectativas em relação ao governo Dilma. “Para quem entendia a política como espaço para a efetivação de mudanças estruturais de base, o que Dilma tem a oferecer não é entusiasmante”.

Caros Amigos - Em recente entrevista, você disse que Lula foi bem sucedido em ser uma espécie de Mata Hari do capitalismo global, ao saber jogar em dois tabuleiros, assim como Getúlio Vargas. Qual o balanço que você faz dos oito anos de governo Lula?
Vladimir Safatle - A expressão vem de um filme de Fassbinder, O casamento de Maria Braun. Nele, Fassbinder conta a história da ascensão de uma mulher pobre que procura vencer na Alemanha do pós-guerra. Em dado momento, ela está na direção de uma empresa e precisa negociar com o sindicato. Como o líder do sindicato é um velho conhecido, a conversa, mesmo dura, se resolve bem. Ao ver a camaradagem entre os dois, alguém pergunta a Maria Braun: “Afinal, quem você é?”. Ela responde: “Sou a Mata Hari do capitalismo global”.
De fato, esta me parece a melhor definição para o fenômeno Lula. Ele conseguiu estabelecer uma política bipolar onde ações contraditórias foram vistas como astúcia política natural. Um exemplo paradigmático foi a visita de George W. Bush ao Brasil. Enquanto era recebido no Planalto e oferecia um discurso onde chamava Lula de grande aliado, o PT ia para a rua fazer manifestação contra a presença de George W. Bush. Isto era, na verdade, o sintoma de um jeito peculiar de fazer política que consiste em oferecer compensações simbólicas a todos os lados. Ele ficou evidente no fato de todos os conflitos políticos terem sido transplantados por Lula para o cerne do Estado. Assim, a luta entre monetaristas e neodesenvolvimentistas virou uma briga entre Ministério da Fazenda e Banco Central.
A briga entre agronegócio e ecologistas virou um embate entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente; aquela entre os torturadores do Exército e os grupos de direitos humanos virou o conflito entre Ministério da Defesa e Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Ou seja, todos tinham lugar no governo, o que, ao mesmo tempo, fornecia um reconhecimento simbólico e imobilizava muitas demandas à espera da decisão do “mediador universal” que, no caso, era o próprio Lula.
Desta forma, Lula conseguiu radicalizar um modelo de política que foi desenvolvido por Getúlio Vargas. Vargas desenvolveu uma espécie de acordo entre pressões sindicais e interesses da burguesia nacional patrocinado pelo Estado. Lula generalizou este modelo para a gestão de todo e qualquer conflito social. É interessante perceber que quando o Brasil funciona “normalmente”, ele tende a se acomodar no modelo da dissensão getulista.

(...)

Quais são suas expectativas em relação ao governo Dilma?
Não muitas. Se for bem sucedida, Dilma será uma espécie de “Brejnev no lulismo”, ou seja, ela estabilizará, dará uma normalidade ao modelo político que Lula recolocou em circulação. Nestas condições, ela poderá realizar as duas metas que colocou para seu governo: erradicar a miséria extrema e melhorar um pouco a infraestrutura do país.
No entanto, para quem entendia a política como espaço para a efetivação de grandes mudanças estruturais de base, como uma reforma tributária que taxasse os ricos e liberasse os pobres, uma reforma política que aumentasse a visibilidade da soberania popular, uma reconstrução do Estado como agente fundamental para a implementação do igualitarismo radical, o que Dilma tem a oferecer não é entusiasmante.

O governo Lula foi marcado por uma ascensão econômica de grande parte da sociedade, que se chamou de “nova classe média”. O governo Dilma será capaz de manter esse poder de consumo dessa camada da sociedade ou ir além?
Esta é a verdadeira oportunidade para a esquerda. Tal ascensão da nova classe média vai bater no teto até o final do mandato de Dilma. Primeiro, não devemos cair no erro de negar que tal ascensão existe. Não concordo com setores da esquerda que parecem tratá-la como uma ilusão. Os número são bastante claros e a autopercepção da população também. Ignorar isto é demonstrar insensibilidade profunda pelo sentimento que largos setores da população brasileira veiculam. Senão, como explicar a brutal popularidade de Lula?O resultado para tal autismo de certos setores da esquerda não poderia ser outro que o raquitismo eleitoral revelado pela última eleição. Tal raquitismo continuará enquanto não admitirmos o óbvio, ou seja, que largas parcelas da população vivem melhor do que há dez anos.

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Qual a sua avaliação da estrutura democrática brasileira hoje?
Um sistema bloqueado, onde a participação popular resume-se a construção de conficientes eleitorais em eleições marcadas pela grande mobilização do poder econômico. Um sistema onde é impossível a um partido deter a maioria do Congresso, o que obriga a negociações infinitas onde o executivo, na verdade, sai sempre fragilizado (já que vira o espaço da negociação e loteamento com o Congresso). Um sistema onde banqueiros corruptos podem dizer, sem complexos, terem “facilidades” no Supremo Tribunal Federal (STF). Em suma, um sistema que não avança em direção ao aperfeiçoamento, mas que repete de maneira insistente sua própria impotência.

Você poderia falar sobre a afirmação que fez recentemente sobre o STF, que mais parece uma casa de horrores?
O poder judiciário é um poder monárquico no interior da República. Ele é o único poder que desconhecer a decisão popular. Não temos eleições sequer para promotor público, não há nenhuma avaliação que a população possa fazer a respeito das ações de tal poder. Por isto, diria que ele é o ponto cego do republicanismo, o que explica porque ele pode tomar decisões que ignoram monarquicamente a soberania popular e que demonstram, claramente, seus interesses de classe e sua permeabilidade aos grandes atores econômicos. Uma das exigências da criatividade política atual consiste em repensar a estrutura do poder judiciário.
Vejam só um exemplo. O Brasil conheceu um presidente afastado em um processo de impeachment, Fernando Collor. Tal afastamento significou o reconhecimento de sua incapacidade em governar, assim como o reconhecimento da natureza escusa de suas práticas políticas. Não seria correto então que todos aqueles que ele nomeou para o STF também fossem afastados? Afastamos Collor mas convivemos até hoje com seu primo no STF.

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Qual a sua avaliação sobre a crise financeira e econômica mundial que estourou em 2008. Ela acabou ou ainda está vigente? Por quê?
Não é difícil perceber que este é um belo exemplo de crise estrutural do capitalismo. Não se trata de uma mera crise financeira. Por ser uma crise estrutural, só é possível encontrar uma solução real fora das respostas padrões fornecidas pelo sistema capitalista. Foi assim com a crise de 1929, quando o capitalismo teve que inventar esta formação de compromisso que foi o keynesianismo. Será assim agora. Enquanto isto, veremos o espetáculo macabro de países que encontram em falência um atrás do outro, como dançarinos que tentam se equilibrar em um salão cujo assoalho está completamente sujo de graxa.
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Reportagem por Tatiana Merlino.
Para ler a matéria completa e outras matérias confira edição de agosto da revista Caros Amigos, agosto de 2011, pág. 26/28.
Imagem da Internet

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