José Castello*
Ensaios: O Homem do Subterrâneo
ressurge das páginas de Dostoiévski
para as ruas conflagradas de Londres e,
na revolta cega, torna-se carrasco de si mesmo.
Literatura clínica
Nas ruas de Londres, hoje, ouve-se um discurso de revolta desgovernada, dirigida a um inimigo difuso:
o mundo que nos cerca, dominado pelo pragmatismo e pelo utilitarismo
O mundo se assusta com os atos de vandalismo que tomaram as ruas de Londres. Fala-se em "protestos", mas o objeto da contestação não fica claro. Não surgem palavras de ordem, reivindicações práticas, objetivos políticos. Nada - só os atos, puros e brutos atos de horror.
Os incendiários de Londres batem-se, talvez, contra o pragmatismo e a frieza do mundo contemporâneo. Atuam, porém, às cegas. Fazem lembrar um dos maiores personagens da literatura russa: o Homem do Subterrâneo, de Fiodor Dostoiévski. Ele narra seu horror diante do mundo em "Memórias do Subsolo", (Editora 34, 2000, tradução de Boris Schnaiderman).
Retornamos ao relato de Dostoiévski com a chegada às livrarias de outro livro: "Um Coração Inteligente", coletânea de nove ensaios literários do francês Alain Finkielkraut (Civilização Brasileira, tradução de Marcos de Castro). Bom dizer logo: as posições de Finkielkraut costumam ser polêmicas. Nascido em Paris, em 1949, alinham-no no grupo dos "novos filósofos" franceses, tendência de pensadores que sente uma forte atração - ainda que "moderna" - pelo conservadorismo. Alguns o chamam de "neo-reacionário" - mas os clichês, todos sabem, são perigosas armadilhas. Seja como for, Finkielkraut é um inimigo declarado do mundo contemporâneo. Se isso o leva para trás ou para a frente, é outra questão. Suas ideias nos ajudam a pensar o mundo estranho em que vivemos.
Segue Finkielkraut em seu novo livro uma das mais potentes ideias do pensador francês Gilles Deleuze (1925-1995): a de que a literatura tem uma função clínica. Sim: a literatura pode tratar da dor humana, influenciar seu desenvolvimento, abrandá-la. Ela é uma potente máquina de pensar - e o pensamento sempre aponta para alguma cura. No seu novo livro, o filósofo nos traz um ensaio, o sétimo, dedicado às "Memórias do Subsolo". O relato de Dostoiévski é o longo discurso de um narrador subterrâneo destinado a certos "senhores" - provavelmente, nós, leitores.Um discurso de revolta, daí remeter ao que se passa agora em Londres. Revolta desgovernada, dirigida a um inimigo difuso: o mundo que nos cerca. O Homem do Subterrâneo bate-se contra o pragmatismo e o utilitarismo que regem nossa sociedade. Impossível não compartilhar de seu horror. Ele fala não de grandes temas, mas das mazelas e dores da condição comum. Trata do homem comum, o mesmo que, nas ruas, incendeia e destrói.
Os Tempos Modernos, argumenta Finkielkraut, têm, desde o Quixote, de Cervantes, o desejo prático de melhorar a sorte humana. Com o Quixote, a literatura abandonou um mundo de deuses e de epopeias para tratar da vida banal. "Os heróis e deuses gregos não têm cáries nem abcessos dentários", escreve. "Com Cervantes é que esses problemas fizeram sua entrada na grande arte." Com o Quixote, a literatura se torna "clínica". Passa a ser não apenas objeto de prazer intelectual, mas objeto de cuidado humano.
Promove o Homem do Subterrâneo, de Dostoiévski, "uma revolta em prosa contra a prosa". Luta por uma prosa viva, que recupere os sentimentos e o ardor da poesia, e que não seja simples jogo intelectual. Investe, assim, contra os Tempos Modernos, dominados pela Razão cega, pelo pragmatismo insensível e pelo utilitarismo. Em vez de seguir os escritores realistas e adotar uma "conversa acima do chão" com seus leitores, procura uma conversa profunda, que mexa nos subterrâneos de nossa condição. O homem moderno só se interessa pelos fatos, pela performance, pelo desempenho. Reduz a vida a eventos de superfície, esquecendo-se do drama humano que ferve em seu interior.
"Ainda que seus motivos sejam
justos (e parece que são), seu método está
contaminado pelo mesmo veneno que combate.
Ao entregar-se a uma revolta sem objeto
e exercê-la com métodos de que pretende escapar,
o Homem do Subterrâneo se torna,
nos diz Finkielkrau, um "carrasco de si mesmo".
Contra a lucidez moderna, o Homem do Subsolo assume a condição de anti-herói. Alerta-nos, porém, Finkielkraut: "A tentação é grande de saudar no Homem do Subterrâneo o denunciador premonitório dos grandes e dos pequenos delírios da Razão". Há um risco aí, sim. Há sempre um risco, grande risco, em toda adesão, ou exaltação cega. O desejo de tornar-se um anti-herói, nos mostra Finkielkraut, é ainda um desejo de elevar-se acima dos homens comuns. É uma defesa contra algo que o Homem do Subterrâneo não suporta: a certeza de que todos, maiores ou menores, somos homens comuns.
A rigor, o Homem do Subterrâneo se guia pelas mesmas ilusões dos Tempos Modernos. Quer, acima de tudo, a fama, o sucesso, a glória. Não aguenta ser comum - e por isso sua revolta, como em Londres, é incontrolável e cega. Ela o arrasta, e ele se deixa arrastar. Seu grande horror é admitir que, como todos, também ele é "nada"- só um sopro de vida na interminável história do cosmos.
Em desespero, e numa reversão, deseja se igualar aos outros, experimentando a identidade de funcionário. Mas também fracassa. Enraivece, revolta-se. Escreve Finkielkraut: "Tudo inútil: a zanga não consegue nada; ele não se acalma". Através de uma prostituta, Lídia, ainda tem a chance daquilo que Freud chamou de "a cura pelo amor". Voltemos à literatura: só os livros que amamos guardam poder curativo. Livros vistos como objetos de utilidade, de progresso material, de competição, não causam alívio. Só o amor alivia.
Alerta Finkielkraut: o Homem do Subterrâneo confunde o "amor de si" com o "amor próprio". O "amor próprio", diz o filósofo, baseia-se em comparações, em medições, em uma competição constante com o outro. O "amor de si" observa apenas a si mesmo e está satisfeito "quando nossas verdadeiras necessidades estão satisfeitas". Não é preciso dizer que, na concepção que lhe dá Finkielkraut, é do "amor próprio" - competitivo, baseado na rivalidade - que sofre o homem moderno.
Que sofre o Homem do Subterrâneo. Ele se bate contra os Tempos Modernos (e isso nos encanta). Mas usa as mesmas armas e os mesmos princípios dos Tempos Modernos (e aqui aparece seu impasse e sua miséria). Grita por gritar - como os revoltados de Londres. Ainda que seus motivos sejam justos (e parece que são), seu método está contaminado pelo mesmo veneno que combate. Ao entregar-se a uma revolta sem objeto e exercê-la com métodos de que pretende escapar, o Homem do Subterrâneo se torna, nos diz Finkielkrau, um "carrasco de si mesmo".
----------------------* Escritor. Crítico literário.
Fonte: Valor Econômico, cad. Eu& Fim de Semana, 12/08/2011

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