O professor de literatura da Uerj e crítico literário João Cezar de Castro Rocha (foto), acaba de lançar um livro que deve provocar incômodo no meio universitário, Crítica Literária: Em Busca do Tempo Perdido?. Tudo porque, ao analisar a polêmica iniciada em 1948 por Afrânio Coutinho contra o "impressionismo" dos rodapés literários publicados pelos jornais da época, assinados por críticos como Álvaro Lins, atestou que ela não acabou. Os acadêmicos, de modo geral, desconfiam da clareza do texto jornalístico e preferem se dedicar ao ensaísmo para poucos. O que Castro Rocha, colaborador do Sabático, propõe é atualizar as lições de Antonio Candido e Mário Faustino, imaginando uma crítica literária insubmissa ao cânone, ideologicamente independente e disposta a um corpo a corpo com o texto.
Você começa seu livro falando do confronto entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, em 1948. Essa polarização persegue a crítica brasileira desde sempre, com uma espécie de Fla x Flu literário. Isso mudou no Brasil?
A polaridade crítica é um fenômeno mundial. É difícil imaginar um sistema artístico ou filosófico que não funcione, de alguma forma, a partir dela. Meu livro é um convite a um tipo de diálogo que supere os efeitos negativos dessa polaridade. Ela não precisa ser necessariamente Fla x Flu. Você pode criar a polaridade internamente. Nada impede que um crítico, com o passar do tempo, reformule as suas ideias. Na universidade brasileira, dos anos 1960 até os anos 1980, essa polaridade estimulou o aparecimento de obras que dialogavam entre si, mas, nas últimas duas décadas, ela foi substituída por uma polaridade estática, na qual os membros de um grupo "x" só leem as obras do grupo "x" e criticam - sem mesmo ler - as obras do grupo "y".
E como você vê a relação atual entre cátedra e crítica literária jornalística?
Procurei reescrever a história dessa polêmica para contestar uma história consagrada na universidade, que vê nela o triunfo da cátedra sobre o rodapé, ou seja, do método contra a crítica "impressionista". A cátedra não deveria ter disputado com o rodapé porque, em 1948, quando Afrânio Coutinho iniciou com Álvaro Lins a polêmica contra o "impressionismo" dos rodapés literários, já era corrente na imprensa mundial uma transformação fundamental da estrutura jornalística baseada no modelo americano. As novas tecnologias de informação permitiam, enfim, a transmissão imediata de dados, mais ou menos como se fosse a proto-história do que vivemos hoje com a internet. Os jornais estavam eliminando os longos comentários analíticos de todas as seções. A análise, então, foi substituída pela informação e a ideia do "furo". A cátedra, involuntariamente, deu as mãos não para o texto analítico, mas para um processo iniciado pela imprensa mundial depois da 2.ª Guerra, marcado pela americanização da cultura. A universidade escolheu, portanto, o alvo errado. A cátedra não deveria ter batido tanto no rodapé literário.
Não se estabelece, a partir dessa polêmica, certa repressão ao espírito criativo literário tão perniciosa quanto seria a censura aos jornais imposta depois pelos militares?
Há uma grande diferença: a repressão dos militares foi efetiva. A crítica universitária não tinha esse poder nem chegou a reprimir, mas também não constituiu um público cativo como o dos críticos que assinavam os chamados "rodapés literários", de Otto Maria Carpeaux a Sérgio Buarque de Holanda. Parte considerável da crítica brasileira tem um problema grave, que é a falta de um olhar comparativo. Por exemplo, um problema real da crítica formada na universidade hoje em dia é o estreitamento preocupante do horizonte de leitura. Os críticos analisam apenas os textos que confirmam as suas opções teóricas prévias e que levam à leitura de uma única família de autores.
Isso conduz a outra questão, seu desacordo com os críticos Flora Süssekind e Luiz Costa Lima, que partem, segundo você, dessa concepção normativa da literatura. Nossos críticos são conservadores?
Antes, devo ressaltar que tenho a maior admiração por ambos, ela como crítica e ele como ensaísta, mas não tenho nenhuma afinidade com essa concepção normativa da literatura. Tanto o trabalho analítico de Flora como o teórico de Luiz Costa Lima tendem a se repetir indefinidamente, porque o horizonte de leitura é o mesmo, os resultados analíticos e as conclusões teóricas não se alteram - e não se alteram porque ambos acreditam, de fato, possuir a chave para definir o que deve ser a literatura.
A reverência ao cânone não intimidou críticos a ponto de retardar o advento de uma literatura mediana no Brasil, capaz de provocar novas formas de avaliação num país em que todo autor quer ser Guimarães Rosa?
Isso permitiria fazer um paralelo com o cinema brasileiro, pois certamente um dos seus problemas era que todo cineasta estreante queria ser Glauber Rocha. Com isso, o que não se tinha aqui era a noção de indústria, capaz de permitir a circulação sistemática de produtos cinematográficos para criar um público próprio. Isso mudou no cinema. E está mudando na literatura. Os autores mais jovens não só têm abandonado esse projeto de ser Guimarães Rosa como estão produzindo livros de temática variada. Eles não querem mais escrever o "grande" romance brasileiro.
É possível um novo vínculo entre imprensa e universidade na era da internet, quando se pratica uma literatura virtual à espera da legitimação da indústria cultural?
Confundimos literatura com o objeto livro. O que torna a literatura uma experiência antropológica universal é sua capacidade de dar sentido ao que vivemos por meio da narrativa. Precisamos ampliar nossa noção de literatura. Potencialmente, o boom internético tem duas vantagens: uma para a crítica, outra para a criação. É fato que a geração mais jovem lê e escreve muito mais que as anteriores. Há, portanto, uma experiência constante com a literatura. Precisamos apenas aperfeiçoá-la. Há escritores publicados em livro que começaram em blogs. Tudo é uma questão de qualidade.
Mas o fato é que os autores brasileiros contemporâneos, mesmo com essa facilidade da comunicação eletrônica, ainda são pouco conhecidos no exterior. A crítica tem culpa?
Ao contrário do que pensam 99% dos meus colegas brasileiros, considero a crítica literária jornalística feita no Brasil de extraordinária qualidade. Participo há quatro anos do projeto Conexões, do Itaú Cultural, que faz o mapeamento da literatura brasileira no exterior e, analisando pesquisas feitas com 200 professores universitários estrangeiros, concluímos que há um interesse cada vez maior pela literatura brasileira, um aumento no número de traduções. A recepção da literatura brasileira no exterior ocorre cada vez menos pelo viés do exotismo. Hoje é fácil encontrar estudos de críticos estrangeiros relacionando Paul Auster com Bernardo Carvalho. É preciso mais apoio para as traduções. O governo tem de intervir. E isso não significa estatizar a cultura.
Há na cultura brasileira a mania de transformar polêmica em ato pessoal de vingança. Já faz mais de meio século que acompanhamos a briga entre concretos paulistas e neoconcretos baseados no Rio. No livro você cita um exemplo de vendeta caricata que foi o processo judicial movido pelo pintor americano James Whistler contra o crítico inglês John Ruskin, em 1877, com base no prejuízo na venda de seus quadros motivado por ela. Você já sofreu esse tipo de pressão?
Recuso e recusei pedidos para colocar meu nome em abaixo-assinados a favor de autores que se consideraram injustiçados por uma crítica- e, acredite, isso é mais comum do que se imagina. O objetivo disso é um só: que o editor ou o crítico percam o emprego. O problema das polêmicas que duram 50 anos não é que elas atravessem meio século, mas que elas matem todos de tédio por falta de novos argumentos.
Há 30 anos, Silviano Santiago publicou Em Liberdade, investindo numa estética divorciada do modernismo. Ele falava num narrador pós-moderno, próximo de um repórter. Poucos se deram ao trabalho de argumentar. A crítica não revela falta de ousadia ao buscar um porto seguro como o modernismo?
Sem dúvida. O livro é uma tentativa de fugir desse círculo. No capítulo que trabalho com o movimento, tento mostrar que a recepção do modernismo, por três ou quatro décadas, foi o oposto do que temos hoje. Nós nos agarramos a determinados aspectos que num certo momento não foram considerados nem pelos próprios líderes do modernismo. Isso só vai mudar quando assumirmos o risco de termos nossa própria voz, formando brechas nas relações endogâmicas, rompendo com a epigonia. Jovens que pensem numa carreira, sejam jornalistas culturais ou universitários, devem estar seguros de não precisar de nenhuma rede de apoio que comprometa sua independência cultural. Inovar significa assumir riscos, não estar protegido por nenhuma rede de contatos ou capela literária.
O nicho da crítica sociológica nunca deixou de ser reverenciado nessa capela. Ela não teria consagrado autores apenas medianos?
Há duas leituras que atrapalham muito: essa crítica sociológica redutora e a crítica metalinguística exclusivista. Em ambos os casos há um padrão normativo. Há, no entanto, uma vantagem da crítica do rodapé sobre a cátedra: quando Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux ou Antonio Candido escreviam para jornais, por força das características dos veículos, eram obrigados a ler autores que escapavam desses critérios normativos e do cânone. Os jornais tinham a coragem de dar espaço a esses críticos, como fez o Estado ao criar o Suplemento Literário, em 1956. O que precisamos hoje é de uma crítica literária que corra riscos de ampliar seu horizonte de leitura, o que não quer dizer só ler os contemporâneos, mas autores que contrariem sua orientação crítica. Há três críticos que para mim foram fundamentais na minha formação: Erich Auerbach, Antonio Candido e René Girard. E qual é o ponto comum entre eles? É a firme convicção de que a teoria só vale mesmo quando é engendrada no corpo a corpo com o texto.
------------------------------Reportagem por ANTONIO GONÇALVES FILHO
*João Cezar de Castro Rocha é professor universitário e ensaísta. Autor de Exercícios críticos – Leituras do contemporâneo (Argos, 2008); Crítica literária – Em busca do tempo perdido? (Argos, 2008); O exílio do homem cordial. Ensaios e revisões (Editora do Museu da República, 2004); Literatura e cordialidade. O público e o privado na cultura brasileira (EdUERJ, 1998), “Prêmio Mário de Andrade” (Biblioteca Nacional). Co-autor de Evolution and Conversion (Continuum, 2008), com René Girard e Pierpaolo Antonello (edições em português, italiano, espanhol, polonês e francês – Prix Aujourd’hui 2004). Editor de mais de 20 livros. Recebeu o Humboldt-Forschungsstipendium (Alexander von Humboldt-Stiftung/ Freie Universität Berlin 2005-2006); e foi “Ministry of Culture Visiting Fellow” (University of Oxford, Centre for Brazilian Studies – 2004); “Tinker Visiting Professor” (University of Wisconsin, Madison – 2003); “Overseas Visiting Scholar”, (Cambridge University, St John’s College – 2002); “John D. and Rose H. Jackson Fellow”, (Yale University, Beinecke Library – 2001).
Fonte: Estadão on line, 13/08/2011
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