Juremir Machado da Silva*
Raparigas ou garotas?
Meu amigo Eron Duarte Fagundes, cinéfilo e leitor sofisticado, me
falou de uma nova tradução de “Em busca do tempo perdido”, obra-prima de
Marcel Proust. Essa nova tradução, feita pelo jornalista Mário Sérgio
Conti, quer atualizar a que foi produzida por Mário Quintana, Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade para a Editora Globo. O atual
tradutor quer corrigir erros – artista ateu virou artista culto – e
evitar “regionalismos”. Quintana traduziu “jeunes filles” por raparigas.
Ficou “À sombra das raparigas em flor”. Temi que Conti optasse por “À
sombra das garotas em flor”. Cariocas e paulistas acham que seus
regionalismos são universais. Ou, no mínimo, nacionais. Não aceitam que
se traduza o tu francês pelo nosso tu. Chamam isso também de
regionalismo. Só admitem o você. Eta, bairrismo central!
Mário Sérgio Conti justifica a dificuldade de Quintana em seguir a
musicalidade de Proust com um argumento bizarro: “Mário Quintana não
tinha formação universitária e nunca foi à França, então a tradução dele
tem um problema em reproduzir a sonoridade do Proust, algo de que ele
passa ao largo”. Dá para admitir que não ter convivido com os franceses
possa afetar o ouvido para a língua deles. Mas o que tem a universidade
com isso? Conti também não é um acadêmico. É apenas mais um jornalista
desempregado ou semiempregado tentando achar o que fazer, ganhar algum
dinheiro e ainda, quem sabe, alcançar alguma notoriedade local,
especialmente com ajuda dos amigos da mídia encastelados nos tediosos
suplementos de cultura do chamado eixo Rio-São Paulo.
Pelo que entendi, Conti vai trocar raparigas por moças, o que é um
acerto. Não precisamos amarrar novamente nossos cavalos no obelisco da
avenida Rio Branco para vingar a honra do nosso Quintana. Traduções
envelhecem. São sempre provisórias. Empenhar-se em retraduzir Proust é
melhor do que ser o primeiro a traduzir o último best-seller de
vampiros. A obra de Proust é uma catedral gótica. Dá vontade de explorar
cada vitral. Traduzi-la dá certamente a sensação de participar da sua
construção. Permite imaginar que se é coautor. Por mais que a tradução
seja, como pretendem alguns, uma transcriação, a alma de um livro jamais
é inventada por um tradutor. Raparigas, moças ou garotas? Tanto faz. A
essência está em outro lugar. É uma atmosfera poética.
Em todo caso, Conti precisa saber de uma coisa: Quintana não tinha
formação universitária, mas tinha ouvido. Depois dessas declarações,
Conti está na obrigação de parir algo muito melhor. A sua aventura tem,
de qualquer maneira, um ponto positivo: tentar relançar o interesse por
Marcel Proust no Brasil. Tarefa inglória. Proust, Joyce e Céline
continuarão sendo para poucos. A chamada grande literatura universal é
para muito poucos. A culpa, quanto a isso, raramente é das traduções.
Mesmo as piores abrem janelas para novos horizontes. O que diria
Quintana depois de ouvir as declarações de Conti? “Eles passarão, eu
passarinho”? Ou que tempo perdido?
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/08/04/2013
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