domingo, 14 de abril de 2013

Nós gostávamos de não gostar de Thatcher

IAN McEWAN*
 
"Maggie! Maggie! Maggie! Fora! Fora! Fora!"
A exigência ritmada da esquerda foi plena e finalmente atendida. Em incontáveis manifestações durante os anos 80 ela manifestou uma curiosa ambivalência -uma intimidade de quem trata uma pessoa pelo primeiro nome e a furiosa rejeição de tudo que ela representava. "Maggie Thatcher" -um violento ritmo binário contra a valsa tranquila do Estado de bem-estar social da Inglaterra do pós-Guerra. 

Para aqueles de nós que ficaram desalentados com sua ríspida aversão por esse mundo dominado pelo Estado, não gostar dela nunca bastou. Nós gostávamos de não gostar dela. Ela nos forçava a decidir o que era realmente importante. 

Olhando para trás, em boa parte das críticas havia muitas vezes uma mancha de um sexismo não confessado. As feministas a rechaçavam insistindo que, embora fosse mulher, ela não era uma das irmãs. Mas o que unia toda a oposição ao programa de Margaret Thatcher era uma suspeita de que a filha do merceeiro estava determinada a monetarizar o valor humano, de que ela não tinha coração, e, notoriamente, pouco se importava com os impulsos que unem os indivíduos numa sociedade. 

Mas, se os leitores de hoje voltassem no tempo até o fim dos anos 70, poderiam ficar irritados ao descobrir que a programação da TV do dia seguinte era um segredo de Estado que não se compartilhava com os jornais. Uma licença exclusiva era concedida à "Radio Times". (Não era de estranhar que a revista vendesse 7 milhões de exemplares por semana). 

Era ilegal colocar uma extensão no seu telefone. Você teria de esperar seis semanas por um técnico. Só havia um modelo de secretária eletrônica aprovado pelo Estado. A sua "repartição" elétrica local podia ser um lugar bem hostil. Thatcher varreu do mapa esses monopólios estatais com o neologismo da "privatização" e transformou de tal maneira a vida cotidiana que hoje mal nos damos conta. 

Pagamos por essa transformação com um mundo que tem contornos duros, que é mais competitivo e decerto bem mais consciente dos encantos do dinheiro. Podemos agora contabilizar, pós-crise de 2008, nossas perdas e ganhos desde a desregulamentação do mercado financeiro em 1986, mas é pouco provável que um dia venhamos a desfazer o legado dela. 

É estranho pensar que, no tempo de Thatcher, o romance inglês gozou de um renascimento comparativamente empolgante. Raros governos podem dizer que estimularam as artes, mas
Thatcher, sempre algo impaciente com a vida e sua análise, levou os escritores a terrenos virgens. 

O romance pode florescer na adversidade, e foi a sensação geral de desalento com o novo mundo que ela nos mostrava que atraiu muitos escritores para a oposição. Essa posição, mais moral do que política, muitas vezes era apenas esboçada. Seu efeito foi o de forçar a uma consideração mais profunda das prioridades, volta e meia expressa em variadas distopias. 

Ela nos mesmerizava. Em uma conferência internacional em Lisboa, no final dos anos 80, a facção britânica, que abrigava gente como Salman Rushdie, Martin Amis, Malcolm Bradbury e eu mesmo, referia-se constantemente a Thatcher em suas apresentações. Quando nos pediam que falássemos da "situação geral" do nosso país, nós quase só víamos ela. 

Por fim, o contingente italiano, fundamentalmente existencialista ou pós-moderno, ergueu-se contra nós. Acabamos numa discussão descontrolada e feroz que fez a alegria dos organizadores. Literatura não tinha nada a ver com política, nos diziam os escritores italianos. Vejam o quadro mais amplo. Superem essa mulher! 

PERSONAGEM

Eles tinham certa razão, mas não faziam ideia de como ela era fascinante -tão poderosa, bem-sucedida, popular, onisciente, irritante e, na nossa opinião, equivocada. Talvez suspeitássemos de que a realidade tinha criado uma personagem que superava o nosso poder criativo. 

Nem todos os escritores eram contra ela. O poeta Philip Larkin** (1922-85) fez uma visita a Downing Street, residência oficial e gabinete dos primeiros-ministros, e, ao ser apresentada a ele, ela citou satisfeita um dos seus versos -"Sua mente estava aberta como uma gaveta de facas". 

As versões da história variam. Ela pode ter errado um pouco o verso. Como a citação é a forma mais doce de elogio, Larkin naturalmente ficou tocado. 

Podemos especular que um assessor tenha oferecido a Thatcher uma seleção de bons versos, ou que ela tenha pedido para ver alguns. Mas a escolha lhe caiu como uma luva. Para começo de conversa, a memória dela era magnífica ao se preparar para encontros políticos, e ela não teria problemas para decorar rapidamente qualquer quantidade de versos. 

O de Larkin evocava a mente traiçoeira (de um adversário, de um colega de gabinete) indefesa e exposta a seus olhos de aço. Para uma bela descrição de uma convocação para ir ao número 10 de Downing Street e se ver exposto a um exame exatamente dessa natureza, basta recorrer, com gratidão, aos diários de Alan Clark. 

Quando Christopher Hitchens (1949-2011) era repórter político da "New Statesman", ele corrigiu a primeira-ministra quanto a um dado, e ela rapidamente corrigiu Hitchens de volta. Ela estava certa; ele estava errado. Diante de seus colegas jornalistas, ela lhe disse que ficasse bem na frente dela, para poder acertá-lo de leve com a ordem do dia do Parlamento. 

Com o passar dos anos, e com muito telefone sem fio, a história passou a dizer que Thatcher mandou Hitchens se abaixar e que ela o surrou com a ordem do dia. 

A verdade é menos significativa que sua alteração. Houve sempre um elemento erótico na obsessão nacional por ela. Da invenção do termo "sadomonetarismo", passando pela forma com que poderosos ministros pareciam murchar diante dela e pela constante reiteração negativa da sua feminilidade, ou falta dela, pelos que a criticavam, ela sempre controlou com mão glacial a imaginação masoquista (masculina) da nação. Isso ainda era realçado pela suspeita de que esse poder não era empregado conscientemente. 

O retrato feito pela atriz Meryl Streep, uma figura que arrastava os pés, abalada e isolada pela morte do marido, Denis, pode ter suavizado determinadas lembranças ou formado tais lembranças na cabeça de uma geração mais jovem. As cerimônias fúnebres quase equivalentes às de um chefe de Estado vão ser mais um ensaio de nossas extravagantes fixações. 

Adversários e apoiadores de Margaret Thatcher jamais vão concordar quanto ao valor de seu legado, mas quanto à sua importância, quanto ao domínio hipnótico que ela exercia sobre nós, eles certamente haverão de chegar a um acordo. 
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*Nota
Texto publicado originalmente no jornal britânico "The Guardian". Tradução de Caetano W. Galindo 
Fonte: Folha on line, 14/04/2013
Imagem da Internet
Nota do Blog: **
O poeta e romancista inglês Philip Larkin (19221985) é considerado um dos maiores poetas ingleses do pós-guerra, e seu nome se liga aos poetas do assim chamado “The Movement”.

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