sábado, 7 de setembro de 2013

SER PREVISÍVEL CANSA

J.J. CAMARGO* 


A margem entre a genialidade fascinante e a loucura produtiva é reconhecidamente muito estreita, e alguns tipos muito interessantes transitam nesta faixa com uma naturalidade absolutamente sedutora.

O professor Britto Velho era um desses exemplares raros, de luminosa inteligência e lampejos desconcertantes. Por um desses acasos do destino, tive o privilégio, quando estudante de Medicina, de morar no mesmo edifício dele, e conquistar sua amizade, um trunfo impagável da minha juventude. Um dia de inverno, sentados ao sol, na pracinha defronte ao Pavilhão Pereira Filho, do nada ele perguntou:

– Tu achas que eu sou louco?

Apanhado de surpresa, tergiversei:

– Eu acho que o senhor é muito inteligente.

De nada adiantou:

– Isso todo mundo já sabe. O que eu quero saber é se tu achas que eu sou louco.

Não consegui evitar:

– Acho, mas não muito.

Foi o que bastou para que anunciasse que seríamos amigos, porque, na opinião dele, todo mundo precisa de parceiros capazes de fazer esse tipo de confissão.

E então ele contou que, um dia, na Câmara Federal, dissera ao senador Adauto Lúcio Cardoso, por quem tinha grande admiração, que estava pensando em fazer psicanálise porque achava que estava ficando meio louco. E o senador teria dito: “Britto, não contes isso pra ninguém. Tu vais chocar as pessoas, porque estão todos convencidos que és completamente louco, e assumir esse meio termo só servirá para deprimi-las!”

Ponto para o senador, que a partir daí passou ao rol dos indispensáveis.

Uma tarde saímos a caminhar em torno do quarteirão da universidade, onde ele invariavelmente contava deliciosas histórias do professor Sarmento Leite, um tipo que aprendi a idolatrar sem conhecer. Enquanto andávamos, ele disse que precisava discutir umas coisas comigo, porque achava que eu era inteligente, talvez mais do que ele tinha sido na minha idade. Certamente deslumbrado com o elogio passei a concordar com uma estapafúrdia teoria sobre os efeitos do divórcio na sociedade contemporânea. Quando contornamos o prédio do Salão de Atos, ele se confessou decepcionado.

– Não consigo conversar com uma pessoa que só concorda comigo! Vou pra casa. Talvez amanhã estejas mais inspirado. Boa tarde!

Convencido que o politicamente correto servia apenas como um escudo aos medíocres, ele abusou da condição de gênio para ensinar que a previsibilidade é a marca modesta das pessoas comuns que é, no fundo, o que somos.

Saudade da certeza do inusitado que ele simbolizava.
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* Médico.
Fonte: ZH on line, 07.09/2013

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