sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O cachorro ama o homem

Paulo Ghiraldelli Jr*
 
Aproximei-me da cachorrinha do vizinho, um bebê ainda. A carinha não negava, era daquela conhecida raça pastor-tombalata-alemão. Claro que não agüentei e quis afagar aquela cabecinha, sentir na mão aquele bigodinho com cheirinho de cachorro bebê. Mas me surpreendi quando vi que ela, ao invés de continuar se aproximando, abaixou o corpo e a cabecinha ao perceber minha mão se erguer. Apitou dentro de mim, bem no peito, aquele sinal maldito.

O filósofo alemão Theodor Adorno escreveu certar vez algo como “a burrice é uma cicatriz”. Não tenho dúvidas disso. Mas eu complementaria: trata-se de um tipo de cicatriz em quem exerce a burrice mas pode se tornar uma cicatriz em quem está ao redor. A bebezinha peluda ali na minha frente havia recebido a cicatriz da burrice alheia. Nada tinha na pele, era uma cicatriz na alma. Bebê ainda, e já sabia que o ignorante, o estúpido, o que exerce a burrice, o faz de um só modo, como violência. Pequenina, mas já sabia que aquele de quem tanto ela e os outros de sua espécie amam, não evoluíram mais ou menos iguais. Alguns dos bípedes-sem-penas não conseguem não festejar suas cicatrizes, suas burrices.

Os cachorros amam os homens. Há uma longa história nisso tudo. Começou nas cavernas. O lobo e o homem se refugiaram na mesma caverna e um ensinou o outro o que sabia. O homem ou aquilo que depois de muitos anos seria o homem, não tinha os sentimentos que hoje possui. Ele não ligava muito para a família, não era monogâmico, nem estava acostumado a caçar, uma vez que até pouco tempo ficava em árvores. Aprendeu a monogamia, a caçar em matilha, a resolver as coisas em assembléia e, enfim, a trocar mamadeiras entre parceiros quando o leite de casa acabava – tudo isso aprendeu com os lobos. O protohomem foi educado pelo lobo que, enfim, se transformou anos depois no cachorro. Não foi o homem que domesticou o cão, mas foi o protocão que ensinou muita coisa ao homem.

Eles formaram então, homem e cão, uma dupla amorosa. Mas, quando o homem adquiriu a linguagem e passou a exercer o pensamento conceitual, deixando o cão ficar dono exclusivo do amor, os laços das cavernas se romperam. Uma vez com linguagem, o homem logo se autodenominou como um superior. Como o que aprendeu com o cão ocorreu antes da linguagem, nada ficou em sua memória. Então, imaginou que o seu relacionamento precoce com o cão deveria ter vindo de domesticação. Apostou nisso. Mas errou.

Creio que foi o cão que adotou o homem, ainda quando ambos não eram nem cão e nem homem. No entanto, quando na imaginação do homem, já pronto, tudo se inverteu, o cão nunca entendeu bem, mas continuou a manter laços de amor. Ficou então à mercê do homem, agora se autointitulado dono e senhor da terra e dos animais – como ficou na Bíblia.

A cachorrinha, pequenina mesmo, já sabe que o homem acredita que se educa o cão como se educa pessoas, ou seja, na pancada. Mas, ela não julga o homem por isso. Ela simplesmente não julga. Seu desejo é o de ser uma bolinha de amor. A força deste a faz se aproximar de mim, mesmo que receosa. Entendemo-nos fácil. Eu tenho a linguagem e ela não, mas, nesse caso, a comunicação se faz pelo amor, e então, ah, como nos entendemos mesmo – para sempre.
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* Paulo Ghiraldelli Jr, 56, filósofo, escritor, ensaísta e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-cachorro-ama-o-homem/
Imagem da Internet

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