Michel Maffesoli*
Em
nosso progressismo dominante, achamos difícil aceitar que as eras se sigam e não
sejam semelhantes. Mentes agudas notaram corretamente o fim da era das
revoluções (Eric Hobsbawm). Se soubermos perceber, com alguma lucidez, a
arquitetura das sociedades contemporâneas, podemos dizer que estamos
testemunhando a era das revoltas populares. É o que as elites entendem. Muito
simplesmente porque o poder do povo, espinha dorsal irreprimível, está zombando
do pode político. Seja qual for a sua cor. Essa reação carrega certa
brutalidade. Mas não é esse o caso toda vez que uma mutação fundamental ocorre?
É cansativo ouvir todas essas belas almas midiáticas levantando-se em coro, o
coro das virgens amedrontadas, contra a violência, injustificável, é claro,
dessas revoltas.
Esqueceram-se
do que se sabe por tradição, a sabedoria popular que diz: não se faz omelete
sem quebrar ovos. Em termos mais eruditos, esqueceram daquilo que Michel
Bukanin repetidamente observou: “O prazer da destruição é ao mesmo tempo um
prazer criativo”. Se o progressismo,
peculiar à modernidade, é dramático – tudo tem um solução, uma saída possível –
a pós-modernidade vê o retorno do trágico, que remete a uma aporia, ao sem
solução. Daí a dose de violência inerente ao “sentimento trágico da
existência”. Ora, na contramão de uma realidade raquítica, em oposição a um
princípio essencialmente econômico de realidade, cujo “poder aquisitivo” é o
alfa-ômega, coração pulsante do sistema, as revoltas populares são estruturalmente
uma perpétua “busca pelo Graal”, uma busca espiritual.
Pode
parecer um tanto paradoxal consultar a inteligência do coração. Horresco
referens! Isso chama atenção quando concebemos a inteligência apenas em sua
forma racionalista. Na minha crítica ao “mito do progresso” de 1979, falei de
uma casta tecnocrática, com suas variantes intelectuais ( agora se diz
experts), política, jornalística, etc. Essa casta é, portanto, incapaz de
entender que o interesse do povo se exprime melhor nas suas preocupações
espirituais do que políticas. Simplesmente porque essa casta, em seu
racionalismo mórbido, apesar de ser democrática, é nada menos que demofílica.
As
eternas ladainhas sobre valores republicanos e seus fundamentos democráticos
mal dissimulam o vanguardismo elitista. Todos esses progressistas, em seus
vários partidos, de direita ou de esquerda, querem revolucionar, reformar ou
preservar em nome do povo. Mas não aceitam que o povo aja por conta própria.
Essa pseudointelecualidade não pode estar mais superada no seu simplório
progressismo como mostram a devastação ambiental que produzem. Não conseguem
captar o ar do tempo, aquilo que o filósofo Ortega y Gasset, no seu
monitoramento premonitório em “A Revolta das Massas”, chamou de “o imperativo
atmosférico” do momento. Por não saber se adaptar à mudança do clima espiritual
é que essa casta tecnocrática sofrerá o destino dos dinossauros: perecer.
O
mundo moderno está apodrecendo e morrendo. Seus representantes caídos não podem
ver que toda transfiguração , pois é disso que se trata, tem uma dose de
misticismo. O grande republicano Victor Hugo lembrava que não se pode pensar
numa gota de vida sem misticismo. O que ele expressou assim: “Saber, pensar,
sonhar. Tudo está aí”. Como qualquer sonho, o misticismo de “coletes amarelos”
não necessariamente só deles. Mas expressa um instinto ancestral, que se mostra
tanto nas discussões das rodinhas de cada esquina, onde se fala sem parar, mas
também nos ataques aos símbolos extremos da sociedade de consumo: lojas e bancos
da avenida Champs-Elysées, assim como aos centros do poder estatal. Eles
quebram o brinquedo que não podem ter, mas, ao mesmo tempo, freiam a corrida
infernal de consumo à qual a modernidade reduziu a energia coletiva. George
Bataille descrevera bem que consumir pode terminar em “se consumir”.
Neste
movimento, contrariando os experts que monopolizam a esfera pública,
expressa-se aquilo que, na tradição tomista, Joseph de Maîstre, chamava de
“direito divino do povo”. Soberania da potência natural que regularmente se faz
presente para ativar a memória dos poderes estabelecidos, que são apenas
representantes e devem prestar contas ao povo, legítimo soberano do qual tudo
emana. Como o velho ditado lembra ( que é inútil traduzir): Omnis autoritas a populo.
É
essa autoridade que volta a ganhar força e vigor. Ela lembra que, como uma
verdadeira realeza, a opinião é a rainha do mundo. Os “coletes amarelos”
retomam a palavra novamente contra aqueles que, com a arrogância, a
autossuficiência e a ostentação que conhecemos, monopolizaram-na até mais não
poder. Os comentaristas falam compungidamente para não dizer nada. Mas já não
conseguem enganar.
Obcecados
pelo econômico, esquecem que é uma crise moral que está em jogo. Não basta mais
fornecer um amontoado de respostas tecnocráticas capazes de satisfazer alguns
afetados e privilegiados e de tranquilizar uma terceira ou quarta idade sem
horizonte. É impressionante a esse respeito ver que a participação no grande
“Debate Nacional” foi colorida por “cinquenta tons de cinza”!
Em
suma, espera-se menos uma resposta formatada do que a capacidade de saber fazer
perguntas. Não convence mais um mundo sem dúvidas e cheio de respostas.
Simplesmente porque é do inapreensível, do que está em formação, do que está
questionado, que se pode aprender o possível de ser compreendido. Ou seja, a
partir da vida real. Bachelard lembra em sua meditação sobre o desvaneio: “A
nova era desperta a velha. O antigo retorna para viver no novo”. Isto é atual e
pode ilustrar esta secessio plebis
que são as esquinas contemporâneas. O povo romano, insatisfeito com o destino
reservado a ele pelo Senado, que em nada correspondia às origens da República,
a res pública que anima o
inconsciente coletivo, retira-se para o Aventino.
É
interessante lembrar que Erasmo em seu “Elogio da Loucura”, recordando essa “época
antiga”, observa que não se tentou retomá-la com um discurso de moderação,
discurso racional e cheio de boas intenções. Mas, ao contrário, por meio de uma
narrativa. Agripa tenta convencer o povo improvisando uma fábula da relação
complementar dos “membros e do estômago”. Isso foi eficaz. Diante das
insurreições populares, devemos lembrar da importância do corpo coletivo como
um todo. O corpo e a menta juntos numa mistura fértil. Esta é a função do mito,
lembrar que o corpo social não se alimenta simplesmente do pão, mas precisa de
um sonho para garantir-lhe a presença. Para existir.
Oxímoro:
um corporeísmo místico. É esse oxímoro que a elite não conhece ou não quer
entender. O expert não é mais um filósofo seguindo o árduo caminho do
pensamento, mas, para usar o termo de Platão, um “filodoxo”. Ele corre, aqui e
ali, para não perder nenhuma migalha da “sociedade do espetáculo”. É um
elemento do show integrado. E não é mais, portanto, levado em consideração. Não
se esqueça disso. É quando não sabemos dizer, com razão, o que é, quando o
moralismo, aquilo que deveria ser, toma o controle, que o povo rompe. É também
o momento em que os discursos demagógicos nascem, todos moldados com ódio,
ressentimento e xenofobia. O desafio não é insignificante. Devemos encontrar as
palavras menos falsas para enunciar o “prazer criativo” que, mais ou menos
desajeitadamente, está em curso em nossa nascente pós-modernidade. Os
lugares-comuns e as várias boas reflexões já não bastam, é preciso ter a
audácia e a coragem de um pensamento de alto-mar. Mais uma vez, totalidade do
ser, a coragem pode ser, ao mesmo tempo, “coração e raiva”.
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*Professor emérito da Sorbonne, membro do
Instituto Universitário da França.
Fonte: Correio do Povo impresso. Caderno de Sábado, 30
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