Em conversa com Regina Duarte sobre a
Secretaria Nacional de Cultura, Bolsonaro
disse que a polÃtica cultural deve
seguir o desejo da ‘maioria’ da população,
a seu ver ‘conservadora e cristã'
—
Foto: Marcos Corrêa/PR
Por Ana Paula Sousa
Na transmissão pela
internet do dia 16 de janeiro, quando o ex-secretário Nacional de Cultura
Roberto Alvim anunciou o Prêmio Nacional das Artes, Jair Bolsonaro disse que,
enfim, o Brasil teria uma “cultura de verdade”, “uma cultura para a maioria”.
Alvim, depois de um vÃdeo no qual parafraseava o ideólogo nazista Joseph Goebbels
(1897-1945), foi substituÃdo por Regina Duarte. A troca não muda, porém, a visão
de cultura do presidente.
Na conversa que
teve com a atriz, ainda antes de ela dizer “sim”, o presidente reiterou o
discurso pautado pela ideia de que a polÃtica cultural deve seguir o desejo da
“maioria” da população brasileira, a seu ver “conservadora e cristã”. Segundo o
presidente, quem quiser “filme gay” pode fazer, desde que com seu próprio
dinheiro. Antes, ele manifestara o desejo de ver filmes sobre “heróis
nacionais”. Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa disse que Regina,
por ora, não tem dado entrevistas porque aguarda a publicação de sua nomeação
no “Diário Oficial”.
“O conceito de cultura, no lulopetismo e no bolsonarismo, é
paradoxalmente elitista. É um conceito restritivo"
- Antônio Risério –
Ainda que de forma
superficial e enviesada, as declarações de Bolsonaro guardam em si dois
conceitos-base da polÃtica cultural: a definição do que é cultura - em geral, e
brasileira, em particular - e a discussão sobre o papel do Estado no apoio a
criadores, produtores e instituições.
Para além das
posições polêmicas, como as do maestro Dante Mantovani, presidente da Fundação
Nacional para as Artes (Funarte), que atrelou o rock à “indústria do aborto” e
ao “satanismo”, existe um certo projeto de cultura no governo. Apesar de não
ter uma polÃtica que o sustente e de ser, na prática, irrealizável, esse
projeto tem muito a dizer sobre o papel que a esfera cultural desempenha no
jogo polÃtico contemporâneo.
O apoio do Estado à cultura tem sido, na
opinião do artista
pernambucano Antonio Nóbrega, historicamente elitista
—
Foto: Silvia Costanti / Valor
A primeira pergunta
a ser feita para se compreender o discurso bolsonarista é, justamente, o que
seria uma “cultura de verdade, feita para a maioria”. Definir o conceito de
cultura é, nas palavras do sociólogo Renato Ortiz, uma tarefa “exaustiva e
inútil”. Segundo ele, professor-titular do Instituto de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, ao tentarem levar a cabo tal feito, na
década de 1950, dois antropólogos encontraram 164 significados do termo.
Imagine-se hoje.
O mais razoável,
portanto, para refletir sobre os significados dos embates em curso, é tomar por
base uma ideia geral de cultura, ligada à produção artÃstica e à criação.
Ortiz, teórico inaugural dos conceitos de mundialização e diversidade no
Brasil, interpreta as falas do governo a partir de dois princÃpios: o
conservadorismo e a repressão.
“A diversidade é um empecilho a
esse ideal [conservador] porque o diverso é a minoria, é o que desconstrói a
ideia de maioria"
— Renato Ortiz –
O eixo conservador
é aquele que valoriza a tradição e recupera o tema clássico da construção da
identidade nacional a partir de um ideal de religiosidade e de famÃlia que desconsidera,
por exemplo, as religiões de matriz afro ou o Carnaval - que, apesar de ser uma
tradição, não é adequado aos costumes conservadores. “Bolsonaro recupera o
passado do Integralismo e mesmo da ditadura militar (1964-1985), quando
tÃnhamos a valorização da famÃlia e da identidade nacional. A diversidade é um
empecilho a esse ideal porque o diverso é a minoria, é o que desconstrói a
ideia de maioria”, afirma Ortiz.
O sociólogo
pondera, no entanto, que esse projeto não tem a menor possibilidade de ser
bem-sucedido. “Primeiro, porque o presidente faz isso no momento da
globalização, no qual o Estado não tem o monopólio sobre os costumes e no qual
o conceito de nação - entendida como uma instância capaz de integrar as pessoas
no seio de uma mesma totalidade - desfez-se. Depois, porque é impossÃvel
disciplinar a área cultural.”
Mambembe, que exibia filmes pelo paÃs. ‘
Em cada canto do Brasil, era uma narrativa
que gerava maior ou menor identificação’, diz LaÃs
— Foto: Divulgação
Justamente ao
perceber que o Estado não tem a hegemonia para impor o que deseja, o governo
entrou numa espiral de antagonismo com o setor cultural e, em meio ao conflito,
tenta lançar mão de atitudes repressivas. “A cultura é um terreno de lutas e
disputas. É um terreno não só da produção de filmes, peças etc., mas da
construção de identidades.”
Esse movimento está
muito ligado à s “guerras culturais”, teoria usual no discurso conservador.
Cunhada nos anos 1990, essa ideia, segundo o filósofo Pablo Ortellado,
professor de Gestão de PolÃticas Públicas da Escola de Artes, Ciência e
Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo, se refere a pautas morais, que
surgiram como reação aos movimentos feminista, gay e negro. No Brasil, ela foi
trazida à luz pelo escritor Olavo de Carvalho, guru do presidente.
“A leitura do
Bolsonaro sobre a cultura é a de que existe uma elite, nas artes e nos meios de
comunicação, que propaga ideias que estão em desacordo com o que deseja o
povo”, afirma Ortellado. A pauta identitária, ligada aos direitos das minorias,
contrapõe-se ao sonho de uma “cultura nacional”.
VÃdeo: República !
Direitos (Bloco 5) – Pablo Ortellado – Filósofo e pesquisador da USP
Nada disso, segundo
Ortellado, pode ser entendido como polÃtica cultural. “Estamos sempre no
terreno do que, em inglês, chamarÃamos de ‘politics’ [polÃtica, no sentido mais
geral ], e jamais da ‘policy’ [polÃtica pública]. O que ouvimos é apenas um
discurso populista, distorcido e paranoico.”
A distância entre
discurso e prática ficou evidente nos ataques à Lei Federal de Incentivo Ã
Cultura, conhecida como Lei Rouanet, e na posterior reformulação do mecanismo.
“A Rouanet, muito falada durante a campanha eleitoral, juntou duas coisas: a
ideia de corrupção e a de favorecimento das elites culturais. Essa ideia de que
a lei foi usada para cooptar artistas para o petismo não tem sentido algum, mas
colou”, diz Ortellado. “Acontece que o governo não conseguiu mudá-la. Fez
alterações pontuais, de impacto reduzido, porque, de fato, existe um limite de
ação.”
O primeiro ano de
governo mostrou que a suposta “revolução na cultura”, pregada por Alvim, não
tem sustentação sequer financeira. De um lado, não cabe ao governo decidir o
destino dos recursos da Lei Rouanet, cuja lógica é deixar o poder decisório nas
mãos das empresas - ou seja, há limites concretos à imposição dos “filtros”
desejados por Bolsonaro. De outro lado, o dinheiro que o governo tem para
investimento direto seria suficiente para produzir um único musical como “O Fantasma
da Ópera”.
O que também chama
atenção no discurso bolsonarista sobre a cultura é a reverência à arte clássica
e um elitismo passadista, que supervaloriza a produção de matriz eurocêntrica
em detrimento das raÃzes populares. “Entendo a cultura popular brasileira como
aquela caudatária de ritmos, narrativas, danças, cantos, cosmogonia,
procedimentos, valores etc., predominantemente oriundos das culturas indÃgenas,
africanas e luso-populares”, afirma o pernambucano Antonio Nóbrega, artista
múltiplo envolvido com o universo da cultura popular, diretor do Instituto
Brincante. “O sincretismo dessas culturas, ao longo de mais de quatro séculos,
edificou nosso caudaloso imaginário cultural”, diz
A exclusão do
imaginário popular das polÃticas públicas voltadas à cultura não é, contudo,
uma exclusividade bolsonarista. O apoio do Estado à cultura tem sido, na
opinião de Nóbrega, historicamente elitista. “Basta você examinar o
aparelhamento cultural das instituições públicas e privadas brasileiras:
orquestras sinfônicas, quartetos de cordas, companhias de dança clássica e
contemporânea. Onde está a instituição brasileira que subsidie um grupo de
choro, de frevo, de pesquisa em dança brasileira de matriz popular?”
O antropólogo
Antonio Risério, que ocupou uma secretaria no Ministério da Cultura no primeiro
mandato de Lula e é autor do livro “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a
Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” (Topbooks, 2019), compara os dois
governos.
“O conceito de
cultura, no lulopetismo e no bolsonarismo, é paradoxalmente elitista. É um
conceito restritivo, contemplando uma clientela preferencial, que é o
contingente artÃstico-intelectual”, afirma Risério. “Uma polÃtica pública para
a cultura deve partir de uma perspectiva mais generosa: cultura é a soma dos atos
técnicos e expressivos nos quais se inscreve a criatividade de um povo. Não tem
nada a ver com a celebração de celebridades, sejam elas Chico Buarque ou Dedé,
dos Trapalhões.”
Na visão da
cineasta LaÃs Bodanzky, hoje à frente da Spcine, empresa municipal de São Paulo
dedicada ao audiovisual, uma polÃtica pública deve, antes de tudo, ser feita
para todos. “O que nos guia é a Constituição, então o direito de todos deve ser
respeitado. Todos devem ter acesso e todos devem ter voz. Acredito que, além
disso, a polÃtica tem de buscar a diversidade”, pontua. Na Spcine, LaÃs
implantou uma polÃtica afirmativa que estabelece metas a serem alcançadas. Uma
delas é ter mais mulheres negras na direção de filmes.
Quando questionada sobre
a ideia de maioria, ela volta no tempo e retoma o aprendizado que teve com Cine
Mambembe, projeto que tocou, em meados dos anos 1990, ao lado do roteirista
Luiz Bolognesi. A dupla colocou um projetor de filmes 16 mm no porta-malas de
um carro e foram exibir produções pelo Brasil. De CaraÃva (BA) a Carolina (MA),
LaÃs viu o quão falho é o conceito de maioria.
“Em cada cidade era
um o filme preferido; em cada canto do Brasil, era uma narrativa que gerava
maior ou menor identificação”, rememora LaÃs. Hoje, à frente de um órgão
público, ela guarda da experiência uma outra lição: “Uma polÃtica pública só
deve pensar em maioria no que diz respeito ao acesso à cultura. Que a maioria
da população tenha acesso a um leque de opções que reflita a diversidade que
marca o nosso paÃs”.
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