domingo, 30 de junho de 2024

Por que as pessoas acreditam em ‘fake news’? Psicólogo Steven Pinker responde

Por Leon Ferrari

Steven Pinker discursa no Brain Congress, no Rio de Janeiro


Em congresso no Rio, professor de Harvard diz que isso tem a ver com tribalismo político: acreditamos naquilo que faz nossa tribo parecer bem, mesmo que fatos não comprovem a ideia

ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO* - O psicólogo e linguista canadense Steven Pinker decidiu que queria ensinar e escrever sobre racionalidade humana. A ideia era falar sobre ferramentas como lógica, probabilidade, estatística, teoria da escolha racional, teoria dos jogos, correlação e causalidade. No entanto, as pessoas estavam interessadas em outra coisa. “Elas queriam saber por que o mundo estava enlouquecendo”, conta ele, que é professor da Universidade Harvard, autor do best-seller Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress (O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo, no título em português) e já foi considerado, mais de uma vez, uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time.

“Por que as pessoas acreditam em teorias da conspiração? Notícias falsas? Em tratamentos médicos malucos, como a homeopatia, mas ao mesmo tempo negam as vacinas? Por que as pessoas acreditam em percepção extra-sensorial? Clarividência? Ver o futuro e vidas passadas? É nisso que as pessoas estão realmente interessadas, não tanto em por que somos ruins em probabilidade e estatísticas”, disse ele neste sábado, 29, durante participação no Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 26 e 29 de junho.

Ele segue aconselhando que as pessoas se dediquem às ferramentas básicas, no entanto, lançou-se ao desafio das questões com as quais foi confrontado. “São vários motivos, não apenas um”, fala.

Entre eles, algumas crenças ou “intuições” humanas, como dualismo (“acreditamos que cada humano tem um corpo e uma mente”), essencialismo (“pensamos que os seres vivos têm algum tipo de substância invisível ou química neles que os torna vivos, que lhes dá forma e poderes”) e teleologia (tudo o que fazemos tem uma razão/propósito), mas, para Pinker, o mais importante é o que ele chama de tribalismo político.

Para você

“Poucas pessoas mudam de opinião por causa das notícias falsas. As notícias falsas reforçam os preconceitos políticos delas”, afirma. “As pessoas se dividem em setores, tribos ou coalizões, e as ideias que acreditam não são as ideias que são verdadeiras, mas as ideias que fazem a coalizão delas parecer mais inteligente, mais competente, mais moral e nobre do que as outras tribos.”

E é por isso que ele lança o seguinte desafio, que pode parecer óbvio, mas, segundo ele, contra intuitivo para a natureza humana: “você deve acreditar apenas em coisas para as quais há evidências, para as quais há uma boa razão para acreditar que são verdadeiras”.

“Cheguei à conclusão de que essa é a ideia mais radical na história humana”, afirma. “É uma boa lição moral para os jovens: a ideia de que você pode estar errado. Você deve deixar os fatos dizerem o que é certo e errado. Esta é uma ideia muito estranha, exótica, não natural, mas é uma ideia importante, e acho que temos que apoiar a ideia de que somos ignorantes sobre a maioria das coisas.”

“A única maneira de estar certo é tentar testar nossas ideias, tentar ver o que as tornaria falsas, ver se elas sobrevivem a testes de falsificação. Este é, basicamente, a mentalidade da revolução científica, mas não penetrou toda a população, nem mesmo toda a população de cientistas.”

Negacionismo

A exacerbação desse tribalismo é o que, para Pinker, nos colocou cara a cara com a negação da ciência. Mas como chegamos até aqui?

Ele sugere duas respostas. A primeira é de que as redes sociais fazem as pessoas viverem em bolhas. “Elas são uma máquina para reforçar o tribalismo.” No entanto, ele acha que esse fenômeno não responde por completo, nem mesmo é a mais importante explicação. Pinker avalia que, ao longo das últimas décadas, houve um aumento significativo da “segregação por educação e classe”.

“Cada vez mais pessoas com diplomas universitários vivem próximas em áreas urbanas centrais. Pessoas que não são tão graduadas vivem nos subúrbios mais distantes ou nas áreas rurais”, pontua. “As pessoas são muito mais propensas a apenas viver com pessoas que têm as mesmas crenças. É mais fácil demonizar as pessoas que você nunca conheceu.”

‘É preciso despolitizar a ciência’

Alguns, diz Pinker, avaliam que, para enfrentar o negacionismo científico, o ideal seria ensinar mais ciência às pessoas. Ele não acha que essa seja a solução.

“A maioria dos cientistas tem a teoria errada sobre por que as pessoas negam a ciência. Eles pensam que as pessoas que negam a mudança climática, vacinas ou a evolução humana são ignorantes. Na verdade, se você der testes de alfabetização científica a eles, como ‘o que é maior: um átomo ou um elétron?’, vão ter as mesmas pontuações do que aqueles que acreditam.”

Isso nos leva de volta ao tribalismo. Para ele, é preciso, então, tirar a ciência dessa polarização, despolitizando-a. “Precisamos tornar as questões científicas não alinhadas com um lado político ou outro, e restaurar a confiança nos cientistas, nas agências governamentais, jornalistas e estatísticos.”

Como? “Temos que admitir quando somos ignorantes, e mudar de opinião à medida que as evidências mudam.”

“Não somos anjos, não somos deuses, apenas fazemos o nosso melhor”, aponta. “A ciência realmente descobriu algumas coisas. Existem realmente células. Há realmente algo chamado DNA. Mas nunca estamos 100% certos.”

Esse raciocínio, claro, pode nos levar ao completo ceticismo. No entanto, Pinker destaca que o consenso é importante. É assim, por exemplo, que determinamos e aplicamos políticas públicas. O psicólogo aponta o melhor caminho para chegarmos até ele.

“Muitas vezes haverá discordância, mas você realmente tem que dizer sim ou não. Por exemplo, no caso de um paciente com alguns sintomas e alguns exames médicos, você nunca tem 100% de certeza se ele tem uma doença ou não. Opera ou não opera? Dá o remédio ou não dá?”

Aí, segundo ele, precisamos acionar a teoria da decisão estatística. “Você analisa quão ruim seria estar errado em cada direção. Ou seja, quão ruim se ela não tiver a doença, um falso positivo, em que o paciente poderia passar por uma cirurgia desnecessária, e quão ruim seria se você estivesse errado, um falso negativo, se for um câncer, talvez ele cresça rapidamente.”

“Você junta essas coisas e, pelo menos, isso lhe dá uma base racional para tomar uma decisão quando não pode ter certeza da verdade.”

*O repórter viajou a convite do Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções

Fonte:  https://www.estadao.com.br/saude/por-que-as-pessoas-acreditam-em-fake-news-psicologo-steven-pinker-responde/ 30/06/2024

Quem é o bilionário que quer combater depressão com terapia psicodélica

 Marcelo Leite*

Ilustração de Adams Carvalho com cogumelos, em cores rosa, azul, branco, verde e vermelho, para matéria da Ilustríssima sobre terapia psicodélica
 Ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho/Folhapress

Instituto bancado por americano prepara maior teste clínico com psilocibina, composto de cogumelos 'mágicos'


[RESUMO] Bill Linton, empresário de Wisconsin (EUA), fundou o Instituto Usona, iniciativa sem igual que mescla, com objetivo de fomentar pesquisa clínica com psicodélicos, fornecimento de substâncias para outros pesquisadores e instalações para treinamento e futuro tratamento de doenças. Outro desafio é decifrar o enigma do pensamento consciente, para o qual recrutou psiquiatras, químicos e os organoides cerebrais do neurocientista brasileiro Stevens Rehen.

Visionário: o lugar-comum aplicado a empresários encontra sua melhor expressão literal em Bill Linton. O senhor de cabelos brancos, calça jeans, camisa branca e paletó azul marinho que tira os sapatos para entrar na ala terapêutica do Instituto Usona passaria por pessoa comum, não fossem as visões que o tornaram um protagonista na atual renascença psicodélica.

Linton fundou em 1978 a Promega, empresa de 2.100 funcionários que fatura US$ 750 milhões anuais (R$ 4,2 bilhões) com insumos para laboratórios biomédicos, como enzimas. Ele tirou do bolso os recursos para erguer na cidade de Madison, no estado de Wisconsin (EUA), o instituto que combina infraestrutura de spa com laboratórios avançados de alteração da consciência, contando com apoio financeiro de nove fundações e famílias doadoras.

O Usona está à frente do maior teste clínico em curso para tratar depressão com psilocibina, composto psicoativo de cogumelos "mágicos". Um estudo de fase 3 vai comparar resultados de 240 voluntários tratados com duas doses da substância (5 mg e 25 mg) ou com placebo, em seis estados dos EUA, e os acompanhará por 12 meses.

Os dados servirão para embasar pedido de licença dessa terapia psicodélica à FDA, agência de fármacos dos Estados Unidos. Se não houver percalços, a aprovação deve sair em 2027. Antes disso, quase certamente, a empresa britânica Compass Pathways obterá sua autorização para tratamento semelhante.

"Às vezes é melhor não ser o primeiro", diz Linton. "Queremos fazer direito. Não estamos nisso para pagar dividendos a investidores. Há muitas pessoas que podem se beneficiar. Mesmo que haja muitas organizações, não será o bastante."

Estima-se que 1 bilhão de pessoas sofram com depressão, ansiedade e outros transtornos de humor no mundo. Desses, mais de 100 milhões manifestam a forma refratária de depressão, que não melhora com os antidepressivos existentes.

A fixação do empresário com psicodélicos começou em 1967, o ano do Verão do Amor, quando estudava química na Universidade da Califórnia em Berkeley. Ali tomou LSD uma dúzia de vezes, mas deixou de lado os psicodélicos, que se tornaram ilegais na década seguinte.

Essas drogas reapareceram em seu radar quando a vizinha Betty foi tragada pela depressão após diagnóstico de câncer terminal. Ela participou de experimento com psilocibina na Universidade Johns Hopkins e retornou transformada, livre da sensação de desgraça iminente e agradecida por viver cada dia nos poucos meses que lhe restavam.

O episódio reacendeu o interesse de Linton, e ele passou a estudar substâncias alteradoras da consciência, buscando contato com pesquisadores da área. "O fato de uma molécula, uma vez apenas, poder alterar a visão de vida e morte de uma pessoa é em si mesmo notável", disse numa entrevista de 2022.

Em 2014, ele e a médica Malynn Utzinger fundaram o Usona, organização de pesquisa médica sem fins lucrativos para acelerar a pesquisa com psicodélicos, patrocinando testes clínicos e fornecendo esses compostos para outros neurocientistas.

O prédio do Usona de 8.600 m2 ficou pronto em 2023. Logo na entrada, uma instalação com dois andares de altura reúne centenas de discos de resina sustentados por fios pendentes do teto, uma das dezenas de obras de arte encomendadas para compor o ambiente em que predominam pisos, vigas e forros de madeira.

O saguão se abre para um átrio amplo, com lareira de pedra ainda mais alta rodeada de sofás e poltronas. À direita, cozinha e copa comunitárias que já acomodaram uma centena de visitantes. Mais comuns são grupos pequenos de participantes em treinamentos, como terapeutas, enfermeiros e assistentes sociais que se preparam para o advento de tratamentos psicodélicos.

A sala contígua para projeção de apresentações tem mesas encimadas por luminárias de LED cujas hastes formam hexágonos, pentágonos e linhas do esquema da molécula de psilocibina. A substância, originalmente obtida de fungos do gênero Psilocybe, é produzida por síntese com alta pureza no Usona e fornecida também para pesquisadores de fora.

Além de três salas equipadas para futura realização de psicoterapia apoiada por psicodélicos, as instalações incluem recintos para "trabalhos somáticos", como descreve Linton no papel de cicerone: banho turco, massagem, sauna seca e úmida, ducha "experiencial" com combinações variadas de jatos, luzes e aromas.

A cada novo ambiente, o empresário se adianta para operar a tela sensível ao toque e demonstrar controle de luz artificial e natural. O mobiliário segue inspiração oriental, pontuada por estilos primitivistas ou abstratos nos quadros.

Há um jardim interno com plantas tropicais, alcunhado Amazônia. Seu propósito é a prática do conceito japonês de "shinrin-yoku" (banho de floresta), mesmo em dias de inverno —em Madison, em um inverno ruim podem acumular-se 2 metros de neve.

O ápice de sofisticação surge em um salão de pé direito alto onde se encaixa uma escultura ou megalustre com 75 mil pontos de LED. O enxame de diodos emite ondas de cores cambiantes, a acompanhar a música de longos acordes. O efeito é lisérgico.

No começo de maio, quando se deu a visita, o Usona estava um tanto deserto. São 28 funcionários, vários trabalhando de casa. O instituto já recebeu cerca de mil visitantes desde a inauguração, mas não investe em marketing. Quem aparece vem por divulgação pessoa a pessoa.

Isso deveria mudar a partir do segundo semestre, quando se esperava que a FDA aprovasse tratamento com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático. No entanto, no início de junho um comitê consultivo independente considerou insuficientes as evidências de eficácia e segurança apresentadas pela empresa postulante, Lykos.

Se e quando vier esse precedente, tenderão a multiplicar-se demanda e oferta por terapias psicodélicas legalizadas, hoje restritas a injeções do anestésico dissociativo cetamina, ou ketamina, para depressão.

A visita termina na biblioteca ao estilo europeu do século 19 em que Linton coleciona objetos de boticários e antiquários. Ele chama a atenção para uma escultura guatemalteca de cogumelo, em pedra, relíquia milenar que lhe foi oferecida por Paul Stamets, dublê de pesquisador e guru celebrizado no documentário "Fungos Fantásticos".

Na biblioteca, a situação se inverte, e o empresário passa a entrevistar o jornalista sobre a ciência psicodélica no Brasil e os cultos em torno da jurema-preta (Mimosa tenuiflora), árvore da caatinga que contém dimetiltriptamina (DMT) e é objeto do livro "No Reino Encantado de Jurema", no prelo pela editora Fósforo.

Fica evidente que o empresário conhece bem as substâncias. Além da psilocibina, ele se mostra interessado em 5-MeO-DMT, psicodélico presente no veneno do sapo-do-rio-colorado (Incilius alvarius) e em rapés de indígenas da Amazônia, hoje sintetizado e estudado inclusive no Usona. Pergunta sobre os testes com a substância realizados pelo neurocientista brasileiro Stevens Rehen, utilizando organoides cerebrais.

Rehen ocupa um dos vértices do triângulo de pesquisa no complexo Promega/Usona, ao lado do químico Alexander Sherwood e dos médicos Mike Davis e Charles Raison, responsáveis pelos testes clínicos com psilocibina. O brasileiro e Sherwood estão na base do triângulo, pode-se dizer, porque se ocupam da ciência mais fundamental.

Foi depois de ler artigos de Rehen sobre organoides e psicodélicos, em 2018, que Linton encasquetou de conhecer o neurocientista do Idor (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Convidou-o para palestras no Fórum de Consciência que ocorre anualmente no campus da empresa.

Chegou a voar para o Rio de Janeiro, pilotando o próprio jatinho, para visitar o laboratório no Idor. Propôs-lhe sabático de um ano em Madison, mas a pandemia e a doença da mãe de Rehen, que morreria algum tempo depois, adiaram tudo. O brasileiro só baixou na Promega em agosto de 2022.

A adaptação em Wisconsin caminhou tão bem que Rehen até se matriculou com o filho Gael para aulas de jiu-jitsu, em horários subsequentes, numa academia Gracie Barra. Aos 53 anos, é o mais velho da turma.

Rehen se declara aficionado por aparelhos de monitoramento de saúde, como um anel que se comunica com o celular. Ele quer se manter saudável e trabalhar por ao menos mais 30 anos no que considera sua missão.

"Hoje tenho clareza de meu compromisso: contribuir com pesquisas científicas sobre psicodélicos utilizando sistemas microfisiológicos que podem revolucionar o campo, ao mesmo tempo que reduzem o uso de animais em experimentos", diz, referindo-se aos organoides cerebrais. Até aqui, era mais comum sacrificar roedores para isso.

Seu grupo já publicou trabalhos mostrando quais proteínas se alteram quando os organoides, aglomerados de até 5 mm e milhões de células neurais, são embebidos com psicodélicos. Para verificar isso, é preciso destruir os minicérebros, mas no laboratório da Promega ele planeja dar um salto.

A empresa lhe permite usar ferramentas de ponta, como várias técnicas de bioluminescência, para etiquetar proteínas e acompanhar suas trajetórias e quantidades em tempo real nos organoides, sem dissolvê-los para análise proteômica. As esferas neurais poderão assim ser estudadas por vários meses, repetindo doses ou comparando os efeitos de substâncias, por exemplo.

Os organoides exibem atividade elétrica espontânea, o que se poderia comparar, com boa vontade e imaginação, a uma forma de "pensamento". Sendo possível reconhecer padrões nessa atividade e como eles variam sob efeito de psicodélicos (que a intensificam) ou de anestésicos (que a deprimem), a esperança é identificar os processos neurais mais básicos do fenômeno da consciência.

Mesmo com todos os recursos à disposição, Rehen não se considera um cientista expatriado ou exemplo de fuga de cérebros. "Hoje nossa ciência é transnacional", ressalva.

Ele dedica pelo menos três horas por dia a reuniões online e administração do laboratório no Idor. Passa três a quatro meses por ano no Rio, quando inverte o esquema para trabalho remoto com a equipe em Madison.

"Tenho muito orgulho do que estamos construindo", diz. "O que interessou ao Usona e à Promega foi nossa maneira de pensar e fazer ciência, toda forjada no Idor e na UFRJ, de 2005 a 2022, em colaboração com colegas da Argentina e do Chile."

Assim como nos EUA, ele vê seu futuro aqui ligado à pesquisa básica numa mescla de ambiente acadêmico e empresarial que combina múltiplos conhecimentos, algo incomum e até malvisto na terra natal.

"A universidade [pública] insiste em uma lógica anacrônica de manter e formar pesquisadores com perfil pouco flexível. Pesquisa, ensino, extensão e inovação poderiam abranger uma diversidade maior de habilidades, competências e possibilidades, o que atualmente não ocorre, ainda mais sem financiamento adequado", desabafa o pesquisador, especialista em levantar fundos da Finep, do BNDES e de empresas como a L’Oréal para manter os estudos da equipe.

A diferença, no ambiente privilegiado da Promega e do Usona, é que ele tem acesso imediato a insumos avançados de pesquisa sem precisar o tempo todo submeter pedidos de financiamento. Tampouco precisa preocupar-se com desenvolvimento de produtos. "A liberdade criativa é total. As equipes nos ajudam a transformar as ideias em prática."

Um dos parceiros entusiasmados com os organoides que Rehen cultiva no prédio Kornberg é Alex Sherwood. Seu laboratório de química médica fica do outro lado da rua, no edifício Feynman (as construções da Promega são batizadas com nomes de prêmios Nobel, como Roger Kornberg, agraciado em 2006, e Richard Feynman, em 1965).

Sherwood entrou no Usona em 2014, participando das primeiras reuniões. Ele conta ter sido ideia de Linton contratar um especialista em química médica. Já tinha em vista fornecer psicodélicos para pesquisadores de outros grupos e esmiuçar a complexa interação entre essas substâncias e receptores cerebrais.

Uma questão que intriga o químico é a capacidade de desencadear alterações profundas da consciência estar presente em substâncias tão diversas quanto o LSD (derivado de ergotaminas do fungo esporão-do-centeio), a DMT da ayahuasca e da jurema-preta (uma triptamina) e a mescalina (fenetilamina presente no cacto peiote).

Apesar das diferenças, todas atuam sobre receptores do neurotransmissor serotonina, às vezes chamado hormônio da felicidade. O denominador comum é o receptor 5HT2A, mas elas agem também sobre demais membros da família 5HT e outros receptores que reconhecem dopamina e ocitocina, por exemplo.

"São compostos promíscuos", diz Sherwood, "mas isso não é um defeito, e sim uma característica". Ele acha que psicodélicos rompem o paradigma de que cada droga atua sobre um alvo específico, como apertar teclas isoladas de piano faz soarem notas distintas. Na sua visão, eles se parecem mais com acordes, notas simultâneas cuja combinação produz sonoridades peculiares sem perder o tom psicodélico.

Sua atividade no laboratório se assemelha à de um compositor que vai testando acordes, manipulando aspectos químicos dessas substâncias para verificar o que muda em seus efeitos. Aí entram os organoides de Rehen, plateias vivas para testar as diferentes respostas dos tecidos neurais.

"Não poderia imaginar uma confluência mais apropriada de entidades para começar a responder essas perguntas e desenvolver ferramentas para entender isso tudo", diz sobre os organoides. "É um lugar entusiasmante de se estar."

O vocabulário da neurofarmacologia se tornará mais sofisticado, acredita Sherwood, para quem os termos "psicodélico" (mescalina, LSD, DMT e psilocibina) ou "entactógeno" (MDMA) são tão genéricos quanto falar em vinho tinto ou branco. Sua expectativa é distinguir as diferenças varietais entre os compostos modificadores da consciência e o tipo de modulação que exercem sobre ela.

Em uma volta pelo laboratório, ele exibe o cofre em que guarda as substâncias controladas, em sua maioria sintetizadas ali mesmo, e o livro de registro de entradas e saídas, uma exigência legal. As bancadas repletas de frascos e resíduos se parecem pouco com laboratórios de biologia, voltados a observar e não fabricar coisas.

"É mais uma oficina que um laboratório", define. Precisou montá-lo do zero, no que contou com a ajuda da mulher, Chris. No começo sentia falta do equivalente à gaveta da bagunça numa cozinha, onde se encontra de tudo.

Sherwood reage em tom de piada à lembrança de Bruno Latour, o filósofo da ciência francês para quem nesses laboratórios se refogam conceitos com ninharias: "Nunca confie num químico que não goste de cozinhar", diz.

O pesquisador conta que seu acordo com Linton prevê que a ciência básica sempre terá lugar no Usona. Não se trata só de aperfeiçoar a manufatura a cargo da Promega: "Ciência e exploração, mover o campo adiante".

Ele enxerga nos organoides um futuro menos reducionista para a neurofarmacologia molecular, uma estratégia para obter informações que possam equivaler a comportamentos. O reducionismo, afinal, não se presta bem a desvendar os segredos do sistema nervoso central.

"Talvez haja uma trilha pela qual a gente possa começar a desenrolar esses padrões de atividade [elétrica] e comportamento com esses feixes ordenados de neurônios humanos", afirma.

Por outro lado, mesmo se dedicando a otimizar moléculas psicodélicas, ele não vê muito potencial nos chamados psicoplastógenos, versões delas que prescindam do efeito subjetivo, a viagem, retendo só a propriedade de induzir novas conexões cerebrais. Como Linton e Rehen, acha que o significado pessoal da experiência psicodélica importa tanto quanto a neuroplasticidade para o benefício terapêutico.

"Psicoplastógenos poderiam mudar o indivíduo, mas não com uma direção clara para se pilotar o navio. Você só tira as mãos do leme. E pode apenas elevar o ruído no sistema", pondera. "A neuroplasticidade não é inerentemente benéfica. Cocaína também induz neuroplasticidade."

Opinião semelhante defende Charles Raison, psiquiatra do Usona que liderou o teste clínico anterior do instituto, de fase 2, com psilocibina para depressão. Mas o médico ao menos não descarta que possam funcionar os psicoplastógenos propostos em 2018 por David Olson, da Universidade da Califórnia em Davis.

"Se eles forem possíveis, vão dominar o campo. Eu admiro esse cara", diz. Uma pílula para tomar sábado à noite e acordar no domingo com vontade de se exercitar ou de ir à igreja se encaixaria perfeitamente no "american way", argumenta. Se tivesse muito dinheiro, afirma, investiria nisso pronto a perder tudo.

Raison só tem dúvidas de que o efeito terapêutico de longo prazo possa ser separado da consciência, objeto de toda sua carreira de pesquisador. Psicodélicos são apenas o componente mais recente dessa investigação, que começou com os benefícios da meditação e de procedimentos para aumentar o calor corporal.

Ao iniciar a vida acadêmica na Universidade Emory, em Atlanta (Geórgia), ele queria estudar a técnica de meditação Tummo, na qual praticantes conseguem elevar a temperatura do corpo. Mestres na modalidade, entretanto, não se dispuseram a servir de cobaias.

Raison diz que seu foco recaiu sobre os psicodélicos como ferramentas para atingir estados alterados apenas quatro anos antes de ser contratado pelo Usona em 2015. Era o elo que faltava em sua obsessão com o poder causativo da consciência, cultivado em quase todas as culturas antigas, que desenvolveram formas de meditação, aquecimento (banhos, saunas, temazcal) e uso de psicoativos.

O psiquiatra confessa ter um viés: ele prefere que a consciência seja requisito da cura de transtornos afetivos. "Não quero essa metáfora de máquina. Quero esse exemplo de que a consciência, a espiritualidade, importa. Veremos. A ciência é cruel, ela leva embora muito do que você acredita ser precioso."

*Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021) 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/06/quem-e-o-bilionario-que-quer-combater-depressao-com-terapia-psicodelica.shtml

Jordan Peterson mostrou que Brasil paralelo da direita virou oficial

Por  Martim Vasques da Cunha*

O psicólogo canadense Jordan Peterson, ícone da direita, durante palestra em São Paulo, no dia 18 de junho

 O psicólogo canadense Jordan Peterson, ícone da direita, 
durante palestra em São Paulo, no dia 18 de junho 
 - Greg Salibian/Fronteiras do Pensamento

Pensador foi aclamado por políticos, empresários e vendedor ambulante em noite de palestra em São Paulo


[RESUMO] Ícone da direita, o psicólogo canadense Jordan Peterson já vendeu milhões de livros e arrasta multidões para vê-lo mundo afora. Em passagem por São Paulo na semana passada, atraiu políticos, milionários e celebridades da internet para ouvi-lo falar de Caim, Abel e sacrifício. Neste relato, autor descreve como a movimentada noite de palestra, embalada por ingressos salgados, Bach, uísque e apertos de mão a R$ 1.300, espelhou a nova cara da direita e o futuro político do Brasil.

"E se alguém jogasse uma bomba aqui? Com certeza, a direita brasileira seria destruída para sempre." Sim, foi isso o que se ouviu na fila de espera, gigantesca, na frente do Espaço Unimed, em São Paulo, no último dia 18, enquanto cerca de 4.000 pessoas se preparavam para assistir à palestra do doutor Jordan Peterson, provavelmente o intelectual público mais pentelho do planeta.

"Pentelho? Como assim? Esses esquerdistas são foda. Ficam preocupados com essa história da Nubank, da Erika Hilton. Estamos pouco nos lixando com isso. Você não entende nada: Jordan salvou a minha vida", poderia responder algum fã ali presente. Naquele lugar, a voz do povo era de fato a voz de Deus.

Salvar é uma palavra meio forte, mas é a exata sensação que se respirava quando finalmente os portões do local se abriram e os que estavam ali há mais de uma hora começaram a entrar, prontos para enfim receber, via inspiração divina, o que o bom doutor tinha a dizer.

Porque Jordan Peterson é, de fato, o bom doutor. E não só isso: ele é o bom doutor que, graças ao seu talento, se tornou milionário. Com seus livros ("Mapas do Significado", "12 Regras para a Vida", "Além da Ordem") vendeu mais de 10 milhões de exemplares. O próximo, "We who Wrestle with God" ("Nós que Lutamos contra Deus"), está previsto para novembro.

Mas havia outra coisa que se respirava ali na entrada, antes de ir ao palco, onde o público, que pagou no mínimo R$ 600 por ingresso, se espalhava em diferentes setores, divididos por fitas de cores que iam do azul ao preto, passando pelo amarelo. O que se respirava ali, além do tesão por uma bomba que pudesse destruir todos os presentes, era "a nostalgia do gulag".

A "nostalgia do gulag" é o seguinte: antes, durante e depois de Olavo de Carvalho, toda a direita brasileira —que simplesmente idolatra Jordan Peterson porque ele combate como poucos a política identitária, o comunismo e o ateísmo— sempre sonhou ir para uma Sibéria particular. No entanto, ela não tinha dinheiro para isso. Diferente da esquerda burguesa, a direita é pobre.

Então, para ter a Sibéria particular, a direita seguiu essa estratégia: acusou todo mundo de persegui-la. Universidades, imprensa, o Congresso, o Palácio do Planalto, mais recentemente o Supremo Tribunal Federal. Faça sua escolha. Com isso, conquistou um público que, humilhado por uma casta que não para de aumentar a morte e os impostos, resolveu se revoltar com protestos. Como consequência, Dilma Rousseff foi expelida do poder. Ainda assim, a direita continuava miserável, no bolso e na cabeça.

A solução foi apelar para as redes sociais e vender cursos. Mais do que isso: seus integrantes tornaram-se "influenciadores", os infames "coaches de vida". Foi quando o dinheiro passou a cair como maná. A esquerda alega que isso faz parte de uma conspiração internacional, mas também não hesitou em imitar sua competidora. Agora com a grana correndo a solta, a direita poderia ter o seu gulag. A diferença é que esse lugar era nada mais, nada menos que o próprio Brasil.

Com a pandemia, a direita brasileira entrou em sua fase mais recente: a de ser o contraponto à cultura oficial. Teve até um levante de velhinhos no famoso 8 de janeiro para marcar essa passagem. Mesmo com a morte de Olavo de Carvalho e a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, ela não parou de crescer. Tornou-se, de fato, um país paralelo. Não à toa, a empresa que mais simboliza esse movimento —e é a encarnação suprema da "nostalgia do gulag"— se chama justamente Brasil Paralelo.

E também não por acaso, a empresa promoveu a visita de Jordan Peterson, junto com a produtora oficial do evento, o grupo gaúcho Fronteiras do Pensamento. O Brasil Paralelo, contudo, fez mais do que divulgar a vinda do bom doutor. Praticamente o sequestrou para seus próprios interesses.

O problema é que Jordan Peterson gostou disso, sofrendo da habitual síndrome de Estocolmo, ao tirar fotos festivas com gente do naipe de Eduardo Bolsonaro, em encontro intermediado por ninguém menos que o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP).

Se você, leitor, estivesse no Espaço Unimed no dia da palestra, iria respirar essa atmosfera nostálgica da direita. Mas, se estivesse nos camarotes, e não no gargarejo do palco, também iria respirar o cheiro salgado dos pastéis e das fritas (R$ 35 a porção), o odor doce dos fondues de chocolate, a fragrância dos vinhos que custavam, no mínimo, R$ 120, e ouviria o tilintar dos cubos de gelo em copos cujas doses milimétricas de uísque eram contabilizadas em R$ 45. Havia também outros tipos de comida, com direito a hambúrger e cerveja, para pessoas menos "descoladas".

Entre uma música de Bach e outra que tocava antes da apresentação, só "descolados" circulavam ali. O elenco era vasto —e profundo: do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), passando por Leda e Duda Nagle (mãe, jornalista, e filho, ator), a deputada federal Bia Kicis (PL- DF), o ator Juliano Cazarré, Marco Antonio Costa (ex-Jovem Pan), André Marinho (atual Jovem Pan), Caio Coppola (comentarista na CNN Brasil), o cientista político e ex-deputado Heni Ozi Cukier, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (PL), Adolfo Sachsida (ex-ministro de Bolsonaro), até a influencer Lara Brenner , Gabriel Kanner (herdeiro da Riachuelo) e sua esposa, Marthina Brandt (miss Brasil 2015), ali estava a nostalgia do gulag transmutada no radical chique de direita (muito obrigado, Tom Wolfe).

E não eram apenas as celebridades deste Brasil paralelo. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, também compareceu; Maria Homem, psicanalista e professora da FAAP, que cobra R$ 1.700 por sessão avulsa de terapia (via Skype), fez graça com Schopenhauer quando a palestra finalmente terminou.

"Finalmente" é um termo exato porque o show —foi um show mesmo, pois Peterson se tornou uma espécie de Taylor Swift do intelecto— durou quase duas horas. Quem prestou atenção no conteúdo ficou com torcicolo. Afinal, o tema não era nada leve: sacrifício, Caim e Abel, Abraão e Isaac. Enfim, o velho e conhecido problema do mal, o tema que obceca —já podemos chamá-lo assim?— "Jordan".

Portanto, "Jordan" começou com um sacrifício a ser imposto ao seu público tão querido: a abertura foi uma série de quatro músicas cantadas por um aluno seu, Victor Swift (nada a ver com Taylor, graças a Deus), o qual, com seu violão, simplesmente assassinou "Hallelujah", de Leonard Cohen (é melhor nem comentar as outras três).

Antes de Jordan entrar, veio sua esposa, "Tammy" (que o chama de "Dr. Peterson"), aplaudida efusivamente —afinal de contas, não é qualquer pessoa que consegue escapar de um câncer nos rins.

E eis que ele surgiu. Sozinho no palco, vestindo um terno que parecia figurino do longa "Coringa" (2019), "Jordan" foi celebrado como o sacerdote que todos esperavam. O show foi todo dele: por quase uma hora e meia, houve um passeio pelo "significado político" da história bíblica de Caim e Abel, mas sobretudo pelo fato de que "Deus é o juiz do sacrifício", sem que o bom doutor se importasse com a definição exata do termo "sacrifício" (a violência sagrada que molda o comportamento humano).

Na verdade, Abel não pratica rituais violentos para Deus, ao contrário do seu irmão homicida, e sim oferendas pacíficas (agradecemos esta distinção ao professor doutor Maurício Righi), e isto também foi tratado de forma displicente. Mas quem está preocupado com rigor nessas horas, não é mesmo?

No mundo do Brasil paralelo, o que importa é falar que "o maior descendente de Caim nos tempos atuais é o marxismo" —uma afirmação recebida pelo público com tamanha energia nos aplausos que era de se perguntar se o próximo sacrifício a ser feito pelo filho maldito de Adão e Eva não aconteceria na esquina ali ao lado.

É claro que aconteceria. Mas antes disso, o "gran finale": apertar as mãos de Jordan e conversar com ele por alguns minutos. Havia, porém, uma condição (feita sem o conhecimento prévio da produção): pagar US$ 250 (cerca de R$ 1.380).

Quem se habilitou? Várias pessoas, a julgar por outra fila longuíssima formada, desta vez com os radicais chiques da vez, entre eles Nikolas Ferreira —que não conseguia andar, tamanho o assédio das fãs, e depois escreveu no seu Instagram, como legenda de sua foto com a estrela da noite: "Pick your damn sacrifice" ("escolha o seu maldito sacrifício")— e Pablo Marçal, cuja forma de se aproximar do palestrante foi astuta: deu a impressão de que Jordan o conhecia há tempos; os dois se olharam como amigos, um apertou a mão do outro e até se abraçaram.

Este gesto foi a prova de que a palestra de Jordan Peterson simbolizou uma mudança no eixo de poder político do país. Os Bolsonaros não estavam mais no topo da cadeia alimentar da direita; Nikolas e Pablo eram, desta vez, a carne fresca.

E a imprensa, como sempre, desprezou o evento. Uma jornalista que estava ali chegou a relatá-lo como se fosse uma "reunião de reacionários". Na realidade, era o futuro, o mesmo futuro caótico eleito em 2018, suspenso durante a pandemia e que agora, amadurecido e devidamente financiado, deixará de ser o Brasil paralelo e será o Brasil oficial por meio de uma única regra: o sacrifício em uma roupagem "descolada", pleno da "nostalgia do gulag", criando assim uma terceira etapa na carnificina da nossa violência sagrada —a síndrome de Caim.

Como reflexo disso, o bom doutor afirmou à produção oficial do evento que não daria entrevistas. E não deu, exceto para um veículo de imprensa: a Jovem Pan, representada pelo humorista André Marinho.

A razão dessa proeza é que Marinho é amigo de Robert F. Kennedy Jr., o candidato independente à Presidência dos EUA e aliado de Jordan em causas mais do que polêmicas (guerra contra a cultura woke, oposição a vacinas). É óbvio que um jornalista qualquer jamais teria chance de trocar uma palavra com o palestrante. Afinal, quem pode competir contra Camelot?

Ninguém, especialmente se levar em conta que, na saída do evento, por volta das 22h30, três amigos, que ainda digeriam os insights sobre Caim e Abel, foram em direção ao metrô mais próximo, a estação Barra Funda, repleta de pessoas deitadas no chão e moradores de rua pedindo dinheiro.

Enquanto esperavam um táxi, um vendedor ambulante, chamado Douglas, se aproximou e perguntou se eles queriam comprar um kit "dieta balanceada" —na verdade, uma modesta caixa de brigadeiros caseiros (R$ 10). Desconfiados, recusaram a oferta. Mas Douglas foi insistente e soltou outra questão: "Quem estava ali dando show?". Não foi show, foi uma palestra, responderam. "De quem?" Jordan Peterson. "Jordan Peterson? Puxa, tão brincando? Sou fã dele! Li todos os livros."

O vendedor sacou o celular gasto pelo uso e mostrou, na tela, que de fato tinha a obra completa do bom doutor. "Eu aplico as 12 regras da vida dele todos os dias!" Sorridente, Douglas se despediu. Os três amigos estavam completamente surpresos. Era o Brasil verdadeiro a se sacrificar pelo Brasil paralelo (e, quiçá, oficial) que pagou uma fortuna para apertar a mão de um mero homem.

* Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné) 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/06/jordan-peterson-mostrou-que-brasil-paralelo-da-direita-virou-oficial.shtml

Chamem o Tiririca

 Antônio Prata*

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 30 de Junho de 2024, mostra o desenho de uma marreta feita de porcelana branca com estampa florida azul.
 Adams Carvalho


Botassem o Ariano Suassuna no fim da vida pra debater com o Trump e não sobrava uma migalha

Eu tinha uns vinte anos, era colaborador numa novela da Globo e não sei por que cargas d’água fui parar num almoço com uns executivos do canal. Havia muitos talheres, muitos copos, muitos chefes e uma TV ligada, sem volume, no fundo do restaurante, no Projac.

No meio da conversa um mandachuva, que provavelmente tinha pegado o Boni no colo, feito cafuné no Chacrinha e dado chupeta pro Renato Aragão, olha pra TV e se cala.

Tava passando, em "Vale a Pena Ver de Novo", uma cena com uma dessas grandes atrizes, não sei se a Renata Sorrah, a Laura Cardoso ou a Marília Pêra.

Depois de uns segundos ele sorriu satisfeito, como um fazendeiro admirando sua lavoura. Aí disse um negócio que nunca esqueci. "Você reconhece boa atuação é assistindo TV sem volume".

De fato, sem sabermos o que a Renata Sorrah, a Laura Cardoso ou a Marília Pêra falavam, percebíamos sua genialidade, em contraste com a canastrice dos atores menores, que gritava na televisão muda.

Lembrei da cena nesta quinta, assistindo ao debate entre Trump e Biden. Coloquei na CNN, mas a TV estava sem volume e demorei a achar o controle certo. Por mais de um minuto, voltei àquele almoço de duas décadas atrás –e, infelizmente, não vi no Biden nem a Renata Sorrah, nem a Laura Cardoso e nem a Marília Pêra.

Que desastre, meus amigos. Que desastre. Qualquer estreante em "Malhação" teria feito melhor. Trump era Rocky Balboa socando um Dom Lázaro balbuciando "eu quero mamão". Era Arnold Schwarzenegger (em qualquer filme) contra Daniel Day Lewis em "Meu pé esquerdo".

Mano! O país mais poderoso do mundo, o único que tem alguma chance de liderar a luta contra a extrema direita, aos quarenta e cinco do segundo tempo no jogo do apocalipse climático, com mais de 300 milhões de habitantes, não conseguiu arrumar ninguém melhor pra concorrer à presidência do que a Velha Surda de "A praça é nossa"?! Biden parece ter sido escolhido a dedo— por um estrategista republicano.

A direita sempre tem a virilidade em alta conta. Até um homúnculo como Mussolini era vendido como um Hércules, fazendo com que todos os homúnculos da Itália reconhecessem como hercúleas suas existências medíocres.

Vivemos uma crise da masculinidade. O homem hétero não é mais o rei da cocada preta. A "defesa da família tradicional", conversa pra boi dormir e gado acordar, que vem de Trumps, Bolsonaros e quetais, nada mais é do que a promessa de voltarmos à época em que o homem branco e hétero mandava na sua esposa, nos seus filhos, podia zoar o gay no trabalho e desprezar todos os negros.

O slogan "Make América Great Again" podia ser mais explícito e mudar para "Enlarge Your Penis". Um charuto pode ser apenas um charuto, claro, mas desconfio que esses fuzis não sejam apenas fuzis.

Essa virilidade tosca do século 20, rediviva no 21, é ridícula, claro, mas a virilidade, em si, não é. Queremos que um líder seja corajoso, enfático, forte. Nada disso requer, especificamente, testosterona. Margareth Tatcher, Angela Merkel, Marine Le Pen, Simone Tebet, Dilma, Michele Obama não são imagens da fragilidade.

Tampouco precisa ser jovem, um candidato: botassem o Ariano Suassuna no fim da vida pra debater com o Trump e não sobrava uma migalha craquelada daquele bronzeamento artificial. A Erundina arrancava aquela peruca com duas frases.

Por que, ó Deus, ó deusas, o Biden? Se não tem ninguém no partido democrata, não podiam treinar o Tom Hanks? O Ross, de Friends? A Phoebe! O Mickey Mouse? O Pateta? Eu? O Tiririca? Pior do que tá não fica.

* Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem" 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2024/06/chamem-o-tiririca.shtml

Humanos escravos da inteligência artificial

Nicolás José Isola*

Logomarca da inteligência artificial ChatGPT
 Dado Ruvic - 11.mar.24/Reuters

Precisamos educar-nos e educar nossos filhos no uso moderado e consciente da tecnologia

Os avanços da inteligência artificial são enormes. O mundo tal como a gente o conhece hoje vai mudar. Um monte de tarefas que hoje ainda fazemos sem vontade poderá ser feito pela inteligência artificial. Porém, uma conexão que não é tão simples de replicar através da tecnologia é a conexão humana.

O ChatGPT, por exemplo, consegue mostrar certa empatia numa conversa, mas nós sabemos que essa empatia não é real, mas um agregado de informações que permite à tecnologia simular aquela empatia.

Hoje em dia temos perdido muitos espaços de socialização. Por exemplo, cada vez é mais difícil que os adolescentes fiquem sem telefones na hora das refeições. Muitos deles estão isolados o tempo todo, perdendo a conexão com a natureza e com outros adolescentes.

As nossas conversas familiares têm sido reduzidas por causa das redes sociais. Em vez de estar conectados com aqueles que estão por perto, estamos procurando outros que estão longe. Adultos que antes conversavam com as crianças durante a refeição estão respondendo e-mails em vez de atender seus filhos. A tecnologia não é uma coisa ruim, longe disso. Ela ajuda e muito no nosso dia a dia. Mas os adultos não estão sabendo como lidar com ela.

Cada vez é mais infrequente a ligação de voz. Um exemplo da desumanização.

Fico preocupado com a nossa capacidade de desumanizar-nos. Essa capacidade que já comprovamos em muito pouco tempo, o quanto pode mudar nossos hábitos por causa da tecnologia. Como ela capturou nossas vidas de modo a não mais perguntar para as pessoas com quem moramos: "como foi teu dia?".

Não é incomum ir a um restaurante e ver quatro pessoas numa mesa e todas elas com seu smartphone na mão, sem dirigir a palavra para nenhum dos outros. Ou pessoas indo a um show muito mais focadas em gravar um vídeo do que em curtir aquele momento mágico.

Em meio a essa situação, avança um problema demográfico enorme da baixa natalidade junto com um incremento da solidão.

Em muitos países, os governos têm criado um Ministério da Solidão para atender as pessoas que sofrem de solidão, porque não têm ninguém para falar e compartilhar a vida. A tecnologia pode nos ajudar a ficar perto, porém também pode nos afastar. Muitos pais e mães não estão sabendo como lidar com o uso dos tablets, mesmo nas escolas os limites são difusos.

Com a inteligência artificial, esse cenário vai se complicar ainda mais. A humanidade vai mudar muitos dos seus hábitos e formas de trabalho, e também na vida pessoal muitas coisas mudarão. Precisamos dominar a inteligência artificial e não sermos dominados por ela. Isso é relevante porque a maioria das pessoas consome as redes sociais sem se dar conta de quais são os comportamentos que vão mudando no cotidiano (e falo também por mim).

A inteligência artificial vai demandar uma consciência ainda maior por parte de nós, porque capilarmente se introduzirá na nossa vida, ao ponto de nem sequer sabermos que estamos rodeados dela. As coisas que sejam fruto do trabalho humano precisarão ser explicitadas. Viveremos num mundo cheio de coisas que parecerão nossas, mas serão construídas com inteligência artificial. A realidade será colocada em dúvida. Mesmo as colunas num jornal, será o cara quem a escreveu ou ele colocou uma indicação e foi escrita pela máquina?

Eu adoro  a tecnologia e acho muito legal a inteligência artificial. Porém, acredito que como humanos talvez não estejamos preparados para esse salto quântico que se aproxima. Psicológica e emocionalmente, viver num mundo onde a realidade e a ficção são quase impossíveis de distinguir é um processo constrangedor. Psicológica e emocionalmente, viver num mundo onde a tarefa que eu adorava fazer e era a minha vocação, e agora é feita em segundos por uma máquina pode ser doloroso. Psicológica e emocionalmente, precisamos preparar-nos e pensar quais critérios internos e externos vão reger essa tecnologia.

Por quê? Porque desde o nascimento do primeiro smartphone a tecnologia já mudou muito nosso comportamento. E isso só vai se aprofundar. Precisamos educar-nos e educar nossos filhos no uso moderado e consciente.

Caso contrário, vamos ter a melhor tecnologia nunca antes vista, certo, mas seremos escravos.

* Filósofo, mestre em Educação, doutor em Ciências Sociais, coach executivo e consultor em storytelling.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nicolas-jose-isola/2024/06/humanos-escravos-da-inteligencia-artificial.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

“Ridiculizar a Biden refleja la debilidad de Estados Unidos como país”, dijo el analista Bartesaghi

Por Fabiana Culshaw*

 Joe Biden y Elton John.

Mandatario. Un día despúes del debate, Biden rindió homenaje a pioneros de la causa LGTBQ+, con la leyenda de la música Elton John.
Foto: Mandel Ngan/AFP.

El internacionalista pone foco en la falta de respeto hacia el presidente de EEUU en las redes sociales y por parte de su oponente, lo que refleja el deterioro de valores que se vive en el mundo.

 En el partido demócrata se discute si es sostenible la candidatura de Joe Biden a la presidencia de EE.UU., luego del debate entre el mandatario y el republicano Donald Trump el pasado jueves en el que era previsible que este último saliera favorecido, según analistas. En Uruguay, Ignacio Bartesaghi, director del Instituto de Negocios Internacionales de la Universidad Católica (UCU) afirma que desde hace meses existen estrategias diseñadas por si Biden seguía desplomándose. “Esto es algo que vengo escuchando en círculos cerrados desde hace tiempo, mucho antes del debate”, dijo el analista. Sin embargo, el panorama luce incierto.

Se ha manejado la alternativa de una candidatura demócrata de la exprimera dama Michelle Obama, de la vicepresidenta Kamala Harris, del secretario de Estado Antony Blinken, entre algunos gobernadores reconocidos aunque sin demasiado brillo público, como Gretchen Whitmer (Michigan), Tim Walz (Minnesota), Roy Cooper (Carolina del Norte), Josh Shapiro (Pensilvania) y, sobre todo, Gavin Newsom (California). Pero Biden afirmó que no va a renunciar a su candidatura y todo el conjunto de acontecimientos políticos, no solo de ahora sino de los últimos años, asombra en un país que es potencia mundial.

“Preocupa lo que está sucediendo en Estados Unidos, porque ese país es un termómetro de lo que ocurre a nivel mundial”, destaca Bartesaghi y lo fundamenta en esta entrevista con El País.

-¿Cómo se entiende que los asesores de Biden hayan aceptado un debate que, previsible o altamente probable, mostraría ciertas afectaciones de salud del presidente?

-No se termina de entender, porque los debates en EE.UU., si bien son esperados, no son obligatorios. No se termina de entender ese grado de confianza que se le ha dado a Biden. Lo que estamos viendo en EE.UU., no solo con este debate sino en general, es un reflejo de lo que ocurre en el mundo occidental: un deterioro institucional, de la cohesión social y una debilidad democrática, que es alarmante. El problema no es solo en Estados Unidos, lo estamos observando a nivel internacional y se agrava por lo que proyecta Estados Unidos en el mundo, en términos históricos de institucionalidad. Fíjate que Trump salió favorecido ante la opinión pública en un debate en el que dijo que respetará los resultados de las elecciones “si son justas”, que es precisamente lo que no reconoció la vez pasada; es decir, condicionó su respuesta y puso en duda, aunque sin decirlo, las instituciones. Y a pesar de ello, resultó favorecido en el debate ante la opinión pública. Tampoco está claro qué piensa Trump sobre cómo se puede resolver la guerra en Ucrania, la relación con Irán, si va a sostener la OTAN, o qué va a hacer ante una cantidad de temas que inquietan a la comunidad internacional.

-¿Cómo queda la sociedad estadounidense ante esta situación?

-En las redes sociales se intenta ridiculizar a Biden, hay una gran falta de respeto, y la oposición se está agarrando de sus debilidades para destruirlo. Eso que la comunidad estadounidense está haciendo con el presidente Biden, de ridicularizarle, es una proyección de la debilidad de EE.UU. como país, como sociedad. Uno no puede dejar de analizar que la primera potencia mundial presenta estos dos candidatos a la presidencia, uno muy debilitado y el otro totalitario. Habla muy mal de cómo están las cosas, sobre todo con el rol importante que tendrá Estados Unidos en los próximos años.

- Hay un segundo y último debate televisivo programado para setiembre, ¿piensa que se llevará a cabo?

-Si Biden sigue siendo candidato tendrá que hacerlo. De lo contrario, sería un mensaje muy negativo para los demócratas de que no pudieron con eso. Muchas cosas pueden pasar hasta ese momento. Lo preocupante, repito, es el mensaje al mundo que EE.UU. está dando con estos dos candidatos, que muestran crisis de liderazgo y de las instituciones.

Profesor Ignacio Barthesagi.
Profesor Ignacio Barthesagi.
Foto: cedida a El País.

-¿Cómo es posible que se haya llegado a este deterioro, en un país que otrora era reconocido precisamente por sus valores e institucionalidad democrática?

-Estados Unidos es un termómetro: lo que ocurre allí es lo que está sucediendo a nivel internacional: una debilidad clara que abarca a los Estados, las religiones, los valores humanos, los derechos humanos. Eso está reflejado en las guerras, en las crisis sociales, en la poca tolerancia en la convivencia, en los enfrentamientos tribales. El mundo está en una ebullición de crisis y, en el caso del mundo occidental, se le agrega la crisis del modelo democrático, que hay que reconocer que ya no a todos les importa. Ciertamente, eso no le importa al votante de Trump, al que perdió el trabajo o se siente amenazado por los migrantes. Ahí es fácil incendiar la pradera, que es lo que busca el candidato Trump. La polarización que existe explica también lo que está sucediendo con la extrema derecha en Europa y lo que vamos a ver en Francia con las elecciones de este domingo. En esta nueva época, se están reviendo los patrones clásicos de relacionamiento, sin saber adónde nos van a llevar.

-¿Dónde está parado el Partido Demócrata en este momento?

-Cuando se proyectaba la debilidad de Biden, uno imaginaba que la vicepresidenta, que además se había mostrado fuerte en sus primeros meses, iba a asumir un rol más protagónico, pero prácticamente desapareció, es un actor poco importante en el gobierno estadounidense. Ella debería cumplir un rol de sostén de Biden. Es razonable pensar que la fortaleza pueda estar en la vicepresidencia, más en una situación así. No es el caso de Trump, porque nadie duda de su vitalidad. Si Biden mostrara debilidades, pero la fortaleza estuviera en su equipo de gobierno y en una vicepresidenta potente, ganaría más el voto. Pero no es el caso.

-¿Piensa que Trump representa más el núcleo de los republicanos que tiempo atrás?

-No. Yo diría más bien que los republicanos han tenido que aceptar a Trump como candidato, porque estar con él es llegar a la victoria. En su momento, hubo una emergencia de Trump porque su estilo representaba la anti-institucionalidad, con un discurso fuerte contra la migración y todo lo que ya sabemos. Y la incomodidad política contra el establishment, ya sea republicano o demócrata, sigue estando. Eso puede hacer ganar de nuevo a Trump. Hoy muchos republicanos ven a Trump con recelo, pero es el que arrasa y nadie cuestiona la fuerza de su candidatura.

-¿Cómo interpreta que el Partido Demócrata no haya logrado que emerja otro candidato?

-El Partido Demócrata se jugó a que, desde el punto de vista legal, iban a impedir la posibilidad de que Trump se presentara como candidato. Esa es la única explicación que le puedo dar. Si hubiera sido otro el candidato republicano, más allá de la debilidad de Biden, él tendría ventaja. Biden ahora dice “estoy viejo, pero digo la verdad”, y es de lo que se tiene que agarrar. En las próximas semanas, cualquier cosa puede pasar. Lo que veo es que los dos candidatos despiertan una sensación de inseguridad en un país que es la primera potencia mundial; eso es, ante lo que se viene, lo que más preocupa.

Fonte:  https://www.elpais.com.uy/mundo/estados-unidos/ridiculizar-a-biden-refleja-la-debilidad-de-estados-unidos-como-pais-dijo-el-analista-bartesaghi

sábado, 29 de junho de 2024

As gigantes da tecnologia estão matando a inovação

Por Mark Lemley (The New York Times) e Matt Wansley (The New York Times)

  

A concentração de poder nas mãos das Big Tech está sufocando a criatividade e a inovação no setor de tecnologia Foto: Brian Snyder/Reuters

Entenda como gigantes como Google e Microsoft estão cooptando startups inovadoras e limitando o progresso tecnológico

O Vale do Silício se orgulha de ser um lugar de disrupção: startups desenvolvem novas tecnologias, derrubam mercados existentes e superam empresas previamente estabelecidas. Esse ciclo de destruição criativa nos trouxe o computador pessoal, a internet e o smartphone, mas, nos últimos anos, um punhado de empresas de tecnologia estabelecidas manteve seu domínio. Por quê? Acreditamos que elas aprenderam a cooptar startups potencialmente disruptivas antes que elas possam se tornar ameaças competitivas.

Basta ver o que está acontecendo com as empresas líderes em inteligência artificial (IA) generativa.

A DeepMind, uma das primeiras startups de IA de destaque, foi adquirida pelo Google. A OpenAI, fundada como uma organização sem fins lucrativos e um contrapeso ao domínio do Google, recebeu US$ 13 bilhões da Microsoft. A Anthropic, uma startup fundada por engenheiros da OpenAI que desconfiaram da influência da Microsoft, levantou US$ 4 bilhões da Amazon e US$ 2 bilhões do Google.

Recentemente, foi divulgado que a Comissão Federal de Comércio estava investigando as negociações da Microsoft com a Inflection AI, uma startup fundada por engenheiros da DeepMind que trabalhavam para o Google. O governo parece estar interessado em saber se o acordo da Microsoft para pagar à Inflection US$ 650 milhões em um acordo de licenciamento - ao mesmo tempo em que a empresa estava destruindo a startup, contratando a maior parte de sua equipe de engenharia - foi uma forma de contornar as leis antitruste.

A Microsoft defendeu sua parceria com a Inflection. Mas o governo tem razão em se preocupar com esses acordos? Nós achamos que sim. No curto prazo, as parcerias entre as startups de IA e as grandes empresas de tecnologia proporcionam às startups as enormes somas de dinheiro e os chips difíceis de obter que elas desejam. Mas, no longo prazo, é a concorrência - e não a consolidação - que proporciona o progresso tecnológico.

Os gigantes da tecnologia de hoje já foram pequenas startups. Eles criaram empresas ao descobrir como comercializar novas tecnologias - o computador pessoal da Apple, o sistema operacional da Microsoft, o mercado online da Amazon, o mecanismo de busca do Google e a rede social do Facebook. Essas novas tecnologias não competiram tanto com as empresas estabelecidas, mas sim as contornaram, oferecendo novas maneiras de fazer as coisas que alteraram as expectativas do mercado.

Mas esse padrão de startups inovando, crescendo e ultrapassando as empresas estabelecidas parece ter parado. Os gigantes da tecnologia são antigos. Cada um deles foi fundado há mais de 20 anos - a Apple e a Microsoft na década de 1970, a Amazon e o Google na década de 1990 e o Facebook em 2004. Por que não surgiu nenhum novo concorrente para desestabilizar o mercado?

A resposta não é que os gigantes da tecnologia de hoje sejam simplesmente melhores em inovação. A melhor evidência disponível - dados de patentes - sugere que as inovações têm maior probabilidade de vir de startups do que de empresas estabelecidas. E isso também é o que a teoria econômica prevê.

Uma empresa estabelecida com uma grande participação de mercado tem menos incentivo para inovar porque as novas vendas que uma inovação geraria poderiam canibalizar as vendas de seus produtos existentes. Engenheiros talentosos são menos entusiasmados com ações de uma grande empresa que não estão vinculadas ao valor do projeto em que estão trabalhando do que com ações de uma startup que pode crescer exponencialmente, e os gerentes estabelecidos são recompensados pelo desenvolvimento de melhorias incrementais que satisfaçam seus clientes atuais, em vez de inovações disruptivas que possam desvalorizar as habilidades e os relacionamentos que lhes dão poder.

Os gigantes da tecnologia aprenderam a interromper o ciclo de disrupção. Eles investem em startups que desenvolvem tecnologias disruptivas, o que lhes dá inteligência sobre ameaças competitivas e a capacidade de influenciar a direção das startups. A parceria da Microsoft com a OpenAI ilustra o problema. Em novembro, Satya Nadella, executivo-chefe da Microsoft, disse que mesmo que a OpenAI desaparecesse repentinamente, seus clientes não teriam motivo para se preocupar, porque “temos as pessoas, temos a computação, temos os dados, temos tudo”.

É claro que as empresas estabelecidas sempre tiveram a ganhar com o sufocamento da concorrência. Empresas de tecnologia mais antigas, como a Intel e a Cisco, entenderam o valor da aquisição de startups com produtos complementares. O que é diferente hoje é que os executivos de tecnologia aprenderam que mesmo as startups fora de seus mercados principais podem se tornar ameaças competitivas perigosas, e o tamanho dos gigantes da tecnologia de hoje lhes dá o dinheiro para cooptar essas ameaças. Quando a Microsoft foi julgada por violações antitruste no final da década de 1990, ela foi avaliada em dezenas de bilhões de dólares. Agora, ela está avaliada em mais de US$ 3 trilhões.

Além de seu dinheiro, os gigantes da tecnologia podem alavancar o acesso a seus dados e redes, recompensando as startups que cooperam e punindo as que competem. De fato, esse é um dos argumentos do governo em seu novo processo antitruste contra a Apple (a Apple negou essas alegações e pediu que o caso fosse arquivado). Elas também podem usar suas conexões na política para incentivar a regulamentação que serve como um fosso competitivo.

Você se lembra daqueles anúncios do Facebook que defendiam uma maior regulamentação da internet? O Facebook não os estava comprando para caridade. As propostas do Facebook “consistem, em grande parte, na implementação de requisitos para sistemas de moderação de conteúdo que o Facebook já havia implementado anteriormente”, conclui o site de investigações tecnológicas The Markup. Isso lhe daria uma vantagem de pioneiro em relação à concorrência.

Quando essas táticas não conseguem fazer com que uma startup deixe de competir, os gigantes da tecnologia podem simplesmente comprá-la. Mark Zuckerberg deixou isso claro em um e-mail para um colega antes de o Facebook comprar o Instagram. Se startups como o Instagram “crescerem em grande escala”, escreveu ele, “elas poderão nos perturbar muito”.

Os gigantes da tecnologia também cultivam relacionamentos repetidos com investidores. As startups são investimentos de risco, portanto, para que um fundo de risco tenha sucesso, pelo menos uma das empresas de seu portfólio deve gerar retornos exponenciais. Como as ofertas públicas iniciais diminuíram, os investidores têm se voltado cada vez mais para as aquisições a fim de obter esses retornos.

Investidores sabem que apenas um pequeno número de empresas pode adquirir uma startup por esse tipo de preço, portanto, eles mantêm amizade com as grandes empresas de tecnologia na esperança de direcionar suas startups para acordos com as empresas estabelecidas. É por isso que alguns importantes investidores se opõem a uma fiscalização antitruste mais rigorosa: é ruim para os negócios.

 As aquisições agressivas de startups por grandes empresas de tecnologia ameaçam o futuro da inovação. Foto:Seth Wenig/AP

 As aquisições agressivas de startups por grandes empresas de tecnologia ameaçam o futuro da inovação


A cooptação pode parecer inofensiva no curto prazo. Algumas parcerias entre empresas estabelecidas e startups são produtivas. Além disso, as aquisições proporcionam aos investidores os retornos necessários para convencer seus financiadores a investir mais capital na próxima onda de startups.

A cooptação, por sua vez, prejudica o progresso tecnológico. Quando um dos gigantes da tecnologia compra uma startup, ele pode desativar a tecnologia da startup ou pode desviar o pessoal e os ativos da startup para suas próprias necessidades de inovação, e mesmo que não faça nada disso, os obstáculos estruturais que inibem a inovação nas grandes empresas estabelecidas podem minar a criatividade dos funcionários da startup adquirida. A IA parece uma tecnologia disruptiva clássica, mas, à medida que as startups disruptivas que foram pioneiras nessa tecnologia forem sendo vinculadas às grandes empresas de tecnologia, uma a uma, ela poderá se tornar nada mais do que uma forma de automatizar os mecanismos de busca.

O governo Biden pode intervir para começar a resolver esse problema. No início deste ano, a FTC anunciou que estava investigando os acordos da Big Tech com empresas de IA. Esse é um começo promissor, mas precisamos mudar as regras que possibilitam a cooptação.

Em primeiro lugar, o Congresso dos EUA deve expandir a lei de “diretorias interligadas” - que proíbe que os diretores ou executivos de uma empresa atuem como diretores ou executivos de seus concorrentes - para impedir que os gigantes da tecnologia coloquem seus funcionários em conselhos de startups. Em segundo lugar, os tribunais devem penalizar as empresas dominantes que discriminam o acesso a seus dados ou redes com base no fato de a empresa ser um concorrente em potencial. Em terceiro lugar, à medida que o Congresso se mobiliza para regulamentar a IA, ele deve ter o cuidado de redigir regras que não fortaleçam as empresas estabelecidas.

Por fim, o governo deve identificar uma lista de tecnologias potencialmente disruptivas - começaríamos com a IA e a realidade virtual - e anunciar que contestará todas as fusões entre os gigantes da tecnologia e as startups que desenvolvem essas tecnologias. Essa política pode dificultar a vida dos investidores que gostam de dar palestras sobre disrupção e depois tomar um drinque com seus amigos da área de desenvolvimento corporativo da Microsoft, mas seria uma boa notícia para os fundadores que querem vender produtos para os clientes, e não startups para monopólios. E seria bom para os consumidores, que dependem da concorrência, mas passaram muito tempo sem ela.

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.

Fonte; https://www.estadao.com.br/link/empresas/as-gigantes-da-tecnologia-estao-matando-a-inovacao/

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Paris contemporânea até a mala

por


Paris contemporânea até a mala  
Jardim de Luxemburgo, sempre uma exposição a céu aberto/Fotos de Ana Claudia Rodrigues e Juremir Machado da Silva

Todo mundo sabe que Paris cultiva o moderno como parte de uma tradição. Estilos e épocas se misturam para dar o ar mais contemporâneo. Vai do charme de um quadro lilás num hotel do Quartier Latin…

…até a ousadia radical de Vuiton, que inova até no tapume de suas obras. Uma mala em tamanho de edifício para proteger o canteiro de obras na rica, prestigiosa e luxuosa avenida Champs-Elysées.

Nas exposições Paris sempre dá show de novidades. Vai da galeria a céu aberto nas grades do Jardim de Luxemburgo…

Até as obras-primas da arte contemporânea na Bolsa do Comércio, que exibe a Coleção François Pinault. Uma piscadela para Voltaire, “O mundo como ele vai”, com sua “Comédia Humana”, seus espelhos… e sua fábrica de ruínas. Tudo é mostrado.

Nada é dito sem ironia.

Na recepção, Pablo Picasse em pessoa, ou em provocação.

Paris é tão louca que ainda tem fila em cinema.

Debate político permite que três candidatos falem pelos cotovelos.

Enfim, Paris é uma janela para o tempo.

No caso, verão, 30 graus.

Paris, de fato, é uma festa.

Uma festa inclusive da análise sociológicas dos fatos.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.

Fonte:  https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/paris-contemporanea-ate-a-mala/