terça-feira, 25 de junho de 2024

Questões do mundo espiritual

 Por LEONARDO BOFF*


Mundialmente há uma demanda por valores não materiais

Há muitos que estão fartos de bens materiais e do consumismo de nossa cultura. Como contraponto quero situar o tema dos bens espirituais no contexto dramático, perigoso e esperançador, em que se encontra atualmente a humanidade, especialmente, a humanidade humilhada e ofendida que vive no Sul Global, as vítimas de 18 regiões de guerra, em particular na Faixa de Gaza com viés de genocídio a céu aberto, sem esquecer as muitas vítimas da guerra Rússia-Ucrânia.

Nossa reflexão visa captar a emergência do mundo espiritual e enfatizar sua premente atualidade face às ameaças de desaparecimento da espécie e da liquidação da biosfera seja por uma guerra nuclear, por um excessivo calor devido às mudanças climáticas ou qualquer fator de desequilíbrio do próprio planeta Terra. Poderiam eventualmente pôr em xeque o futuro comum da Terra e da humanidade.

 Em momentos assim dramáticos, o ser humano mergulha em seu profundo e se coloca questões básicas: O que estamos fazendo nesse mundo? Qual é o nosso lugar no conjunto dos seres? Como agir para garantirmos um futuro que seja esperançador para todos e para nossa Casa Comum? O que podemos esperar para além dessa vida? São questões do mundo espiritual.

É nesse contexto que devemos colocar a questão do mundo espiritual, em outras palavras, da espiritualidade. O mundo espiritual é uma das fontes primordiais, embora não única, de inspiração do novo, de esperança alvissareira, de geração de um sentido pleno e de capacidade de autotranscendência do ser humano. Pois o ser humano só se sente plenamente humano quando busca se autossuperar. A razão reside no fato de vivenciar-se como projeto infinito, repleto de virtualidades que, em parte, se realizam na história e, no todo, para além dela.

Essa preocupação pelo mundo espiritual é recorrente em nossa cultura, não só no âmbito das religiões, que é o seu lugar natural, mas também no âmbito das buscas humanas tanto dos jovens, quanto dos intelectuais, de famosos cientistas e – para surpresa nossa –, de grandes empresários. Tenho falado nos últimos anos, aqui e fora do país, para pessoas ligadas a esses grupos.

O fato de grandes empresários colocarem questões ligadas ao mundo espiritual, vale dizer, à espiritualidade atesta as dimensões da crise que nos assola. Significa que os bens materiais que eles produzem, as lógicas produtivistas e concorrências que incentivam o universo de valores comerciais (tudo virou mercadoria) que inspira suas práticas não dão conta das interrogações referidas. Há um vazio profundo, um buraco imenso dentro do seu ser. Por isso, penso que só o mundo espiritual pode preenchê-lo.

 É importante, no entanto, manter sempre nosso espírito crítico, porque com o mundo espiritual, com a espiritualidade também se pode fazer muito dinheiro. Há verdadeiras empresas que manejam os discursos da espiritualidade que, não raro, falam mais aos bolsos do que aos corações. Há líderes neopentecostais que são expressão do mercado com sua pregação do evangelho da prosperidade material e, recentemente, do domínio. Conquistam para os interesses de seus pastores os fiéis, religiosos e de boa fé.

Entretanto, os portadores permanentes do mundo espiritual são as pessoas consideradas comuns, que vivem a retidão da vida, o sentido da solidariedade e cultivam o espaço do Sagrado, seja em suas religiões e igrejas, seja no modo como pensam, agem, interpretam a vida e cuidam da natureza.

O que importa, porém, é que mundialmente há uma demanda por valores não materiais, por uma redefinição do ser humano como um ser que busca sentido plenificador, que está à procura de valores que propiciam alegria de viver. Em toda parte encontramos seres humanos, especialmente jovens, indignados com o destino previamente definido em termos de economia, quando se diz que “não há outra alternativa”(TINA – There is no alternative), o sistema de mercado, sob a qual somos obrigados a viver, que se recusam a aceitar os caminhos que os poderosos coagem a humanidade a trilhar.

Esses jovens dizem: “Não permitiremos que nos roubem o futuro. Merecemos um destino melhor, precisamos beber de outras fontes para encontrar uma luz que ilumine nosso caminho e nos dê esperança”.

Por isso resulta importante, desde o início, introduzir uma distinção – sem separar, mas distinguir – entre o mundo religioso, a religião e o mundo espiritual, a espiritualidade. Aliás, o Dalai Lama o fez de uma forma extremamente brilhante e esclarecedora no livro Uma Ética Para o Novo Milenio (Sextante). São termos que usamos sem saber ao certo o que significam.

Permito-me citar um tópico desse livro de cuja compreensão participo e faço minha: “Julgo que religião (mundo religioso) esteja relacionada com a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma ideia de paraíso ou nirvana. Associados a isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações e assim por diante”.

“Considero que espiritualidade (mundo espiritual) esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros”.

“Ritual e oração, junto com as questões de nirvana e salvação, estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam ser. Não existe, portanto, nenhuma razão pela qual um indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico” (p. 32-33).

Como se depreende, essas reflexões são cristalinas, pois mostram a distinção necessária entre o mundo religioso, a religião e o mundo espiritual, espiritualidade. Uma vez distintas, podem se relacionar e conviver, mas sem uma depender necessariamente da outra.

Viver o mundo espiritual com os valores apontados pelo Dalai Lama que são também os mesmos valores do Jesus histórico poderá apontar caminhos que nos mostram uma eventual saída da crise dos tempos atuais.

*Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Espiritualidade: caminho de transformação (Vozes).

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/questoes-do-mundo-espiritual/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-06-25 

O futebol como vitrine da religião.

Por Gustavo Veiga. 

 

Agüero Esgaib dá a bênção junto com outro pastor que a deu em inglês 
no início da Copa América Foto: captura de TV
 

A Conmebol lançou uma ousada experiência para unir a bola à Bíblia. O pastor paraguaio Emilio Agüero Esgaib encerrou sua breve bênção da Copa América com um sonoro “amém” que foi ouvido por 72 mil pessoas em campo e vários milhões mais em 190 países . Foi o dia em que a seleção argentina estreou contra o Canadá no torneio organizado pelos Estados Unidos.


Na noite em que estreou na Copa América, a seleção argentina não foi a única vencedora. No Estádio Mercedes Benz, em Atlanta, a igreja Mais que Vencedores (MQV), nascida no Paraguai, já havia marcado um gol de calcanhar e batina antes da vitória por 2 a 0 sobre o Canadá. O desconhecido pastor Emilio Agüero Esgaib encerrou a sua breve bênção ao torneio com um sonoro “amém” que foi ouvido por 72.000 pessoas no campo e vários milhões de outras em 190 países. Nem mesmo o Papa Francisco, torcedor de futebol como é, convoca tal público quando reza o Angelus no Vaticano. A cerimônia inusitada deixou os fãs presentes atordoados e sem entender bem o porquê. A religião tinha pisado num templo estrangeiro, sem os seus paroquianos habituais nem a liturgia neopentecostal que caracteriza esta expressão de fé, com considerável penetração nos Estados Unidos.

  O que aquele homem alto de óculos, barbudo e de paletó e gravata estava fazendo, microfone na mão? Quem preparou o cenário para que ele desfrutasse de um minuto de rebuliço efêmero? O personagem prega em Assunção, administra vários santuários em seu país e até um na Grande Buenos Aires que fica em Burzaco. Ele é um ex-campeão de caratê e kickboxing – essas eram suas especialidades – que teve mais sucesso nas artes marciais do que como pastor até a abertura da Copa. Mas sua relação com o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, tão fã do Olímpia como ele, permitiu-lhe ampliar os limites de seu discreto rebanho paraguaio.

  O ex-“lutador de Cristo” e ex-goleiro do Sportivo Luqueño esteve por um momento no centro das atenções. Como os antigos pregadores da Igreja eletrônica no início dos anos 80 nos EUA.

  Agüero Esgaib não tem laços apenas com o poderoso líder do futebol sul-americano. Domínguez costuma ser visto em seu templo. Também compartilhou com ele a inauguração das obras, em abril passado, do reformado Estádio Olímpico Osvaldo Domínguez Dibb. Sua relação com a ala mais conservadora do Partido Colorado liderada pelo ex-presidente Horacio Cartes e seu patrocinador Santiago Peña, o atual presidente, foi refletida pela mídia paraguaia. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”, diz um salmo da Bíblia.

  “Para quem acredita, tudo é possível. Estas palavras nos encorajam a não desanimar e a acreditar grande. Amém”, encerrou o pregador de Cristo no estádio de Atlanta enquanto Messi e seus companheiros faziam seus últimos movimentos pré-competitivos. O seu momento de glória pastoral não foi improvisado.

  Em janeiro de 2019, Agüero Esgaib abençoou o casamento de Juan Pablo Cartes (filho mais velho de Horácio) e da brasileira Evelyn Glovacki, no hotel Belmond Copacabana Palace Rio de Janeiro. No ano seguinte, o pregador da Conmebol foi um dos palestrantes do debate Defesa da Vida e da Família , grandes prioridades no Paraguai , que aconteceu em uma sala da Associação Nacional Republicana (ANR), denominação legal do Partido Colorado.

  O lutador de Cristo é um ultramontano de raça pura. Quando não tinha a plataforma que a organização da Copa América lhe dava, falava livremente contra as políticas de género: “Agora vemos a promiscuidade sexual em toda a sociedade, uma degeneração e cauterização da mente, principalmente na Europa”.

  O pastor que era amigo da Conmebol na época em que era lutador de artes marciais.

Mais que Vencedores (MQV) conseguiu o que nem as igrejas católicas nem outras expressões evangélicas conseguiram. Pisar no mesmo campo que os campeões mundiais antes de uma partida oficial de um torneio continental. Nem mesmo o mais optimista dos seus missionários teria sonhado com algo semelhante quando nasceram em 2001 num espaço comercial na Avenida Pettirossi, em Assunção. No site oficial do MQV é citada uma anedota da época: “Lembro que fizemos cachorro-quente com uma maionese de alho incrível que minha mãe preparou. Acho que aquele molho foi um dos grandes evangelizadores que atraiu os jovens daquela época”.

  Da semeadura até esta colheita, é evidente que Agüero Esgaib e os seus paroquianos deram um passo em frente graças aos seus laços político-desportivos. “O que mais me emocionou foi aquele Amém! que foi gritado no Estádio com 72 mil almas ao final da bênção. Foi transmitido em 190 países. Uma mensagem de paz, harmonia e perdão. Muitas pessoas gratas por esse tempo. Mas entendo que muitos não gostaram”, tuitou o representante de Cristo e sobrinho do deputado cartista, Yamil Esgaib, após o jogo. Tudo fica na família.

  Esta igreja neopentescotal é muito clara sobre o impacto multiplicador da mídia. Ele sabe que delas depende a captação de almas virgens e a divulgação de seus textos bíblicos: “Ao longo dos anos unimos forças com grandes redes de televisão e rádio com programas próprios e, permanentemente, através de nossos pastores estabelecemos uma posição a respeito de nossa fé e princípios em debates e convites para diversos programas, especialmente na mídia paraguaia”, afirma o MQV em seu site oficial.

  A Conmebol deu-lhe uma ajuda adicional com o convite para pregar no luxuoso Estádio Mercedes Benz. Ele nem percebeu o estatuto da FIFA que estabelece no artigo 4º, parágrafo 2º, que “declara-se neutra em assuntos de política e religião. Exceções são contempladas em casos que afetem os objetivos estatutários da FIFA”. Poderíamos pensar que, desde que a bênção da Copa aconteceu nos Estados Unidos, não houve pecado ou, como está escrito no verso de qualquer dólar: “Em Deus confiamos”. Em Deus confiamos. Eles até traduziram para o inglês o pastor dos homens mais poderosos do Paraguai. Foi uma experiência ousada unir a bola com a Bíblia e fazer o rebanho cativo enquanto se fazia uma oração. Se Agüero Esgaib abençoou a Taça, o futebol também o abençoou.

Fonte:  https://desacato.info/o-futebol-como-vitrine-da-religiao-por-gustavo-veiga/ 24/06/2024

O medo e a esperança

 Por JOÃO CARLOS SALLES*


Contra a destruição da universidade pública

1.

Lula declarou não ter medo dos reitores; não foram eles que lhe teriam mordido o dedo que perdera em uma fábrica. A declaração parece estapafúrdia. Os reitores não expressam hoje nenhuma resistência especial ao governo, nem se posicionam como seus principais adversários, como se estivessem na linha de frente do combate à política do governo para a educação superior. Lula pareceria estar, assim, chamando para a briga quem está tão somente disposto a colaborar.

Caberia até duvidar que um político experiente a tenha proferido, sobretudo estando na condição de presidente – como duvidamos um dia que um ministro da educação pudesse dizer que as universidades eram lugar da balbúrdia. Na verdade, o contexto da fala, ao assistirmos o vídeo,[i] dá a entender algo bem diverso. Ele simplesmente não se constrangeria com reitores, não se incomodaria em recebê-los e, à diferença do inominável antecessor, já o teria feito mais de uma vez, não tendo ademais motivo algum para ter raiva dos reitores, que, afinal, não lhe arrancaram o dedo.

Em suma, Lula não estava confrontando os reitores, nem os chamava para uma briga. A fala é bem mais clara e generosa que sua transcrição inquinada, embora a frase continue sendo infeliz. E não há contexto que a redima por completo, sendo, ademais, triste a constatação: Lula, que, para tantos de nós, vocaliza a esperança, passa agora a incluir a palavra “medo” em seu discurso – no caso, um medo que ele certamente não precisaria nem deveria ter, mas que nos obriga à reflexão, pois, como já se disse, as palavras não caem no vazio.

Em sendo assim, outra questão se impõe. As universidades têm motivo para ter medo de Lula? Parece também que não. Afinal de contas, a comunidade universitária não se arrepende de, em ampla maioria,[ii] ter apoiado sua eleição, nem se constrange pelos muitos títulos de doutor honoris causa que lhe foram concedidos. Não esquece, entre diversos aspectos, a expansão das universidades, o apoio às ações afirmativas; não esquece os recursos destinados às ciências e à cultura. Além de tudo, é cristalina a certeza de não haver termo de comparação entre o eventual erro que ele possa cometer em atos e falas e o puro lixo obscurantista que derrotamos e tudo faremos para que não retorne.

Feita essa ponderação, temos, contudo, muitos motivos para temer, sim, ameaças que continuam a tomar corpo inclusive no atual governo. Continua em curso e é acelerado um processo de destruição da universidade pública tal como a conhecemos ou, melhor ainda, como a desejamos, enquanto parte essencial de um projeto de nação soberana e radicalmente democrática. Os sinais são muitos, alguns antigos, enquanto outros tornam-se agora mais fortes. Vejamos brevemente alguns desses traços.

2.

A universidade tem se desfigurado como lugar de produção autônoma de ciência, cultura e arte, de modo que se amesquinha por muitas formas. Nesse sentido, já foram feitos alguns importantes diagnósticos, que bem podemos considerar complementares.

Por exemplo, ao longo de décadas, Marilena Chauí tem insistido na corrosão interna da universidade, que ora se transformaria em operacional. Sua reflexão é, sem dúvida, uma das mais consistentes contribuições intelectuais a esse respeito, flagrando razões externas e internas à degradação da essência mais virtuosa da universidade.

A universidade operacional seria, em suas palavras, “a expressão mais alta do neoliberalismo”. Enquanto tal, ela promove a substituição da criação acadêmica pelo simples produtivismo, subordina o interesse geral do conhecimento ao interesse privado, demole, enfim, o processo de formação, uma vez que transforma a pesquisa em quase o seu contrário, pois esta, em tal ambiente, deixa de ser “a busca daquilo que não foi pensado ainda e daquilo que precisa e pode ser pensado, mas se torna resolução de problemas empresariais”.[iii]

Competição, privatização, rebaixamento de horizontes, tudo isso constrói um cenário demolidor de uma universidade que deveria ser sobretudo crítica, de modo que, para nos contrapormos a essa corrente avassaladora, precisaríamos reiterar nosso compromisso mais radical com a liberdade.

Tendo em conta que Marilena Chauí é uma referência intelectual que Lula jamais ignoraria, haveríamos de imaginar que, em tese, sua política para a educação superior não levaria água para o moinho de tal destruição. Não é, porém, o que temos visto, sobretudo se tomamos a universidade por seu funcionamento mais estrutural.

Ao longo do tempo, tem sido enfraquecida a estrutura administrativa das universidades. Podemos falar de uma universidade que ora padece os efeitos deletérios de uma precarização do trabalho – uma terceirização extensiva, que, por enquanto, só não atinge inteiramente o quadro docente. Não obstante, temos, sim, uma brutal diferença na carreira que precariza o trabalho dos docentes que ingressaram mais recentemente na universidade, assim como tem se descuidado da situação dos aposentados, que veem diminuídos seus rendimentos.[iv]

Além de tal enfraquecimento, o orçamento das universidades tem padecido na última década uma redução significativa, tanto em recursos de capital (que podem ter agora alguma reversão com o PAC, mas isso seletivamente e por escolhas não necessariamente feitas pelas próprias universidades), quanto em recursos discricionários de custeio. O absurdo atual está no fato de que o orçamento destinado à gestão dos campi pelas administrações centrais não cresceu e é flagrantemente insuficiente.

Por outro lado, têm afluído recursos de diversos ministérios (em especial, do Ministério da Educação), mas na forma de termos de execução descentralizada (TEDs). Com isso, o recurso comum não cresce, ao tempo que se amplia o volume de recursos por meio dos quais a universidade passa a ser contratada.[v]

É dupla, então, a condenação dos nossos reitores e respectivas administrações centrais. Por um lado, eles se tornam maus síndicos, uma vez que não têm recursos para garantir o funcionamento adequado de nossos campi. Por outro lado, eles passam a fazer a mediação entre os interesses parciais do governo e os interesses ainda mais particulares de grupos ou indivíduos que são contratados e devem doravante entregar produtos – cabendo aqui, é claro, ter a confiança de que tais procedimentos, sendo lícitos como não poderiam deixar de ser, sejam também corretos, algo que somente um adequado acompanhamento e total transparência podem garantir.

O risco na hipertrofia desses dois papéis é claro. A universidade, de forma brutal, conquanto possa ter um volume significativo de recursos, passa a ser uma prestadora de serviços e não lugar autônomo de ensino, pesquisa e extensão, com o agravante de que tais contratações costumam escapar da gestão direta da universidade e de seus mecanismos de controle, sendo amiúde geridas através das fundações.

3.

Esses dois papeis (de síndico e de mediador), salvo melhor juízo, comprometem a autonomia da instituição, seu brilho e valor, além de amesquinharem o lugar dos reitores. E não se trata de um mero poder pessoal, que é quase um poder nenhum, mas sim do simbolismo de uma instituição que é o espaço do pensamento crítico, dependendo assim para sua proteção e realização de uma efetiva capacidade de gestão administrativa autônoma da universidade.

Não posso deixar de mencionar o simbolismo. Não se trata, insisto, do poder hierárquico do reitor, mas sim da própria expressão de uma instituição cuja medida é o conhecimento e cujo tempo é a longa duração. Apenas nesse sentido o cargo de reitor pode ter uma solenidade própria. Tem sido assim em nossa história e é preciso que assim o seja, de modo que possa resistir também por seus gestos e por sua palavra a qualquer ataque desferido contra a aura e a autonomia da universidade e, de modo prático, possa ser defendido todo e qualquer membro da comunidade que esteja no exercício da produção e transmissão de conhecimento, com liberdade plena.

Enfraquecida a administração e reduzido o corpo técnico da universidade, é natural a dificuldade que as instituições tiveram, por exemplo, para cuidar do volume de licitações no período do REUNI, assim como a têm ainda para a gestão cotidiana de obras e manutenção. Agora, porém, fazendo da necessidade virtude, algumas universidades decidiram passar a gestão de mais recursos para as fundações – o que, todavia, compromete ainda mais uma capacidade administrativa já abalada.

Assim, além de cuidarem de um orçamento global de projetos que, em certos casos, é superior ao orçamento discricionário sob a responsabilidade de suas pró-reitorias de planejamento e administração, as fundações passam a competir diretamente com a administração central.

Alguns podem dizer, amparados em consultas às suas respectivas procuradorias, que tal passagem de recursos destinados a obras e serviços para as fundações (outrora restritas ao apoio da pesquisa e da extensão) é algo plenamente lícito. Devemos lembrar, contudo, os riscos de um procedimento tornado abusivo – à semelhança do açúcar, que é uma droga lícita, mas cujo consumo excessivo, como bem sabemos, faz muito mal à saúde.

Aliás, apesar de sua inanição teórica, o gerencialismo como filosofia administrativa parece também cada vez mais vigente, sendo desprovido de uma reflexão que vá além da reiteração dos resultados ou, por vezes, da defesa do conforto mais individual do emprego. Por vezes, com um discurso de modernização, de utilização de tecnologias e, sobretudo, de eficiência, vemos bordões liberais antigos sendo assumidos como se fossem de esquerda, horribile dictu, uma esquerda neoliberal.

Com isso, quebra-se em muito o alicerce da cidadania universitária, retirando-se da instituição as condições de conformação de um espírito de corpo cujo fundamento em muito depende da presença e do convívio, bem como de certos procedimentos por vezes morosos, pacientes, como paciente deve ser a vida do conceito.

Parece-nos óbvio também que o enfraquecimento da administração direta e de sua necessária orientação por um planejamento associado às atividades finalísticas da instituição, mesmo quando amparado em suposta licitude e feito em nome da eficiência, pode causar danos estruturais à autonomia das universidades. Afinal, se outrora temíamos que as fundações funcionassem como uma espécie de puxadinho das universidades, cabe temer agora que as universidades se tornem um puxadinho das fundações.

Em se consolidando tal processo, veremos esvaziada a relação entre meios e fins da universidade pública, o modo interno e singular por que se relacionam as formas de gestão e os interesses da autonomia acadêmica. Com isso, ao fim e ao cabo, o planejamento será simplesmente determinado pela administração, como se fôssemos uma repartição pública a mais.

Os números devem falar mais alto que qualquer consideração abstrata. Que se vejam os relatórios das universidades e das fundações. Os dados são públicos e claros, mostrando as distorções de papeis, com a plena vigência de mecanismos que só podem agradar a quem considera que as universidades não são um valor como um todo e devem ser apenas solicitadas a colaborar em projetos de interesse imediato dos governantes ou ainda do legislativo, sem que estejam garantidos o interesse precípuo da formação, a liberdade de pesquisa, a equanimidade entre as áreas e, enfim, o fortalecimento de sua representação coletiva.[vi]

4.

A situação parece-nos, sim, grave e ameaçadora. Tempos atrás, confrontados que fomos com a situação dos hospitais universitários, foi apresentada (e, em alguns casos, empurrada goela abaixo) a proposta de transferência de sua administração para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Às universidades continuaria a caber a indicação dos superintendentes, bem como, em tese, teriam a garantia de os hospitais se destinarem não apenas à assistência, mas sobretudo e condicionalmente à pesquisa e ao ensino.

Tendo sido correto ou não tal processo, não se pode voltar atrás nesse caso. Criar uma empresa não era a única forma de atender à exigência do TCU de eliminar a terceirização que estava se dando via fundações de apoio. O resultado agora não pode mais ser desfeito. As vantagens de gestão são muitas, os recursos são deveras mais abundantes e avanços na eficiência se verificaram, ao preço, todavia, de uma dura realidade que tampouco pode ser desconhecida, como pressão acentuada da assistência e uma progressiva diminuição da importância dos quadros remanescentes das universidades.

Entretanto, aquilo que poderia até ser debatido no caso desses equipamentos específicos, os hospitais universitários, não pode nem deve jamais estender-se às próprias universidades. A ocorrência pura e simples da palavra “medo” faz, porém, despertar muitos fantasmas.

Será que, nesse contexto de diminuição da aura da instituição e de aprisionamento de seu orçamento a interesses externos ou parciais, algum iluminado não aparecerá com solução de uma Empresa Brasileira de Serviços Universitários, uma EBSERU? Os reitores poderiam talvez tornar-se uma espécie de superintendentes (decerto indicados por suas comunidades e com uma gratificação de fazer inveja), mas ao preço de uma subordinação da instituição a princípios de gestão e a interesses que escapam à autonomia universitária? Não seria a contratação de serviços mais fácil e generalizada nesses casos, sem controle além dos próprios resultados e arrumando assim a vida de muitas pessoas?

Se acaso podia ser discutida uma tal empresa no caso dos hospitais, para as universidades ela seria o mais puro pesadelo. Que a questão possa ocorrer nessa forma agora fantasiosa, isso se deve a que talvez já estejamos sorvendo aos poucos desse fel, de sorte que, mesmo sendo absurdas, propostas equivalentes (como um todo ou em pedaços) podem vir a sair de dentro de alguma gaveta, na qual já podem estar sendo curadas.

O terrível, portanto, é esse cenário de ficção, essa distopia, já não parecer distante da realidade, ou seja, que tal ameaça, mesmo sendo improvável, tenha deixado de ser uma mera alucinação. Precisamos, então, combatê-la em sua origem, em seus mínimos indícios, mesmo enquanto apenas na fantasia; combater tantos os desvios concretos quanto as mais fantasmagóricas possibilidades, identificando todos os vestígios ora presentes de enfraquecimento da administração, sem que fiquemos simplesmente satisfeitos pela eventual abundância de recursos, caso não estejam garantidos os destinados ao interesse comum do ensino, da pesquisa e da extensão.

5.

Não só para tornar-se “operacional”, a universidade tem avançado profundamente na precarização dos trabalhos, assumindo sua vida ordinária a lógica própria da terceirização. Em um cenário assim, devemos convir, o programa Future-se pode ter sido um mero ensaio de amadores. Aliás, em minha experiência na instituição, nos diálogos que pude ter quando um governo fascistóide tentou impingir-nos a proposta, identifiquei adeptos do Future-se em lugares os mais improváveis. Diziam, por vezes, a proposta é um absurdo, mas essa ou aquela ideia poderia ser aproveitada. E tais adeptos, parece-me agora, agem ainda, sorrateiramente ou em gestos largos.

Tenho convicção de que Lula não tem em conta esses aspectos ao admoestar reitores e grevistas. Em sendo assim, mais que a um cálculo de reposição salarial, mais que a uma conta orçamentária, precisamos chamar sua atenção para o fato de que a universidade precisa reagir a ameaças. E Lula tem papel essencial nisso tudo, caso lembre, como tem tudo para lembrar, que a universidade não é mesmo lugar de fazer medo, mas sim de trazer esperança e de cultivar a liberdade.

Cabe-nos, sim, chamar o governo (ao menos, na parte que congrega progressistas que respeitam a universidade) a combater procedimentos, a recusar mecanismos que ora tendem a submeter o orçamento da universidade a interesses que escapam ao controle e ao bem mais comum – não sendo de descartar, inclusive, a possibilidade de que, em tal cenário desordenado, o uso de alguns recursos se mostre incompatível com os princípios mais elevados da gestão pública ou do interesse estritamente acadêmico.

Nesse momento, é preciso que, para além das justas reivindicações salariais e orçamentárias, os atores principais da cena universitária coloquem na mesa a própria natureza e essência da universidade e a defendam. Que a ANDIFES, por exemplo, brigue por condições para que sua matriz orçamentária possa ser rodada, e não aceite simplesmente, como se fora uma lei da natureza, que TEDs e emendas parlamentares se avolumem descontroladamente.

Que também reponha o debate sobre a lei orgânica e a autonomia da universidade. Que, com isso, esteja irmanada à mobilização das diversas entidades da educação e de cada universidade, de sorte que esse debate urgente perpasse nossos órgãos colegiados e mesmo nossas assembleias. Não há, afinal, vida universitária nem capacidade de resistência, se a rotina burocrática e os procedimentos gerenciais assumem o lugar da mobilização democrática de docentes, técnicos e estudantes, em todas as formas possíveis.

Precisamos de algum refinamento crítico e muita mobilização coletiva, em uma luta que também ela é de longa duração. A universidade é lugar de diálogo e crítica, bem como do permanente ativismo de docentes, técnicos e estudantes. Não deveria ser um simples emprego, mas sim uma vocação. Com tal empenho, podemos identificar e combater melhor, para além do imediato, as formas mais mesquinhas de uma agressiva razão instrumental, que pode assumir as faces do liberalismo, do fordismo ou do mais abjeto pragmatismo em nossas relações, minando a própria natureza da instituição.

Não podemos esquecer. A universidade conseguiu unir-se diante de absurdo obscurantista do governo anterior. Não pode falhar agora. Nos anos vindouros, deve resistir aos encantos mais imediatos, em meio a um ambiente mais progressista, no qual, todavia, também proliferam conservadores, reacionários e, com grande galhardia, carreiristas interesseiros.

Não se trata, pois, de resistir apenas às ameaças externas. Devemos combater os gestos internos de cumplicidade com o absurdo. Afinal de contas, membros de nossa comunidade podem vir a ser cúmplices de uma destruição com a melhor das retóricas, cujas justificativas costumam ser típicas, tais como eficiência, agilidade, mais recursos, economicidade. E dirão ainda, como se fora um consolo, que os prejuízos atuais serão mínimos ou talvez sejam pagos apenas pelas futuras gerações. Exatamente as gerações que são o cerne de nosso compromisso social.

Sejamos otimistas. Contaremos nessa luta com muitos aliados, inclusive com Lula, se ele está disposto a se pôr, como é do seu perfil, como um militante da liberdade. Aliás, podemos bem imaginar: Lula é tão sagaz que, sem querer, em uma fala desastrada, trouxe à baila algo que deve incomodá-lo inconscientemente. Como alguém que apostou e aposta nas universidades, talvez ele próprio esteja decepcionado com quem acaso estiver sendo cúmplice de um mecanismo indesejável ou da degradação, inclusive salarial, de nosso ambiente de trabalho.

Como um sindicalista, talvez esteja insatisfeito com algumas manifestações superficiais ou ostensivas de sabujice que pode ter presenciado. Quem sabe, ao fim e ao cabo, ele não está, em sua inadvertida sabedoria, incomodado com os rumos atuais da educação. Deveria estar, com certeza.

Toda manifestação pública, qualquer o assunto, deve ser sopesada e pode ser bastante custosa, não nos cabendo a bravata de nos dizermos corajosos. Ao contrário. Sabemos bem que o medo não diminui a dignidade do ato que se faz necessário. Não podemos assim deixar de temer o quadro atual nem as implicações de qualquer fala que indigite mesmo as mazelas mais flagrantes. Apenas não podemos silenciar, e em nossa voz coletiva desenha-se a promessa, a esperança.

Não podemos renunciar à nossa condição de professores e de membros da comunidade universitária; não podemos abrir mão da própria universidade, que, afinal de contas, é nosso horizonte e nossa razão de ser. Recorrendo a uma bela imagem de Borges, a universidade é nosso centro, nossa álgebra; e a vida não teria para nós o menor sentido sem sua permanente defesa.

*João Carlos Salles é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Ex-reitor da UFBA e ex-presidente da ANDIFES.

Notas


[i] O vídeo está disponível na matéria “Lula diz não temer reitores: ‘Dedo que falta não foram eles que morderam’” (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/22/lula-reitores-greve-universidades-federais-dedo-medo.htm). A transcrição da Folha, bem como a de O Globo (https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/06/21/lula-se-queixa-de-greve-das-federais-e-diz-que-nao-tem-medo-de-reitores-este-dedo-nao-foram-eles-que-morderam.ghtml), é quase de má fé, procura o escândalo, mas o vídeo restabelece o sentido, sendo este bem mais sutil.

[ii] Em sua ampla maioria, sem que estejam, por isso, sob o domínio da esquerda, como costumam pensar seus aliados e também seus detratores. “Esse foi sempre o fantasma útil da repressão” – como bem o afirma Muniz Sodré. “A realidade se matiza por silenciosa maioria conservadora, uma coorte de progressistas (centro-esquerda, social-democracia) e nichos convictos das utopias religiosamente reveladas pelo determinismo histórico.” Muniz Sodré, “Direita, volver”, Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2024 (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2024/06/direita-volver.shtml).

[iii] Marilena Chauí, “A universidade operacional” (https://aterraeredonda.com.br/a-universidade-operacional/). Cabe observar que a pressão da privatização não corre em uma linha paralela, podendo atropelar de dentro a educação pública. De todo modo, tais pressões insidiosas dão-se em um cenário no qual cerca de 90% das instituições de “educação superior” são privadas. E, com as exceções de praxe, elas não se conformam em universidades, cujas exigências não conseguem satisfazer, tomando assim a forma sobretudo de faculdades, sem compromisso com os laços internos entre ensino, pesquisa e extensão, além de avançarem no formato de uma educação à distância deficiente, uma vez que sem lastro em autênticas universidades.

[iv] Precarização do trabalho e, também, quebra de uma solidariedade intergeracional, para retomar uma preciosa colocação de Roberto Leher, in “A greve das Universidades e Institutos Federais” (https://aterraeredonda.com.br/a-greve-das-universidades-e-institutos-federais/).

[v] Chamamos a atenção para esse fenômeno de desagregação da universidade, em relação ao qual a própria instituição pode manter uma indesejável cumplicidade, no texto “A mão de Oza” (https://aterraeredonda.com.br/a-mao-de-oza/).

[vi] As fundações podem ser sérias, sem dúvida. Dou aqui meu enfático testemunho da seriedade, por exemplo, de nossa FAPEX, da qual um dia fui presidente de seu Conselho Deliberativo. Entretanto, simplesmente não cabe a uma fundação estabelecer os procedimentos de controle, segundo padrões adequados à dimensão propriamente acadêmica, nem tal controle pode ou deve escapar à própria universidade – por vezes, pela pura e simples ausência da devida regulação por seus conselhos superiores.

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/o-medo-e-a-esperanca-2/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-06-24

Grupo de 460 bispos e padres reprova 'o PL dos estupradores' em manifesto que será enviado ao papa

Mônica Bergamo*


Em documento, religiosos afirmam que 'ser contra o aborto não pode ser confundido com o anseio em ver a mulher que o pratica atrás das grades'

Um grupo de 460 bispos e padres que participam de um coletivo formado para apoiar o pontificado do papa Francisco no Brasil fez um duro manifesto contra o PL Antiaborto por Estupro. A proposta equipara a interrupção da gravidez acima de 22 semanas ao crime de homicídio, inclusive para mulheres que foram estupradas.

Mulheres protestam contra o projeto de lei da câmara dos deputados que altera as regras para o aborto legal em caso de estupro - Pedro Ladeira - 13.jun.2024/Folhapress

SONORO NÃO

No documento, os religiosos afirmam que "em consonância com os sentimentos da maioria do povo brasileiro, especialmente das nossas irmãs mulheres, reprovamos, repugnamos e nos opomos veementemente ao projeto de lei 1904/2024 que ora tramita no Congresso Nacional e que ficou popularmente conhecido como PL dos Estupradores".

O ÓBVIO

"Obviamente, não somos a favor do aborto!", seguem os religiosos. "Somos sim contra a substituição de políticas públicas por leis punitivas às vítimas de estupro e abuso, imputando-lhes um crime seguido de pena maior do que o dos estupradores."

PENA MAIOR

A proposta do deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) prevê pena de até 20 anos para a mulher que engravidar e que interromper a gravidez. Já um estuprador pode ser detido por até no máximo dez anos, de acordo com o Código Penal.

RACHA

A iniciativa explicita as divergências na Igreja Católica brasileira sobre o tema: a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) apoia o projeto. Os religiosos vão enviar o documento à própria entidade e também ao papa Francisco.

VINGANÇA CRUEL

Nele, padres e bispos afirmam ainda que "ser contra o aborto não pode ser confundido com o anseio em ver a mulher que o pratica atrás das grades. Esta 'vingança social' acarreta a grave consequência de penalizar as mulheres pobres que não podem sequer usar o sistema público de saúde".

Pontuam também que "a criminalização das mulheres não diminui o número de abortos. Impede apenas que seja feito de maneira segura".

VINGANÇA 2

"Criminalizar a mulher vítima de estupro e abuso é violentá-la novamente", afirmam.

LEVIANDADE

Os religiosos dizem ainda que fazem deles as palavras do bispo dom Angélico Sândalo Bernardino, que em entrevista à coluna afirmou que "simplesmente punir a mulher sem discutir com profundidade uma situação tão complexa é uma leviandade. É uma precipitação legalista. É querer resolver pela lei um problema muito mais amplo e vasto".

LEVIANDADE 2

Citam também as manifestações do pastor da Igreja Batista da Água Branca, Ed René Kivitz, para quem o projeto trata a violência contra a mulher com "displicência, leviandade, crueldade e irresponsabilidade".

* Mônica Bergamo é jornalista e colunista. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/06/grupo-de-460-bispos-e-padres-reprova-pl-antiaborto-por-estupro-em-manifesto-que-sera-enviado-ao-papa.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsm%C3%B4nica

O colapso do sionismo e de Israel.

Por Ilan Pappé. 

 

Foto: AFP

Divisão interna. Crise econômica. Isolamento internacional. Declínio militar. Estão se desfazendo as condições que tornaram possível um Estado judeu e colonialista na Palestina. Há saída positiva? Depende acima de tudo dos hoje colonizados

O ataque do Hamas em 7 de outubro pode ser comparado a um terremoto que atinge um prédio antigo. As rachaduras já estavam começando a aparecer, mas agora são visíveis em suas fundações. Mais de 120 anos desde sua criação, será que o projeto sionista na Palestina – a ideia de impor um Estado judeu em um país árabe, muçulmano e do Oriente Médio – está enfrentando a perspectiva de colapso? Historicamente, uma infinidade de fatores pode fazer um Estado capotar. Pode resultar de ataques constantes por países vizinhos ou de uma guerra civil crônica. Pode seguir-se ao colapso das instituições públicas, que se tornam incapazes de oferecer serviços aos cidadãos. Muitas vezes, começa como um processo lento de desintegração que ganha impulso e então, em um curto período de tempo, derruba estruturas que antes pareciam sólidas e firmes.

A dificuldade está em identificar os primeiros indicadores. Aqui, argumentarei que estes são mais claros do que nunca no caso de Israel. Estamos testemunhando um processo histórico – ou, mais precisamente, os seus inícios – que provavelmente culminará na queda do sionismo. E, se meu diagnóstico estiver correto, estamos entrando em uma conjuntura particularmente perigosa. Pois, uma vez que Israel perceba a magnitude da crise, desencadeará uma força feroz e irrestrita para tentar contê-la, como fez o regime de apartheid da África do Sul em seus últimos dias.

1.

O primeiro indicador é a fragmentação da sociedade judaica israelense. Atualmente, ela é composta por dois campos rivais que não conseguem encontrar um terreno comum. A divisão decorre das anomalias de definir o judaísmo como nacionalismo. A identidade judaica em Israel, que parecia pouco mais do que um assunto de debate teórico entre facções religiosas e seculares, agora se tornou centro uma luta pelo caráter da esfera pública e do próprio Estado. Esta luta está sendo travada não apenas na mídia, mas também nas ruas.

Um campo pode ser denominado “Estado de Israel”. Ele é composto por judeus europeus mais seculares, liberais e em sua maioria mas não exclusivamente, de classe média e seus descendentes, que foram fundamentais na criação do Estado em 1948 e mantiveram-se hegemônicos dentro dele até o final do século passado. Não se engane: a defesa dos “valores democráticos liberais” não afeta seu compromisso com o sistema de apartheid que é imposto, de várias maneiras, a todos os palestinos que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Seu anseio essencial é que os cidadãos judeus vivam em uma sociedade democrática e pluralista, da qual os árabes estão excluídos.

O outro campo é o “Estado da Judeia”, que se desenvolveu entre os colonos da Cisjordânia ocupada. Ele desfruta de níveis crescentes de apoio dentro do país e constitui a base eleitoral que garantiu a vitória de Netanyahu nas eleições de novembro de 2022. Sua influência nas camadas superiores do exército e dos serviços de segurança israelenses está crescendo exponencialmente. O Estado da Judeia quer que Israel se torne uma teocracia que se estenda por toda a Palestina histórica. Para conseguir isso, está determinado a reduzir o número de palestinos ao mínimo, e está contemplando a construção de um Terceiro Templo no lugar da Mesquita Al-Aqsa. Seus membros acreditam que isso lhes permitirá renovar a era de ouro dos Reinos Bíblicos. Para eles, os judeus seculares são tão heréticos quanto os palestinos, se recusarem se juntar a este empreendimento.

Os dois campos começaram a se chocar violentamente antes de 7 de outubro. Nas primeiras semanas após o ataque, eles pareciam colocar suas diferenças de lado diante de um inimigo comum. Mas foi uma ilusão. A luta nas ruas reacendeu-se, e é difícil ver o que poderia possibilitar a reconciliação. O resultado mais provável já está se desenrolando diante de nossos olhos. Mais de meio milhão de israelenses, integrantes do Estado de Israel, deixaram o país desde outubro, uma indicação de que o país está sendo engolido pelo Estado da Judeia. Este é um projeto político que o mundo árabe, e talvez até o mundo em geral, não tolerará a longo prazo.

2.

O segundo indicador é a crise econômica de Israel. A classe política não parece ter nenhum plano para equilibrar as finanças públicas em meio a conflitos armados perpétuos, exceto tornar-se cada vez mais dependente da ajuda financeira americana. No último trimestre do ano passado, a economia caiu quase 20%; desde então, a recuperação tem sido frágil. A promessa de Washington de 14 bilhões de dólares provavelmente não reverterá isso. Pelo contrário: o fardo econômico só piorará se Israel seguir adiante com sua intenção de ir à guerra com o Hezbollah, aumentando a atividade militar na Cisjordânia, em um momento em que alguns países – incluindo a Turquia e a Colômbia – começaram a aplicar sanções econômicas.

A crise é ainda mais agravada pela incompetência do ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que constantemente canaliza dinheiro para assentamentos judeus na Cisjordânia, mas parece incapaz de executar suas funções de outra forma. O conflito entre o Estado de Israel e o Estado da Judeia, junto com os eventos de 7 de outubro, está fazendo com que parte da elite econômica e financeira mova seu capital para fora do Estado. Aqueles que estão considerando realocar seus investimentos compõem uma parte significativa dos 20% de israelenses que pagam 80% dos impostos.

3.

O terceiro indicador é o crescente isolamento internacional de Israel, que gradualmente torna-se um Estado pária. Esse processo começou antes de 7 de outubro, mas se intensificou desde o início do genocídio. Isso se reflete nas posições sem precedentes adotadas pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelo Tribunal Penal Internacional. Antes, o movimento global de solidariedade com a Palestina conseguia mobilizar pessoas para participar de iniciativas de boicote, mas não conseguia avançar na perspectiva de sanções internacionais. Na maioria dos países, o apoio a Israel permanecia inabalável entre a elite política e econômica.

Nesse contexto, as recentes decisões do TIJ e do TPI – de que Israel pode estar cometendo genocídio, de que deve parar sua ofensiva em Rafah, de que seus líderes devem ser presos por crimes de guerra – devem ser vistas como uma tentativa de atender às opiniões da sociedade civil global, ao invés de refletir a opinião das elites. As decisões dos tribunais não aliviaram os ataques brutais ao povo de Gaza e da Cisjordânia. Mas contribuíram para o crescente coro de críticas dirigidas ao Estado israelense, que vêm cada vez mais de cima para baixo, assim como de baixo para cima.

4.

O quarto indicador, interconectado com os anteriores, é a mudança radical da maré entre os jovens judeus ao redor do mundo. Após os eventos dos últimos nove meses, muitos agora parecem dispostos a abandonar sua conexão com Israel e o sionismo e participar ativamente no movimento de solidariedade com a Palestina. As comunidades judaicas, especialmente nos EUA, outrora asseguravam a Israel uma imunidade eficaz contra críticas. A perda, ou pelo menos a perda parcial, desse apoio tem grandes implicações para a posição global do país. AIPAC [maior lobby pró-Israel em atuação nos EUA] ainda pode contar com os cristãos sionistas para fornecer assistência e fortalecer sua base de membros, mas não será a mesma organização formidável sem uma significativa base judaica. O poder do lobby está se erodindo.

5.

O quinto indicador é a fraqueza do exército israelense. Não há dúvida de que as Forças de Defesa de Israel (IDF) continuam sendo uma tropa poderosa com armamentos de ponta à sua disposição. No entanto, suas limitações foram expostas em 7 de outubro. Muitos israelenses sentem que o exército teve muita sorte, pois a situação poderia ter sido muito pior se o Hezbollah tivesse se promovido um ataque coordenado. Desde então, Israel mostrou que é desesperadamente dependente de uma coalizão regional, liderada pelos EUA, para se defender contra o Irã, cujo ataque de advertência em abril viu o deslocamento de cerca de 170 drones, além de mísseis balísticos e guiados. Mais do que nunca, o projeto sionista depende da entrega rápida de grandes quantidades de suprimentos dos norte-americanos, sem os quais não poderia nem mesmo lutar contra um pequeno exército guerrilheiro no sul.

Há agora uma percepção generalizada, entre a população judaica, do despreparo e incapacidade de Israel para se defender. Isso levou a uma grande pressão para acabar com a isenção de serviço militar para os judeus ultraortodoxos – em vigor desde 1948 – e começar a recrutá-los em milhares. Isso dificilmente fará muita diferença no campo de batalha, mas reflete a escala de pessimismo sobre o exército – que, por sua vez, aprofundou as divisões políticas dentro de Israel.

6.

O sexto e último indicador é a renovação de energia entre a geração mais jovem de palestinos. Ela é muito mais unida, organicamente conectada e clara sobre suas perspectivas do que a elite política do país. Dado que a população de Gaza e da Cisjordânia está entre as mais jovens do mundo, essa nova geração terá uma imensa influência sobre o curso da luta de libertação. As discussões em curso entre os grupos de jovens palestinos mostram que estão preocupados em estabelecer uma organização genuinamente democrática – seja uma OLP renovada ou uma entidade inteiramente nova –, que buscará uma visão de emancipação em antítese à campanha da Autoridade Palestina por reconhecimento como Estado. Estes jovens parecem preferir uma solução de um Estado, em vez de um modelo de dois Estados desacreditado.

Será que eles serão capazes de construir uma resposta eficaz ao declínio do sionismo? Esta é uma pergunta difícil de responder. O colapso de um projeto de Estado nem sempre é seguido por uma alternativa mais brilhante. Em outras partes do Oriente Médio – na Síria, Iêmen e Líbia – vimos como os resultados podem ser sangrentos e prolongados. Neste caso, seria uma questão de descolonização, e o século passado mostrou que as realidades pós-coloniais nem sempre melhoram a condição colonial. Apenas a agência dos palestinos pode nos mover na direção certa. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, uma fusão explosiva desses indicadores resultará na destruição do projeto sionista na Palestina. Quando isso acontecer, devemos esperar que um robusto movimento de libertação seja capaz de preencher o vazio.

Por mais de 56 anos, o que foi denominado de “processo de paz” – um processo que não levou a lugar nenhum – foi, na verdade, uma série de iniciativas americano-israelenses às quais os palestinos foram convidados a reagir. Hoje, a “paz” deve ser substituída pela descolonização, e os palestinos devem ser capazes de articular sua visão para a região, com os israelenses sendo convidados a reagir. Isso marcaria a primeira vez, pelo menos em muitas décadas, em que o movimento palestino tomaria a liderança na apresentação de suas propostas para uma Palestina pós-colonial e não sionista (qualquer que seja o nome da nova entidade). Ao fazê-lo, os palestinos provavelmente olharão para a Europa (talvez para os cantões suíços ou o modelo belga) ou, mais apropriadamente, para as antigas estruturas do Mediterrâneo oriental, onde grupos religiosos secularizados se transformaram gradualmente em grupos etnoculturais que viviam lado a lado no mesmo território.

Quer as pessoas acolham a ideia ou a temam, o colapso de Israel tornou-se previsível. Esta possibilidade deve informar o diálogo de longo prazo sobre o futuro da região. Entrará na agenda quando as pessoas perceberem que a tentativa secular, liderada pela Grã-Bretanha e depois pelos EUA, de impor um Estado judeu em um país árabe está lentamente chegando ao fim. Foi suficientemente bem-sucedida para criar uma sociedade de milhões de colonos, muitos deles agora de segunda e terceira geração. Mas sua presença ainda depende, como dependia quando chegaram, de sua capacidade de impor violentamente sua vontade sobre milhões, dos povos originários, que nunca desistiram de sua luta por autodeterminação e liberdade em sua terra natal. Nas próximas décadas, os colonizadores terão de aceitar esta abordagem e demonstrar sua disposição de viver como cidadãos iguais numa Palestina libertada e descolonizada.

 *Por Ilan Pappé, Sidecar da New Left Review. - Tradução: Antonio Martins.

Fonte:  https://desacato.info/o-colapso-do-sionismo-e-de-israel-por-ilan-pappe/


Trilhos de papel

 Por Peter Salmon*

 

O arquivo bem cuidado de Husserl deu-lhe uma rica vida após a morte, enquanto Nietzsche foi distorcido por sua irmã de moagem de machado.

“Tenho um medo terrível de um dia ser declarado santo...”
Ecce Homo (1888/1908) de Friedrich Nietzsche

Na manhã de 24 de setembro de 1938, um padre franciscano chamado Herman Van Breda chegou à Embaixada da Bélgica em Berlim, na Alemanha, carregando três malas grandes e cheias de sobresordenação. Ele tinha uma consulta com Visconde J Berryer, o secretário do embaixador belga. Eles se encontraram às 11h, e Van Breda entregou as malas, com Berryer assegurando-lhe que seriam enviados de alta segurança para a Bélgica, e não seriam investigados pelas autoridades alemãs, de acordo com as regras internacionais sobre documentos diplomáticos.

No entanto, não eram documentos comuns. As malas continham os arquivos do grande filósofo alemão Edmund Husserl.

Husserl, fundador da fenomenologia, havia morrido cinco meses antes. Outrora uma das vozes culturais proeminentes da filosofia alemã, seus últimos anos o viram perder sua cátedra, seu acesso à Universidade de Freiburg e muitos de seus amigos, incluindo sua amizade com seu aluno mais próximo, Martin Heidegger. Apesar de ter se convertido à Igreja Luterana 50 anos antes, Husserl nasceu judeu, e as leis raciais trazidas pelos nacional-socialistas em 1933 viram sua vida, como tantas outras, destruídas.

Outside Alemanha, a fama e a estima de Husserl permaneceram altas, e o paiVan Breda (Van BredaEstudou seu trabalho na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.Van Breda (Van BredaViajou para Freiburg para estudar e catalogar os escritos inéditos de Husserl, que o filósofo havia mencionado frequentemente em seus livros publicados. Estes não eram mais mantidos na universidade, mas tinham sido removidos pelos alunos de Husserl e por sua viúva, Malvine, e levados para sua casa.

A black-and-white photo of a male priest in a hooded robe, holding a sheet of paper, standing in a room with wooden walls and shelves in the background.

Herman van Breda (es) Cortesia da Wikipédia

Van Breda ficou surpreso ao encontrar cerca de 40.000 páginas de material estenográfico que havia sido escrito à mão por Husserl, bem como cerca de 10.000 páginas de transcrições datilografadas ou manuscritas. Todos estavam em perigo – as autoridades nazistas haviam começado seu programa de queima de arte e literatura “degenerada” (muitas vezes simplesmente significando “judeu”) e, se o arquivo caísse em suas mãos, sua destruição era inevitável.

Inicialmente, Van Breda tentou tirar os papéis do país, contando com a ajuda de freiras – ele levou os papéis para um convento em Konstantz, que fazia fronteira com a Suíça, com a ideia de que as irmãs poderiam levá-las para a segurança algumas de cada vez. Mas logo ficou claro que isso era muito perigoso e, se a fronteira fosse fechada no meio da operação, os papéis seriam divididos, talvez para sempre. Então Van Breda os pegou de volta e depositou-os em um mosteiro em Berlim-Pankow – um movimento arriscado enquanto os mosteiros estavam sendo revistados.

Muitos filósofos franceses começaram suas carreiras explorando o Husserl Archive. Tudo por causa da bravura de um padre belga

Foi então que ele teve a ideia de enviá-los através de canais diplomáticos, e logo depois ele se encontrou com Visconde Berryer. Ele deixou os originais manuscritos com ele – e o diplomata belga conseguiu levá-los para a segurança – enquanto Van Breda colocou as obras que haviam sido transcritas pelos assistentes de Husserl em sua própria bagagem para o retorno a Louvain. Felizmente, sua mala permaneceu fechada pelas autoridades.

Van Breda passaria o resto de sua vida estabelecendo e ajudando a curar o Arquivo Husserl, supervisionando a transcrição de todo o corpo de trabalho dos assistentes de Husserl. Tornou-se um dos arquivos filosóficos mais importantes do mundo, e muitos filósofos franceses começaram suas carreiras explorando-o e usando as obras como pontos de salto – incluindo Jacques Derrida, Paul Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty. Tudo por causa da bravura de um padre belga.

Entrar no Arquivo Husserl agora é um ato de homenagem: indexado, catalogado, cruzado, traduzido – os fragmentos têm a sensação de um todo coeso. Eles estão alojados em uma biblioteca brilhantemente iluminada e arejada, e é difícil conciliar o destino atual dos papéis com aquelas malas de pelúcia. Agora, um instituto de pesquisa para fenomenologia, com funcionários alegres e prestativos, capaz de colocar em momentos para colocar diante de você um pequeno pedaço de papel que uma rajada de vento ou um nazista seguindo ordens poderia ter consignado ao esquecimento permanente.

Isso revela uma das características essenciais de um arquivo. Para ser um arquivo, o material deve ser público – não existe tal coisa como um arquivo privado. Ele está localizado no espaço, um espaço fora da pessoa que historiciza. Desta forma, um arquivo é sempre ameaçado de destruição, e com ele a pessoa ou o tempo comemorado. Os governos totalitários de todos os tipos reconheceram isso – apesar de todo o desafio da frase do escritor russo Mikhail Bulgakov “manuscritos não queimam” – eles o fazem, e com eles são vidas imoladas, modos de ser e culturas.

Assim, para o visitante do Arquivo Husserl em Louvain (aka Leuven), se eles estão lá para estudar, ou apenas para navegar, por mais leves e arejados que sejam os arredores, encontrar os papéis em que Husserl escreveu, descobrir com, e tocado, é encontrar uma morte em potencial, e ver quão fina é a linha entre a existência e a inexistência.

W (O chapéu é um arquivo? Em particular, o que é um arquivo quando é de um escritor, filósofo ou outro pensador? Certamente, seria esperado que ele contivesse suas obras publicadas – afinal, para consumo público, elas são escritas com a ideia de um público em mente. Mas e o resto? Como é sabido, o que é publicado está muitas vezes longe de toda a obra de um pensador em particular – há cartas e diários, primeiro (e 101!) rascunhos de poemas, romances, artigos filosóficos. Há marginalia – notas escritas por grandes pensadores nas margens das obras de outros escritores (as notas do poeta Lord Byron nas margens do poeta D’IsraeliCaráter literário dos homens de gênioSão muito mais famosos do que o próprio livro).

Há também escritos menos fáceis de categorizar: notas para si mesmo, notas para os outros, notas para quem sabe quem sabe quem, listas de compras, e apenas observa que, enquanto escrito na mão do escritor, permanecem desconcertantes para futuros pesquisadores. Devem fazer parte do arquivo também? Onde se traça o limite?

Alguns escritores têm sido notoriamente brutais ao lidar com seus rabítes inéditos – Marcel Proust estava mais do que feliz em ver as 1,3 milhões de palavras que compõem seu livro de revezado perdu (1913-27) serem publicadas, mas ele insistiu que seus cadernos fossem queimados.

Para vender ou presentear o arquivo é uma maneira de não apenas segurar a posteridade, mas moldar a imagem (póstuma) de alguém.

O autor checo Franz Kafka foi mais longe, pedindo a seu amigo Max Brod que queime tudo o que tinha escrito quando morreu. Brod optou por não fazê-lo, Kafka teria sido perdido para a história. De fato, toda uma indústria de Kafka cresceu em torno dele, de modo que agora sabemos em detalhes microscópicos sobre a vida de alguém que desejava ser esquecido – uma situação satirizada por Alan Bennett em sua peça Kafka’s Dick (1986), na qual o escritor volta para descobrir que mesmo o tamanho de seu membro não é apenas conhecido, mas o assunto do escrutínio pelos teóricos culturais.

Outros escritores estão mais confortáveis com – ou mesmo encorajar – seu arquivo sendo salvo, armazenado e avaliado. Universidades e museus constroem propriedades das obras de grandes escritores, como um recurso para estudo. Para vender ou presentear o arquivo – cartas, rascunhos, cadernos, hoje em dia até laptops – para uma instituição é visto como uma forma de não apenas segurar a posteridade, mas moldar a imagem (póstumo). Em muitos casos, as “versões não editadas” do eu literário são tão finamente editadas quanto aquelas escritas de forma evidente para o domínio público.

Assim, como Derrida argumentou, criar um arquivo não é simplesmente um ato literário (ou filosófico), mas político. O que está incluído e excluído de um arquivo é uma maneira de fixar a borboleta da obra de um escritor, apresentando-as de uma maneira particular e, possivelmente, a um fim particular.

ODos casos mais famosos disso é o que aconteceu com o arquivo de outro filósofo alemão, Friedrich Nietzsche. Nascido em 1844, ele continua sendo um dos pensadores mais controversos de todos os tempos, pedindo nada menos do que “uma reavaliação de todos os valores”. Toda moralidade, argumenta Nietzsche, é socialmente construída e não tem base na “verdade”. Pior, a moralidade ocidental convencional, construída em torno do cristianismo, é a moralidade do que ele chamou de “escravos”, e não de seres humanos saudáveis. Não foi por nada que ele declarou: “Eu não sou homem, eu sou dinamite”.

Painted portrait of a seated man with a stern expression, wearing a dark suit, set against a backdrop of dense green foliage.

Friedrich Nietzsche pintado em 1894 por Curt Stoeving. Cortesia de Klassik Stiftung Weimar

Sempre atormentado pela má saúde, incluindo enxaquecas penetrantes e possivelmente sífilis, Nietzsche sofreu um colapso mental em 1889, pouco depois de seu 44o aniversário. Ele passaria os últimos 11 anos de sua vida sendo amamentado, primeiro em um asilo, depois por sua mãe, e, finalmente, por sua irmã mais nova, Elisabeth, que em 1897 o levou em sua casa Villa Silberblick em Weimar, e que também assumiu o controle de seu arquivo. Era uma decisão importante.

Friedrich e Elisabeth tinham sido próximos ao longo de suas vidas, mas isso mudou em 1885, quando ela se casou com Bernhard Fuerster. Fuerster era uma figura de destaque na extrema direita da Alemanha, e um antissemita proeminente que descreveu os judeus como “um parasita no corpo alemão”. Ele e Elisabeth montaram uma “comunidade ideal” no Paraguai, que eles chamaram de Nueva Germania – Nova Alemanha – onde colocaram em prática suas ideias “utópicas” sobre a superioridade da raça ariana. Em suas crenças, eles eram o tipo de proto-nazistas a quem Hitler apelaria logo depois.

Ela fez o trabalho de seu irmão não apenas palatável para os leitores de extrema-direita, mas um trabalho de defesa para eles.

O fracasso dessa comunidade – a maioria desses “seres superiores” não conseguiu lidar com o ambiente hostil em que se encontraram e morreu de fome e doença – levou ao suicídio de Furster em 1889. Isabel continuou a correr a colônia até 1893, voltando a achar seu irmão não mais sã.

Até então, tendo vendido quase nenhum livro em sua vida, a fama de Nietzsche – sem o conhecimento dele – começou a crescer. Seus trabalhos publicados estavam começando a voltar à imprensa, e Elisabeth teve acesso a uma vasta loja de trabalhos inéditos. Isso ela começou a curadoria – transcrição, editando-o e colocando-o em algum tipo de ordem coesa.

An elderly woman stands behind a desk filled with stacks of books in a dimly lit room, wearing a dark dress and looking towards a window.

Elisabeth Fuerster-Nietzsche em 1910. Cortesia da Wikimedia

Entre 1894 e 1926, ela publicou uma edição de 20 volumes das obras de seu irmão, que incluiu sua produção mais famosa, o livro A Vontade do Poder. Tomando seu título de um livro que Nietzsche tinha em um estágio planejado para escrever, foi anunciado como sua magnum opus – o trabalho final que ele teria publicado se não fosse por sua “loucura”.

É um trabalho de verdadeira audácia – se não a audácia de Friedrich, então certamente é a de sua irmã. Por edição seletiva, ela foi capaz de tornar o trabalho de seu irmão não simplesmente palatável para leitores de extrema-direita, mas um trabalho de defesa para eles. Nietzsche não era um para poupar qualquer religião particular de seus ataques, mas nas mãos de Elisabeth suas invectivas contra outras religiões foram editadas, e aqueles contra os judeus puxados para a frente. A ideia de Nietzsche do Overman – o futuro humano que teria jogado fora da moralidade contemporânea – insinuou a figura do Fuhrer e seus asseclas, isto é, Hitler e a raça ariana pura que ele esperava engendrar.

S em A Omo argumentou que Elisabeth esperava proteger seu irmão, tornando seu pensamento mais palatável para um público predominantemente branco e cristão do que teria sido de outra forma. Ou que sua edição foi por razões mais pessoais – ela simplesmente queria mostrar o quão perto eles estavam. Não se pode, é claro, saber o que estava acontecendo em sua cabeça. Mas o efeito foi que Nietzsche se tornou uma espécie de “filósofo da casa” para os nazistas (uma situação não ajudada pelos N e Z irregulares compartilhados de seus nomes). A própria Elisabeth juntou-se aos nazistas em 1930, e Hitler ajudou a financiar o trabalho do Nietzsche Archive. Ele até compareceu ao funeral de Elisabeth.em 1935.

A mancha de seu suposto nazismo deveria ficar com Nietzsche por muitos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em sua obra fascinante Como Nietzsche veio em do frio: um conto da redenção (2022; tradução inglesa 2024), o historiador cultural alemão Philipp Felsch observa que, para muitos filósofos, particularmente os da esquerda, o trabalho de Nietzsche foi considerado completamente fora dos limites - afinal, Hitler não deu a Mussolini uma Obra Completa de Nietzsche como um presente de aniversário de 60 anos? Só se podia esperar, como disse o filósofo Jurgen Habermas, que suas ideias não eram mais “contagiosas” – eram uma doença que o mundo havia sido curado com a derrota dos nazistas.

O próprio arquivo de Nietzsche foi escondido na Alemanha Oriental, onde suas obras foram proibidas. Na época, ninguém no Ocidente sabia com certeza onde estava o arquivo - só mais tarde foi estabelecido que passou os anos entre a guerra e 1961 sendo montado em caixas de madeira para ser guardado em vários postos militares soviéticos, antes de ser despejado de volta do lado de fora de Villa Silberblick, onde Elisabeth tinha cuidado de seu irmão nos últimos anos de sua vida.

Eles estavam seguindo o sonho de todo arquivista – encontrar o verdadeiro escritor por trás do que eles haviam publicado.

A tarefa de transcrever e curador do arquivo caiu – para o espanto de todos – para dois estudiosos italianos de esquerda, o jovem estudante de filosofia Mazzino Montinari, que fez seu trabalho na Villa Silberblick, e seu professor e mentor Giorgio Colli, que colheu o material recuperado por Montinari.

O volume de material era esmagador – o número de caixas de madeira era mais de 100, contendo, como Felsch observa:

uma abundância quase insondável de material: cópias justas e primeiras impressões de livros publicados pelo próprio Nietzsche; os manuscritos de palestras e tratados filológicos de seu tempo como professor em Basileia; os portfólios cheios de páginas soltas com idéias, conceitos e trechos; bem como os cadernos que ele usou para registrar seus fluxos de pensamento.

Os fragmentos inéditos – uma espécie de diário intelectual, embora caótico – totalizaram mais de 5.000 páginas. Para Montinari caiu a tarefa de transcrever a caligrafia terrível e apressada de Nietzsche, às vezes levando um dia inteiro para terminar uma página. Conscientes das distorções de Elisabeth Fuerster-Nietzsche, os curadores queriam voltar ao que Nietzsche havia realmente escrito.

Mas o que eles estavam procurando? Nas palavras de Montinari, eles estavam procurando por “o verdadeiro Nietzsche” – que é mais do que uma versão mais verdadeira do que a que sua irmã apresentou. Eles estavam seguindo o sonho de todo arquivista, e de muitos leitores casuais – encontrar o verdadeiro escritor ou pensador por trás do que eles haviam publicado. É uma busca por um urtexto, um original do qual as ideias se desenvolvem. É por isso que Proust teve seus cadernos queimados – a versão de eventos e pensamentos que ele transformou em literatura foi, uma vez finalizada, a versão “verdadeira”.

Embora se distanciassem do trabalho de Elisabeth, Montinari e Colli ainda era uma tarefa de inclusão e exclusão – quais fragmentos pertenciam ao arquivo, e que não? Tomemos, por exemplo, um fragmento que diz, entre aspas: “Esqueci meu guarda-chuva”. Isso faz parte do arquivo de Nietzsche? Se não, por que não? E se for, então não poderia ser nada – de listas de lavanderia a um diário de quando é hora de a lixeira sair.

Montinari e Colli sentiram que havia razões filosóficas sólidas para incluir e excluir fragmentos, ou pelo menos que suas decisões poderiam ser defendidas. Foi uma ideia que seria desafiada a partir de dois trimestres inesperados.

Eu a vi umSe Nietzsche foi insultado na maior parte do Ocidente, então seu estoque era possivelmente mais baixo na França – o país tinha, afinal, sido ocupado pelos nazistas, e muitos de seus intelectuais depois da guerra tomaram poderosas posições de esquerda em um país onde um terço da população havia votado como comunista.em 1946.

Mas em 1964, em uma conferência sobre Nietzsche em Royaumont, uma abadia cisterciense ao norte de Paris, novos intelectuais franceses, na forma de Gilles Deleuze e Michel Foucault, se deram contra a ideia de um “verdadeiro Nietzsche” – ou uma verdadeira pessoa, aliás. Foi precisamente a estranheza e a inconsistência de Nietzsche que o fez pensar que ele era. Qualquer ato de exclusão era um ato de violência – o que deu a alguém o direito de “decidir” sobre o que Nietzsche “realmente significava” e excluir o que fosse considerado supérfluo ou incompatível com esse significado?

O ataque foi retomado por Derrida, que em um artigo de 1972 sobre Nietzsche zombou do tipo de crítica acadêmica dolorosa de exatamente um fragmento do arquivo: a entrada da revista que diz: “Eu esqueci meu guarda-chuva”. Quais os possíveis critérios que poderiam existir para sua inclusão? Ou por sua exclusão? Certamente, o significado era claro, escreve Derrida:

Todo mundo sabe o que significa “eu esqueci do meu guarda-chuva”. Eu tenho... um guarda-chuva. É meu. Mas esqueci-me disso.

Mas seu lugar na escrita de Nietzsche nunca poderia ser preso com precisão – poderia ser um código? Um sonho? As aspas em torno dele significam que ele estava apenas fingindo que tinha esquecido seu guarda-chuva? Poderia ser a última linha de uma piada que ele estava tentando lembrar? Ou pode ser uma memória para a maior visão da história da filosofia? Qualquer um que presumisse saber estava proferindo uma falsidade – e isso era verdade para cada linha que Nietzsche não tinha sido publicada.

O leitor iria curar, incluir e excluir como bem entenderem. Eles poderiam escapar do domínio do editor

Pois pensadores como Derrida, vivos para as relações de poder, a imposição do significado sempre corria o risco de “totalitarismo” – esta versão da verdade e nenhuma outra. Não importa o quão apartidário um pesquisador ou editor pode ser, ainda assim eles trouxeram seus próprios preconceitos, agendas e pontos cegos para o seu trabalho.

O segundo ataque à metodologia dos italianos veio em 1975. O primeiro volume de um novo arquivo da obra do poeta romântico alemão Friedrich Holderlin deveria ser publicado, e o arquivo conteria - tudo! Embora o trabalho da transcrição ainda fosse feito, o da curadoria não seria, exceto para colocar o material em ordem cronológica. O leitor então curava, incluía e excluía como eles mesmos bem entenderiam. Eles poderiam escapar do domínio do editor.

Este foi um precursor de uma forma ainda mais aberta de arquivamento – a edição fac-símile. A tecnologia agora permitia a fotografia de páginas manuscritas, para que pudessem ser vistas como livros ou, mais tarde, em CD-ROM e depois on-line. Os últimos volumes finais de Nietzsche da edição de Montinari deveriam ser publicados muito depois de sua morte, com o editor anunciando que consistiriam na “transcrição das completas notações de Nietzsche, no arranjo espacial dos manuscritos com todos os deslizes da caneta, deleções e correções – e não mais na forma retificada de textos lineares”.

Nietzsche começou como filólogo – uma disciplina que explorava textos literários através da leitura atenta para encontrar seu significado “autêntico” ou “verdadeiro”. Mais tarde, ele descartaria o campo como uma “ciência para excêntricos”, “sensação repetitiva”. Mas ele também disse isso:

A filologia deve ser entendida aqui, em um sentido muito geral, como a arte de ler bem – reconhecendo fatos sem falsificá-los através da interpretação, sem perder a cautela, paciência, delicadeza no impulso para a compreensão... seja a respeito de livros, colunas de jornais, destinos ou eventos climáticos.

Eventos meteorológicos como podem exigir um guarda-chuva? Em uma nota de rodapé, Felsch observa que a fonte foi agora encontrada - é tirada de um livro ilustrado de 1844 chamado Un Autre Monde (Another World), ilustrado por Jean-Jacques Grandville, com texto de Taxile Delord. É um livro de ilusões visuais, mundos imaginários, taxonomias absurdas e uma sátira sobre a sociedade e sobre os livros. O que isso significa para Nietzsche? Contra a alegação de Derrida de que nada pode ser fixado a este fragmento, os estudiosos agora mergulham no Un Autre Monde, dissecando-o para ressonâncias nietzschianas.

O último livro publicado de Nietzsche foi Ecce Homo, que se traduz como “Eis o Homem”, com o subtítulo “Como alguém se torna o que é”. Ele atua como uma espécie de livro de memórias, e os títulos dos capítulos – “Why I Am So Wise”, “Why I Am So Clever”, “Why I Write Such Good Books” e “Why I Am Destiny” – podem ser lidos como sinceros ou como comédia – ele estava bem ciente de que ninguém estava comprando seus livros, muito menos lendo-os. Perdido na loucura, ele não tinha voz em como ele seria refeito, mas ofereceu um apelo final em Ecce Homo que qualquer figura pública poderia oferecer: “Ouça-me! Pois eu sou uma pessoa tão e tal. Acima de tudo, não me confunda com outra pessoa.”

TRADUÇÃO pelo GOOGLE do texto original em inglês.

* Peter SalmonTradução É um escritor australiano que vive no Reino Unido. Ele é o autor de An Event Maybe: A Biography of Jacques Derrida (2020), e sua escrita apareceu no TLS, o New Humanist, a Sydney Review of Books e The Guardian, entre outros.

Fonte em inglês:  https://aeon.co/essays/how-archives-can-make-or-break-a-philosophers-reputation?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=9ca6e70aa5-EMAIL_CAMPAIGN_2024_06_25&utm_medium=email&utm_term=0_-8e7188468a-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Os livros favoritos de Leandro Karnal no 1.º semestre de 2024

Por Leandro Karnal*

 ACE Jundiaí traz Leandro Karnal para o primeiro Café Show de 2022

O frio estimula a leitura - vamos aproveitar

Há quem ame os meses de calor. E há gente do meu time: aqueles que aguardam nosso tímido inverno para relaxar com mais tranquilidade. Frio estimula leitura. Vamos aproveitar.

Indico um livrinho reflexivo: Shanzhai – Desconstrução em Chinês, do conhecido autor coreano-alemão Byung-Chul Han (Vozes, 2023). Ele entrelaça pensamento chinês e ocidental sobre criação. Vai do preconceito de Hegel sobre os chineses, passa por Freud e segue para um possível futuro político da Ásia. Pergunta de base: o que é original e o que é cópia?

Sou historiador. Desde a minha graduação, os livros de Amin Maalouf enriqueceram meu repertório crítico. O franco-libanês lançou O Labirinto dos Desgarrados – o Ocidente e seus Adversários (Vestígio, 2024). Na história contemporânea, a forma como o Japão Imperial, a Rússia Soviética e a China lidaram com o poder e a cultura do Ocidente é a trama do estudo.

Por vezes, um tema menor ganha dimensão extraordinária nas mãos de um bom pesquisador. Nunca imaginei que acabaria lendo sobre “índices”. Dennis Duncan escreveu Índice, uma História do (Fósforo, 2024). O inglês pensou nas listas que ajudam a percorrer um autor, uma obra ou um tema. Como começamos a numerar páginas? Como surgiram os índices que ajudam tanto na leitura e pesquisa? Os índices foram tema de debates políticos e religiosos. O autor mostra que, por trás de uma ideia simples, existe uma postura sobre o conhecimento. Terminei a leitura pensando que, de fato, não existem temas grandes e pequenos, apenas escritores bons e ruins.

Indico um texto real sobre troca de cartas entre duas mulheres inteligentes e sensíveis: Amantes da Palavra – Correspondência Literária (Ibis Libris, 2023). Betty Milan e Neide Archanjo se encontraram e passaram a trocar mensagens. Betty é minha colega da Academia Paulista de Letras. Escrevi para ela: “Seu texto é uma cartografia sentimental, uma linha epistolar de percepção do mundo que amei conhecer”. Neide já faleceu, mas tive vontade de ser amigo das duas e trocar cartas com elas.

Noam Chomsky é um dos nomes mais citados e influentes do pensamento crítico contemporâneo. Anthony Arnove selecionou textos básicos do norte-americano e produziu O Essencial Chomsky (Crítica, 2024). Em vários pontos, Chomsky está em um lugar político distinto do meu. Exatamente por isso, adoro ter de argumentar com sua reflexão. Vivemos tempos “teológicos” nos quais ler um autor deve ser acompanhado de adesão dogmática. Prefiro tempos críticos nos quais discordo de um autor importante e, para poder discordar, tenho de ler e conhecer. Chomsky é uma referência incontornável do mundo atual.

O modelo que Laurentino Gomes levou a um estado de excelência é escolher uma data e fazer uma análise ampla. Rodrigo Trespach seguiu a senda e escreveu 1824 (Citadel, 2023). O foco do livro é a imigração alemã e os duzentos anos de São Leopoldo, a propósito, minha cidade natal. A obra amplia muito o episódio do inverno de 1824, que trouxe para as margens do Rio dos Sinos as famílias germânicas. Vemos José Bonifácio, Pedro I, Leopoldina, personagens quase folclóricas, como Schaeffer, lutando por motivos variados para que chegassem colonos ao Brasil. As lutas e desafios dos pioneiros (e os muitos intermediários nem sempre honestos do processo) contam uma saga que prende a atenção do leitor. Em ano de tragédia e cheias, é uma excelente leitura sobre raízes.

Vivemos época de ideias polarizadas. Mais do que nunca, devemos ler a fina pena da professora Scarlett Marton. A conhecida especialista escreveu Nietzsche, Filósofo da Suspeita (Autêntica Editora, 2024). As polêmicas do filósofo alemão sobre democracia, feminismo e religiões são bem conhecidas. Com o rumo seguro estabelecido pela autora, vamos pensando além de “era ou não misógino” e vamos tornando complexas questões que escapam ao maniqueísmo barato. Livro pequeno e denso, ao mesmo tempo. “À existência humana o filósofo conta atribuir um novo sentido; quer fazer coincidir sentido e realidade. Assim é que de nós, seus leitores, exige uma atitude: a de aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso. E não há afirmação maior da existência humana que a de que tudo retorna sem cessar.” Nietzsche suspeita e faz filosofia a “golpes de martelo”, algo profundamente necessário para 2024.

Escolhi alguns dos livros que li neste semestre. Confesso uma novidade: até há alguns anos, eu jamais (ou muito raramente) abandonava um livro antes do fim. Quando eu o fazia, como não concluí Finnegans Wake (James Joyce) no passado, era o reconhecimento do limite da minha compreensão em inglês. Não era uma crítica ao autor, era a constatação da minha incompetência. Em 2024, eu comecei a agir assim: tendo chegado à página cinquenta de um romance ou livro de análise filosófica, mas notando que nada de novo ou bom sairia daquele mato, decidi não arriscar mais. Dessa forma, ao lado dos bons textos que indiquei aqui e terminei com entusiasmo, poderia fazer uma crônica de muitos outros que abandonei. Tenho consciência de que o tempo não é eterno; por isso, quero ler muita coisa boa ainda. Minha esperança dura, em média, cinquenta páginas. E a sua, querida leitora e estimado leitor, sobrevive mais?

 *É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/os-livros-favoritos-de-leandro-karnal-no-1-semestre-de-2024/