quarta-feira, 3 de julho de 2024

Ecologia: A floresta que teve direitos equiparados aos de uma pessoa

 Por Becca Warner, BBC Future

Floresta Equador

No Equador, a floresta Los Cedros continua em pé e sem mineração graças a um poderoso movimento jurídico global cada vez mais influente. Getty Images

BBC  https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj774gyzzkdo

[NOTA DO WEBSITE: Um belo exemplo de como reconhecer que sem os espaços ambientalmente conservados não terá futuro para a humanidade. É um breque do furor de exploração de todos os bens dos ecossistemas até sua exaustão. E a matéria é importante porque também nos traz como esse aspecto de se reconhecer de que os espaços que ainda tem sua integridade de todas as vidas, vivas, com personalidade jurídica, irá, sem dúvida, frear os fantasmas famintos que querem numa geração se for possível, sorver e exaurir todo o planeta. Honramos cada um e todos eles!].

Por mais de 30 anos, José DeCoux acordou todas as manhãs com um ruído ensurdecedor.

Na sua casa, na floresta equatoriana de Los Cedros, os macacos guincham, os esquilos brigam e 400 espécies de aves grasnam durante o voo.

O orvalho pinga das folhas, enquanto musgos e samambaias, em incontáveis tons de verde, cobrem cada rocha ou tronco de árvore da floresta.

DeCoux se mudou dos Estados Unidos para a reserva de Los Cedros, no norte do Equador, nos anos 1980. Ele “meio que atendeu o chamado de salvar a floresta tropical, ou algo assim”, segundo contou à BBC, sorrindo, em abril.

Com o auxílio de amigos e organizações sem fins lucrativos, como a Amigos da Terra Suécia e o Centro de Informações sobre as Tropicais, da Austrália, DeCoux comprou terras na floresta de Los Cedros.

Assim nasceu um projeto de conservação e ecoturismo.

DeCoux cuidou da floresta até sua morte, em maio passado, quatro anos depois de ser diagnosticado com câncer.

Apesar do extenso desmatamento das regiões vizinhas, a vida selvagem agita os 4,8 mil hectares de Los Cedros.

Sua é exuberante. Foram publicados mais de 130 estudos científicos sobre o imenso número de espécies que moram em Los Cedros: desde fungos e orquídeas até caracóis, onças e o urso-de-óculos.

A maior parte da reserva é uma floresta nublada. O ar é pesado devido à umidade da chuva e à condensação permanente, que sustenta camadas de líquen e estranhas orquídeas.

Muitas espécies só podem ser encontradas ali, como a minúscula rã-de-los-cedros, de cor laranja.

Um homem branco com cabelos grisalhos, numa floresta

A disposição de José DeCoux em salvar a floresta levou à formação da Reserva Biológica de Los Cedros

A vida continua a florescer em Los Cedros, mas sua sobrevivência nem sempre esteve livre de ameaças. A floresta continua em pé graças a um poderoso movimento jurídico global, cada vez mais influente.

Em 2008, o Equador se tornou o primeiro país do mundo a alterar sua Constituição para estabelecer que a natureza tem os mesmos direitos das pessoas.

A mudança foi promovida pelo movimento indígena equatoriano.

Ela marcou uma das primeiras etapas importantes do que ficou conhecido como movimento pelos “direitos da natureza”, que defende um arcabouço legal que reconheça que o mundo natural tem direito ao mesmo grau de proteção oferecido às pessoas físicas e jurídicas.

O movimento pelos direitos da natureza “é uma mudança para transformar as entidades naturais de objetos a sujeitos, junto a tribunais e frente às leis”, explica Jacqueline Gallant, da Clínica de Defesa dos Direitos da Terra da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.

“Mas, em sentido muito mais amplo, é um movimento para reavivar e recentralizar a natureza como tema de valor intrínseco”, afirma ela.

Este conceito questiona a visão ocidental da natureza como “um pano de fundo inanimado, sobre o qual se desenvolvem os dramas da atividade humana”.

Até o momento, diversas iniciativas já reivindicaram o reconhecimento dos direitos da natureza em 44 países, incluindo , Bolívia e Uganda, chegando até os Estados Unidos.

Alguns casos defenderam um único animal, enquanto outras decisões jurídicas reconheceram os direitos de rios, montanhas e da Mãe Terra como um todo.

Mas a prática jurídica nesta área é relativamente nova e existem poucos precedentes claros sobre o que seriam os direitos da natureza em ação.

DeCoux levou inicialmente seu caso aos tribunais em 2019, quando uma mineradora começou a explorar a região.

Ele defendeu o direito da floresta de existir, sobreviver e se regenerar, alegando que permitir a mineração em Los Cedros violaria os direitos da natureza.

A ação foi rejeitada pelos tribunais inferiores – o juiz “simplesmente não gostou”, segundo DeCoux – mas foi posteriormente selecionada pelo Tribunal Constitucional do país, para fornecer um exemplo real dos direitos da natureza.

Em 2021, DeCoux finalmente venceu a disputa. O juiz determinou que a mineração prejudicaria a biodiversidade da floresta, violando os direitos constitucionais da natureza.

“O sucesso do litígio foi além dos meus sonhos mais ousados”, declarou DeCoux.

Este caso foi uma oportunidade para que os juízes examinassem os direitos da natureza além do arcabouço teórico da Constituição equatoriana. DeCoux acreditava que ele ajudaria a determinar como seriam esses direitos na vida real e definir um precedente para casos futuros.

Gallant explica a distinção. Ela menciona como exemplo a Constituição dos Estados Unidos, que inclui o direito à liberdade de expressão – e séculos de jurisprudência agora explicam como este direito se aplica no mundo real.

“As constituições estabelecem o direito de forma genérica, o que nem sempre fornece orientações precisas sobre como desenvolvê-lo na prática”, segundo ela.

“É por isso que a decisão sobre Los Cedros é muito importante, pois ela ajuda a explicar o que significam na prática os direitos da natureza estabelecidos na Constituição.”

Rio Ganges, na Índia

O rio Ganges, na Índia, foi reconhecido como pessoa jurídica em 2017

A decisão sobre Los Cedros foi ainda mais marcante por especificar que ela se aplica não apenas às áreas protegidas, mas – como ocorre com qualquer direito constitucional – a todo o território do país.

E os juízes também definiram claramente que a área merece proteção por si própria, não apenas porque ela fornece recursos aos seres humanos, como água limpa.

O veredicto fez com que os direitos da natureza deixassem de ser apenas uma noção constitucional para se tornarem uma realidade prática.

Gallant explica que “existem pessoas em todo o mundo observando como um tribunal determinou o que os direitos da natureza significam na prática e dizendo ‘ótimo, vamos tentar fazer isso aqui'. E é assim que avança o movimento global.”

Em Los Cedros, o veredito foi uma estrondosa notícia para os animais, plantas e fungos que ali vivem. A mineração não veio, evitando o sofrimento da floresta.

As precisaram retirar imediatamente as suas máquinas e o tribunal proibiu toda e qualquer atividade de mineração no futuro, bem como todas as demais atividades extrativistas em Los Cedros.

“As empresas fizeram as malas e saíram em menos de 10 dias após a decisão do Tribunal Constitucional”, contou DeCoux à BBC, em abril.

Mas o desfecho das ações sobre os direitos da natureza nem sempre são tão claros ou positivos, mesmo quando o tribunal decide a seu favor.

O rio Ganges, na Índia, foi reconhecido como pessoa jurídica em 2017. Mas, em 2023, a chegou a tal ponto que a maior parte da sua água foi considerada não potável.

“Alguns tribunais publicam as decisões e as esquecem, nunca voltando a examiná-las”, afirma o professor de direito prático César Rodríguez-Garavito, diretor do Projeto Direitos Mais Que Humanos (Moth, na sigla em inglês), da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York.

A iniciativa reúne o direito, a ciência e as artes para fazer avançar os direitos dos seres humanos, não humanos e da teia da vida como um todo.

Para quantificar o impacto da decisão do tribunal sobre Los Cedros, Rodríguez-Garavito passou algum tempo na região, conversando com cientistas e outras pessoas envolvidas, para observar os resultados dois anos depois da decisão.

Ele examinou as formas específicas de aplicação da decisão judicial e seu impacto prático sobre a floresta.

Suas pesquisas concluíram que Los Cedros permanece sendo um santuário da biodiversidade, o que, muito provavelmente, não teria sido possível sem a decisão judicial.

“Definitivamente, por si só e em comparação com outras decisões sobre os direitos da natureza, o quadro é positivo”, afirma ele.

Mas as conclusões de Rodríguez-Garavito também destacam que a floresta permanece vulnerável.

O governo equatoriano transferiu o ônus da proteção para outras entidades públicas e privadas, que detêm recursos limitados para monitorar e proteger as terras.

E a mineração permitida nas áreas próximas pode ter “efeitos indiretos” sobre Los Cedros, além de incentivar atividades ilegais de caça, extração de madeira e mineração nas fronteiras da reserva.

Durante sua entrevista à BBC, DeCoux afirmou categoricamente que ainda havia trabalho a ser feito.

“O jogo ainda não acabou”, disse ele. “As forças das indústrias extrativas ainda trabalham ativamente contra nós. Mas certamente estou muito feliz com a posição em que nos encontramos hoje, porque fizemos grandes avanços.”

Pássaro de penas pretas, brancas e vinho

A floresta de Los Cedros abriga muitas espécies ameaçadas, como o jacu-estalo-listrado

Rodríguez-Garavito destaca que suas pesquisas fornecem um padrão para rastrear e avaliar o impacto de decisões jurídicas futuras sobre os direitos da natureza.

“Nossa intenção foi propor uma metodologia para relatórios similares no futuro”, explica ele. “Estamos tentando criar uma espécie de prestação de contas.”

O trabalho do movimento pelos direitos da natureza é poderoso, mas não pode nem deve operar sozinho, segundo Gallant.

O trabalho do Moth é interdisciplinar, reunindo a ciência e a cultura e as artes. Para ela, “o judiciário sozinho não consegue fazer tudo o que é necessário para promover um paradigma se, quanto mais o mundo humano é valorizado, mais centralizamos e estruturamos nossa política e nossa cultura para refletir esta posição.”

Gallant destaca que o movimento pelos direitos da natureza é uma plataforma importante para promover os princípios e prioridades indígenas e para que essas ideias orientem o resto do mundo.

“Estes [ideais filosóficos] não são invenções novas”, afirma Gallant. “São noções que os povos indígenas de todo o mundo vêm dizendo há tempos imemoriais.”

“Os movimentos e organizações do Sul Global ocuparam a linha de frente, fazendo avançar esses conceitos na política, no setor jurídico e na sociedade. É um ótimo exemplo de como o Norte Global está aprendendo algo realmente importante com o Sul Global.”

A maior parte das decisões legais sobre os direitos da natureza foi conduzida por países sul-americanos e pelas iniciativas do povo maori na Nova Zelândia. A América do Norte e a Europa seguem seus passos.

No Brasil, segundo o mapa interativo da plataforma Eco Jurisprudence Monitor, 12 municípios já mudaram suas leis orgânicas, reconhecendo os direitos da natureza. E alterações das Constituições estaduais com o mesmo propósito estão em trâmite em quatro Estados do país.

No Peru, uma decisão recente concedeu direitos legais ao rio Marañón, que dá origem ao rio Amazonas.

A decisão foi resultado de uma ação judicial promovida pela organização das mulheres indígenas da etnia kukama (Huaynakana Kamatahuara Kana – HKK), contra o Estado peruano e a companhia petrolífera Petroperú.

A anciã kukama Mariluz Canaquiri Murayari é presidente da HKK. Com a ajuda de um tradutor, ela conta à BBC que “para nós, a natureza tem um belo significado. A terra é como a mãe – precisamos cuidar dela e protegê-la.”

Para Murayari, o movimento pelos direitos da natureza reflete a visão de natureza dos kukama, como sendo algo com valor inerente.

“Toda planta e animal tem vida, tem um espírito”, explica ela. “Por isso, eles merecem ser reconhecidos como pessoas.”

Murayari defende que os governos reconheçam esta questão.

“Eles precisam reconhecer que existem seres vivos que não podem se defender – e que é graças a esses seres vivos que temos ar, temos água, temos vida.”

Gallant afirma que as ideias por trás do movimento pelos direitos da natureza são relevantes para todos nós.

“Na verdade, você não precisa ser advogado para avaliar este tipo de pensamento”, diz ela.

“É mais sobre integrar a preocupação com o bem-estar e a atividade humana ao mundo além do ser humano. Por isso, você pode traduzir este tipo de perspectiva para a política, a ciência e os negócios.”

Este pensamento se estende à linguagem que todos nós empregamos.

A própria palavra “natureza” indica que o mundo natural existe separadamente dos seres humanos. Por isso, em vez de “direitos da natureza”, Rodríguez-Garavito propôs a expressão “direitos mais que humanos”.

“Os estão entrelaçados com os direitos mais que humanos”, diz.

“O direito dos seres humanos à saúde depende intrinsecamente da saúde da teia da vida como um todo.”

Não há lugar onde esta ideia seja mais evidente do que em Los Cedros. Seus moradores humanos, vegetais e animais ainda podem beber água fresca e limpa, diretamente do rio.

DeCoux tinha imenso orgulho da sua conquista. É uma demonstração do que pode ser feito.

“Realmente, é um lugar limpo”, dizia ele. “Acho que todos deveriam viver desta forma.”

Fonte:  https://nossofuturoroubado.com.br/ecologia-a-floresta-que-teve-direitos-equiparados-aos-de-uma-pessoa/?utm_source=Nosso+Futuro+Roubado&utm_campaign=9aab1c6e53-RSS_EMAIL_CAMPAIGN&utm_medium=email&utm_term=0_5b000b2516-9aab1c6e53-43969477

terça-feira, 2 de julho de 2024

A influência dos evangélicos nas eleições brasileiras.

Por Meraldo Zisman*

influência 

A influência dos evangélicos nas eleições brasileiras tem se mostrado cada vez mais significativa e estratégica nas últimas décadas.


A influência dos evangélicos nas eleições brasileiras tem se mostrado cada vez mais significativa e estratégica nas últimas décadas. Este grupo religioso, que representa uma parcela expressiva da população, tem exercido um papel crucial na definição de agendas políticas e na mobilização de eleitores, especialmente alinhados a pautas conservadoras.

Desde 2010, observamos um aumento na participação política de líderes evangélicos e na formação de bancadas parlamentares que defendem valores tradicionais e morais, como a família e a oposição a pautas progressistas, como o direito ao aborto e os direitos LGBTQIA+. Essa mobilização tem sido fundamental para consolidar uma base eleitoral robusta, capaz de influenciar decisivamente o resultado de eleições majoritárias e proporcionais. Nas eleições presidenciais de 2018, por exemplo, candidatos que receberam apoio explícito de líderes evangélicos foram capazes de capturar inúmeros votos desses eleitores, contribuindo significativamente para a sua ascensão ao poder.

A relação próxima entre políticos e lideranças religiosas evangélicas tem resultado em políticas públicas que refletem os interesses e valores desse segmento da sociedade brasileira. Além do apoio eleitoral direto, os evangélicos também desempenham um papel importante na formulação de debates e na orientação de posicionamentos políticos dentro do Congresso Nacional. Suas vozes são frequentemente decisivas em temas controversos e na definição de agendas legislativas que impactam diretamente a vida cotidiana e os direitos civis no Brasil.

Para as próximas eleições presidenciais, a influência dos evangélicos é esperada para continuar moldando o cenário político nacional. A capacidade de mobilização desses eleitores e sua organização coletiva em torno de questões religiosas e morais prometem ser fatores determinantes na disputa pelo poder político, destacando a importância estratégica desse grupo na política brasileira contemporânea.

Assim, compreender a influência dos evangélicos nas eleições brasileiras não se limita apenas à análise demográfica ou religiosa, mas representa um elemento crucial para entender as dinâmicas eleitorais e a formação de governos no país. A intersecção entre religião e política continua a ser um campo fértil para debates e reflexões sobre o futuro da democracia e da representação política no Brasil.

*Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Alvaro Ferraz.

Fonte:  https://www.chumbogordo.com.br/444234-a-influencia-dos-evangelicos-nas-eleicoes-brasileiras-por-meraldo-zisman/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_source_platform=mailpoet&utm_campaign=CHUMBO%20GORDO%20-%20Newsletter

O país que não deu certo. E, pelo jeito, nunca dará.

Por Aldo Bizzocchi*

 PAÍS Brasil futuro

Há muito tempo escutamos que o Brasil é o país do futuro. Esse epíteto, cunhado pelo escritor austríaco Stefan Zweig à época da Segunda Guerra Mundial, parece uma profecia: sendo o país do futuro, o Brasil só dará certo… no futuro.


Há muito tempo escutamos que o Brasil é o país do futuro. Esse epíteto, cunhado pelo escritor austríaco Stefan Zweig à época da Segunda Guerra Mundial, parece uma profecia: sendo o país do futuro, o Brasil só dará certo… no futuro. E a questão é que o futuro nunca chega, pois, se chegar, deixa de ser futuro e vira presente. Em suma, o brasileiro vive eternamente esperando por um futuro de prosperidade e progresso que está sempre além; ou melhor, vive uma alternância histórica interminável entre momentos de crise e momentos de esperança, em que parece que o tal futuro vai finalmente chegar, mas em que, na realidade, o país apenas retorna a seu estado anterior — ou a um estado ainda pior que o anterior. Parece que nosso país foi concebido para não dar certo. Nunca.

Nosso primeiro fio de esperança — e nossa primeira decepção — foi a frustrada revolução, posteriormente conhecida como Inconfidência Mineira, que pretendia fazer a independência da capitania de Minas Gerais como primeiro passo para a libertação de todo o Brasil. Os inconfidentes tinham um plano ambicioso: instalar um regime republicano e federalista como o dos recém-independentes Estados Unidos da América, libertar todos os escravos, fundar universidades, promover o desenvolvimento econômico, enfim, criar uma nação segundo os princípios iluministas de então. Entretanto, o Brasil só se tornaria independente três décadas depois, e por obra de um golpe de Estado dado pelo próprio filho, o príncipe regente e herdeiro do trono Dom Pedro, em seu pai, o rei de Portugal Dom João VI. Em decorrência disso, nos tornamos uma anacrônica monarquia oligárquica governada pela mesma dinastia de nossos colonizadores e rodeada de repúblicas liberais e progressistas. Nosso primeiro imperador tinha arroubos autoritários e cercou-se dos velhos senhores feudais que dominavam o Brasil desde os primeiros tempos de colônia. Seu filho, Pedro II, tinha uma mente mais aberta ao progresso, mas, mesmo assim, o país permaneceu agrícola durante todo o Império; praticamente, o único industrial do período foi o Barão e Visconde de Mauá, por sinal, um empresário com título de nobreza.

Então vieram, tardiamente, a abolição da escravatura e a proclamação da república. Quem sabe agora o Brasil entraria na modernidade? Só que não: em vez de povo nas ruas, comandando os destinos da nação, o que tivemos foi um golpe dado pelos militares contra a monarquia e a instalação de um regime que nada tinha de democrático, em que somente homens alfabetizados podiam votar (numa época em que grande parte da população era de analfabetos e mulheres), mas em que “os mortos votavam” e o poder dos latifundiários impunha o chamado voto de cabresto. Um regime em que quem governava o Brasil eram os grandes fazendeiros do café de São Paulo e os produtores de leite de Minas Gerais, na famosa política do café com leite.

Essa República Velha teve fim com mais um golpe, desta vez de Getulio Vargas, que implantou uma ditadura explícita, frustrando mais uma vez qualquer expectativa de mudança. A Revolução Constitucionalista de 1932, derrotada pelas tropas federais, tentou em vão opor-se ao regime, que recrudesceu ainda mais a partir de 1937, ano da instituição do Estado Novo.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda de Vargas, o Brasil teve pela primeira vez uma experiência democrática, que infelizmente durou pouco. Nesse período, vivenciamos o boom da industrialização, a campanha do petróleo nacional, a construção em larga escala de rodovias e usinas hidrelétricas, a fundação de Brasília e o prestígio de nossa arquitetura em âmbito mundial, a (quase) Miss Universo brasileira e o sucesso internacional da Bossa Nova, até que o golpe militar de 1964 trouxe um novo período de trevas, encoberto por um falso progressismo chamado de Milagre Econômico, rapidamente arrefecido pela crise internacional do petróleo de 1973. Enquanto isso, a nação que só teve sua primeira universidade em 1920 emburrecia cada vez mais; como disse o professor Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.

Em 1984, o povo saiu às ruas num belo movimento cívico em prol das eleições diretas para presidente da república, mais uma vez frustrado por uma classe política que pouco ou nada mudara desde o Primeiro Império. O fim do regime militar se deu por uma eleição indireta que o candidato da oposição, Tancredo Neves, só venceu com o apoio da parte dissidente e oportunista do próprio partido que sustentava o regime. E que morreu sem tomar posse, tendo assumido seu vice, José Sarney, um político que fez carreira justamente junto aos governos militares. A nova constituição, ironicamente apelidada de “cidadã”, foi elaborada não por uma Assembleia Nacional Constituinte soberana e independente, mas por um Congresso Nacional dominado por um grupo de políticos e partidos fisiológicos chamado Centrão, que, por sinal, é quem dá as cartas até hoje. E, mais uma vez, nossa esperança de nos tornarmos uma nação desenvolvida e próspera foi por água abaixo. Depois de a década de 1980 ter sido chamada de “década perdida”, perdemos também a de 1990 e continuamos a perder. Tivemos hiperinflação, planos econômicos tão mirabolantes quanto ineficazes, confisco do dinheiro dos trabalhadores, dois impeachments de presidentes, a maior crise econômica de nossa história e até uma tentativa de golpe de Estado. Quando Lula e o PT chegaram ao poder pela primeira vez, novamente se acendeu a chama da esperança, afinal parecia que a velha oligarquia estaria fora do poder. Mas o que se viu foi a aliança de um partido que tem “Trabalhadores” no nome àquela mesma oligarquia, ao alto empresariado e ao famigerado Centrão. E viu-se mais, um mar de corrupção “como nunca antes na história deste país”. Após a vergonha do Mensalão, parecia que algo enfim mudaria: o Supremo Tribunal Federal estava mandando para a cadeia corruptores e corruptos. Mas só até eles serem indultados pela primeira mulher presidente, ou melhor, presidenta, a que ficou famosa por ter inventado um novo idioma, o dilmês.

Novo escândalo, desta vez o Petrolão, e novo sopro de esperança: a Operação Lava Jato finalmente condenava à prisão figuras até então insuspeitas e sempre impunes, como grandes empreiteiros e políticos ilustres. E mais uma vez, o povo pensou “Agora vai!”. Mas não foi. A Lava Jato foi sendo pouco a pouco desmantelada, seu comandante, um ilibado magistrado de Curitiba, celebrado mundo afora como o artífice da nova Operação Mãos Limpas, passou de herói a vilão, de juiz parcial e tendencioso a ministro de um governo com inspiração fascista e aspirações totalitárias, de traidor desse mesmo governo a apoiador da reeleição do presidente golpista e senador aspirante a governador do Paraná. Assim como Lula um dia fora o sindicalista que ajudou a derrubar o regime militar e o presidente mais popular do Brasil, “o cara” no dizer de Barack Obama, para depois tornar-se o presidiário condenado por corrupção que foi solto não por ser inocente, mas por uma manobra jurídica de seus aliados, agora o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, que também tinham tido seus 15 minutos de heroísmo, seguiam o mesmo caminho da desonra. E de entrar para a velha política para conseguir alguma sobrevida.

Enfim, somos um país sem heróis, ou cujos únicos heróis são alguns esportistas, em que nenhum movimento político bem-sucedido foi feito pelo povo e sim por militares, em que as elites governantes têm sido sempre as mesmas há séculos e cujos donos vitalícios do poder são os tradicionais coronéis nordestinos, os barões do agronegócio e dos agrotóxicos e as grandes corporações internacionais. Enquanto ficamos aqui sonhando com um futuro que nunca chega, implantando cotas raciais e linguagem neutra de gênero nos cursos superiores e progressão automática no ensino básico, enquanto ficamos nas últimas posições no exame do PISA e rumamos rapidamente para o obscurantismo da ignorância generalizada e do fundamentalismo religioso, com o assustador crescimento das igrejas neopentecostais, países como a Rússia, a Índia e a China abrigam algumas das melhores universidades do mundo e vários ganhadores do prêmio Nobel.

Enquanto nos vangloriamos de ser, em pleno século XXI, um país eminentemente agrícola tal como éramos no século XIX, um país que exporta soja e carne bovina, nossos colegas dos BRICS exportam tecnologia, produtos com valor agregado e não meras commodities.

Enquanto eles têm suas próprias fábricas de automóveis, nós temos montadoras estrangeiras que apenas montam no Brasil automóveis americanos, alemães, italianos, franceses, japoneses e coreanos.

Enquanto eles já mandaram ao espaço foguetes, sondas e até estações espaciais, nosso programa espacial praticamente parou em 2003, quando um acidente de grandes proporções matou técnicos e destruiu o foguete e a base de lançamento. Enquanto eles têm armas nucleares, nós temos o Comando Vermelho e o PCC.

Enquanto ainda estamos tentando promover retrocessos na lei do aborto, países desenvolvidos (ou do Norte Global, como se diz hoje em dia) já superaram essa discussão há décadas. E, ironia das ironias, temos a maior produção de energia hidrelétrica do mundo, mas praticamente todo o nosso transporte de cargas e de pessoas se dá por rodovias, queimando petróleo, e não por ferrovias movidas a eletricidade — e o país literalmente para quando há greve de caminhoneiros.

Revisando nossa história e, assim, compreendendo como chegamos até aqui, tira-se a triste conclusão de que o Brasil é um país que teria tudo para ser uma potência, mas que foi pensado desde o início para não dar certo, um país em que o progresso e a justiça social sempre foram vistos como uma ameaça à elite dirigente — uma elite tosca, de mente tacanha e caráter duvidoso. Nelson Rodrigues costumava dizer que padecemos do “complexo de vira-latas”. Eu acredito que não é só complexo: somos vira-latas mesmo!

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*Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Fonte:  https://www.chumbogordo.com.br/444260-o-pais-que-nao-deu-certo-e-pelo-jeito-nunca-dara-por-aldo-bizzocchi/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_source_platform=mailpoet&utm_campaign=CHUMBO%20GORDO%20-%20Newsletter

Pantanal, a herança que vamos destruir.

Por Fernando Gabeira*

Pantanal
 

Hoje, o Pantanal está em chamas, e alguns moradores de Corumbá fazem festas juninas. A previsão é que perderemos 2 milhões de hectares. O ar ficará mais pesado na Bolívia, no Paraguai, no norte da Argentina e no sul do Brasil…

Para quem não conhece, a palavra pantanal não transmite a riqueza desse bioma brasileiro. Mesmo se o descrevemos geograficamente como maior planície úmida do planeta, ainda dizemos pouco. É preciso navegar nos rios, conhecer sua gente, contemplar os bichos para sentir algo que pode ser descrito como um paraíso tropical.

São 652 espécies de aves, 264 de peixes, 102 de mamíferos e 40 de anfíbios. Isso também não quer dizer muito até ver o improvável voo do tuiuiú, ave que simboliza o Pantanal, uma onça-pintada que resiste na região, conhecer uma mulher que fala com jacarés, comer um dourado, um pintado, um pacu.

Quando Daniel Cohn-Bendit me convidou para um documentário sobre os sobreviventes de 1968, escolhi o Pantanal como locação das filmagens. Para mim, sem menosprezo pelas outras, era uma bela imagem do nosso país.

Durante minha passagem pelo Congresso, redigi um projeto para tornar o Pantanal região independente de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Cheguei a fazer uma audiência pública em Miranda (MS), onde a ideia foi muito bem-aceita. O objetivo era captar ajuda internacional e administrar a região por meio de um grande comitê de bacia hidrográfica, uma unidade de gestão mais moderna e democrática. A ideia não foi para a frente, assim como o projeto de autonomia de Fernando de Noronha. Ambos dependiam de um plebiscito nos estados, e as chances de vitória eram muito reduzidas, quase nulas.

Hoje, o Pantanal está em chamas, e alguns moradores de Corumbá fazem festas juninas. A previsão é que perderemos 2 milhões de hectares. O ar ficará mais pesado na Bolívia, no Paraguai, no norte da Argentina e no sul do Brasil.

Cobri incêndios no Pantanal. Não se descrevem apenas por hectares destruídos. É um inferno para os bichos que tentam escapar do fogo e são atropelados nas estradas. Funcionei como guarda de trânsito tentando ajudar uma cobra a cruzar a pista. Mas, ao longo do caminho, havia dezenas de bichos atropelados.

Existem muitas causas profundas da decadência do Pantanal. As chuvas que vêm da Amazônia não são mais as mesmas, os rios da região são atacados dentro e fora da região, o investimento em prevenção é muito baixo. O solo está mais seco do que nunca. As causas naturais de incêndio são desprezíveis: não há raios. A temperatura está 2 graus acima da média, chuvas escassas, fogo provocado por nós mesmos. Já foram queimados neste ano 627 mil hectares, e ainda há longa estiagem pela frente.

Sabíamos do El Niño, do aquecimento global e de tudo mais. Houve incapacidade de planejamento e prevenção. Estamos queimando uma bela herança para os netos e um capital turístico que pode atrair recursos e empregar muita gente.

Não adianta muito implorar por urgência. O presidente do país fala sobre tudo, menos sobre a destruição de uma riqueza nacional; deputados e senadores gozam uma semana de férias por causa das festas de São João; ministros do STF discutem o Brasil em Lisboa, num encontro que mistura empresários, políticos e juízes e a imprensa chama de Gilmarpalooza, porque ele é o organizador do festival.

Enquanto isso, o Pantanal arde, os bichos são carbonizados, e vamos perdendo um belo pedaço do Brasil. Eles não teriam solução para o fogo, uma vez que não houve prevenção adequada, e agora só podemos reduzir os danos. Mas se comportam como se o Pantanal fosse noutra galáxia.

Sinceramente, não sei como as novas gerações reagirão quando descobrirem que ateamos fogo em tanta beleza e riqueza natural. A ficção científica já tratou de sociedades que queimam livros. Há espaço para as que, com certa naturalidade, queimam árvores e bichos.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

The Economist: Macron sofre humilhação esmagadora, e França caminha para o desconhecido político

Por The Economist

Aliança centrista de Macron obteve um número desanimador de 20,7% dos votos nacionais

 Aliança centrista de Macron obteve um número desanimador de 20,7% dos votos nacionais Foto: Yara Nardi/AP

Grande participação da direita radical de Marine Le Pen no primeiro turno deixa claro que a aposta do presidente francês em convocar eleições saiu pela culatra de forma espetacular

Uma nova era dramática começou na França neste 30 de junho, quando o partido de direita radical de Marine Le Pen assumiu uma liderança maciça na votação do primeiro turno para a Assembleia Nacional. Seu Reagrupamento Nacional (RN) nunca esteve tão perto de governar o país. Os primeiros resultados sugeriam que o partido havia garantido 33,5% dos votos, segundo o Ipsos, uma empresa de pesquisas.

Antes do segundo turno final, no próximo dia 7 de julho, isso o coloca no caminho certo para conquistar de 230 a 280 assentos na Assembleia Nacional, que tem 577 lugares, contra os atuais 88, e se tornar facilmente o maior grupo no Parlamento. Um resultado na ponta superior dessa faixa colocaria o Reagrupamento Nacional perto de uma maioria geral de 289.

A eleição foi marcada pelo maior comparecimento no primeiro turno desde 1997. Os candidatos do Reagrupamento Nacional ficaram em primeiro lugar em centenas de distritos eleitorais em todo o país: em seus antigos centros geográficos, como o chamado cinturão da ferrugem (industrial) no nordeste do país e o sul da França, bem como em lugares historicamente com pouco apoio, como a Bretanha. Em seu próprio distrito eleitoral em torno de Hénin-Beaumont, na região de mineração do norte da França, Le Pen foi eleita no primeiro turno.

Le Pen parece estar pronta para colher os benefícios de seu projeto de uma década para eliminar excessos de seu partido, fazer com que seus deputados pareçam apresentáveis e convencer os eleitores de que não se trata apenas de protestos barulhentos, mas de poder.

O Reagrupamento Nacional, descendente da Frente Nacional cofundada pelo pai de Le Pen e ex-membro da Waffen-SS nazista, ainda se baseia fortemente na política de identidade, com sua promessa de acabar com o direito automático à cidadania francesa para aqueles nascidos de pais estrangeiros em solo francês. Ele mistura isso com promessas populares de reduzir o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) sobre as contas de energia de 20% para 5,5%, diminuir a idade de aposentadoria e trazer de volta um imposto sobre a riqueza. Após sucessivos governos de direita, esquerda e centro, os eleitores, sempre decepcionados com seus governantes, agora parecem dispostos a apostar em um grande partido que nunca governou.

A aliança de quatro partidos de esquerda, a Nova Frente Popular (NFP), também teve uma boa noite, ficando em segundo lugar nacionalmente com 28,1% dos votos, segundo a Ipsos. A aliança, composta pela França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, socialistas, verdes e comunistas, qualificou-se para o segundo turno em muitos distritos eleitorais nas grandes cidades e nos subúrbios multiculturais, onde seu apoio a um Estado palestino independente é popular. A Ipsos calcula que o NFP poderia conquistar de 125 a 165 cadeiras, o que o tornaria o segundo maior bloco parlamentar.

Em contrapartida, a votação foi uma humilhação esmagadora para a aliança centrista do presidente Emmanuel Macron, Renascença. Muitos de seus próprios deputados e aliados mais próximos, pressentindo uma eliminação iminente, ficaram horrorizados com sua decisão inesperada, em 9 de junho, de convocar uma eleição imediata. O tiro saiu pela culatra, de forma espetacular. O Renascença obteve um número desanimador de 20,7% dos votos nacionais. Agora, espera-se que perca mais da metade de seus 250 assentos; as projeções da Ipsos sugerem que poderá manter apenas 70 a 100 assentos. Um deputado chamou o fato de “catástrofe total”.

O presidente francês, Emmanuel Macron, e sua esposa, Brigitte Macron, votam em cabine neste domingo, 30
 O presidente francês, Emmanuel Macron, e sua esposa, Brigitte Macron, votam em cabine neste domingo, 30 Foto: Yara Nardi/AP

O que ficou claro com a votação do primeiro turno é que o projeto centrista de Macron e a autoridade política do presidente sairão gravemente prejudicados dessas eleições. Mesmo nos casos em que os candidatos de Macron conseguiram passar para o segundo turno, garantindo 12,5% dos eleitores registrados, eles enfrentarão duelos difíceis e, em alguns casos, disputas de três vias, nas quais serão pressionados a renunciar para bloquear o RN. De acordo com Mathieu Gallard, diretor de pesquisa da Ipsos, pode haver de 285 a 315 desses casos, mais da metade do total.

Em alguns distritos eleitorais, isso poderia significar convocar os eleitores centristas a apoiar o NFP, uma aliança que promete trazer de volta o imposto sobre a fortuna, aumentar o salário mínimo em 14%, introduzir um imposto sobre os “superlucros”, aumentar o imposto sobre heranças e eliminar o imposto sobre a renda de investimentos. Uma autoridade do partido de Macron disse que decidirá eleitorado por eleitorado, dependendo do candidato da NFP. Os candidatos qualificados têm até a noite de 2 de julho para confirmar que permanecerão na disputa.

O desvio de votos do centro para os extremos representa um paradoxo doloroso para o presidente. Estreante nas eleições, com 39 anos, Macron foi eleito pela primeira vez em 2017 em uma onda de otimismo pró-europeu, energia jovem e um senso de renovação política. Na noite da eleição daquele ano, ele prometeu que “faria tudo” para garantir que “não houvesse mais motivos para votar nos extremos”. No entanto, apesar de um sólido histórico de criação de empregos e sucesso empresarial na França, o solitário Macron nunca conseguiu persuadir os eleitores de que está próximo a eles ou que os entende.

Além disso, o próprio sucesso de seu amplo movimento centrista, que tomou emprestado talentos da esquerda e da direita moderadas, acabou enfraquecendo as alternativas razoáveis ao centro. Na aliança do NFP, os socialistas e os verdes agora se uniram ao partido de esquerda radical de Mélenchon. O presidente dos Republicanos, de centro-direita, Eric Ciotti, dividiu o partido e se uniu ao RN de Le Pen. Os republicanos moderados remanescentes, que rejeitaram sua aliança, obtiveram 10% de votos e parecem estar prestes a ser reduzidos a um pequeno grupo parlamentar.

No entanto, o que ainda não está claro após esses resultados do primeiro turno é se Le Pen conseguirá garantir a maioria em 7 de julho. As pesquisas sugerem que isso está ao alcance, mas não é uma certeza. Jordan Bardella, seu candidato de 28 anos ao cargo de primeiro-ministro e uma figura popular no TikTok, insiste que não aceitará o cargo a menos que comande essa maioria no parlamento. Sem ela, se Macron lhe pedisse para tentar formar um governo, ele poderia ser derrubado por uma moção de desconfiança logo no primeiro obstáculo. A França passaria então por uma busca por um primeiro-ministro capaz de formar um governo estável, o que poderia levar a um período que se assemelha à instabilidade crônica da quarta república do país, em 1946-1958.

Se a aliança liderada pelo RN conseguir conquistar a maioria, ou se conseguir juntar uma com novos desertores, o país estará caminhando para uma forma de “coabitação” desconfortável entre o presidente e o governo, em que cada um deles tem uma visão diametralmente oposta sobre quase tudo, desde a política fiscal até a Europa, a Ucrânia e a Otan.

A constituição da quinta república, concebida por Charles de Gaulle em 1958 exatamente para trazer a tão necessária estabilidade, poderá ser duramente testada. Nesta semana, Le Pen desafiou a separação de Poderes, sugerindo que o papel constitucional do chefe de Estado como comandante-chefe das forças armadas era apenas “honorário”. De qualquer forma, os mercados estão preocupados. Em 28 de junho, a diferença de taxas entre os títulos soberanos de dez anos franceses e alemães atingiu seu maior nível desde 2012. A França parece estar caminhando a toda velocidade, em um estado de raiva e apreensão, para o desconhecido político.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/internacional/the-economist-macron-golpe-esmagador-franca 01/07/2024

Como nasceu e germinou a civilização patriarcal?

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Imagem: Guerra (1942), de Lasar Segall 

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Seria a dominação inata ao ser humano? Ou a “invenção” da propriedade privada a forjou? Filósofos como Hobbes e Rousseau tentaram entender as raízes patriarcais nos seis milênios de civilização. Mas, talvez, seja hora de outro olhar sobre a história da humanidade

“Três forças lutam, nos bastidores, pelo domínio do planeta.
Três forças com as quais a humanidade sempre conviveu,
porque estão no poder desde os primórdios dos tempos:
sacerdotes, generais e mercadores. (…)
Se continuarmos como estamos, estas três forças
destruir-se-ão umas às outras e, no processo, a humanidade.”
(Jacques Attali)

Sempre fomos assim ou, em algum momento, algo deu muito errado?”
(Graeber e Wengrow)

As condições de convivencialidade e habitabilidade no mundo contemporâneo estão em um acelerado, e aparentemente irreversível, processo de conflagração e decomposição, muito embora este fenômeno esteja bem distante do alcance do senso comum, e até mesmo de uma considerável parcela da academia e de quem se ocupa de produzir Ciência. A percepção das massas, ao contrário, está, no caso da crescente maioria de precarizados (quando não, excluídos e abandonados à indigência e à criminalidade) do sistema-mundo capitalista, apenas direcionada a lutar pela sobrevivência, e, do lado da minoria inserida na inebriante lógica tecno-econômica, ocupando-se das inesgotáveis distrações do vasto cardápio de desejos de consumo e entretenimento, ofertados pelo deus tecnomercado, principal eixo de desregulação e inviabilização da civilização na atualidade.

Nas sombras de uma aparente estabilidade e de um celebrado avanço civilizatório, proporcionados pelas inovações, comodidades e encantos do novo mundo high-tech, que se descortinou neste início do século XXI, estão em curso processos agônicos que vêm impactando profundamente os mais diversos aspectos da experiência humana, notadamente o geopolítico e o ambiental, sendo este último já visivelmente catastrófico. É o que podemos observar, com crescente frequência, na pauta dos principais jornais, nos diversos meios de interação virtual e em manifestações de renomados pesquisadores e pensadores que se dedicam a compreender as convulsões globais do tempo presente. Para ficar em apenas dois exemplos deste tenebroso prognóstico sobre o mal-estar do mundo em que vivemos, dois livros publicados recentemente, um tratando do cada dia mais intolerante e belicoso cenário geopolítico atual, e o outro da premente e inadiável questão ecológica, são bem representativos desse fenômeno agônico contemporâneo. São eles:

1) a obra O naufrágio das civilizações (Vestígio, 2022 – 1ª edição em 2019), do escritor libano-francês Amin Maalouf, um dos quarenta imortais que integra a Academia Francesa desde 2011, na cadeira antes ocupada por Claude Lévi-Strauss. Fazendo alusão à tragédia do imponente e garboso transatlântico Titanic, que em abril de 1912 sucumbiu diante de um iceberg imperceptível, Maalouf antevê a possibilidade de a humanidade perecer em face do que ele considera as três chagas que hoje afligem nosso convulsionado mundo moderno: os conflitos identitários e nacionalistas, o islamismo radical e o ultraliberalismo. Todos eles despertados, simultaneamente, em conturbados eventos geopolíticos, deflagrados por volta dos anos 1970, muitos dos quais Maalouf foi testemunha ocular quando exercia sua atividade de jornalista. “É a humanidade inteira que se vê à pique”, diz ele. Daí o seu profundo pessimismo, ao perceber que “uma engrenagem está em curso, que ninguém a iniciou voluntariamente; que em suas roldanas estamos todos encaixados, à força; e que ela ameaça destruir nossas civilizações.”

Maalouf destaca como principal estopim da regressão civilizatória que vivenciamos no presente “a revolução islâmica proclamada pelo aiatolá Khomeini em fevereiro de 1979 e a revolução conservadora que se instalou no Reino Unido, pelas mãos da primeira-ministra Margaret Thatcher, em maio do mesmo ano.” Passados quase 50 anos, sem que houvesse quaisquer tratativas para cicatrizar e debelar essas “revoluções conservadoras” que se desdobraram a partir de 1979, “o ano da grande reviravolta”, a humanidade, sem perceber, terminou por incorporá-las. Os principais líderes mundiais, sejam os governantes dos países desenvolvidos do Norte Global ou os magnatas das megacorporações transnacionais, agora parecem não enxergar, muito menos saber como se desviar da montanha de gelo que está bem à nossa frente. Segundo Maalouf, está posto o mais perturbador impasse geopolítico da história: “como convencer nossos contemporâneos de que, ao continuarem prisioneiros de concepções tribais de identidade, de nação e de religião, e ao seguir glorificando o egoísmo sagrado, eles engendram seus próprios filhos num futuro apocalíptico?”

2) o livro-dossiê O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência (Editora Elefante, 2023), do persistente pesquisador da Unicamp, Luiz Marques, que conseguiu reunir, em mais de 600 páginas, evidências climáticas irrefutáveis, endossadas por várias entidades e cientistas especializados, dentre os quais estão os dois mais relevantes coletivos científicos da atualidade na área ambiental, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e o Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), ambos ligados à ONU. Esta obra, que na verdade é uma atualização de sua obra anterior (Capitalismo e colapso ambiental, Unicamp, 2018), proporciona a quem a lê um choque de realidade, na qual nos deparamos não só com provas inequívocas acerca do acelerado processo de colapso climático, já em andamento, mas com inúmeras conclusões convergentes de cunho existencial, como a do cientista sueco Johan Rockström, diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático (PIK), sediado na Alemanha: “De acordo com a evidência que temos hoje, minha conclusão é de que o que fizermos entre 2020 e 2030 será decisivo para o futuro da humanidade na Terra.”

As percepções de Maalouf e Marques estão refletidas hoje sob o signo de duas principais agonias planetárias imbricadas: 1) a assustadora expectativa de escalada nuclear, resultante do choque entre a expansão insana da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o avanço econômico-militar da aliança Rússia-China; 2) o acelerado processo de mudanças climáticas, refletido num aumento médio de temperatura já tendente a ultrapassar, antes de 2030, o perigoso patamar de 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais (Relatório 2023 da Organização Meteorológica Mundial – OMM), sem qualquer perspectiva concreta de mitigação num horizonte próximo, configurando um claro risco existencial para humanidade.

Sempre houve uma tendência natural de situar as mazelas humanas a fatos e eventos históricos mais evidentes e próximos da conjuntura de crise que se está vivenciando. Tanto Maalouf quanto Marques atribuem os motivos que levaram a humanidade para esse estado de gravíssima vulnerabilidade, com potencial de nos arrastar a uma inaudita situação de colapso civilizatório, a contextos muito recentes. Do ponto de vista da experiência jornalística de Maalouf, os motivos são às duas “revoluções conservadoras” patrocinadas por Khomeini e Thatcher em 1979; segundo as evidências científicas monitoradas por Marques, seria a “Grande Aceleração” desenvolvimentista despertada a partir dos 30 anos gloriosos (1945-1975), que consolidaram a hegemonia e a globalização do sistema-mundo capitalista, período responsável pelos picos de crescimento exponencial da população e do consumo, ao custo de uma predação de recurso naturais sem precedentes na história. Eles estão certíssimos em seus diagnósticos. No entanto, podemos também incorporar um terceiro elemento motivador, bem mais sistêmico, que pode aprofundar ainda mais a dimensão da policrise terminal que vivemos.

Proponho aqui considerarmos a influência do componente chamado Cultura – no qual se assenta a Civilização e todo seu longo processo de formação –, e não apenas a indução por fatores conjunturais, como fazem Maalouf e Marques. Quando falo Cultura, refiro-me a capacidades adquiridas no sentido socioantropológico que esse termo comporta, o qual inclui valores, crenças, premissas, modelos, cosmovisões, teorias e concepções da Natureza, que comumente representamos pela noção de “mitos”, ou “ilusões”, usando uma categoria que Sigmund Freud adotou para compreender a desajustada interação entre o ser humano e a realidade que o cerca. Inclusive, para Freud, as noções de Cultura e Civilização representavam a mesma coisa. “Recuso-me a separar cultura e civilização”, dizia ele. O mais recomendável seria, então, retrocedermos bastante no tempo histórico para compreendermos melhor como chegamos nesse estado de policrise planetária, aparentemente terminal.

Compreender a natureza do Homo sapiens moderno e sua tortuosa condição tem sido uma das principais inquietações ao longo da história, em especial nos sombrios dias atuais, em que a humanidade se depara, pela primeira vez, com dois grandes impasses de alcance planetário (escalada nuclear e perspectiva de colapso ambiental) com potencial de interromper a continuidade do projeto civilizatório, ainda neste século XXI. Portanto, sem uma ampliação temporal da investigação acerca da condição humana, estaremos apenas presos a uma lógica de pensamento recursiva que apenas replica as ilusões de uma cultura, ou de um modo de viver humano, a partir de supostas “soluções” cujos fundamentos estão amparados nas mesmas ilusões que sustentam a cultura dominante. Estamos falando do processo de autoconservação de uma cultura, sobre o qual abordaremos mais à frente.

O pensador genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) inicia uma de suas principais obras, O Contrato Social (1762), com a seguinte advertência, que é bem conhecida de seus admiradores: “O homem nasceu livre e em toda parte é posto a ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles. Como se produziu essa mudança? Ignoro. O que pode torná-la legítima? Acredito poder resolver essa questão.” Tentando honrar a sua promessa, Rousseau atribuiu a “queda” da humanidade ao desenvolvimento das sociedades (da civilização) amparado em relações de propriedade privada profundamente desiguais e aviltantes. Porém, no tocante ao que “produziu essa mudança”, ou seja, os prováveis eventos ocorridos no passado que teriam ceifado irrecuperavelmente uma suposta liberdade humana, Rousseau parece ter sido bastante honesto em relação à ignorância que permeava, à sua época, esse tipo de abordagem sobre como e a partir de quando o animal humano ficou condicionado a um modo de viver antropocêntrico, hierarquizado, escravizante e, portanto, tão irremediavelmente conflitante.

Este foi o mesmo dilema que, bem antes de Rousseau, já havia ocupado o pensamento do jovem filósofo francês Étienne de La Boétie (1530-1563), que, ainda em tenra idade, elaborou o magistral texto-denúncia contra a tirania dos homens, o famoso Discurso da Servidão Voluntária (escrito entre 1552 e 1553). O que parecia inquietar La Boétie era ver os seres humanos não se reconhecerem como iguais e se acomodarem à vida sob as opressões e a miséria da tirania. “Uma coisa é claríssima na natureza”, dizia ele, “tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos.” Sem compreender o que exatamente teria desencadeado essa contraditória relação de submissão e adoração entre os homens, La Boétie questionava: “a que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar? (…) temos de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural”. Esta talvez seja a pergunta essencial, que, se algum dia for respondida e compreendida por aqueles que ditam os descaminhos da civilização – especialmente os “sacerdotes, generais e mercadores” –, poderá nos fornecer uma saída para lidar melhor com as pulsões de morte por trás de um comportamento humano, historicamente, tão conflitante e autodestrutivo.

Porém, talvez tenha sido o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), o responsável por consagrar definitivamente esse juízo tão negativo acerca da condição humana, ao chegar a conclusões como a de que “em todos os homens há tendências destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e que num grande número de pessoas elas são fortes o bastante para determinar seu comportamento na sociedade humana.” Para atestar esse triste veredicto, Freud vivenciou um dos momentos, talvez, mais tenebrosos da história: o sombrio período da corrida armamentista e as crises nos Bálcãs, nos estertores da Belle Époque (1871-1914), seguida da matança nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que redundaram nas ondas nazifascistas alemã e italiana e no ímpeto imperialista japonês, deflagradores dos flagelos e genocídios da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que ceifou entre 70 e 85 milhões de vidas humanas, o equivalente entre 3,0 a 3,7% da população mundial em 1939. Freud avançou bastante em relação à compreensão dos “desejos impulsionais” que geraram o conflito humano, porém tinha a mesma dúvida dos seus predecessores quanto ao momento da “queda”. Dizia ele: “as proibições que as (as privações que geram as frustrações humanas) instituíram deram início ao afastamento da cultura em relação ao estado animal primitivo, não sabemos exatamente há quantos milhares de anos.

O fato é que o ato de questionar as origens e as razões que levaram o Homo sapiens moderno a viver como vive, de forma tão autodestrutiva, tem sido muito recorrente, até os dias atuais.

Assim como seus pares renascentistas, no caso de La Boétie, ou iluministas, no caso de Rousseau a Freud, – que viveram momentos históricos quando ainda se desbravava as novas fronteiras do que conhecemos hoje por Revolução Científica –, realmente não se tinha à disposição o imenso aporte de formulações, teorias, modelos e descobertas que se tem atualmente, sobretudo nos campos da antropologia, arqueologia, etnografia, linguística, dentre outros ramos afins, para poder responder satisfatoriamente esta que parece ser a questão basilar da intratável e tortuosa convivência humana: Como explicar um modo de viver humano tão enraizado numa relação de dominação e de guerra? Ainda assim, não é incomum ver esse mesmo questionamento de La Boétie, Rousseau e Freud, sem uma resposta satisfatória, em renomados autores contemporâneos, quando eles se dedicam a compreender as regressões civilizatórias observadas no nosso tempo. No entanto, com os novos aportes da Ciência, a partir da segunda metade do século XX, já dá para captar alguns sinais de que há avanços consideráveis nessa questão.

Superando o reducionismo ideológico Hobbes versus Rousseau

A visão predominante acerca da natureza humana, que pode ser facilmente constatada no curso da História, é a do filósofo político inglês Thomas Hobbes (1588-1679), para quem, desde sempre, o animal humano veio ao mundo naturalmente propenso a uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”, o que o levou a cunhar o nefasto veredicto de que “o homem é o lobo do homem”, afirmação oriunda da expressão latina “Lupus est homo homini lupus”, criada pelo dramaturgo romano Plauto (254-184 a.C.). Na compreensão de Hobbes, não deveríamos estranhar que “a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros”, um ser destinado a autodestruição, condição que só poderia ser remediada por meio da manutenção forçada da ordem, a cargo do poder soberano do Estado (o Leviatã) e de suas leis.

As visões de Hobbes e de Rousseau foram tão impactantes para a humanidade que, muito tempo depois, após a sangrenta Revolução Francesa (1789-1799) – época em que os regimes absolutistas medievais revelaram-se, sob as rédeas do cristianismo, incapazes de dar conta de viabilizar a continuidade do intratável e tortuoso projeto civilizador do Ocidente –, o modo de fazer política ficou limitado, até os dias atuais, numa espécie de fla-flu entre Rousseau e Hobbes, o que influenciou consideravelmente os dois principais ideários políticos da modernidade, em que, à direita se posicionaram os lobos hobbesianos, e à esquerda os cordeiros rousseaunianos, com suas muitas variantes e gradações dentro desse espectro político, o que só contribuiu para continuar escamoteando o problema de fundo da humanidade, o seu condicionamento à cultura de dominação europeia.

Como já é de conhecimento de quem tem alguma leitura razoável em teoria política, Hobbes, por meio da sua obra Leviatã (1651), justificou a necessidade de um ente acima dos homens, detentor de um poder soberano absoluto, para dar conta do “Bellum omnium contra omnes”, a inarredável “guerra de todos contra todos”, que, na sua visão, é a condição constituinte do estado primordial da nossa espécie Homo sapiens. Para Hobbes, sempre fomos e sempre seremos primatas com instintos agressivos e destrutivos. Cem anos depois, Rousseau, por meio do seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754), contrapôs-se a Hobbes afirmando ter havido sim um momento de ruptura que “produziu essa mudança” – a passagem de um “estado de natureza” para um estado dito civilizado –, causado por circunstâncias que ele “ignorava”, e que teria sido legitimada por relações de propriedade profundamente assimétricas.

Os dois tinham boas razões para descrever a realidade humana tal como a descreveram. As três passagens a seguir são bem representativas, e sintetizadoras, tanto do pensamento quanto do referencial de vida no qual estavam imersos, fortemente influenciados pela teologia, diga-se de passagem, que os levaram a associar o processo de formação do Estado soberano, bem como as relações mercantilistas, vigentes em suas épocas, com o suposto “estado de natureza” dos humanos:

Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial. (…) E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado.” (Hobbes, em Leviatã)

Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. (…)

Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, e pela terceira a de senhor e de escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo, ou o aproximam da instituição legítima.” (Rousseau, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens)

Se considerasse apenas a força e o efeito que dela deriva, eu diria: quando um povo é obrigado a obedecer e obedece, ele faz bem; assim que pode sacudir o jugo e o sacode, faz melhor ainda; pois, ao recobrar sua liberdade pelo mesmo direito com que ela lhe foi tomada, esse povo ou tem razão de retomá-la, ou não havia razão alguma de tirá-la. A ordem social é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. No entanto, esse direito não vem da natureza, ele está fundado sobre convenções. Trata-se, pois, de saber quais são essas convenções. (Rousseau, em O Contrato Social)

O que Hobbes fez no Leviatã foi descrever, a seu modo, a nossa cultura europeia de dominação milenar e os mecanismos que viabilizaram sua manutenção por tanto tempo, isto é, os sofisticados controles subjetivos para conter a essência autodestrutiva dessa cultura de dominação e dissociação da Natureza. É interessante notar que a frequência de algumas palavras, como “Deus” (1.417 vezes), “poder” (957), “lei” (953), “Cristo/cristão” (648), “homem” (631), “Estado” (609), “obediência/obedecer” (336), “razão” (295) e “igreja” (268), que aparentemente são as mais utilizadas por Hobbes em pouco mais de 300 páginas do seu Leviatã, é bastante reveladora. Demonstra o quanto a sua visão de mundo estava em sintonia com a cosmovisão predominante em sua época, em que uma civilização só seria viável estando sob o controle divino do Estado e suas leis, ungidos por Deus e consagrados pela Razão. Inclusive, há quem diga que o incessante estado de guerra entre os homens, percebido por Hobbes, reflete sua dolorosa experiência com a guerra civil inglesa (1642-1649), que o forçou a exilar-se em Paris.

Enquanto em Rousseau o conflito interno que devora o animal humano é antinatural, em Hobbes seria natural, daí a necessidade imprescindível de que haja um controle, cada vez mais aprimorado, para conter a agressividade humana, e, desse modo, foi criado o Leviatã, que governa a condição predadora do animal humano até os dias atuais. O que é importante destacar é que tanto Rousseau quanto Hobbes interpretavam a realidade a partir do seu referencial de vida e dos instrumentos cognitivos a sua disposição, que invariavelmente se dava pelas lentes da teologia, da teleologia ou da combinação de ambas, o que não está tão distante do que ocorre com renomados pensadores na contemporaneidade.

O fato é que os impactos desse maniqueísmo político-ideológico para a já difícil e intratável convivência humana foram (e continuam sendo) desastrosos. Só no trágico século XX, a disputa entre o projeto civilizatório dos capitalistas/liberais (mais à direita) e o dos socialistas/comunistas (mais à esquerda), estima-se que rendeu a dizimação de pelo menos 187 milhões de vidas (Brzezinski, 1993), o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Neste início de século XXI, a inarredável vida hobbesiana, agora turbinada pela vigilância algorítmica das Big Techs, parece próxima do seu ápice de brutalidade e destruição. Portanto, está mais do que na hora de superarmos essa visão dicotômica altamente reducionista na condução da política e das relações entre os países, uma visão que nos impede de perceber como estamos inviabilizando perigosamente a construção de uma perspectiva de convivência global democrática e plural. E o que é mais emblemático, estamos comprometendo a manutenção da complexidade da teia da vida que nos sustentou por milhões e milhões de anos, hoje gravemente afetada.

Uma tentativa de propor “uma nova história da humanidade”

Um dos esforços mais recentes em tentar investigar e compreender a natureza humana, sob o aspecto Cultural e de uma perspectiva histórica em escala mais alongada, retornando alguns milênios atrás, e apropriando-se dos novos aportes das ciências ligadas ao estudo das culturas humanas, conquistados a partir do século XX, está condensado no trabalho de 10 anos de pesquisa do ativista anarquista e antropólogo estadunidense David Graeber (foi coorganizador do movimento Occupy Wall Street, tendo falecido precocemente em 2020), em parceria com o arqueólogo e antropólogo inglês David Wengrow, que redundou no livro O Despertar de Tudo: uma nova história da humanidade (Companhia das Letras, 2022). Trata-se de uma obra muito extensa (700 páginas) em que os autores colocam em dúvida todas as teorias que emergiram no século XVII sobre as origens das instituições que forjaram a civilização, tais como agricultura, propriedade, democracia, escravidão etc., destacando notadamente as “implicações políticas sinistras” exercida por Hobbes e Rousseau na política moderna.

Ao que parece, o trabalho de Graeber e Wengrow não se propõe a ser conclusivo, embora seja muito abrangente e rigoroso, traçando uma nova perspectiva para a história da humanidade, a partir de um grande volume de achados antropológicos e arqueológicos. No entanto, causa certa estranheza o fato de os autores prescindirem da interferência das religiões (as monoteístas, especialmente) no longo processo civilizador do Ocidente, como tão bem fizera o pai da psicanálise, Sigmund Freud, que dedicou uma de suas principais obras, O futuro de uma ilusão (1927), exclusivamente para ressaltar “aquela que talvez seja a parcela mais significativa do inventário psíquico de uma cultura”, as “ideias religiosas”, que o levou a uma de suas mais notórias conclusões sobre os impulsos conflitantes dos humanos: “a religião seria”, segundo Freud, “a neurose obsessiva universal da humanidade”.

Uma das premissas do trabalho de Graeber e Wengrow é a de que “toda a história – nossa metanarrativa histórica convencional sobre o progresso ambivalente da civilização humana, em que se perderam as liberdades à medida que as sociedades se tornam maiores e mais complexas – foi em ampla medida inventada a fim de neutralizar a ameaça da crítica indígena.” Os autores se referem especificamente ao “ataque moral e intelectual sistemático à sociedade europeia” feito pelo chefe ameríndio huroriano Kondiaronk (chefe estrategista do povo nativo americano Wendat), registrados em livros publicados pelo seu amigo de campanhas e expedições exploratórias, o escritor francês barão Louis-Armand de Lom d’Arce, conhecido por Lahontan. “Para os públicos europeus, a crítica indígena foi como um choque no sistema”, dizem Graeber e Wengrow, o que teria ameaçado o status quo das estruturas da sociedade europeia, desencadeando “todo um corpo teórico destinado especificamente a refutá-las.”

Do começo ao fim de sua obra, Graeber e Wengrow ficam presos à pergunta sobre as origens da perda das liberdades humanas (eles apontam três tipos: “de ir embora ou se estabelecer noutro lugar”, “de ignorar ou desobedecer ordens” e “de moldar realidades sociais novas”), para a qual eles não vislumbram uma resposta convincente, o que parece inquietar a ambos. Logo na introdução há o questionamento se “sempre fomos assim ou, em algum momento, algo deu muito errado?”, que perpassa toda a pesquisa. Já quase no final, eles continuam com suas indagações: “Como isso ocorreu? Como acabamos aprisionados? E exatamente até que ponto estamos de fato presos?”

Destaquei estas três perguntas por duas razões. Primeiro porque penso que o grande mérito da obra de Graeber e Wengrow está em formulá-las, pois o grande impasse da humanidade resume-se a essas três questões, sobre as quais normalmente se adota uma postura negligenciadora e conformadora, e segundo porque são elas que nortearão, doravante, este breve artigo. Abordarei também dois aspectos basilares que Graeber e Wengrow trataram apenas tangencialmente em suas longas pesquisas: o primeiro foi o impacto cultural das sucessivas ondas invasoras kurgan (pág. 238), ocorridas na Antiga Europa, no longuíssimo período que se estendeu de 4300 a 2800 a.C., e o segundo está relacionado à característica mais relevante de uma Cultura que é a sua imensa capacidade de autoconservação. Esses dois fatores, provavelmente, foram determinantes para moldar toda o conflituoso processo civilizatório do Ocidente, conforme abordaremos em um próximo texto aqui no Outras Palavras.

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/como-nasceu-e-germinou-a-civilizacao-patriarcal/ 27/06/2024