terça-feira, 30 de abril de 2024

Por que o engajamento sócio-político hoje é tão difícil?

Leonardo Boff*

Engajamento de jovens nas Eleições: Estratégias para incentivar a  participação política - Quem te Representa?

Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (USA e Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional, indiscriminada e genocida reação do estado de Israel contra a população  da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de outubro do ano passado.

O stablishment político, dominante no mundo, a partir do Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal  de apoio  à causa  palestina e contra o genocídio que lá está ocorrendo. Nos USA a repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores universitários, até contra uma candidata à presidência do país.

Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua inteira família, dentro de suas próprias casas.

Precisamos  tentar entender o porquê dessa inércia. Aduzo alguns pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação seja face à grave situação concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocídio na Faixa de Gaza.

Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago  se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de “A grande transformação”: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em “A miséria da filosofia”. 

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se a ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA(There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais. Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa de elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo:Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral  da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes consciências ingênuas que esse é o mundo bom e desejável. Não se dão conta de que são cooptados pelo sistema imperante e feitos seus reprodutores.

Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a “Pedagogia do Oprimido”, “Educação como prática da Liberdade” e concluindo com a  educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem) mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista mas solidária com um  modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a  humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.

(A reflexão,buscando as alternativas, virá no próximo artigo)

*Leonardo Boff, teólogo. Escritor. Publicou Cuidar da Casa Comum:pistas para protelar o fim do mundo, Vozes 2024.

Fonte: https://leonardoboff.org/2024/04/30/por-que-o-engajamento-socio-politico-hoje-e-tao-dificil/

 

Sequestro do imaginário.

Artigo de Frei Betto

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2023/12/07_12_robos_julien_tromeur_unsplash.png

30 Abril 2024

"A ação coordenada de muitos países acertou ao impor limites ao capital ao reduzir a jornada de trabalho e criminalizar a contratação de mão de obra infantil. Acertou ao abolir a escravidão. Acerta agora quando protege as crianças contra a voracidade das mensagens publicitárias", escreve Frei Betto, escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Eis o artigo.

Em 15 de janeiro deste ano, o presidente Lula sancionou a lei que criminaliza o bullying e o cyberbulliyng, classificando-os “crimes hediondos” cometidos contra crianças e adolescentes. O cyberbulliyng é tipificado como praticado nas redes digitais, aplicativos, jogos online ou “qualquer meio ou ambiente digital”. Agora, no Brasil, quem cometer cyberbulliyng pode ser preso por até quatro anos. A lei impede fiança ou anistia aos criminosos. A pena para indução ou auxílio ao suicídio ou à automutilação vai de dois a seis anos, e pode ser dobrada se o autor for responsável, na internet, por um grupo, comunidade ou bolha.

A edição 2022 do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) constatou que 11% dos alunos entrevistados disseram sofrer bullying com frequência na escola. O percentual de meninas que declarou ter sofrido várias vezes no mês chegou a 22%. Entre os meninos, 26%.

Qual a saída? Somente uma ação coordenada dos governos pode impor limites a essa exploração do imaginário. A ação coordenada de muitos países acertou ao impor limites ao capital ao reduzir a jornada de trabalho e criminalizar a contratação de mão de obra infantil. Acertou ao abolir a escravidão. Acerta agora quando protege as crianças contra a voracidade das mensagens publicitárias. Mas ainda se omite quando se trata de impedir que o mesmo capital explore o olhar e se aproprie dos dados e dos códigos neuronais e pulsionais mapeando o desejo das crianças e dos adultos.

Em seu livro “A superindústria do imaginário - Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível”, Eugênio Bucci afirma que “a obra de Karl Marx nos entrega uma descrição objetiva do caráter do século XIX e da Revolução Industrial. O trabalho infantil grassava nas fábricas de Londres; os capitalistas recrutavam crianças para jornadas que se estendiam por até 18 horas diárias; os pré-adolescentes, a força de trabalho mais barata, davam mais retorno: e Marx viu e descreveu tudo isso.”

“A exploração capitalista mudou de código, mas aí está, embora não se mostre. (...) Nas big techs o grau de exploração da Superindústria do Imaginário chegou a um patamar de tapeações e ocultamentos tão requintado que nem os mais sovinas, sagazes e impiedosos barões da Revolução Industrial ousariam supor.”

“Numa rede social ou num grande site de busca, o ‘usuário’, que imagina usufruir de um serviço que lhe é ofertado em generosa cortesia, é a mão de obra (gratuita), a matéria-prima (também gratuita) e, por fim, a mercadoria (que será vendida, no todo ou em partes, em esquartejamentos virtuais, e nem desconfia da gravidade disso). Nunca o capitalismo desenhou um modelo de negócio tão perverso, tão acumulador e tão desumano.”

Bucci detalha o requintado sistema de exploração. “O ‘usuário’ é a mão de obra gratuita porque é ele quem digita, fotografa, posta, filma e faz tudo. Os conglomerados digitais não precisam gastar um centavo com digitadores, editores, revisores, fotógrafos, cinegrafistas, locutores, modelos, atrizes, roteiristas, nada. Absolutamente nada. O ‘usuário’ trabalha sem parar em frêmitos de gozo, sem cobrar um tostão.

“Não bastasse isso, o mesmo ‘usuário’, além de mão de obra gratuita, é também a matéria-prima, pois as histórias narradas são as dele, os gatos e os pratos de comida fotografados são os dele, os delírios postados, aos quais a Superindústria dá o nome pernóstico de ‘conteúdos’, são os dele.”

“Por fim, o ‘usuário’ é também a mercadoria. A Superindústria o colhe de graça, como se fosse mato espalhado pelo chão, e vai comercializá-lo em seguida, no todo ou em partes, no varejo e no atacado, em sacas ou a granel, a preços trilionários. Os olhos serão vendidos aos anunciantes. Os dados pessoais serão mercadejados com organizações que manipulam eleitorados em favor dos neofascistas.”

“Do ponto de vista ético, o que se passa hoje é pior do que o que se passou na Revolução Industrial. Não, não é exagero. Pensemos por um minuto. O que é o capital que se apropria de 16 ou 18 horas diárias de trabalho de uma criança comparado ao capital que, dois séculos depois, se apropria dos processos mais íntimos da formação da subjetividade de outra criança, durante as 24 horas do dia?“

“O que é o capital que não respeita o esgotamento das forças físicas do corpo humano comparado ao capital que viola todas as fronteiras da privacidade e da integridade psíquica de uma pessoa?”

“O que é o capital que se apossa da mais-valia do trabalhador comparado ao capital que, além da mais valia do olhar, rouba os segredos sobre os medos, suas ansiedades e as paixões daqueles a quem chama cinicamente de ‘usuários’?”

“O que é o capital que extenua até a alma seus operários comparado ao capital que, além de explorar o trabalho, transforma o tempo de lazer em formas não declaradas de exploração e de ainda mais trabalho?”

“O que é o capital que rouba a força muscular de uma criança comparado ao capital que lhe rouba, além da infância, a imaginação que ela poderia ter?”

“O que é o capital que manda a polícia reprimir greves comparado ao capital que se instila no desejo de garotos e garotas, ainda na primeira infância, de matar, lá dentro, qualquer centelha de rebeldia futura?”

“As democracias ainda consideram os meios de comunicação meros distribuidores de ‘conteúdos’, e não meios de produção que empregam o olhar para a fabricação da imagem da mercadoria. Sofremos de um déficit de paradigma teórico.”

“As autoridades reguladoras ainda não assimilaram a verdade evidente de que os meios de comunicação, mais do que um dispositivo de entrega de informação e divertimento, são meio de produção de valor de gozo, que exploram o trabalho do olhar sem remunerar ninguém por isso.”

“Há outras coisas das quais as autoridades nem desconfiam. Elas ainda não compreenderam devidamente que, quando as tecnologias rastreiam e extraem dados dos usuários – como fazem todos os serviços de streaming e todos os sites disponíveis na internet -, engrenagens ocultas corrosivas entram em ação.”

“Os dados coletados gratuitamente pelos conglomerados contêm chaves do desejo inconsciente, de tal maneira que, como já se tornou comum dizer, os algoritmos dispõem de mais conhecimento sobre as predileções dos sujeitos do que os próprios sujeitos.”

“Os dados fornecem uma espécie de mapeamento das pulsões, dos impulsos, dos instintos, dos reflexos, dos ritmos e dos circuitos neuronais de cada indivíduo. Os algoritmos do capital conhecem a fundo os códigos mais íntimos do desejo inconsciente de cada indivíduo, mas esse mesmo indivíduo não conhece nada sobe os códigos secretos dos algoritmos.”

Em resumo: ou os governos estabelecem limites legais para esse modo de produção, ou seguirão cada vez mais limitados.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/638981-sequestro-do-imaginario-artigo-de-frei-betto

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O risco do cansaço cívico

Por ADHEMAR BAHADIAN*

Desfile Cívico no Distrito de Triunfo

Neste feriadão aproveitei para reler alguns textos de Celso Furtado. Não me surpreendi com a pertinência e a acuidade de um dos maiores pensadores a influenciar a visão de Brasil de minha geração. "A Formação Econômica do Brasil”, que li aos dezoito anos, me abriu a vocação de servidor do Estado brasileiro.

Chamo Celso Furtado de pensador e não de economista. Celso foi sobretudo um humanista no sentido amplo da palavra e a cada ano sua visão de Brasil ultrapassa os limites temporais em que atuou como membro do Executivo brasileiro. Na Economia e na Cultura.

A releitura dos textos me fez olhar com grande tristeza para os anos do período autoritário iniciado em 1964, quando a intolerância ao contraditório expulsou deste país intelectuais e políticos como Furtado e JK, diplomatas como Antonio Houaiss, homens que inegavelmente instilaram no pensamento político brasileiro a dimensão inegável de nosso país e de seu destino evidente de ser um dos maiores países democráticos a serviço da paz e do desenvolvimento econômico.

Na esteira desta nostalgia, me vieram à lembrança alguns momentos de exaltação cívica, alguns de que participei, outros que acompanhei à distância, todos porém sempre aguardados e bem-vindos por serem evidências de uma resistência à prepotência e à supressão dos direitos fundamentais do cidadão e do Estado Democrático de Direito.

A clareza com que Celso Furtado analisa as consequências do modelo econômico da ditadura para o futuro brasileiro - futuro que hoje é o nosso presente - me fez deplorar que a rigidez ideológica das autoridades de então nos tenha privado da contribuição de Celso Furtado, àquela altura já apontava as distorções a advir de um remendo indevidamente chamado de “milagre brasileiro”.

De melancolia em melancolia, não me surpreendeu igualmente o uso abusivo da palavra milagre no contexto da situação das contas públicas, da dívida externa e da inflação que marcou o fim do regime autoritário a nos deixar por muitos anos com a soberania política cortada.

E a palavra milagre parece soar como advertência para os tempos que correm, onde decididamente se incluiu a religião com se ideologia fosse, a colocar em risco um dos direitos mais privados do cidadão.
Sem procurar assinalar os diversos pontos para os quais a análise de Furtado merece reflexão contemporânea, assinalaria basicamente a questão da desigualdade social sobre a qual ele tece observações que poderiam ser extraídas dos livros mais contemporâneos.

A referência imediata é Piketti, cujos trabalhos sobre a desigualdade social vem sendo o maior contraponto ao neoliberalismo, raiz da maior transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos.
E aqui chego à razão de ter escolhido o pensamento de Furtado como pano de fundo para este artigo de hoje. A visão prospectiva com que nos brinda Furtado deveria nos alertar para os riscos que correremos se permanecermos nesta dicotomia, nessa incapacidade de perceber que a solução para os problemas econômicos e sociais do Brasil - mas não apenas dele - não se encontra em fórmulas de um passado que não deu certo e sim na compreensão de que os tempos de hoje exigem soluções solidárias.

Durante trinta anos, o neoliberalismo, e sua parceira globalização, procuraram esvaziar o desenvolvimento econômico de seu componente mais sensível, o desenvolvimento humano. Desde os anos 80, governos de países ocidentais acreditaram que apenas com a remoção das proteções ao emprego, aos sindicatos, das leis anticompetição se poderia chegar ao crescimento do "bolo", cuja hipotética divisão beneficiaria a todos.

O resultado da eliminação dos controles governamentais liberou o espírito do lucro a qualquer preço e levou a fenômenos políticos hoje estudados como anomalias em crescente expansão.
Obviamente, a maior preocupação ocorre com o trumpismo a se transformar num quase culto à regressão política de mistura com uma efervescência religiosa muito pouco cristã.

No Brasil, há quem se esqueça de que o neoliberalismo parece ser uma nova forma de ópio a anestesiar nosso civismo em prol de um Brasil finalmente liberto e definitivamente sintonizado com a justiça social que perseguimos desde sempre.

Mais do que nunca, o divisionismo político chega às raias do cinismo e do deboche a impor uma reflexão sobre o que queremos realmente fazer deste país. Somos até hoje possuidores de recursos naturais e minerais que nos permitem um salto tecnológico para um futuro de prosperidade. O atraso não é nossa herança. Nossos erros do passado são talvez parte essencial para neles não reincidir por ódio ou ignorância.

Enquanto tivermos nossa Constituição de 1988 como parâmetro civilizacional, enquanto tivermos o voto como manifestação de nossa soberania, enquanto aceitarmos o que é de Deus sem confundir com o que é de Cesar, não há nada que nos possa desviar de nosso destino de povo amante da paz, solidário com o futuro de nossos semelhantes sejam quais forem nossas diferenças de cor, sexo e religião.
A felicidade é uma construção coletiva.

* Embaixador aposentado

Fonte: https://www.jb.com.br/brasil/opiniao/artigos/2024/04/1049681-o-risco-do-cansaco-civico.html 

‘Existe uma disputa pelo modelo de ordem pós-neoliberal’

Marcelo Roubicek

Homem de boné segura faixa em que está escrito "CAPITALISM KILLS". Atrás dele, há fogo na rua. FOTO: Hannibal Hanschke/REUTERS - 07.JUL.2017Protesto contra o G20 em Hamburgo, na Alemanha

O ‘Nexo’ conversa com Marcos Nobre, presidente do novo Centro para Imaginação Crítica, do Cebrap, sobre as alternativas que emergem da crise do neoliberalismo


O neoliberalismo, enquanto ordem global, está em crise. E o que se desenha no mundo inteiro — com particularidades em cada local — é uma disputa pelo que vem depois. Em outro momento, embate similar resultou em guerra, algo que é preciso evitar.

É o que disse ao Nexo Marcos Nobre, professor titular de filosofia política da Unicamp e presidente do CCI (Center for Critical Imagination, ou Centro para Imaginação Crítica), lançado no âmbito do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) na sexta-feira (26).

Com apoio da organização Open Society Foundations, o novo centro de pesquisa se propõe a discutir a crise do neoliberalismo, as diferentes crises que derivam dela e os caminhos alternativos. Também pretende trazer a discussão para o debate público brasileiro, considerando também o contexto do país.

O Nexo conversou com Nobre sobre o momento do neoliberalismo e sobre os cenários que se desenham na disputa sucessória da ordem global.

Como o sr. define ‘neoliberalismo’?

MARCOS NOBRE ‘Neoliberalismo’ é um termo em disputa. Portanto, a compreensão do que seja neoliberalismo muda ao longo do tempo. Por exemplo, a noção de neoliberalismo, tal como foi empregada nos anos 1990, 2000 e até mais ou menos meados da década de 2010, foi majoritariamente no sentido de um processo de economicização das relações sociais no seu todo. É como se uma determinada concepção do que deva ser a economia invadisse todas as esferas da vida social.

A partir de meados da década de 2010, passa a ser predominante uma concepção — não negando o caráter de economicização — de incluir também o neoliberalismo como um projeto de organização da sociedade num sentido mais amplo, o que envolve uma determinada concepção do que seja a moral e o bom comportamento dos sujeitos em uma sociedade. A partir daí, você começa a ter uma concepção do neoliberalismo que é muito mais ampla do que só um imperialismo da economia sobre o conjunto da sociedade.

A ordem neoliberal não é só uma ordem econômica que a partir da economia invade toda a sociedade. Ela é uma ordem econômica, moral, política, social… É realmente uma ordem.

O termo ‘neoliberalismo’ é muito usado no debate político. Por exemplo, uma parte da esquerda diz que o atual governo Lula encampou premissas neoliberais na sua condução da política econômica. É o mesmo sentido da palavra?

MARCOS NOBRE É preciso fazer uma distinção. Uma coisa é usar os termos ‘neoliberal’ e ‘neoliberalismo’ na disputa política, como um elemento de caracterização do adversário. E outra coisa é o neoliberalismo como ordem global.

É importante essa distinção, porque, por exemplo, não há a menor dúvida de que o PT, ao chegar ao poder federal em 2003, se colocou contra [o neoliberalismo] e se apresentou desta maneira. Esse é o sentido político, narrativo da palavra ‘neoliberal’.

Mas há um sentido no qual não há como não ser neoliberal. Porque a ordem global é neoliberal. Não tem como um país, dentro de uma ordem global neoliberal, não ser neoliberal. O que dá para fazer é, dentro da ordem global neoliberal, resistir e tentar encontrar a margem de ação possível para ir contra o princípio dessa própria ordem.

Por que o sr. traça a mudança da concepção do neoliberalismo a meados da década de 2010?

MARCOS NOBRE A crise de 2008 é o marco geral do início do declínio do neoliberalismo. Uma crise como a de 2008 é um sinal de que essa maneira de organizar o capitalismo entrou em crise. Afinal, ela produziu uma crise global de efeitos sociais devastadores. Nenhuma ordem social sobrevive a uma crise dessas dimensões sem algum tipo de transformação.

Nos momentos em que o capitalismo entra em crise, é que ele se mostra claramente. É a crise que revela as estruturas do próprio capitalismo.

As lutas sociais que se instalam na década de 2010 são lutas sociais sobre o que será o pós-neoliberalismo. Então você tem as revoltas de 2011 até 2013. Depois, você tem, na segunda metade [da década de 2010], a eleição de líderes que na época eram chamados de populistas. Tudo isso é a crise do neoliberalismo.

Quando na segunda metade da década de 2010 há todos esses fenômenos autoritários emergindo, inclusive em democracias consolidadas, é que fica claro que aquele projeto lá no início, há 40 anos, não era apenas um projeto de liberalização da economia para, a partir da liberalização da economia, alcançar um imperialismo dessa lógica econômica sobre o restante da sociedade. Não. Era algo muito mais amplo, com alianças políticas e coalizões sociais muito mais amplas do que simplesmente uma coalizão econômica.

É possível comparar com a crise de 1929, que também produziu uma grande crise no capitalismo?

MARCOS NOBRE A crise de 1929 foi a crise do liberalismo, enquanto a crise de 2008 foi a crise do neoliberalismo. Esse paralelo é importante. Da crise do liberalismo no final da década de 1920 veio o surgimento de vários modelos de organização social — nazismo, fascismo, o New Deal nos EUA, o nacional-desenvolvimento no Brasil, e havia ainda naquele momento a alternativa da União Soviética.

Na situação em que nos encontramos [agora], também já ficou claro — mesmo para as elites que acumularam poder e que estão estabelecidas na ordem neoliberal — que não é mais possível sustentar essa ordem. Não é algo só acadêmico, é algo prático.

Já estão acontecendo movimentos de transformação interna dessa ordem neoliberal. Mas isso está em disputa. Ou seja, uma ordem pós-neoliberal tem alternativas, assim como havia alternativas na década de 1930.

Quais são as principais alternativas?

MARCOS NOBRE Hoje parece que temos quatro em disputa. Temos a alternativa das autocracias; a alternativa do regime de partido único; a saída do novo progressismo dentro dos países que ainda são democráticos; e a saída autoritária dentro dos países que ainda são democráticos.

Não são as mesmas possibilidades da década de 1930, mas elas estão aí. A enorme diferença é que não temos diante de nós — pelo menos neste momento — um conflito de escala global certo, como foi a Segunda Guerra Mundial, que foi uma solução bélica para essas alternativas.

A tentativa hoje é de transitar da crise do neoliberalismo para uma nova ordem, sem que sempre se passe por um conflito de natureza global. É isso que está em jogo hoje. E essa saída pode ser tanto uma saída autoritária como uma saída democrática.

Não temos ainda uma vitória definitiva de alguns modelos — porque é claro que não vamos ter um modelo só, assim como na década de 1930 havia modelos diferentes. Não sabemos qual vai ser o resultado, mas esperamos que não seja necessária uma guerra global para resolver essa disputa.

O modelo para superação do neoliberalismo é necessariamente capitalista? Ou há espaço para alternativas?

MARCOS NOBRE Não está no horizonte uma alternativa não-capitalista de superação da crise do neoliberismo. A não ser, claro, para as pessoas que consideram a China como uma alternativa não-capitalista. Mas não acho que seja o caso. Pode ser que surja algo nos próximos anos. Mas hoje não é possível enxergar isso.

O sr. destacou que duas das alternativas se dão dentro dos países democráticos. Por que esse destaque?

MARCOS NOBRE É aquela velha discussão sobre a tal da terceira via. A terceira via nas opções como estão configuradas hoje simplesmente não existe. Dentro das democracias consolidadas, você tem uma disputa entre um bloco que eu chamo de novo progressismo, que é um herdeiro do neoliberalismo progressista.

E você tem um outro bloco que é o que chamo de direita sem medo. É a parte da direita que não tem medo de se aliar à extrema direita. Essa é a disputa hoje nos países ainda democráticos.

Esses campos não têm nada em comum do ponto de vista político. É uma divisão política, não uma polarização, porque são dois projetos de sociedade pós-neoliberal que não podem ser compatibilizados.

Mas eles têm em comum que partem da herança do neoliberalismo. O que os distingue é o que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período de 40 anos de neoliberalismo. Essa é a disputa.

Como essa crise se espelha no cenário político brasileiro atual?

MARCOS NOBRE Nós temos essa divisão entre um novo progressismo e a direita sem medo aqui no Brasil. Temos, de um lado, o governo Lula. E, do outro, o bolsonarismo. São exemplos claros, para mim, dessa divisão global. O Brasil não escapa disso: existem dois projetos do que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período neoliberal.

O que é imaginação crítica e por que ela é uma ferramenta para este momento de crise do neoliberalismo?

MARCOS NOBRE A imaginação crítica quer dizer muitas coisas. Porque a imaginação crítica não deve ser limitada previamente por uma descrição do que seja.

Existe um lado que é o de mapear alternativas pós-neoliberais que não estão limitadas a essa divisão entre o novo progressismo e a direita sem medo. Precisamos entender o resultado global. É entender o que tem de proposta para paradigma pós-neoliberal no debate atual. E poder apresentar para a sociedade como uma síntese daquilo que está sendo imaginado hoje como pós-neoliberalismo. Essa é outra maneira de entender imaginação [crítica].

Outra maneira é: se são as tendências globais de reorganização, como o Brasil se posiciona nesse contexto? A gente não pode só olhar as tendências globais, e também não pode olhar só o local. Temos que olhar as duas coisas. E nesse momento fica claro que o Brasil não está sozinho. Ele faz parte de um grupo de países que se inserem nessa ordem internacional de maneira subordinada. Precisamos entender a posição do Brasil nesse sistema global.

Precisamos também entender nossa própria história e como nos relacionamos com o neoliberalismo. Nesse sentido, nossa imaginação é a seguinte: o que foi o período neoliberal no Brasil? O que ele produziu? Quais as tendências que podemos ver no Brasil? Isso exige imaginação, porque temos que olhar para trás, na nossa história, de uma maneira diferente do que olhamos até hoje.

Quais são essas particularidades brasileiras que podem interferir no exercício de pensar alternativas ao neoliberalismo?

MARCOS NOBRE Um dos pontos que dividem o novo progressismo e a direita sem medo é a ideia de que é necessário fazer uma transição ecológica, o que começa por uma transição energética. Isso falando no sentido global.

No caso brasileiro, pensemos no caso do petróleo, da exploração mineral brasileira, o que vem sendo chamado de neo extrativismo. Para o novo progressismo que está no poder com o governo Lula, se ele abre mão de explorar petróleo e minérios, ele perde uma capacidade importante de produzir políticas de combate à pobreza e de combate às desigualdades, porque o Estado brasileiro está numa situação fiscal muito complicada, em termos de capacidade de investimento.

Então há uma situação em que o novo progressismo está no poder, a sua agenda necessariamente tem de ser a agenda de uma transição ecológica, mas ao mesmo tempo ele não pode abandonar o neoextrativismo se quiser continuar como a força política dominante. É uma armadilha.

E o Brasil não está sozinho. Vários países do sul global estão na mesma armadilha: para defender o projeto do novo progressismo em sentido nacional, você, ao mesmo tempo, tem que negar alguns elementos centrais do novo progressismo no seu sentido global, no sentido das suas articulações internacionais. Então existe um descasamento, um descompasso entre a política nacional e a geopolítica, entre o que é o novo progressismo num contexto nacional e o que é o novo progressismo em sentido global.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2024/04/27/periodo-neoliberal-como-superar-o-neoliberalismo-entrevista-marcos-nobre?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240429&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240429+CID_823384e77c90b6531402c25929b6ecc4&utm_source=Email%20CM&utm_term=Existe%20uma%20disputa%20pelo%20modelo%20de%20ordem%20ps-neoliberal

Crime, violência e suas possíveis soluções

 Por Angélica SilveiraCorreio do Povo entrevista Marcos Rolim

Correio do Povo entrevista o doutor em Sociologia e professor universitário, Marcos Rolim

Marcos Rolim é doutor em Sociologia e professor universitário. Ele também é membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rolim concluiu seus cursos de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também realizou seu pós-doutoramento. Ele é especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Rolim também é jornalista graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ele é professor do curso de mestrado em Direitos Humanos da UniRitter, membro fundador do Instituto Cidade Segura, integrante do conselho administrativo da ONG Artigo 19 e ainda membro da Assembléia Brasil da Anistia Internacional. Rolim é autor de livros, entre os quais estão “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no século XXI”, publicado pela editora Zahar, o “Bukying o pesadelo da Escola”, publicado pela Dom Quixote e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema”, publicado pela Appris.

Em uma fala sua, durante o Connex, o senhor se mostrou contrário ao fim das saídas temporárias dos presos. Por quê?

Porque as saídas temporárias beneficiam apenas os presos do regime semiaberto, ou seja, aqueles que já trabalham ou estudam fora da prisão e que se recolhem à noite no estabelecimento. O benefício permite que, em algumas datas, como o Natal, os presos desse regime passem alguns dias com suas famílias. Quando o Congresso acaba com esse benefício, vende a ideia de que está reduzindo o risco de fugas, sem que as pessoas saibam que o próprio regime semiaberto já envolve a presença do preso no convívio social e é baseado na confiança. O pior, entretanto, é que o projeto aprovado reintroduz a necessidade dos laudos técnicos para a progressão de regime, o que irá fazer com que o tempo de encarceramento em regime fechado aumente para todos os presos, porque não há técnicos suficientes para elaborar os laudos e a superlotação impede que os presos sejam classificados e suas penas individualizadas.

Devido à subnotificação de crimes, como chegar aos verdadeiros índices de criminalidade?

A maioria das vítimas não registra ocorrências criminais, o que ocorre por muitos motivos, sendo que, quanto menor for a confiança da população nas polícias, maiores serão as taxas de subnotificação. Por essa razão, registros policiais não devem ser usados para diagnóstico e para acompanhamento das tendências criminais, porque eles refletem apenas parte do problema. Por isso, muitos países lançam mão de pesquisas de vitimização, um recurso que permite estimar com muito mais precisão o que, de fato, está ocorrendo.

Como prevenir para que a violência ocorra?

Há muitas formas de violência e seria preciso tratar cada uma delas para definir medidas correspondentes de prevenção. Toda supressão arbitrária de direito é violência, embora situações como a fome, por exemplo, não costumam ser classificadas como violentas. Se estamos pensando na violência física letal, por exemplo, é preciso saber o perfil dos autores e das vítimas, as circunstâncias, os locais e os horários onde os fatos se concentram para que seja possível, por exemplo, realizar o policiamento de “pontos quentes” (hot spots), uma das estratégias mais exitosas de policiamento preventivo no mundo. Se lidamos com homicídios correlacionados ao abuso de álcool, podemos estabelecer regras mais restritivas para o consumo de bebidas alcoólicas, como foi o caso da experiência preventiva de Diadema (SP); se lidamos com homicídios provocados por disputas entre gangues juvenis, as estratégias serão outras. Aqui, como em todos os demais problemas de segurança, não há remédios genéricos e quem imaginar que há uma solução simples é porque não sabe sobre o que está falando.

Para o senhor como alguém que caiu no mundo do crime pode verdadeiramente se recuperar?

50 anos de pesquisas criminológicas em todo o mundo demonstraram que sim, sem qualquer dúvida. As evidências disponíveis comprovam que a grande maioria das pessoas que se envolveram com o crime desistem desse caminho diante de determinadas situações ou oportunidades como maior escolarização, emprego formal, casamento, conversão religiosa, etc. Então, não se trata de opinião, mas de uma dinâmica conhecida como desistência do crime que é muito conhecida em todo o mundo.

O que seria uma repressão mais qualificada?

Chamamos de repressão qualificada aquela que atua com foco e a partir de um planejamento a respeito dos objetivos a serem alcançados. Se a polícia, após cuidadoso trabalho de inteligência, efetuar a prisão de um matador, isso irá impedir que muitos homicídios ocorram e protegerá também a vida dos policiais que hoje são expostos a riscos desnecessários por conta de um discurso a favor do “confronto”. Se a polícia passa o tempo todo prendendo jovens pobres que sobrevivem no varejo do tráfico, essas prisões não causam qualquer prejuízo ao modelo de negócio, porque essa mão de obra é rapidamente substituída. Tais prisões, entretanto, terminam por recrutar jovens para as facções criminais que atuam nas prisões. O encarceramento em massa produzido pela política de “Guerra contra as drogas”, aliás, só favorece o poder das facções e amplia os termos do problema que se pretendia enfrentar. As apreensões de drogas ilegais, por seu turno, estão muito provavelmente, produzindo migração para roubos – forma de resgatar os compromissos com os fornecedores.

Falando em prevenção, qual a sua opinião sobre o Proerd da Brigada Militar?

O Proerd possui a melhor das intenções e mobiliza policiais que se dedicam à prevenção voluntariamente. O problema do Proerd é que todas as pesquisas já realizadas no Brasil a respeito dos seus efeitos mostram que ele não funciona. Ou seja, não se verifica redução de violência ou de consumo de drogas entre os estudantes que participam do Proerd quando comparados aos grupos de controle. Então, trata-se de um exemplo impressionante de um programa que existe há mais de 25 anos em todo o Brasil e que não se sustenta com base em evidências. Mais uma vez, não se trata de opinião, mas de fato.

Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/di%C3%A1logos/crime-viol%C3%AAncia-e-suas-poss%C3%ADveis-solu%C3%A7%C3%B5es-1.1487502

Ailton Krenak, o filósofo da terra

 por


Mergulho nas ideias do pensador indígena, em possível diálogo com Heidegger e Butler. Eurocentrismo, diz, gesta a humanidade zumbi, sem memória e identidade. A perda do nós plural e criativo é o fim do mundo. E o ancestral, antídoto

Imagem: Mavi Morais (@moraismavi)/Elástica
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I. Eduardo Viveiros de Castro, no posfácio de Ideias para adiar o fim do mundo, do intelectual e ativista indígena Ailton Krenak, contextualiza as/os leitoras/es do livro que se trata, assim como faz Davi Kopenawa e Daniel Munduruku, de uma reflexão em busca da história da descoberta do Brasil pelos índios. Quer dizer, uma contra-história e, também, uma contra-antropologia atravessa o ensejo de Krenak. Seu objeto é a desnaturalização da história única da humanidade, aquela mesma da cultura dominante do Estado-nação moderno que se voltou belicosamente contra as populações indígenas. Krenak é propositor, segundo Viveiros de Castro, de perguntas inquietante: somos uma humanidade? Uma humanidade única e não diversa? Uma humanidade e não uma rede “inextrincável” e “interdependente” de humanos e não humanos? Quem seria esse “nós” no questionamento krenakiano? “Nós” relativo a quem? Ao quê? Uma pergunta sobre identidade? Sobre o quem somos? Estamos ante, pois, de questionamentos existenciais, em que esse “nós” deixa de se portar unívoco e unidimensional, voltando-se para um nós pluralista, móvel, criativo e variável – diferencial. Para os Krenak isso incluiria a terra, as pedras, as montanhas, os rios, os seres em geral. Esses são alguns dos questionamentos, ou ideias propositivas, para se lançar, então, o adiamento do fim do mundo.

Talvez tenhamos perdido uma percepção um tanto quanto elementar em termos de existência humana: nos esquecemos que coabitamos o mundo, que o compartilhamos com outras pessoas, sendo ele, pois, a nossa grande morada. Esse questionamento, contudo, não passou desapercebido na história da filosofia ocidental, dado que já tratado por Martin Heidegger. Também ele se ocupou de refletir sobre os modos (im)possíveis de sermos e de estarmos na terra, logo, coabitando-a. O habitar encontra-se, de uma maneira ou de outra, implícito em todas as dimensões da existência humana, ao ponto desse gesto se confundir com o próprio viver. O modo como vivemos decorre de uma extensão, ou de uma conservação, do nosso repertório de crenças, de valores e de intenções que, ao verterem-se enquanto escolhas, se concretizam no habitar. Habitar incorre, nesse sentido, na própria existência, na própria maneira como decidimos ser. Como podemos, enfim, coabitar o mundo? A questão colocada pelo filósofo alemão, conhecida através da sua influente conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, nos servirá, então, como uma espécie de horizonte dialogal para refletirmos os alcances do pensamento do indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro Ailton Alves de Oliveira Krenak.

II. As relações entre construir e habitar se imbricam na explicação de Heidegger. São dialogais e retroalimentares. Isso porque o objetivo da construção é o habitar, contudo, é na própria ação de habitar que o construir encontra o seu sentido. Assim, o desempenho de uma atividade implica habitar. A reflexão de Heidegger se inicia com a própria pergunta: “O que é o habitar”? Não se trata da simples relação com o morar, com o plano utilitário das edificações. Entendendo a linguagem não apenas como veículo, mas como força criadora do mundo, recorre ao emprego do termo no antigo alto-alemão para situar o significado de construir: baun. A descoberta do filósofo é de que, em sua origem, construir significava, justamente, habitar. A vocábulo baun não se referia, pois, apenas a ação de habitar, mas englobava o permanecer, o morar, que indicaria um aceno de “(…) como devemos pensar o habitar que aí se nomeia” (HEIDEGGER, 2012, p. 126). De todo modo, não se encerra, aí, a definição do habitar. Isso porque baun, o construir, derivou do verbo bauen, que, também, guarda relação direta com aquele, mesmo que, naquela atualidade, tenha deixado de implicar nessa significação. Contudo, Heidegger recobra o seu esteio original: “que amplitude alcança o vigor essencial do habitar” (HEIDEGGER, 2012, p. 127)? É interessante o movimento percorrido por ele, dado que essa percepção o leva a entender que bauen seria a mesma expressão alemã para bin, que não seria outra coisa que o verbo ser conjugado em eu sou e tu és. Se ser é habitar, logo, eu habito e tu habitas. Havendo, dessa maneira, a abertura para a coabitação. Essa disposição resultaria, nessa direção, nos modos de existência que se dão através do habitar, o que implicaria, no limite, dizer que o “(…) o homem é a medida que habita (HEIDEGGER, 2012, p. 127).

Byung-Chul Han disse que Heidegger teria sido o último defensor da ordem terrena (2018). Porém, ele não foi o último. O filósofo alemão encontra contemporâneos na atualidade, sendo um deles, além do próprio Han, o indígena Ailton Krenak. Heidegger, que via na linguagem modos de instituição de mundos, se ocupou com esmero ao estudo da linguagem. Por isso se faz necessário explicar o significado de Krenak. Krenak seriam dois termos, adverte Ailton: kre, uma partícula que significa cabeça, e o complemento nak, que seria justamente terra. Vejamos o alcance da filosofia da terra do escritor indígena, que alcança o diálogo proposto por Heidegger: “Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2012, p. 48). Ailton Krenak deixa em evidência em seus escritos que a terra, conforme concebida por seu povo, não seria, pois, um mero sítio, como se designa hoje em dia, avançando para aquilo que o filósofo alemão também se preocupava: a terra como esse lugar que todos nós compartilhamos. Heidegger e Krenak, enquanto contemporâneos, estão preocupados com os modos de “desraigamento” no mundo terreno, do próprio planeta enquanto moradia.

Podemos expandir um pouco mais a reflexão heideggeriana, colocando-a em diálogo com a filosofia krenakiana, se recobrarmos que há dois significados subjacentes e complementares em bauen (construir): proteger/cultivar e edificar. O filósofo da floresta se empenha na recuperação desses significados originais de habitar, o que o leva ao seu entendimento de que bauen é permanecer, bem como um de-morar-se. Além disso, e recobrando o gótico wunian, se poderia especificar ainda mais o âmbito dessa experiência, quer dizer, ser e permanecer em paz. Paz, ainda explorando o potencial da linguagem conformadora do mundo, seria o mesmo que “livre”, que de acordo com a sua a origem denotaria resguardado, que, no limite, seria a devolução “(…) de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). Resguardar mantém relação com libertar-se: “(…) libertar para a paz de um abrigo” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). A discussões propostas pela filosofia de Martin Heidegger nos leva, potencializada a partir das reflexões do pensador indígena Ailton Krenak, que o traço fundamental do coabitar seria, não outro, o estado de permanecer pacificado envolto na liberdade de um pertencimento, resguardando as coisas em sua autenticidade possível.

II. A evidência de que viveríamos o antropoceno, para Ailton Krenak, seria motivo suficiente para a ação, para um reencontro com o mundo, para um despertar para a coabitação pacífica da terra, para a sua preservação e de seus viventes. Em sua opinião, o antropoceno, considerado um era geológica caracterizada pelos impactos da exploração humana sobre o planeta, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. A grande morada é a preocupação dos dois filósofos, pois como explica Ailton Krenak: o planeta terra, de onde se exaure as fontes de vida, é o que possibilita ao seu povo o sentimento de estar em casa, de que havia “uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020, p. 47). Contudo, a escritor indígena pensa que essa disposição diante do mundo, que já vinha sendo assolada pela noção eurocêntrica de humanidade, teria entrado num estado alarmantemente expansivo devido à exclusão de toda organização de vida que estivesse fora dos domínios do capitalismo consumista. Aqui entra, então, a sua filosofia da terra, ou do enraizamento, que se lança ao perspectivismo e contrário à unidimensionalidade do mundo. O povo Krenak, esclarece Ailton, foram animados justamente pelo coabitar o mundo de maneira diversa, pluralista, sendo também partes constitutivas do próprio planeta, não percebido, pois, como objeto a ser explorado, “(…) em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres” (KRENAK, 2020, p. 27).

Os Krenak pertencem, assim sendo, à ordem da terra, estando, então, em movimento interacional, um estar submetido em modo atento e aberto em escuta ao nomos da terra. Nomos é um conceito que deriva da mitologia grega, podendo ser interessante junto às reflexões de Ailton Krenak. Falar em nomos da terra representaria o daemon das leis, estatutos e normas. Krenak e Heidegger se movem, assim sendo, para a sua ordem mais elementar, isto é, a existência na terra. Também o filósofo alemão, em seu texto Construir, habitar, pensar, se move para a factualidade e para o pluralismo terreno-imanentista, percebendo a vida como uma quadratura terra e céu, mortal e divino. Os dois autores sabem que o ser humano é mortal, não agente. A responsabilidade diante do habitar reside nisto: poderia não haver novas natalidades em muitos sentidos. Também ouvem os seus Deuses, que mais do que entidades apartadas do mundo – nele se encrusta e enuncia sentidos passíveis de escuta. Naquele lugar, tanto na floresta negra quanto ao longo do Rio Doce/MG, ele tem o seu lugar num recanto encantado e com sentidos, sendo a condição para isso o saber habitar, o que implicaria o saber ser com outrem no mundo.

A terra, de acordo com Ailton Krenak, deve ser entendida como um organismo vivo, sendo ela, não apenas para seu povo, considerada uma mãe e provedora, mas em um nível que vai além da substância ou uma provedora de recursos, mas “(…) também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência” (KRENAK, 2020, p. 43). Ou seja, o mundo terreno, para os Krenak, oferece a oportunidade de um habitar que implica mais do que um conhecimento ativo sobre o mundo, mas dele recebendo aprendizados, o que os tornam intérpretes da natureza, posto que ela lhe oferece sentidos e modos pluralistas de ser. O filósofo indígena, contudo, percebe o progressivo esquecimento da terra e do habitar, onde se verificaria todo um afastamento dos lugares de origem. Obviamente que não se trata, aqui, de alguma explicação que poderia levar ao entendimento da atualização de uma disputa entre modos de vida sedentário e nômade. O que Ailton Krenak busca refletir é sobre a perda dos sentidos de deslocamento na atualidade tecnológica, questão para ele importante por afastar as pessoas do mundo: “Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para o outro, que as comodidades tornam fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos” (KRENAK, 2020, p. 43). Aqui entramos no âmago do apontamento de Ailton Krenak sobre a alienação do mundo, sobre o desenraizamento descomprometido com relação à existência terrena, do esquecimento da facticidade do ser no mundo, que se opera no habitar e na duração. A sensação percebida pelo filósofo indígena é de que as pessoas, na atualidade, estariam vivendo, paralelamente, em “um cosmos vazio de sentido” e “desresponsabilizados de uma que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas” (KRENAK, 2020, p. 44).

Krenak acredita, em todo caso, que estaríamos vivendo em uma espécie de situação de cegueira coletiva, isto é, impossibilitados de nos situarmos junto à facticidade terrena, que invoca sentidos pluralistas de existência e, de modo correlato, imprime gravitação existencial. Essa cegueira avançaria pelo âmbito individual e social, posto que de a unidimensionalidade da noção de humanidade eurocêntrica estaria em risco não somente o habitar, mas, sobretudo, o coabitar – condição para a “cooperação dos povos, não para salvar os outros, mas salvar a nós mesmos” (KRENAK, 2020, p. 44). Para tanto a necessidade de um despertar diante da perda de sentidos, da perda dos sentidos de coabitação do mundo, não sendo este um problema apenas dos povos originários. A perda da possibilidade de imprimir sentidos alternativos e pluralistas ao mundo, e com isso invocar novas possibilidades de imaginação social e política, que pelo encontro a partir da coabitação e da cooperação instituem acontecimento geradores de novidade e de diferença, deveria se voltar para o recontro com a ordem terrena. Esse gesto se daria, de qualquer maneira, em função do caráter totalizante da modernidade eurocêntrica e da dinâmica do capitalismo, elementos que conjugados estão levando à “(…) iminência de a terra não suportar nossa demanda” (KRENAK, 2020, p. 45). Ailton Krenak é sabedor, de toda maneira, da unidimensionalidade artificial elaborada pelo capitalismo, especialmente a partir da noção de mercadoria, que por meio das suas fantasmagorias fetichistas impedem a visão sobre a terra, ou ambiente planetário, para além da reificação.

III. A vida humana e terrena, agora não somente entre os povos originários, enfrentaria uma tragédia que atingiria a todos nós. O pensador indígena percebe apenas movimentos paliativos, muito em função de decisões políticas regionalizadas e localizadas, que abririam, em sua perspectiva, algum “espaços de segurança temporária” para as comunidades em geral. Mas ainda avançando sobre a reificação do mundo pelo capitalismo hegemônico, que seria algo bastante diverso da observância da sua tangencialidade, o que presenciamos, desenvolve Ailton Krenak, é o “esvaziamento sentido do compartilhamento dos espaços”, quer dizer, os próprios sentidos de coabitar o mundo. O que se vê, na atualidade, são medidas paliativas ou ações orientadas pela razão cínica neoliberal, que “(…) depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida” (KRENAK, 2020, p. 46). O que se deve ter em mente é que o voltar-se para terra gera, correlatamente, gravitação e pluralismo junto aos modos de existência, dado que na ordem planetária há o acidental, o desviante, o sinuoso e as multiplicidades – disso a possibilidade de oferecer sentidos ao mundo, pois passamos a ter o entendimento em modo vetorizado ante à existência em si, sem o movimento sujeito/objeto, fazendo do habitar uma forma de afirmação da vida pela possibilidade da saída do tempo único, o qual o capitalismo presentista faz parecer como modo padrão, ou absoluto, de existir.

Além disso, a suspensão dos modos reificados de habitação do mundo, amparados pela lógica do consumo da vida planetária, dariam condições de possibilidade para a produção de espaços e para a coabitação. Ora, o espaço único, a unidimensionalidade proposta pelo capitalismo, não oferecia outra coisa, ainda mais em seu nível neoliberal, do que a competição por espaços amparados na lógica na coabitação e da partilha, mas da exploração e da individualização não (inter)colaboracionista. Ora, a subjetividade neoliberal não abarca o dissenso e o congregar – não reparte e não partilha. Está focada na unidimensionalidade, na medida em que, em seu modo de conceber o mundo, só há espaço para o seu Eu, abrindo, em último modo, todo um processo de expulsão do outro. Esse processo é assimilado por Krenak através dos projetos de exaustão da natureza.

IV. Essa discussão pode encaminhar, com forma de potencializarmos a reflexão de Ailton Krenak, a partir das discussões realizadas entre Judith Butler (2015, p. 75-77) e Hannah Arendt. De acordo com a filósofa estadunidense, quando Arendt refletiu sobre a pólis grega e o fórum romano ela estava pensando para além do âmbito normativo e físico das cidade-estado, mas para as próprias relações instituídas entre as pessoas, o que abriria, naquele espaço de aparição, a comunicação e a ação entre elas. A leitura de Butler, então, caminha para a compreensão dos espaços partilhados entre as pessoas. Esses espaços mediados pelo entre abrem margem para a heterotopia ou para diversidade. Assim, os horizontes públicos dependem, em sua acepção, de dinâmicas que estão para além da disposição infraestrutural e objetiva, apontando para a substância das organizações políticas, que se deseja reguladas pela pluralidade. Os espaços públicos, e aqui levamos em conta o mais primordial de todos, a própria terra, para nos voltarmos ao diálogo com Krenak, são estabelecidos se nos movimentarmos para além da superfície institucional, voltando-se para as fronteiras estabelecidas entre os corpos. Há um movimento disciplinarização dos espaços, em que nem todos os corpos que habitam, ou querem habitar um espaço, são incluídos. Essa é a questão colocada por Butler: como instituir a pluralidade ante às fronteiras? Quem faria parte desse horizonte comum pluralizado? Parece mesmo que Krenak está em um diálogo virtual com a filósofa estadunidense, haja vista também o seu intuito de transformar esses apontamentos como ação política. Ambos, cada qual com seus horizontes mais particulares de preocupações, estão em busca da coabitação e a da produção de espaços interrelacionais, dialógicos e de convívio.

A esse respeito, Ailton Krenak é bastante contundente, flexionando toda uma ontologia do perspectivismo ameríndio: “Definitivamente não somos iguais, e isso é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações” (KRENAK, 2020, p. 33). Agora é Krenak quem potencializa as reflexões de Judith Butler, pois para ele o fato de coabitarmos um espaço possível não implica que somos iguais, mas, e aqui a força do seu pensamento: “(…) significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida” (KRENAK, 2020, p. 33). Encontra-se, em sua perspectiva, um olhar para um coabitar que percebe a humanidade, e os modos de existir, de maneira pluralista – não através do protocolo da humanidade enquanto singular-coletivo, que, segundo aponta, retiraria a nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2020, p. 33).

V. Ailton Krenak explica a dimensão espacial por onde os povos Krenak habitam o Brasil. Do nordeste até o leste de Minas Gerais, onde encontra-se o Rio Doce, bem como na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia, no Alto do Rio Negro. O pensador ameríndio deixa em evidência os sentidos efetivos da luta dos Krenak diante dos tensos contextos políticos nacionais que envolvem os direitos dos povos originais de habitarem e existirem em suas terras. Krenak faz, então, um retrospectivo que dos modos como os povos originários habitam, pensam e existem em suas terras e como isso foi, historicamente, pervertido através da história colonial-expansionista-administrativa. Passados séculos de colonialismo, e superando as expectativas de que as populações indígenas não sobreviveriam aos movimentos de ocupação dos seus territórios, com previsões de que já não se manteriam as originárias formas de organização existencial, vemos os Krenak permanecendo em luta: “Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira” (KRENAK, 2020, p. 39). Os sentidos do habitar krenakianos são assim, postos em evidência, sendo a terra considerada, por eles, não apenas como um reduto onde a natureza é prospera e oferece alimentos e moradia: ali está onde sobrevive os modos que cada uma dessas sociedades tem de se manter no tempo.

A interação com o planeta, com o mundo terreno, está muito distante de uma separação sujeito e objeto, mas volta-se para imanência radical, por onde se faz possível percebê-lo em modo de agência e, então, assimilar os seus sentidos, longe da razão instrumental ocidental. Por exemplo, o rio Doce, para os Krenak, que sofrera ecocídio através do rompimento da Barragem do Fundão em Mariana/MG, que liberou 55 milhões de metros cúbicos de lama que armazenava, é considerado por essas pessoas como Watu, ou seja, ele é tido como o seu avô. Em seguida é explicada a tensão existente entre fronteiras e coabitação, em que a perspectiva krenakiana do habitar-existir é abordada: “Ele não é algo de que alguém possa apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa” (KRENAK, 2020, p. 40). De qualquer maneira, o que estaria em curso na história brasileira não seria outra coisa do que a não coabitação, ou dialogando abertamente com Krenak, a incapacidade de se acolher os seus habitantes originais.

O projeto colonialista está em curso, desdobrando-se pelas malhas do capitalismo neoliberal ao invisibilizar e impedir os povos originários do seu existir por não reificarem o mundo natural e planetário, mas o habitando-o e existindo com ele – por não se ampararem em sua lógica unidimensional e totalizadora, derivada duma lógica de mundo individualizada e não aberta à coabitação, posto que se move pela subjetividade concorrencial e libertarista. Esta é a tônica da história brasileira majoritária, de acordo com ele, através das suas seguidas atualizações: “sem recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade coletiva de muitos brasileiros” (KRENAK, 2020, 41). O ecocídio enfrentando pelo o avó dos Krenak, o rio Watu, que fora encoberto pela lama tóxica da Barragem do Fundão, apresenta-se como uma imagem síntese do perspectivismo ameríndio, que invoca uma ontologia do enraizamento relacional com o mundo: “Faz um ano e meio que esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (KRENAK, 2020, p. 42).

Ailton Krenak recobra, em um gesto decolonial, os horizontes modernos do significado de humanidade, percebida como história única ou singular coletivo. A colonização realizada pelos brancos europeus se amparou, em sua concepção, “na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível” (KRENAK, 2020, p. 11). É, em última medida, o processo civilizador, que implicou dois movimentos simultâneos: a implementação de uma lógica de como habitar a terra e, correlatamente, a instauração de modos de verdade, informados por uma dimensão de sujeito que perscruta o objetivo, algo que teria orientado as escolhas realizadas em diferentes momentos históricos. A questão para Krenak é esta: haveria uma humanidade no singular? Torna Krenak a mover um questionamento propositivo: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK, 2020, p. 13)?

A humanidade eurocentrada seria, para ele, uma espécie da liquidificador. Arrisca a dizer que 70% porcento das pessoas, hoje, estariam alienadas dos modos de ser em razão dos processos modernizadores, que retirou as pessoas do campo e das florestas para lançá-las em favelas e periferias, tornando-se mão de obra nas cidades. Seria pessoas desenraizadas, privadas dos seus modos de ser e de habitar o mundo. Um processo, dito de outra maneira, de esquecimento comandado: “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo do maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p. 14). O que Krenak aponta é para o esquecimento do planeta, derivado do singular coletivo humanidade e atualizado pelo “mito da sustentabilidade”, o que levou a alienação do organismo que fazemos parte, ou seja, a terra: “passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade” (KRENAK, 2020, p. 16). Daí a sua ontologia do enraizamento, ou perspectivismo ameríndio, que se percebe tudo como natureza. Ele é taxativo: “Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2020, p. 17).

Os povos originários, argumenta Krenak, estão enredados ao mundo – são parte integrante e constitutiva do mesmo. A terra e os seres também vivem. Montanhas são casais, tem família, trocam afetos, fazem trocas. Essas montanhas, como em regiões andinas, são reverenciadas pelas pessoas, dado que são sensíveis a sua alteridade. Mais um questionamento de Ailton Krenak: por qual motivo essas narrativas não entusiasmam mais, sendo esquecidas e apagadas? Por qual motivo elas são interditadas em favor de uma narrativa global, universalizante, unidimensional, superficial, única? É o abuso da razão, retomando a sua expressão. O conceito moderno de história, a história única, o eurocentrismo racionalista alienariam as pessoas de tudo, inclusive, as medicalizando. Há a crítica ao conceito de progresso, modulação temporal desta forma de história aludida, que em nome do dito bem-estar da humanidade imprime todo um movimento de desenraizamento e de deslocamento das pessoas do organismo terra. Esse movimento expande-se, ainda hoje, para as “bordas do planeta” – margens de rios, beiras de oceanos; na África, nas Ásia, na América Latina. São caiçaras, indígenas, quilombolas, aborígenes, em suma, a “sub-humanidade”. A humanidade moderna expulsa o outro, considerado sub-humano. Justamente aqueles que não esqueceram a terra, que estão enraizados, que convivem com as suas manifestações, que lhe emprestam dignidade para a sua alteridade.

Uma organicidade que incomoda a dita humanidade, que cinde seus filhos de sua mãe. Que expulsa aqueles que querem “comer terra, mamar terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra” (KRENAK, 2020, p. 22). É a crítica radical ao esquecimento do mundo. ao seu descolamento da imanência em favor de uma abstração desfactizada. Um movimento que interdita a diversidade, nega a pluralidade de modos de coabitação e de existência – de modos de ser. No horizonte da humanidade eurocentrada, da história única, a qual deve-se ser crítico invocando a diferença, tornou-se majoritário um modo de existir que, amparado no desgarramento da terra a partir da lógica sujeito e objeto, que se move pelo consumo e interdita a cidadania. Deriva-se desse movimento, na perspectiva krenakiana, toda uma lógica de expulsão do outro e de veto às alteridades, disposição que acarreta, no limite, um estar no mundo alienante, desprovido de crítica e consciência de si, dos outros e do todo. “Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2020, p. 25).

VI. Dialogando com Davi Kopenawa, e abrindo-se para a possibilidade de adiar o fim do mundo, Krenak move-se à contrapelo em busca dos sentidos ancestrais, dos sentidos das cosmovisões ameríndias, que seria um modo de coabitar o mundo. Tudo tem sentido na imanência radical krenakiana, o que lhe abre para imaginações pluralistas de mundo. “As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta” (KRENAK, 2020, p. 25). Em última instância, deseja-se recordar o mundo ante uma situação produtora de ausências. Esse retorno à imanência terrestre oferecia modos de viver em sociedade, num sentido de experiência e de tangibilidade com a vida. Na história única, no singular coletivo moderno, na humanidade singularizada, na identidade mesma essencializada, há a intolerância em “relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (KRENAK, 2020, p. 26). A “humanidade zumbi” expulsa os mundos de sentidos pluralistas, em que se invoca a “fruição de vida”. Chega-se ao ponto chave da reflexão: “Então, prega-se o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos” (KRENAK, 2020, p. 27). A resposta de Krenak a esse estado de coisas é o retorno aos modos de narração da experiência, de poder “contar mais história”. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.A narração, os modos de imprimir sentido ao mundo para Ailton Krenak, amparando-se nas cosmovisões de sentido ameríndias, demostram a importância da facticidade concebida como experiência vertida narrativamente.

Narrações enredadas em experiência como modo de existir. Questiona, prepositivamente, Krenak: como os povos originários lidaram com a colonização, com o fim dos seus mundos? Como superaram esse pesadelo ainda desafiando a hegemonia da humanidade singularizada e excludente? Ele voltou-se às narrativas experienciais antigas, ativando um recordar de resistência pela criatividade, pela poesia, pela disposição de enfrentamento. Cosmovisões cheias de sentido e de experiência foram lidas, imprimindo um imaginar plural. “Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões de mundo” (KRENAK, 2020, p. 28). Krenak leu, recordou, aprendeu, institui sentidos, entendeu o virtual dos antepassados para resistir no presente – um alimento de “resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (KRENAK, 2020, p. 29). A narração lhe parece importante ante uma sensação de queda. Ele invoca a capacidade crítica, criativa e pluralista ancestral para que essa queda seja impedida por “paraquedas coloridos”. Contar histórias, narrar histórias, aprender com histórias. “Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2020, p. 30).


Bibliografia

BUTLER, Judith. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Posfácio – Perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas sobre o digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Fonte:  https://outraspalavras.net/descolonizacoes/ailton-krenak-o-filosofo-da-terra/

Perfeitos, os dias.


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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Acordar com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir, quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um método.

Entrei numa sala de cinema no último dia dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional - para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme, humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.

"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.

Aprendi a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como tudo.

De caminho, rumo ao trabalho, passo pela estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa "Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É fantástico!"

 

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

  Fonte: https://longitudinal.blogs.sapo.pt/perfeitos-os-dias-153960