quinta-feira, 16 de maio de 2024

Esperança de vida no mundo aumentará quase cinco anos entre 2022 e 2050

Estudo indica que em Portugal a esperança de vida à nascença para as mulheres passará de 84,8 anos em 2022 para 87,4 em 2050, um aumento de 2,6 anos, enquanto a dos homens aumentará 3,4 anos (de 79,1 em 2022 para 82,5 em 2050).


A esperança de vida a nível mundial aumentará 4,9 anos no caso dos homens e 4,2 anos no das mulheres entre 2022 e 2050, indica um estudo divulgado esta quinta-feira na revista científica britânica Lancet.

O Estudo da Carga Global de Doenças (GBD) 2021, coordenado como é habitual pelo Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME), da Universidade de Washington (Estados Unidos), calcula que se registará naquele período este aumento médio de quase cinco anos, apesar das ameaças geopolíticas, metabólicas e ambientais que o mundo enfrenta.

Os investigadores preveem que o aumento seja maior nos países onde a esperança de vida é mais baixa, refere um comunicado do IHME, acrescentando que tal contribuirá "para uma aproximação entre regiões".

Consideram ainda que a tendência é em grande parte impulsionada por medidas de saúde pública que melhoram as taxas de sobrevivência a doenças cardiovasculares, covid-19 e a uma série de doenças transmissíveis, maternas, neonatais e nutricionais.

De acordo com o estudo, em Portugal a esperança de vida à nascença para as mulheres passará de 84,8 anos em 2022 para 87,4 em 2050, um aumento de 2,6 anos, enquanto a dos homens aumentará 3,4 anos (de 79,1 em 2022 para 82,5 em 2050).

As doenças que mais afetarão a "próxima geração" são as não transmissíveis, como as cardiovasculares, cancro, doença pulmonar obstrutiva crónica e diabetes, associadas à obesidade, hipertensão arterial, alimentação pouco saudável e tabagismo.

À medida que as doenças transmissíveis e por causas maternas, neonatais e nutricionais vão perdendo peso para as doenças não transmissíveis, ganha importância o indicador relativo aos anos vividos com incapacidade (YLD) face ao dos anos perdidos (YLL). A expectativa é de que mais pessoas vivam mais, mas que aumente também o número de anos vividos com problemas de saúde.

As estimativas são de um aumento médio de 4,5 anos na esperança de vida a nível mundial (de 73,6 anos em 2022 para 78,1 em 2050), mas os anos de vida saudável serão apenas mais 2,6 (passando de 64,8 para 67,5 anos no mesmo período).

"Além de um aumento na expectativa de vida em geral, descobrimos que a disparidade na expectativa de vida entre as regiões irá diminuir", disse Chris Murray, diretor do IHME, citado no comunicado.

Tal indica, adiantou, que "embora as desigualdades na saúde entre as regiões de rendimento mais elevado e mais baixo continuem a existir, as disparidades estão a diminuir, prevendo-se que os maiores aumentos (da esperança média de vida) ocorram na África Subsariana".

Segundo Chris Murray, as ações para prevenir e mitigar fatores de risco comportamentais e metabólicos são as que têm mais possibilidades de acelerar a redução da carga global de doenças.

Estas conclusões baseiam-se nos resultados do Estudo sobre a Carga Global de Doença, Lesões e Fatores de Risco, também divulgado hoje na Lancet, que indica que "o número de pessoas com problemas de saúde e morte precoce causada por fatores de risco relacionados com o metabolismo, como a hipertensão, nível excessivo de açúcar no sangue e índice de massa corporal (IMC) elevado, aumentou 50% desde 2000" e até 2021.

Greg Roth, diretor do Programa de Métricas de Saúde Cardiovascular, do IHME, citado num comunicado do instituto norte-americano, defende que o aumento da exposição a fatores de risco como os referidos, além de um grande consumo de bebidas açucaradas e pouca atividade física, exige que se aposte com urgência nas "intervenções focadas na obesidade e nas síndromes metabólicas".

Neste estudo associado, os cálculos dos investigadores tiveram em conta 88 fatores de risco (entre os ambientais e ocupacionais, os comportamentais e os metabólicos) e determinados resultados de saúde em 204 países e 811 zonas subnacionais, entre 1990 e 2021.

Também são apresentados vários cenários alternativos para comparar os potenciais resultados de saúde se diferentes intervenções de saúde pública pudessem eliminar a exposição a vários grupos chave de fatores de risco até 2050.

"Globalmente, os efeitos previstos são mais fortes no cenário de 'Diminuição dos Riscos Comportamentais e Metabólicos', com uma redução de 13,3% na carga de doenças, expressa em número de anos de vida saudável perdidos devido a problemas de saúde e morte precoce, em 2050 em comparação com o cenário de 'Referência' (o mais provável)", indica Stein Emil Vollset, do IHME e primeiro autor do estudo.

Em relação aos dois outros cenários, um focado em ambientes mais seguros e outro na melhoria da nutrição e vacinação infantil, também se preveem reduções no número de anos saudáveis perdidos em relação ao de referência.

"Isto demonstra a necessidade de progresso contínuo e de recursos nestas áreas e o potencial para acelerar o desenvolvimento até 2050", diz Amanda Smith, diretora assistente de Previsão no IHME.

Liane Ong, investigadora chefe no mesmo instituto, refere que "o GBD destaca que as tendências futuras podem ser bastante diferentes das passadas, devido a fatores como as alterações climáticas e o aumento da obesidade e da dependência, mas, ao mesmo tempo, que existem muitas oportunidades para alterar a trajetória da saúde na próxima geração".

Segundo o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, o Estudo da Carga Global de Doenças é "o maior e mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde a nível global e ao longo do tempo", incluindo o GBD 2021 mais de "607 mil milhões de cálculos relativos a 371 doenças e lesões"

Fonte: https://www.dn.pt/4000924331/esperanca-de-vida-no-mundo-aumentara-quase-cinco-anos-entre-2022-e-2050/

Entendo quem prefere viver sozinho, mas não vejo vantagem em romantizar a solidão

 Por Juliana de Albuquerque*

 

 John le Carré em Londres em 2019 - Charlotte Hadden - 12.set.19/The New York Times

Mesmo uma longa viagem de trabalho se torna mais interessante quando temos com quem compartilhar o cotidiano

Estou na Alemanha há quase um mês e começo a ter saudades de casa. Sinto falta dos meus travesseiros, da minha biblioteca, da minha mesa de trabalho, da minha cafeteira e, principalmente, das pessoas e dos bichos com os quais normalmente compartilho a minha rotina.

Sardinha, o gato que adotamos em outubro do ano passado, acabou de completar dez meses e já está pesando mais de cinco quilos. Desde o começo da primavera, quando os outros gatos da vizinhança finalmente se deram conta da sua existência, ele vive de receber visitas em nosso jardim.

Estivesse eu em casa, tomaria o meu café da manhã sentada no batente da cozinha, observando a interação entre os bichos. Em vez disso, compartilho desses momentos com o meu companheiro, Mark, com quem troco mensagens ao longo do dia e telefono durante à noite para comentar o que tenho feito por aqui.

Assim tentamos manter uma rotina semelhante à que costumamos seguir quando estamos juntos na Irlanda. Ontem mesmo, depois do jantar, enquanto ele resolvia um quebra-cabeça no sofá de casa, eu lia e tecia comentários sobre um dos nossos livros prediletos: "O Espião que Sabia Demais" (1974), de John le Carré.

Um dos aspectos que nós achamos mais interessantes na obra de Le Carré é justamente o diálogo que o autor estabelece em seus textos com a cultura alemã. Por exemplo, o protagonista desse romance que estou relendo e cujos eventos se passam no auge da Guerra Fria —o espião George Smiley— é especialista na obra de Martin Opitz (1597-1639), um dos principais nomes da literatura alemã da primeira metade do século 17, período igualmente marcado por terríveis conflitos.

Entendo quem prefere viver sozinho, mas não enxergo vantagem em romantizar a solidão. Afinal, tudo, até mesmo uma longa viagem de trabalho como esta que estou fazendo, se torna ainda mais interessante quando temos a sorte de ter com quem compartilhar o nosso cotidiano, ainda que somente por telefone.

No último domingo, com uma câmera na mão e o celular sempre por perto, estive em Worms para conhecer uma das sinagogas mais antigas da Alemanha e o cemitério judaico que menciono em minha coluna anterior. Infelizmente parte do complexo da sinagoga estava passando por uma reforma, assim não tive como percorrer todo o local, nem visitar a "mikveh" (banho ritual) originalmente construída em 1185.

Um aspecto interessante da sinagoga de Worms é que ela abrigou uma sala de oração para mulheres, provavelmente construída entre os anos de 1212 e 1213.

A existência dessa sala, talvez a mais antiga em toda a Europa Central, atesta a importância das mulheres na vida da comunidade de Worms. Fato esse ainda mais impressionante quando lembramos que estamos falando de algo originalmente construído na Idade Média, época em que a alfabetização das mulheres não era algo comum, e percebemos que algumas judias da cidade podiam ler e rezar em uma sinagoga própria, acompanhadas de um cantor.

Mais tarde, durante o século 19, seguindo a modernização dos costumes, as últimas barreiras entre a sinagoga das mulheres e o restante do prédio foram suprimidas e os serviços religiosos passaram a ser realizados em alemão. Tais mudanças levaram à construção de outra sinagoga de rito tradicional, mas, apesar disso, a comunidade permaneceu unida.

Fachada de prédio de tijolos e telhado triangular
A sinagoga de Worms, na Alemanha - Juliana de Albuquerque/Acervo pessoal

Na exposição permanente organizada pelo Museu Judaico de Worms, localizado próximo à sinagoga, em um prédio moderno conhecido como Raschihaus —uma homenagem a Rashi (1040-1105), célebre intérprete do Talmud e da Bíblia Hebraica—, encontramos objetos litúrgicos, bem como depoimentos sobre os membros da comunidade de Worms que foram assassinados durante o Holocausto.

Essa minha primeira visita a Worms não foi fácil. Mas, se por um lado eu senti que precisava realizar essa viagem sozinha, por outro, muito do que eu consegui relatar sobre esse passeio até agora só ganhou forma porque eu também pude, ao voltar para o meu apartamento em Mainz, ligar para o meu companheiro e contar um pouco do que vivenciei durante o dia.

Worms é uma cidade carregada de história. Pretendo voltar lá outras vezes, ainda durante este verão, em uma tentativa de compreender as inúmeras referências ao judaísmo e a Martinho Lutero, bem como a lenda dos nibelungos, que emprestam ao lugar um aspecto simultaneamente mágico e sombrio.

Por enquanto, consciente de que conto com todo o apoio daqueles que amo, tento aproveitar esta oportunidade de aperfeiçoamento profissional e lido com a saudade de casa da melhor maneira possível, como o caminhoneiro que escreve no para-choque do seu veículo de trabalho: "Viajo porque preciso, volto porque te amo".

 *Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliana-de-albuquerque/2024/05/entendo-quem-prefere-viver-sozinho-mas-nao-vejo-vantagem-em-romantizar-a-solidao.shtml

O neoliberalismo não desperdiçará a tragédia gaúcha

 Por André Roncaglia*

 Bairro São José, em Lajeado (RS), nesta quinta (16) - Nelson Almeida/AFP

A mão invisível do mercado desregula o termostato natural da Terra

Num soluço fulminante da crise climática, mais de 80% do território gaúcho submergiu sob a força das chuvas torrenciais das últimas semanas.

As perdas humanas e materiais, incalculáveis até o momento, seriam motivo de uma reflexão mais profunda sobre a forma como ocupamos o solo e lidamos com a natureza. Todavia, o negacionismo político se uniu ao seu homônimo climático de forma desavergonhada para ocultar uma causa central dessa tragédia: o desmonte dos instrumentos de planejamento e monitoramento do Estado pela mercantilização do espaço (urbano e rural).

Em seu livro "A Grande Transformação" (1944), Karl Polanyi nos alertou que "deixar o destino do solo e das pessoas para o mercado seria equivalente a aniquilá-los". A natureza "seria reduzida aos seus elementos, bairros e paisagens contaminados, rios poluídos... [e] o poder de produzir alimentos e matérias-primas destruído". Oitenta anos depois, insistimos na ilusão de dominar a natureza pela força da tecnologia, com a desculpa do progresso.

A mão invisível do mercado desregula o termostato natural da Terra, produzindo um "mal público global" por excelência. Inescapável e regressiva, a mudança climática agride mais os mais pobres, menos preparados para lidar com ela.

A defesa convicta (e errônea) de que o Estado não deve se endividar para não onerar as gerações futuras com maior carga tributária fecha os olhos para os custos intertemporais do descaso ambiental e da ocupação desordenada do solo, sob a égide dos lucros imobiliários e do agronegócio.

Essa miopia interessada custa caro: cada R$ 1 gasto em prevenção ambiental economiza R$ 15 em recuperação pós-desastre. No caso gaúcho, a (des)proporção deve ser ainda maior.

Aqui entra o mote neoliberal "nunca desperdice uma crise séria", que aparece nas exortações de "não é hora de apontar culpados" e "não politizemos esta tragédia".

Instrumentaliza-se a união nacional para compartilhar os custos do descaso com adaptação e monitoramento climáticos. Convoca-se, então, o "Estado socorrista", desequipado e subfinanciado pela aversão à tributação da riqueza concentrada nas mansões e fazendas —em áreas de preservação, inclusive— e nas licitações milionárias de obras que atentam contra o meio ambiente e fragilizam a população urbana.

Tal irresponsabilidade se apoia na excepcionalidade das crises, que suspende a rigidez dos orçamentos públicos equilibrados e das dívidas com a União e mobiliza doações de compatriotas de todas as regiões. Vale até evocar o Plano Marshall, como fez o governador Eduardo Leite (PSDB), em ato falho que confessa sua cumplicidade na tragédia ao liderar o nocivo desmonte da política ambiental do estado.

A percepção do custo (humano e material) evitável se diluirá no pano de fundo da reconstrução do estado, ocultando as causas dessa tragédia amplamente anunciada. Há indícios de que a desfaçatez neoliberal não desperdiçará esta crise.

Primeiro, a gratidão seletiva de autoridades a bilionários esbanjando doações —módicas, frente à magnitude da catástrofe. Segundo o site Matinal, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), pretende reconstruir a cidade com a "parceria" —sem necessidade de licitação— da consultoria Alvarez & Marsal, famigerada por sugerir cortes no funcionalismo da cidade de Nova Orleans após o furacão Katrina, entre outras barbaridades relatadas pelo jornal New York Times. "Tudo deve mudar para que tudo fique como está".

Num país com 7,4 mil km de litoral, em que pululam praias artificiais em condomínios de luxo, soluções inteligentes, verdes e inclusivas —como as cidades-esponjas— parecem uma realidade distante.

* Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andre-roncaglia/2024/05/o-neoliberalismo-nao-desperdicara-a-tragedia-gaucha.shtml

Ligado por um fio

 Bruno Nogueira*

Juan Cavia

Há cada vez mais adolescentes a comprarem dumb phones, telemóveis básicos que só dão para trocar mensagens, e para atender e fazer chamadas. Estão a tentar voltar atrás, até ao dia anterior ao dia em que lhes puseram na mão um ecrã que lhes ia roubar a vida ao redor. E os adultos têm de estar à altura de fazer parte dessa mudança

HÁ UMA RAZÃO para se voltar sempre aos assuntos chatos, e a razão é porque eles não param de chatear. Andamos às voltas, e se regressamos sempre a eles, o motivo é simples: o assunto é grave. Saiu um artigo que diz que em média os adolescentes passam 9 horas ao telemóvel. São corpos que desistiram, num mundo que não se pode dar ao luxo de perdê-los. Os telemóveis, os iPads, e os ecrãs todos que por aí andam, não são o mal do mundo – isso é o que os pais, e avós, e cuidadores insistem em dizer, para se livrarem do mal de terem de se chegar à frente e serem pais, e avós, e cuidadores. O problema é darem desde cedo às crianças a responsabilidade de decidirem o que fazer com um instrumento tão poderoso e viciante, e depois depositar em cima delas a culpa daquilo que as puseram a fazer. Elas estão a aprender a ser gente, e a gente que elas vão ser é em grande parte o resultado daquilo que as ajudaram a construir. Sempre que uma criança passa um dia agarrada ao telemóvel, a esquecer-se de ter a idade que tem, temos de dar três passos atrás e perceber como é que se chegou a esse momento em que ela está fechada para o mundo, com os olhos tão longe. A incapacidade de concentração, de olharem para o que as rodeia sem se aborrecerem por não conseguirem atalhar todos os momentos chatos – a apatia de quem ainda agora começou e já se sente cansado; a angústia de estar em todo o lado sem estar realmente em lado nenhum. Os telemóveis e os iPads são ferramentas incríveis, permitem que estejamos ligados ao mundo inteiro, que guardemos informação numa coisa que nos cabe na mão e nos resolve um número infinito de problemas. Podermos estar num país longínquo e falar com quem nos espera em casa é uma coisa extraordinária. A culpa não é dos telemóveis, a culpa é de quem vê neles um babysitter e sente o alívio que é o silêncio em que as crianças ficam quando os têm na mão. Sabe bem, até não saber; e então aí queixam-se do problema que criaram, como se a tecnologia fosse o lobo mau, como se o telemóvel tivesse vindo para tomar o lugar da empatia e do convívio. Não veio. E a prova que não veio, é que se o largarem em cima de uma mesa e se afastarem, ele não vai a correr saltar para a vossa mão, a pedir que não olhem para mais ninguém.

 

As escolas que decidiram afastar os telemóveis para terem lá dentro crianças e adolescentes livres, são pequenas bolhas de humanidade que devemos preservar com todo o amor. Estão a tentar o que não lhes compete: que os filhos de outros pais ainda consigam ir a tempo de olhar para o que os rodeia, aqui e agora; e que se espantem com o tanto que têm a ganhar. Temos uma sorte tão grande de podermos estar com quem gostamos, de podermos tê-los à nossa frente e, olhos nos olhos, ver o que são, e do que são feitas as suas falhas e virtudes. Não podemos desistir de estar cá, porque atrás disso vai tudo o que nos separa das máquinas. Sempre que nos perdemos uma hora no telemóvel, é uma hora de vida que nunca mais nos vão devolver; e todas somadas são meses inteiros que fogem para parte incerta, e que não vão fazer parte da nossa memória. Não há uma única hora de telemóvel da qual nos recordemos com saudades, mas há muitas que desperdiçámos e das quais nunca mais nos vamos esquecer. É tentador deixarmo-nos levar, porque naquele ecrã estão tantas coisas e tão diferentes. Mas daí até sermos engolidos, vai um curto passo. Estamos sempre a perder sobrinhos, filhos, e netos para o problema que lhes criámos. A pressão é grande, porque os amigos estão todos lá, impacientes, à espera de respostas. E é importante que os usem, para que possam socializar à distância, nesta nova maneira de estar. Mas entre usar e sermos usados, vai uma distância que é o que separa o saudável do doentio. Somos reféns do que criámos, e excluirmo-nos do problema é uma cobardia que vai deixar poços vazios entre os mais novos. Comecemos por parar de culpar a tecnologia como se ela fosse má. Ela é incrível, e fez-nos avançar tanto que nem sequer conseguimos imaginar o que era a nossa vida sem ela. Há cada vez mais adolescentes a comprarem dumb phones, telemóveis básicos que só dão para trocar mensagens, e para atender e fazer chamadas. Estão a tentar voltar atrás, até ao dia anterior ao dia em que lhes puseram na mão um ecrã que lhes ia roubar a vida ao redor. E os adultos têm de estar à altura de fazer parte dessa mudança.

Não se trata de moralismos, trata-se de resgatar os que são nossos, de ter saudades de os ter aqui. De lhes dar a oportunidade de se deslumbrarem e desapontarem com o que os rodeia. Trata-se de sermos todos responsabilizados pelo problema, para juntos tentarmos devolver a vida a quem só está ligado por um fio. 

*Humorista

Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/ligado-por-um-fio

A liberdade ‘fake’ e o Marquês de Sade

 Por Eugênio Bucci*

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Com a cidadania submersa, a perversão do fanatismo antidemocrático jorra pelos bueiros

“Mercadores do caos”. É assim que o primeiro editorial do Estado de ontem qualificou aqueles que difundem mentiras sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. O texto vai no ponto: “Bolsonaristas andam espalhando desinformação porque, inimigos da democracia que são, a eles interessa minar a capacidade dos cidadãos de confiar uns nos outros.” Palavras precisas. Justas.

O quadro é alarmante, não só pelas águas que dizimam cidades inteiras, mas também pela propagação industrializada e intencional de desorientação. Com a cidadania submersa, a perversão do fanatismo antidemocrático jorra pelos bueiros. Há mensagens inconcebíveis circulando massivamente. Umas afirmam que não adianta fazer doações porque o governo federal está barrando caminhões que rumam para o Rio Grande do Sul. Falso. Outras sustentam que Exército e os bombeiros negam ajuda aos desabrigados. Invenção dolosa. Os exemplos de má-fé são caudalosos, tóxicos, e, embora sejam desmascarados a toda hora, deixam rastros de devastação moral e cívica.

A produção em larga escala de mais essa leva de fake news é um trabalho de organizações subterrâneas e subaquáticas que operam longe da luz do dia e consomem rios de dinheiro infecto. São usinas superindustriais que geram as falácias aos borbotões e nunca aparecem publicamente – atuam no submundo, clandestinas. Mais que soturnas e esquivas, são usinas invisíveis. Mais do que abjetas, são eficazes. Abastecem caudalosamente as multidões de idiotas inúteis que trabalham de graça, noite e dia, para fazer escoar todas as sandices asfixiantes pelas redes (anti)sociais.

Se as grandes organizações da mentira atuam nas sombras, os operários alienados e alienantes que trabalham para elas como escravos mostram sua cara sorridente. São os tios e tias do Zap, você os conhece. Quando interpelados pelo bom senso do vizinho de condomínio, protegem-se na desculpa de que apenas exercem sua “liberdade de expressão”. Estão errados em tudo, inclusive nisso. Estão errados principalmente nisso.

Em primeiro lugar, as agências camufladas de onde recebem a porcariada que distribuem não têm direito à liberdade de expressão, nem poderiam ter. A liberdade de expressão é um direito da pessoa humana, não de pessoas jurídicas ou de organizações criminosas. O Estado, as empresas e os partidos políticos não têm liberdade de expressão, pois não são pessoas. A liberdade de expressão é um direito humano, um direito de gente de carne e osso, não uma licença econômica ou corporativa.

Portanto, quando um desses grupelhos ilegais ou uma dessas big techs impulsionam falsidades que lesam a saúde pública e a integridade física de milhões de seres humanos, não é de liberdade de expressão que estamos falando, mas de um inaceitável abuso do poder econômico. A finalidade desse tipo de abuso é fazer propaganda do caos e instaurar um ambiente em que “ninguém acredita em mais nada”, como sintetizou Hannah Arendt numa célebre entrevista. Em resumo, não aceitemos mais chamar de “liberdade de expressão” o que não passa de abuso destrutivo do poder econômico.

Isso posto, falemos agora da liberdade das pessoas, as tais idiotas inúteis que se comprazem com a tarefa de disseminar as notícias fraudulentas em troca de nada – ou, melhor dizendo, em troca do gozo imaginário de se olharem no espelho e se chamarem de “patriotas”. As voluntárias do obscurantismo, por certo, contam com o direito de proferir e reproduzir tolices de mau gosto. Sim, elas são livres para pronunciar o impronunciável. Elas só não têm direito de dar seguimento a crimes.

Aí vem o ponto mais embaraçoso. Elas não sabem distinguir uma coisa da outra. A ideia que carregam de liberdade é uma não ideia: elas concebem a liberdade como uma espécie de bocarra, uma porteira aberta nas fronteiras do corpo para dar vazão aos impulsos viscerais, a despeito das convenções e das normas básicas do convívio civilizado. A liberdade seria, enfim, o triunfo do bicho sobre o humano. É como se o sujeito dissesse “eu sou livre para oprimir você e exercer contra você a minha estupidez essencial”.

E qual a origem dessa concepção pulsional de liberdade? Sigo aqui a sugestão do psicanalista Ricardo Goldenberg. Em um breve ensaio, Do cinismo ao descaramento (no livro O Mal-Estar na Cultura Revisitado, organizado por Lucia Santaella, publicado pela Estação das Letras e Cores), Goldenberg localiza no Marquês de Sade (1740-1814) fantasia de que a “liberdade individual” incluiria um suposto “direito” de “gozar do próximo sem nenhum entrave” (“gozar”, aqui, é sinônimo de abusar). Em Sade, o sujeito livre é aquele que consegue juntar o pior vício da aristocracia (dispor do corpo do outro como dispõe da terra) ao pior vício da burguesia (explorar energia do outro para acumular dinheiro e prazer). Em suma, o homem livre é amoral, assassino, pedófilo, estuprador e ditador. No meio de tamanha enchente de mentiras, a gente pode acrescentar: e fascista. A liberdade fake, a liberdade sádica, que no fundo é a negação de toda liberdade, está levando o Brasil ao naufrágio total.

*Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto 

Fonte: https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/a-liberdade-fake-e-o-marques-de-sade/

Ideias para adiar o fim do mundo

por *


Ideias para adiar o fim do mundo 
 Reprodução: GloboNews

O programa Fantástico – que recebe o simpático apelido de Show da Vida – fez uma cobertura ampla dos estragos no Rio Grande do Sul depois das chuvas que atingiram cerca de 90% do estado, incluindo a capital. É importante mostrar ao Brasil o tamanho do desastre e contar um pouco das histórias de quem perdeu tudo e teve a vida impactada pelas mudanças climáticas. Mas tem uma coisa nessa narrativa adotada pela mídia nacional hegemônica que não tá descendo bem. 

A abertura de um dos vídeos do Show da Vida que circula no Instagram faz um paralelo com as enchentes de setembro de 2023. A voz em off diz o seguinte: “ninguém naquela época poderia imaginar que o Rio Grande do Sul sofreria outra tragédia ainda pior, o maior desastre natural de sua história”.

Ninguém?
Poderia?
Imaginar?

*

Imaginação é algo sensacional. Eu diria até vital. Porque não dá pra viver só com a realidade. Dia desses, a poeta Luiza Casanova, que também é professora de literatura em colégios e cursinhos da região de Santa Maria, muito afetada pelas cheias dos últimos dias, me contou uma história comovente. Uma ex-aluna, que agora estuda Medicina e trabalha como voluntária num dos abrigos de refugiados climáticos na cidade de São Leopoldo, mandou a seguinte mensagem: “Tô em São Leo e aqui está um caos com as águas. E ontem aconteceu tanta coisa que só lembrei de um dos poemas que tu me ensinou da Adélia Prado”.

Há quem pense: poesia numa hora dessas? 

Pasmem:

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.

São os primeiros versos do poema Paixão, do livro O coração disparado, de 1978.

*

É digno de nota o fato do Jornal Nacional ter enviado o âncora William Bonner para o Rio Grande do Sul a fim de cobrir e relatar diariamente e com imagens a tragédia in loco. Mas é uma entrevista com o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, feita pela Globo News e reproduzida no JN, que eu quero mencionar aqui.

Na breve chamada gravada pelo jornalista Roberto D’Ávila para as redes sociais, ele descreve Krenak como um “pensador diferente” que “entra por caminhos que nós não conhecemos” e ainda deixa escorrer pelo canto da boca algum ressentimento branco quando faz notar que a conversa com Krenak, na verdade, tinha sido uma “palestra, me deixando um pouco de lado”. Deve ser mesmo muito difícil ouvir calado o que Krenak tem a dizer.

No trecho que aparece no JN, Krenak é categórico e atropela o entrevistador com a impaciência justa de quem já está exausto de repetir o mesmo alerta há décadas: “Eu, na verdade, não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito em um novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com esse que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que, se o meu sapato acabou, eu compro um novo”.

Ora, um novo mundo.

Um novo tempo, apesar dos castigos – diz a música de Ivan Lins adaptada para o Criança Esperança.

Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou – diz a clássica música de fim de ano da Globo.

Vou parar aqui antes de chegar no Partido Novo. Risos. Mas é curioso pensar nesse tipo de pergunta sobre “um mundo novo”, como se essa fosse uma saída possível. 

Krenak lembra em outro momento da entrevista: “A última vez que eu fui convidado pra vir aqui foi quando o Rio Doce foi devastado pela lama da mineração”. Ou seja, não há nada de novo na tragédia do Rio Grande do Sul.

Seus livros (que, na verdade, são transcrições de palestras) são curtos, em formato de bolso, com ideias simples e “compartilháveis” no formato das redes sociais. Tanto que Krenak é pop, seus livros são best sellers e só pelos títulos já se extrai uma mensagem: Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro ancestral. Mas parece que ninguém sabe ler.

*

Lembrei de outra entrevista com a jornalista e ambientalista Eliane Brum, que é um tapa na nossa cara. Para ela, a maior parte das pessoas se comporta como os negacionistas (esses que a gente acha que estão “do outro lado”), ignorando que é preciso agir com toda a urgência possível para atenuar a catástrofe.

“A maioria de nós está vivendo como negacionista, mesmo achando que não é, porque se vivesse de acordo com a emergência, a gente não estaria fazendo outra coisa a não ser enfrentar a crise climática. Isso é o equivalente a tu estar com a tua casa queimando e tu ficar sentado no sofá, falando ‘a gente espera, aí quando o Bolsonaro sair em 2022, a gente reconstrói o país’, como se a gente tivesse tempo. A gente está com reações que não são de sobrevivência”, disse ela em entrevista ao podcast Ilustríssima Conversa, da Folha de S. Paulo, para apresentar as ideias de seu livro mais recente, Banzeiro òkòtó.

*

O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
O que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa
e abate a caça; o gesto largo
com que abraça o rio; o gosto de
afagar as penas e tecer o cocar;
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído; a presteza
segura de cada movimento; a eugenia
nítida do corpo erguido
contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.
E a liberdade aberta
se odeia no índio.

Vi no Youtube: Maria Bethânia diz esse poema (creditado em outros sites a Reynaldo Jardim) e emenda a leitura do clássico modernista Os sapos, de Manuel Bandeira, acentuando, na minha interpretação, o verso que cita a “permanência da infância”.

*

Crianças são capazes de criar tudo: um cabo de vassoura é um cavalo; uma roda na ponta desse cabo já vira um carro; uma caixa no meio da sala pode ser um barco. Nessa lógica, toda criança nasce poeta.

Mas o que ninguém poderia imaginar, enquanto adulto, era um dia andar de barco pela Rua dos Andradas.

“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas”, escreveu Mario Quintana no livro Sapato florido (1948) sobre as cenas que viu (viu?) na lendária enchente de 1941.

Em 2024, quando as águas cobrem quase 90% do estado do Rio Grande do Sul, incluindo Porto Alegre, o Brasil se mobiliza diante de uma imagem: um cavalo em cima de um telhado em São Leopoldo.

Não era preciso sonhar. Absolutamente desnecessário fazer poemas. Ninguém poderia imaginar.

*

O gênero ficção científica nunca me atraiu. Mas também nunca me debrucei sobre os motivos. Só ignorava mesmo. Até que no ano passado, me peguei vidrada no livro Uma chance de continuarmos assim, primeira incursão da escritora Taiasmin Onmacht no que se convencionou chamar de afrofuturismo, e entendi tudo.

Aquilo que eu costumava acessar como ficção científica eram, basicamente, histórias que se passavam no futuro, só que escritas por homens do presente. Eu tinha a impressão de que, para esses autores, a única coisa que diferenciava o futuro imaginado por eles do presente vivido por nós era a tecnologia. Naquelas histórias, o tempo tinha passado, mas as transformações eram limitadas, por exemplo: estruturas de poder, jeitos de estar no mundo, relações de gênero e raça… nada evoluía. Para um grupo de autores majoritariamente masculino e branco – bem cômodo, né? – é como se o mundo girasse em torno da posição fixa deles.

E é aí que entra o afrofuturismo. Para começar, no romance de Taiasmin, o tempo não é linear. Logo, não sabemos se realmente estamos falando de futuro. Nem mesmo as situações mais estranhas são capazes de comprovar que se trata de projeção no tempo, afinal, quem vive o presente a partir de uma identidade não normativa, sabe que tudo pode ser bem bizarro. “Embora o futuro do mundo dependa do que farei no passado, agora sou apenas alguém assustada demais”, diz uma personagem em meio a sucessivas viagens no tempo.

A única certeza que eu tinha é de que o tempo não voltou, pois como boas leitoras de Octavia Butler – tanto a autora quanto suas protagonistas, Paula e Marcela –, o passado não é uma opção para pessoas negras. “Nem todo conhecimento precisa ser para agora”, diz outra personagem.

A história se desenrola de maneira envolvente, tanto que me vi adiando compromissos para não largar a leitura. Agora me permitam finalizar com algo que, coincidentemente, está na parte final do livro: o mundo se separou em duas partes e agora há os seres da Terra e os seres do Espaço. 

“Desde a separação, eles não nos veem mais como humanos. Foram para o Espaço, deixaram nossos ancestrais abandonados a um planeta que agonizava. (…) Agora quem agoniza são eles, os descendentes da Nova Gênesis. Eles têm tecnologia, têm poder, têm espaço, mas perderam a Terra. Este planeta não é deles. Tivemos que recuperar uma tradição muito antiga para sobreviver, e essa tradição nos fez encontrar na natureza tudo o que precisávamos para recomeçar e avançar nas pesquisas de imunologia humana. (…) Tecnologia é natureza, natureza é tecnologia”.

Nesse futuro (que nada tem a ver com tempo), a principal linguagem é a festa. E é na dança que as questões do mundo são resolvidas: “A dança permite que sejam faladas as disposições do espírito. O movimento aviva as palavras.”

No afrofuturismo, o futuro é ancestral.

*

E por falar em distopias, a vida vive imitando a arte, infelizmente. As cenas de caos que vivemos aqui na região central de Porto Alegre, com os avisos atabalhoados de evacuação urgente de bairros inteiros, fruto da mais deslavada incompetência e inoperância da gestão pública – tudo isso logo depois de acompanharmos de longe as notícias de destruição e calamidade no interior do estado – lembrei muito do livro A extinção das abelhas, de Natalia Borges Polesso.

Se eu tivesse que defender porque esse livro tem tudo a ver com a atual situação de emergência climática que vivemos, eu diria: no livro, pelo menos eles têm um colapsômetro – literalmente um medidor do colapso. Sorte a deles, porque nós ainda estamos à deriva, em negação.

Difícil escolher um trecho para reproduzir, porque o que me pega nesse paralelo é toda a ambiência do livro. Mas vou deixar aqui um gostinho:

“Na estrada para Caa Catí, Aurora cantarolava músicas que todas conheciam, mas nenhuma tinha ânimo para acompanhar. Olhavam pelos vidros sujos do carro a estrada vazia. As sanções desertificavam os lugares, os tornavam inabitáveis. Alguém decidia como, quando e quais as condições de vida retiraria das localidades. E era tão rápido e tão impossível de realizar que as estruturas que tinham sido construídas para a sociedade tinham tornado as pessoas tão dependentes que elas ficavam mesmo sem chão quando acabava a água, a eletricidade, a comunicação, as instituições. O senso de comunidade não era restituído. Era um salve-se quem puder que terminava de matar a todos. Fomos moldados para a não-solidariedade, por isso exigíamos tanto o seu exercício, para confeccionar alguma aprendizagem. Regina tinha ficado tão absolutamente sozinha, tão absolutamente sem onde se firmar, que acabara matando uma pessoa, fugindo de sua família e se encontrando numa situação de quase morte. Esse era o resultado planejado para o caos, para o colapso orquestrado. Que as pessoas ou morressem ou se matassem. Contra as estatísticas, Regina agora estava num carro com outras quatro mulheres cruzando a fronteira argentina.”

*

Nos últimos dias, tenho conversado sobre a situação do Rio Grande do Sul com amigos e amigas de fora do estado, do Brasil e de várias partes do mundo. A escritora Carola Saavedra, que mora em Colônia, na Alemanha, me contou da propaganda de um partido que disputa as eleições deste ano para o Parlamento Europeu, cuja proposta é “apoio à medicina para que possamos viver 800 anos”.

Primeiro comentamos que seria cômico, se não fosse trágico. Em seguida, nos perguntamos: em que mundo essas pessoas vivem? 

“São os mesmos homens brancos que acham que vão desembarcar do planeta”, me diz Carola. Daí me lembrei do livro da Taiasmin. Será que a ficção científica é capaz de acompanhar esse delírio?

*Jornalista

Fonte:  https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/nanni-rios/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/

quarta-feira, 15 de maio de 2024

O rapto de crianças indígenas por cientistas alemães em expedição pelo Brasil no século 19

Nathalia Lavigne

De Berlim para a BBC News Brasil
 
 Celebração indígena no Mato Grosso registrada em gravura presente em obra de Carl Friedrich Philipp von Martius - Getty Images

Somente nos últimos anos o lado mais problemático da viagem de pesquisadores da Alemanha tem ganhado os holofotes

Os cientistas alemães Johann Baptist von Spix (1781–1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 - 1868) são conhecidos por uma famosa expedição que fizeram ao Brasil entre 1817 e 1820, levando do país sul-americano para a Europa milhares de plantas e animais exóticos que seriam posteriormente estudados e catalogados.

Mas uma parte talvez menos conhecida dessa história é que, entre esses milhares de itens transportados para a Europa, estavam também duas crianças indígenas, Juri e Miranha —como ficaram conhecidos em referência ao nome de suas famílias indígenas de origem, da região amazônica.

Eles eram de etnias inimigas, não falavam a mesma língua, mas ficaram juntos na Alemanha. Chegaram primeiro a Lisboa e depois seguiram para Munique.

Entre junho de 1821 e maio de 1822, Juri e Miranha morreram na Alemanha com cerca de 14 anos, após adoecerem por causas pouco claras.

Dois séculos após serem louvadas por suas conquistas científicas, somente nos últimos anos esse lado mais problemático da expedição, o rapto das crianças, tem ganhado os holofotes.

Esse outro lado da história de Spix e Martius foi explorado pela exposição "Travelling Back: A Change of Perspective on an expedition from Munich to Brazil in the 19th century" ("A viagem de volta: Uma mudança de perspectiva sobre a expedição de Munique para o Brasil no século 19"), que ficou em cartaz até 5 de abril no instituto Zentralinstitut für Kunstgeschichte, em Munique, na Alemanha.

Colagem com imagem da criança indígena Miranha em exposição em Munique - Divulgação/Felix Ehlers via BBC News Brasil

Com curadoria da historiadora brasileira Sabrina Moura, a mostra reuniu obras de artistas contemporâneos que revisitam criticamente o episódio, além de um material diverso, como jornais da época revelando um grande interesse público pelas crianças.

No Brasil, o rapto de Juri e Miranha despertou maior interesse após o lançamento do livro "O Som do Rugido da Onça" (2021), da escritora e historiadora brasileira Micheliny Verunschk. Vencedor do Prêmio Jabuti em 2022, o romance narra a história especialmente a partir do ponto de vista de Iñe-e, nome que Miranha ganha na trama.

Trechos da publicação foram traduzidos para o alemão e incluídos na exposição em Munique. A programação da mostra incluiu também uma conferência, realizada em fevereiro, com a participação de Verunschk.

EPISÓDIO DESCONFORTÁVEL

A litografia Yögel teich am rio de S. Francisco, um dos registros da expedição de Spix e Martius - Litografia de Carl Friedrich Heinzmann

Na conferência, comentários na plateia deixavam claro como o episódio ainda provocava reações confrontantes.

Houve quem tentasse relativizar, afirmando que também havia rapto de crianças entre povos indígenas inimigos. Ou, ainda, quem justificasse que elas foram trazidas com objetivos científicos.

"Eu achei que essa história já tivesse sido mais discutida e digerida pela sociedade da Baviera [estado alemão onde fica Munique]. Mas não, de fato é algo ainda permeado de ausências e bastante sensível", diz Moura, doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que hoje vive em Munique, onde realiza o pós-doutorado no centro de pesquisas Käte Hamburger Research Center global dis:connect.

"Enquanto a gente vê a relevância desses cientistas em Munique, há uma grande ausência sobre outros aspectos dessa prática científica."

De acordo com a curadora, o debate sobre esse outro lado da expedição de Spix e Martius tem sido levantado por instituições e cientistas mais ligados aos debates pós-coloniais (abordagem de estudo que olha criticamente para o passado e para as consequências atuais do colonialismo e do imperialismo), mas "grandes instituições da Bavária pouco falam sobre essa história".

O legado da viagem de Spix e Martius ao Brasil para a ciência já foi devidamente reconhecido, assim como os louros dos cientistas foram colhidos o suficiente no antigo reino da Baviera —que existiu de 1806 até 1918, quando, após a Revolução Alemã, foi sucedido pelo então Estado Livre da Baviera.

Placa mortuária encomendada pela Rainha Carolina da Baviera ao artista Johann Baptist Stiglmaier para adornar o túmulo das crianças indígenas - Münchner Stadtmuseum, Sammlung Angewandte Kunst

Três anos após voltarem da expedição na qual percorreram 14 mil quilômetros do território brasileiro, coletando e catalogando mais de 22 mil espécies de plantas, o botânico Martius e o zoólogo Spix foram agraciados com o título de nobreza, incorporando o "von" antes de seus sobrenomes.

Foi também em 1823 que lançaram o primeiro volume do livro "Reise in Brasilien" ("Viagem pelo Brasil", na versão em Português), com textos onde mesclavam relatos de uma visão romântica da natureza tropical com observações atestando a superioridade europeia em relação aos povos nativos.

Hoje, grande parte dos itens levados por Spix e Martius integra uma coleção do museu etnológico de Munique.

O historiador Markus Wesche, autor do livro "Zwei Bainer in Brasilien" (Dois Bávaros no Brasil, em tradução livre), foi uma das vozes locais que criticou a maneira como o assunto foi abordado na exposição.

Segundo ele, o foco na história das crianças levadas por Spix e Martius é problemático pois ignora que houve "um grande número de indígenas levados para a Europa sobre os quais praticamente nada sabemos", escreveu à BBC News Brasil por e-mail.

Ele questiona também a denominação de sequestro, afirmando que esse "é um termo do Direito Penal [atual] e não descreve adequadamente o caso."

O historiador relata que Martius "sentiu a morte do menino como um 'veredito pesado'", citando as palavras do cientista.

"Os feitos do jovem Martius [o botânico tinha 23 anos quando deixou a Europa] foram motivados pela sua profunda crença como cristão e cientista de que desvendar os segredos da natureza e a educação levaria ao enobrecimento humano", defende Wesche.

Micheliny Verunschk, cujo romance também revisita trechos dos diários de Martius e Spix, foi enfática ao responder aos argumentos de Wesche na conferência.

"Causa espanto que, dentre as milhares de anotações feitas minuciosamente pelos cientistas a respeito da expedição e seus resultados, apenas as informações sobre as crianças tenham sido reescritas diversas vezes. As rasuras dizem que von Martius e Spix sabiam muito bem o que estavam fazendo", afirmou a autora à BBC News Brasil, depois do evento.

Quando menciona trechos reescritos, Verunschk está se referindo a relatos contraditórios e rasuras nos escritos de Martius já observados por pesquisadores.

Sobre o uso do termo "sequestro", adotado também em diversos artigos acadêmicos, a escritora justifica sua pertinência.

"O tráfico infantil indígena no contexto colonial ainda é pouquíssimo estudado, mas todo tráfico, sabemos, é antecedido por atos de violência: a separação de alguém de sua família, terra, cultura. Talvez possamos, em certa medida, chamar a esse ato violento de sequestro, ainda mais quando temos informações tão díspares sobre o que de fato aconteceu com essas crianças."

Colagem de Gê Viana reconstroi imagem de Miranha (aqui, a obra original não aparece na íntegra por questões de formatação) - Divulgação

Até hoje não se sabe como se chamavam originalmente Johannes e Isabella, nomes que as crianças ganharam após serem batizadas na Alemanha.

Em 1824, a rainha Carolina da Baviera encomendou ao artista Johann Baptist Stiglmaier uma placa mortuária para adornar o túmulo das crianças indígenas no antigo cemitério sul de Munique, levada depois para o Stadtmuseum, um museu em Munique.

A placa mortuária foi emprestada pelo museu e foi um dos destaques da exposição "Travelling Back: A Change of Perspective on an expedition from Munich to Brazil in the 19th century".

A mostra também teve obras dos artistas visuais Frauke Zabel, Yolanda Gutiérrez, Igor Vidor, Elaine Pessoa e Gê Viana.

É dessa última uma colagem digital inspirada em uma litografia presente no livro Reise in Brasilien, com um retrato de Miranha —a qual faz parte da Coleção Brasiliana do Itaú Cultural, em São Paulo.

Na versão de Gê Viana, a menina é adornada com penas, folhas e um halo azul justaposto a facões —uma reinterpretação da violência colonial.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/o-rapto-de-criancas-indigenas-por-cientistas-alemaes-em-expedicao-pelo-brasil-no-seculo-19.shtml

Karnal: ‘Ler é fundamental. A posse do livro, não’; conheça a biblioteca minimalista do historiador

 Por Maria Fernanda Rodrigues 

Na sala, Karnal guarda seus livros mais afetivos e os clássicos que segue relendo  

Na sala, Karnal guarda seus livros mais afetivos e os clássicos que segue relendo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Autor de ‘Preconceito: Uma História’ e colunista do ‘Estadão’, o historiador abriu a biblioteca de seu apartamento nos Jardins e mostrou a coleção de livros que ele herdou do pai e que construiu ao longo de sua vida; veja vídeo

É muito impressionante entrar pela primeira vez na biblioteca de Leandro Karnal.

Historiador, professor, palestrante requisitado, membro da Academia Paulista de Letras, escritor (ele está lançando Preconceito: Uma História) e colunista do Estadão, ele sempre foi um leitor voraz - e é fácil imaginar a sala de seu espaçoso apartamento nos Jardins toda tomada por livros. Ou pensar que ao menos um dos cômodos guarda, em prateleiras do chão até o teto, em um ambiente com luz acolhedora e uma confortável poltrona de leitura, seus tesouros literários, os livros que ele já leu e os que ainda quer ler.

Mas quase não há livros na casa de Karnal.

Não há porque ele não acredita mais que a posse do livro signifique alguma coisa importante - já acreditou, e sua casa, tempos atrás, poderia ser confundida com um sebo, com livros até embaixo da cama e no banheiro, e com nada menos do que 17 dicionários da língua portuguesa e 30 diferentes bíblias. Também porque ele tem rinite alérgica. E porque cruzaram por seu caminho pessoas e projetos que fariam um novo - e melhor - uso daquela sua “biblioteca morta” (morta, porém renovada diariamente com a chegada das remessas das editoras que esperam, um dia, ver suas obras em algum texto dele).

“Nos últimos 15 anos, estou desapegado da posse do livro e, curiosamente, estou lendo mais do que nunca”, contou ao Estadão numa manhã de final de novembro, quando recebeu a reportagem para uma visita à sua - agora - diminuta biblioteca.

Os livros de História da América, acumulados desde a pós-graduação e tão importantes para a sua formação e para seu dia a dia como professor, foram para seu substituto na Unicamp, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (com quem assina seu novo livro sobre preconceito; leia abaixo), quando ele pediu exoneração. Karnal sabia que não voltaria a produzir nesta área.

O resto, algo como 3 mil exemplares de filosofia à ficção passando pelas tiras de Mafalda, ele doou para um presídio em Pinheiros, por causa do projeto de remição de pena pela leitura, e também para os meninos e meninas da Fundação Casa.

“O único livro, na minha vida, que eu doei e me arrependi - e doei porque achei que seria muito útil no presídio -, foi o Dicionário Houaiss. Era aquela primeira versão encadernada e costurada à mão, acho que feita na Espanha. Eu era estudante quando comprei e foi caríssimo. Tem online, mas às vezes sinto vontade de folheá-lo rapidamente”. Ele, que disse não escrever um parágrafo sequer sem consultar um dicionário, deve comprar uma nova edição do Houaiss, embora ainda tenha outros três dicionários (dos 17 que já teve) em casa. E como escreve muito sobre religiões, guardou 10 bíblias.

E o que restou? O que forma, hoje, a biblioteca de Leandro Karnal? O essencial, os grandes clássicos, aquilo que está sendo usado para o trabalho naquele momento, livros afetivos, a herança de seu pai.

Visita à biblioteca de Karnal

Começamos esta visita pela sala, onde está justamente esta “estante afetiva”. Quando o historiador senta ao piano, um imponente piano de cauda Yamaha que se destaca no ambiente, é ela que está em seu horizonte.

Em quatro prateleiras, algo como 122 volumes dividem o espaço com sua memorabilia. Obras de arte, objetos mexicanos do tempo de seu doutorado, um cadeado budista do Butão que ele achou lindo e comprou em um camelô na rua, enfeitinhos de Natal, um Buda de cada país da África e da Ásia que ele visitou - e um Buda de ouro de 2.300 anos -, uma máscara africana no século 19. Todo o Shakespeare, as poesias de Machado de Assis, cartas e contos de Clarice Lispector, o mais importante de Umberto Eco, Kafka, Gógol, a biografia de Beethoven e de Caravaggio, Eneida, Ilíada, A Divina Comédia - uma, das várias que veríamos na casa.

O primeiro livro que Karnal tira da estante para mostrar deve ser sua maior relíquia e remonta ao século 16: uma coleção de sermões de São João Crisóstomo, de 1571, com capa de madeira e anotações manuscritas em latim feitas, ele imagina, por algum monge. Foi presente de uma amiga que arrematou os dois volumes em um leilão. “Quando eu quis restaurar as capas, porque nesses últimos cinco séculos elas sofreram um pouco, o arquiteto me disse para deixar assim. Ele foi livre de pragas e só o que preciso fazer é deixá-los arejados.”

O segundo livro que ele mostra era de seu pai, que nasceu em 1934 e morreu em 2010, foi professor de latim e advogado e tinha uma biblioteca muito grande - dividida, depois, “intuitivamente”, entre os filhos. Trata-se de A Divina Comédia, de 1879.

Na sequência, um livro de orações - o Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria, de 1740. Dentro, marcando as páginas, um santinho que pertenceu ao seu pai, um católico devoto.

Os dois volumes com os sermões de São João Crisóstomo, que datam de 1571, estão no que Karnal chama de sua 'estante visual' - ao lado do enfeitinho que, nos últimos dias de novembro, já anunciava a proximidade do Natal

Os dois volumes com os sermões de São João Crisóstomo, que datam de 1571, estão no que Karnal chama de sua 'estante visual' - ao lado do enfeitinho que, nos últimos dias de novembro, já anunciava a proximidade do Natal Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Outros do pai: uma coleção da vida dos santos, de 1621, consultada por Karnal inúmeras vezes sem dó de danificá-la. “Um livro é para ser usado”, ele disse. “Mas hoje, se vou usar um livro de mais de 100 anos, preciso usar máscara porque meia-hora depois eu começo a pingar em cima dele”, diz. E também a obra completa de Olavo Bilac e a Bíblia Vulgata, “que ele lia dia e noite”.

O pai não escrevia seu nome nos exemplares. Karnal carimbou todos eles com seu próprio nome, mas diz que não faz mais isso. “Eu já tive ex-libris, mas hoje tenho até um escrúpulo com isso. Alguns tinham até endereço para devolução.

Há ainda, ali, uma coleção lançada pela Abril Cultural na década de 1970, de mitologia, e um dicionário sobre o tema, que vieram de sua casa da infância. “E outros que são meus, mas que reproduzem um pouco o que ele gostava e lia, como a Ilíada.”

E então chegamos aos livros que marcaram a sua vida, como O Outono da Idade Média, que o impressionou em seus tempos de USP. “Um livro lindo, feito no início do século 20, uma obra extraordinária”, definiu. A edição que ele tem hoje é a da Cosac Naify, de 2010. “Essa edição maravilhosa deve ter sido um dos motivos para a editora ter ido à falência”, comentou.

O Nome da Rosa, presente de uma amiga nos anos 1980, está na biblioteca do escritório, mas Karnal expõe, ali na sala, o box da Record que reúne este que é o livro mais famoso de Umberto Eco, O Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault. Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, O Nariz, de Gógol, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Na Colônia Penal, de Kafka, quase todos em edições caprichadas da Antofágica, também podem ser vistos na sala do escritor ao lado de Clarice Lispector (1920-1977), possivelmente a mais contemporânea entre os autores.

“Eu diria que essa é a minha biblioteca visual, onde o livro é um pouco memória e um pouco obra de arte”, resume o historiador.

A segunda biblioteca

Da sala, seguimos alguns poucos passos até o claro e arejado escritório de Karnal. Há uma bancada em L. Uma das partes é uma espécie de entreposto com uma seleção rigorosa dos livros que ele recebe das editoras e que ainda vai examinar - a maioria fica no outro apartamento que ele tem no mesmo prédio, junto com o que será doado. Nela, ficam também os livros com os quais ele está trabalhando no momento e o que está lendo. Naquele dia, era a biografia de Elon Musk que estava em leitura.

Na bancada do escritório de Leandro Karnal ficam os livros que estão sendo lidos e consultados

Na bancada do escritório de Leandro Karnal ficam os livros que estão sendo lidos e consultados Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A bancada continua e se torna a mesa de trabalho de Karnal, com uma grande tela de computador. Acima, duas prateleiras que ocupam toda a extensão de uma das paredes e, na parede ao lado, uma singela estante de livros. “Aqui está mais uma parte do que sobrou do que um dia já foi muito.”

Há outros livros afetivos ali, em meio a fotos de seus pais, um relógio comprado pela avó em 1935, dezenas de lápis grafite e sua coleção de bíblias - também o que sobrou. É possível ver ainda as obras em discussão no clube de leitura que divide com Gabriela Prioli, os livros dados por amigos e os que escreveu, outros clássicos, como O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, cuja releitura sempre causa impacto nele, e obras inusitadas que o tocaram, como A Elegância do Ouriço, best-seller de Muriel Barbery. Sem contar os que revelam seus interesses ecléticos - por exemplo: ele adora plantas e tem livros sobre o tema. “Meu plano c de carreira é ser jardineiro”, brinca.

Na bancada do escritório de Leandro Karnal ficam os livros que estão sendo lidos e consultados

Karnal em seu escritório, com seus livros e o retrato de seu pai, de quem herdou uma biblioteca e algumas preferências literárias Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É possível encontrar livros de autores brasileiros contemporâneos por ali, como Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, e Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão. E dois títulos de Rodrigo Lacerda, também um grande leitor de Shakespeare, vizinho e frequentador da casa de Karnal - O Fazedor de Velhos e Vista do Rio.

Mas é sobre um terceiro livro de Lacerda que o historiador comenta. “Tem uma cena em Reserva Natural, do tamanduá atacando um cupinzeiro, que é uma das descrições mais fortes da língua portuguesa. Ela me parece com a cena da tempestade do furacão que José de Alencar coloca no romance O Gaúcho ou alguns trechos de Euclides da Cunha ao descrever o relevo da Bahia. São descrições muito talentosas e eu acho o Rodrigo grande escritor (Karnal já escreveu sobre esta obra no Estadão; leia aqui).

Ali, há os livros lidos, obras mais atuais que em breve poderão descer quatro andares para a caixa de doação e o títulos ainda chilincados - manter o livro no plástico em que vieram da gráfica é, para ele, um marcador do que ainda não foi lido (e uma proteção contra a poeira).

Mais literatura contemporânea

Leandro Karnal fez parte do júri do Prêmio Jabuti (os vencedores será revelados nesta terça, 5) e leu mais de 100 romances de autores estreantes. Ele conta que se impressionou com a qualidade da nova literatura brasileira. Recentemente ele também se encantou com Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, como já tinha se encantado, antes, com o português Valter Hugo Mãe. Dele, começou lendo A Máquina de Fazer Espanhóis. Achou extraordinário O Filho de Mil Homens. Fez o prefácio de A Desumanização. Recebeu o autor em sua casa.

No Brasil de hoje, Itamar é, na opinião de Karnal, o exemplo de alguém que escreve bem e que reinventa a língua. Diferente, em sua opinião, do que tem saído dos cursos de escrita criativa: um texto padrão. “O problema desses cursos é que nem sempre eles conseguem ensinar a voz para uma uma pessoa. E isso não significa domínio gramatical. Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, é um bom exemplo de falta de domínio gramatical e de uma voz muito original. Ela conseguiu fazer uma voz sem domínio pleno da norma culta.”

Ele fala também de Clarice Lispector, e a inclui no rol dos mestres da língua: “Quando li pela primeira vez A Paixão Segundo G. H., pensei: o que é isso? Como uma pessoa pode estar num apartamento onde não acontece nada e você fica preso. Repito até a frase inicial do romance: estou tentando entender. Estou tentando entender até hoje.”

Biblioteca invisível

Quase não há livros na casa de Karnal, mas ele é capaz de comentar, de cabeça, leituras de ontem e de 40 anos atrás. E suas leituras secretas - ou, as menos eruditas. Como Agatha Christie, que leu na adolescência, apesar de o pai torcer o nariz, e ainda lê, ou os best-sellers de Sidney Sheldon, também muito presentes em uma momento de seu passado, mas que ficaram para trás.

Essas obras não estão na estante, mas seguem, como milhares de outras (incluindo os audibooks que ele começou a ouvir enquanto faz esteira em casa ou pedala no parque), nesta biblioteca mental que começou a ser construída em São Leopoldo (RS), quando Leandro Karnal era apenas uma criança. Uma biblioteca que só cresce - para dentro, para longe da vista.

“Esses livros estão em mim, mas a maioria não está mais comigo”, diz. “Ler é fundamental. A posse do livro, não. Ter um livro que outros podem ler e guardar para você é uma ideia mercantilista de cultura, como se o importante fosse entesourar. O livro-tesouro, hoje, está ultrapassado. O livro tem que circular.”

Karnal em seu escritório, com seus livros e o retrato de seu pai, de quem herdou uma biblioteca e algumas preferências literárias

Karnal em seu escritório-biblioteca Foto: Tiago Queiroz

Sobre as doações, portanto, diz que não faz sentido deixar um livro lido, que mudou sua forma de pensar sobre determinado assunto - o direito, por exemplo, ou o preconceito - mofar na estante. Nem aquele que já foi útil para seu trabalho, mas ao qual não pretende voltar. “Não quero, com isso, dizer que o livro seja ruim, mas se for para eu reler alguma coisa vai ser um clássico, A Divina Comédia, Dom Quixote, Shakespeare. Esse livro me incomoda na estante porque ele pode ser semente para outras pessoas”, explica, reafirmando, mais uma vez, seu contentamento em poder fazer esses livros chegarem a presidiários.

“A ideia de ter o livro junto a mim não me seduz mais. E imaginar que todos os livros que eu doei possam ter sido lidos por outras pessoas me alegra mais do que todo o resto. Não estou mais naquela fase Tio Patinhas”, conclui - mas diz que de tudo o que ainda tem nunca vai se desfazer da biblioteca herdada do pai nem dos seus Shakespeares.

Novo livro

Leandro Karnal escreveu Preconceito: Uma História (Companhia das Letras; 400 págs.; R$ 69,90; R$ 29,90 0 e-book) com Luiz Estevam durante a pandemia. Havia a ideia de que o preconceito estava aumentando nos últimos anos - um preconceito, ele diz, que sempre existiu, mas do qual, talvez, as pessoas se envergonhassem. Os dois historiadores se propuseram a pensar a respeito e esse processo durou três anos. Dos mais de 100 tipos de preconceito que identificaram, eles elegeram cinco para se aprofundar nas 400 páginas da obra que chegou recentemente às livrarias - misoginia, “que é o preconceito fundante”, LGBTfobia, xenofobia, racismo e capacitismo.

Trata-se de uma profunda investigação sobre a análise genética do preconceito, ou seja, sua origem, como ele se constrói, e uma das conclusões é a ideia que isso pode ser desconstruído. “Como historiadores, partimos do pressuposto que toda convenção cultural, prática discriminatória, violência, discursos são produções humanas. E sendo produções humanas podem ser desconstruídas.”

Houve avanços, ele diz - embora ressalte que as coisas não são fixas e imutáveis. “Conseguimos produzir mudanças. O mundo, hoje, é muito racista, mas estamos alguns centímetros à frente do que já estivemos há 50 anos.” Ele conclui: “Sou otimista, e talvez meu otimismo seja falso e nasça do fato de eu ser um homem branco. Mas eu sou mais otimista do que há 50 anos”.

Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/conheca-a-biblioteca-essencial-de-leandro-karnal-com-classicos-raridades-memorias-e-afetos/