Por Maria Fernanda Rodrigues
Na sala, Karnal guarda seus livros mais afetivos e os clássicos que
segue relendo Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Autor de
‘Preconceito: Uma História’ e colunista do ‘Estadão’, o historiador abriu a
biblioteca de seu apartamento nos Jardins e mostrou a coleção de livros que ele
herdou do pai e que construiu ao longo de sua vida; veja vídeo
É muito impressionante entrar pela primeira
vez na biblioteca de Leandro Karnal.
Historiador, professor, palestrante
requisitado, membro da Academia Paulista de Letras, escritor (ele está lançando
Preconceito: Uma História) e colunista do Estadão, ele sempre foi um
leitor voraz - e é fácil imaginar a sala de seu espaçoso apartamento nos
Jardins toda tomada por livros. Ou pensar que ao menos um dos cômodos guarda,
em prateleiras do chão até o teto, em um ambiente com luz acolhedora e uma
confortável poltrona de leitura, seus tesouros literários, os livros que ele já
leu e os que ainda quer ler.
Mas quase não há livros na casa de Karnal.
Não há porque ele não acredita mais que a
posse do livro signifique alguma coisa importante - já acreditou, e sua casa,
tempos atrás, poderia ser confundida com um sebo, com livros até embaixo da
cama e no banheiro, e com nada menos do que 17 dicionários da língua portuguesa
e 30 diferentes bíblias. Também porque ele tem rinite alérgica. E porque
cruzaram por seu caminho pessoas e projetos que fariam um novo - e melhor - uso
daquela sua “biblioteca morta” (morta, porém renovada diariamente com a chegada
das remessas das editoras que esperam, um dia, ver suas obras em algum texto
dele).
“Nos últimos 15 anos, estou desapegado da
posse do livro e, curiosamente, estou lendo mais do que nunca”, contou ao Estadão
numa manhã de final de novembro, quando recebeu a reportagem para uma visita à
sua - agora - diminuta biblioteca.
Os livros de História da América, acumulados
desde a pós-graduação e tão importantes para a sua formação e para seu dia a
dia como professor, foram para seu substituto na Unicamp, Luiz Estevam de
Oliveira Fernandes (com quem assina seu novo livro sobre preconceito; leia
abaixo), quando ele pediu exoneração. Karnal sabia que não voltaria a produzir
nesta área.
O resto, algo como 3 mil exemplares de
filosofia à ficção passando pelas tiras de Mafalda, ele doou para um presídio
em Pinheiros, por causa do projeto de remição de pena pela leitura, e também
para os meninos e meninas da Fundação Casa.
“O único livro, na minha vida, que eu doei e
me arrependi - e doei porque achei que seria muito útil no presídio -, foi o Dicionário
Houaiss. Era aquela primeira versão encadernada e costurada à mão, acho que
feita na Espanha. Eu era estudante quando comprei e foi caríssimo. Tem online,
mas às vezes sinto vontade de folheá-lo rapidamente”. Ele, que disse não
escrever um parágrafo sequer sem consultar um dicionário, deve comprar uma nova
edição do Houaiss, embora ainda tenha outros três dicionários (dos 17 que já
teve) em casa. E como escreve muito sobre religiões, guardou 10 bíblias.
E o que restou? O que forma, hoje, a
biblioteca de Leandro Karnal? O essencial, os grandes clássicos, aquilo que
está sendo usado para o trabalho naquele momento, livros afetivos, a herança de
seu pai.
Visita à
biblioteca de Karnal
Começamos esta visita pela sala, onde está
justamente esta “estante afetiva”. Quando o historiador senta ao piano, um
imponente piano de cauda Yamaha que se destaca no ambiente, é ela que está em
seu horizonte.
Em quatro prateleiras, algo como 122 volumes
dividem o espaço com sua memorabilia. Obras de arte, objetos mexicanos do tempo
de seu doutorado, um cadeado budista do Butão que ele achou lindo e comprou em
um camelô na rua, enfeitinhos de Natal, um Buda de cada país da África e da
Ásia que ele visitou - e um Buda de ouro de 2.300 anos -, uma máscara africana
no século 19. Todo o Shakespeare, as poesias de Machado de Assis, cartas e
contos de Clarice Lispector, o mais importante de Umberto Eco, Kafka, Gógol, a
biografia de Beethoven e de Caravaggio, Eneida, Ilíada, A
Divina Comédia - uma, das várias que veríamos na casa.
O primeiro livro que Karnal tira da estante
para mostrar deve ser sua maior relíquia e remonta ao século 16: uma coleção de
sermões de São João Crisóstomo, de 1571, com capa de madeira e anotações
manuscritas em latim feitas, ele imagina, por algum monge. Foi presente de uma
amiga que arrematou os dois volumes em um leilão. “Quando eu quis restaurar as
capas, porque nesses últimos cinco séculos elas sofreram um pouco, o arquiteto
me disse para deixar assim. Ele foi livre de pragas e só o que preciso fazer é
deixá-los arejados.”
O segundo livro que ele mostra era de seu pai,
que nasceu em 1934 e morreu em 2010, foi professor de latim e advogado e tinha
uma biblioteca muito grande - dividida, depois, “intuitivamente”, entre os
filhos. Trata-se de A Divina Comédia, de 1879.
Na sequência, um livro de orações - o
Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria, de 1740. Dentro, marcando as
páginas, um santinho que pertenceu ao seu pai, um católico devoto.
Os dois volumes com os sermões de São João Crisóstomo, que datam de
1571, estão no que Karnal chama de sua 'estante visual' - ao lado do enfeitinho
que, nos últimos dias de novembro, já anunciava a proximidade do
Natal Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Outros do pai: uma coleção da vida dos santos,
de 1621, consultada por Karnal inúmeras vezes sem dó de danificá-la. “Um livro
é para ser usado”, ele disse. “Mas hoje, se vou usar um livro de mais de 100
anos, preciso usar máscara porque meia-hora depois eu começo a pingar em cima
dele”, diz. E também a obra completa de Olavo Bilac e a Bíblia Vulgata, “que
ele lia dia e noite”.
O pai não escrevia seu nome nos exemplares.
Karnal carimbou todos eles com seu próprio nome, mas diz que não faz mais isso.
“Eu já tive ex-libris, mas hoje tenho até um escrúpulo com isso. Alguns tinham
até endereço para devolução.
Há ainda, ali, uma coleção lançada pela Abril
Cultural na década de 1970, de mitologia, e um dicionário sobre o tema, que
vieram de sua casa da infância. “E outros que são meus, mas que reproduzem um
pouco o que ele gostava e lia, como a Ilíada.”
E então chegamos aos livros que marcaram a sua
vida, como O Outono da Idade Média, que o impressionou em seus tempos de
USP. “Um livro lindo, feito no início do século 20, uma obra extraordinária”,
definiu. A edição que ele tem hoje é a da Cosac Naify, de 2010. “Essa edição
maravilhosa deve ter sido um dos motivos para a editora ter ido à falência”,
comentou.
O Nome da Rosa, presente de uma amiga nos anos 1980, está na biblioteca do escritório,
mas Karnal expõe, ali na sala, o box da Record que reúne este que é o livro
mais famoso de Umberto Eco, O Cemitério de Praga e O Pêndulo de
Foucault. Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, O Nariz, de
Gógol, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Na
Colônia Penal, de Kafka, quase todos em edições caprichadas da Antofágica,
também podem ser vistos na sala do escritor ao lado de Clarice Lispector
(1920-1977), possivelmente a mais contemporânea entre os autores.
“Eu diria que essa é a minha biblioteca
visual, onde o livro é um pouco memória e um pouco obra de arte”, resume o
historiador.
A segunda
biblioteca
Da sala, seguimos alguns poucos passos até o
claro e arejado escritório de Karnal. Há uma bancada em L. Uma das partes é uma
espécie de entreposto com uma seleção rigorosa dos livros que ele recebe das
editoras e que ainda vai examinar - a maioria fica no outro apartamento que ele
tem no mesmo prédio, junto com o que será doado. Nela, ficam também os livros
com os quais ele está trabalhando no momento e o que está lendo. Naquele dia,
era a biografia de Elon Musk que estava em leitura.
Na bancada do escritório de Leandro Karnal ficam os livros que estão
sendo lidos e consultados Foto: Tiago Queiroz/Estadão
A bancada continua e se torna a mesa de
trabalho de Karnal, com uma grande tela de computador. Acima, duas prateleiras
que ocupam toda a extensão de uma das paredes e, na parede ao lado, uma singela
estante de livros. “Aqui está mais uma parte do que sobrou do que um dia já foi
muito.”
Há outros livros afetivos ali, em meio a fotos
de seus pais, um relógio comprado pela avó em 1935, dezenas de lápis grafite e
sua coleção de bíblias - também o que sobrou. É possível ver ainda as obras em
discussão no clube de leitura que divide com Gabriela Prioli, os livros dados
por amigos e os que escreveu, outros clássicos, como O Livro do Desassossego,
de Fernando Pessoa, cuja releitura sempre causa impacto nele, e obras
inusitadas que o tocaram, como A Elegância do Ouriço, best-seller de
Muriel Barbery. Sem contar os que revelam seus interesses ecléticos - por
exemplo: ele adora plantas e tem livros sobre o tema. “Meu plano c de carreira
é ser jardineiro”, brinca.
Karnal em seu escritório, com seus livros e o retrato de seu pai, de
quem herdou uma biblioteca e algumas preferências literárias Foto: Tiago
Queiroz/Estadão
É possível encontrar livros de autores
brasileiros contemporâneos por ali, como Lavoura Arcaica, de Raduan
Nassar, e Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela,
de Ignácio de Loyola Brandão. E dois títulos de Rodrigo Lacerda, também um
grande leitor de Shakespeare, vizinho e frequentador da casa de Karnal - O
Fazedor de Velhos e Vista do Rio.
Mas é sobre um terceiro livro de Lacerda que o
historiador comenta. “Tem uma cena em Reserva Natural, do tamanduá
atacando um cupinzeiro, que é uma das descrições mais fortes da língua
portuguesa. Ela me parece com a cena da tempestade do furacão que José de
Alencar coloca no romance O Gaúcho ou alguns trechos de Euclides da
Cunha ao descrever o relevo da Bahia. São descrições muito talentosas e eu acho
o Rodrigo grande escritor (Karnal já escreveu sobre esta obra no Estadão;
leia aqui).
Ali, há os livros lidos, obras mais atuais que
em breve poderão descer quatro andares para a caixa de doação e o títulos ainda
chilincados - manter o livro no plástico em que vieram da gráfica é, para ele,
um marcador do que ainda não foi lido (e uma proteção contra a poeira).
Mais
literatura contemporânea
Leandro Karnal fez parte do júri do Prêmio
Jabuti (os vencedores será revelados nesta terça, 5) e leu mais de 100 romances
de autores estreantes. Ele conta que se impressionou com a qualidade da nova
literatura brasileira. Recentemente ele também se encantou com Itamar Vieira
Júnior, autor de Torto Arado, como já tinha se encantado, antes, com o
português Valter Hugo Mãe. Dele, começou lendo A Máquina de Fazer Espanhóis.
Achou extraordinário O Filho de Mil Homens. Fez o prefácio de A
Desumanização. Recebeu o autor em sua casa.
No Brasil de hoje, Itamar é, na opinião de
Karnal, o exemplo de alguém que escreve bem e que reinventa a língua.
Diferente, em sua opinião, do que tem saído dos cursos de escrita criativa: um
texto padrão. “O problema desses cursos é que nem sempre eles conseguem ensinar
a voz para uma uma pessoa. E isso não significa domínio gramatical. Quarto
de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, é um bom exemplo de falta de
domínio gramatical e de uma voz muito original. Ela conseguiu fazer uma voz sem
domínio pleno da norma culta.”
Ele fala também de Clarice Lispector, e a
inclui no rol dos mestres da língua: “Quando li pela primeira vez A Paixão
Segundo G. H., pensei: o que é isso? Como uma pessoa pode estar num
apartamento onde não acontece nada e você fica preso. Repito até a frase
inicial do romance: estou tentando entender. Estou tentando entender até hoje.”
Biblioteca
invisível
Quase não há livros na casa de Karnal, mas ele
é capaz de comentar, de cabeça, leituras de ontem e de 40 anos atrás. E suas
leituras secretas - ou, as menos eruditas. Como Agatha Christie, que leu na
adolescência, apesar de o pai torcer o nariz, e ainda lê, ou os best-sellers de
Sidney Sheldon, também muito presentes em uma momento de seu passado, mas que
ficaram para trás.
Essas obras não estão na estante, mas seguem,
como milhares de outras (incluindo os audibooks que ele começou a ouvir
enquanto faz esteira em casa ou pedala no parque), nesta biblioteca mental que
começou a ser construída em São Leopoldo (RS), quando Leandro Karnal era apenas
uma criança. Uma biblioteca que só cresce - para dentro, para longe da vista.
“Esses livros estão em mim, mas a maioria não
está mais comigo”, diz. “Ler é fundamental. A posse do livro, não. Ter um livro
que outros podem ler e guardar para você é uma ideia mercantilista de cultura,
como se o importante fosse entesourar. O livro-tesouro, hoje, está
ultrapassado. O livro tem que circular.”
Karnal em seu escritório-biblioteca Foto: Tiago Queiroz
Sobre as doações, portanto, diz que não faz
sentido deixar um livro lido, que mudou sua forma de pensar sobre determinado
assunto - o direito, por exemplo, ou o preconceito - mofar na estante. Nem
aquele que já foi útil para seu trabalho, mas ao qual não pretende voltar. “Não
quero, com isso, dizer que o livro seja ruim, mas se for para eu reler alguma
coisa vai ser um clássico, A Divina Comédia, Dom Quixote,
Shakespeare. Esse livro me incomoda na estante porque ele pode ser semente para
outras pessoas”, explica, reafirmando, mais uma vez, seu contentamento em poder
fazer esses livros chegarem a presidiários.
“A ideia de ter o livro junto a mim não me
seduz mais. E imaginar que todos os livros que eu doei possam ter sido lidos
por outras pessoas me alegra mais do que todo o resto. Não estou mais naquela
fase Tio Patinhas”, conclui - mas diz que de tudo o que ainda tem nunca vai se
desfazer da biblioteca herdada do pai nem dos seus Shakespeares.
Novo livro
Leandro Karnal escreveu Preconceito: Uma
História (Companhia das Letras; 400 págs.; R$ 69,90; R$ 29,90 0 e-book) com
Luiz Estevam durante a pandemia. Havia a ideia de que o preconceito estava
aumentando nos últimos anos - um preconceito, ele diz, que sempre existiu, mas
do qual, talvez, as pessoas se envergonhassem. Os dois historiadores se
propuseram a pensar a respeito e esse processo durou três anos. Dos mais de 100
tipos de preconceito que identificaram, eles elegeram cinco para se aprofundar
nas 400 páginas da obra que chegou recentemente às livrarias - misoginia, “que
é o preconceito fundante”, LGBTfobia, xenofobia, racismo e capacitismo.
Trata-se de uma profunda investigação sobre a
análise genética do preconceito, ou seja, sua origem, como ele se constrói, e
uma das conclusões é a ideia que isso pode ser desconstruído. “Como
historiadores, partimos do pressuposto que toda convenção cultural, prática
discriminatória, violência, discursos são produções humanas. E sendo produções
humanas podem ser desconstruídas.”
Houve avanços, ele diz - embora ressalte que
as coisas não são fixas e imutáveis. “Conseguimos produzir mudanças. O mundo,
hoje, é muito racista, mas estamos alguns centímetros à frente do que já
estivemos há 50 anos.” Ele conclui: “Sou otimista, e talvez meu otimismo seja
falso e nasça do fato de eu ser um homem branco. Mas eu sou mais otimista do
que há 50 anos”.
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/conheca-a-biblioteca-essencial-de-leandro-karnal-com-classicos-raridades-memorias-e-afetos/