segunda-feira, 29 de abril de 2024

O risco do cansaço cívico

Por ADHEMAR BAHADIAN*

Desfile Cívico no Distrito de Triunfo

Neste feriadão aproveitei para reler alguns textos de Celso Furtado. Não me surpreendi com a pertinência e a acuidade de um dos maiores pensadores a influenciar a visão de Brasil de minha geração. "A Formação Econômica do Brasil”, que li aos dezoito anos, me abriu a vocação de servidor do Estado brasileiro.

Chamo Celso Furtado de pensador e não de economista. Celso foi sobretudo um humanista no sentido amplo da palavra e a cada ano sua visão de Brasil ultrapassa os limites temporais em que atuou como membro do Executivo brasileiro. Na Economia e na Cultura.

A releitura dos textos me fez olhar com grande tristeza para os anos do período autoritário iniciado em 1964, quando a intolerância ao contraditório expulsou deste país intelectuais e políticos como Furtado e JK, diplomatas como Antonio Houaiss, homens que inegavelmente instilaram no pensamento político brasileiro a dimensão inegável de nosso país e de seu destino evidente de ser um dos maiores países democráticos a serviço da paz e do desenvolvimento econômico.

Na esteira desta nostalgia, me vieram à lembrança alguns momentos de exaltação cívica, alguns de que participei, outros que acompanhei à distância, todos porém sempre aguardados e bem-vindos por serem evidências de uma resistência à prepotência e à supressão dos direitos fundamentais do cidadão e do Estado Democrático de Direito.

A clareza com que Celso Furtado analisa as consequências do modelo econômico da ditadura para o futuro brasileiro - futuro que hoje é o nosso presente - me fez deplorar que a rigidez ideológica das autoridades de então nos tenha privado da contribuição de Celso Furtado, àquela altura já apontava as distorções a advir de um remendo indevidamente chamado de “milagre brasileiro”.

De melancolia em melancolia, não me surpreendeu igualmente o uso abusivo da palavra milagre no contexto da situação das contas públicas, da dívida externa e da inflação que marcou o fim do regime autoritário a nos deixar por muitos anos com a soberania política cortada.

E a palavra milagre parece soar como advertência para os tempos que correm, onde decididamente se incluiu a religião com se ideologia fosse, a colocar em risco um dos direitos mais privados do cidadão.
Sem procurar assinalar os diversos pontos para os quais a análise de Furtado merece reflexão contemporânea, assinalaria basicamente a questão da desigualdade social sobre a qual ele tece observações que poderiam ser extraídas dos livros mais contemporâneos.

A referência imediata é Piketti, cujos trabalhos sobre a desigualdade social vem sendo o maior contraponto ao neoliberalismo, raiz da maior transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos.
E aqui chego à razão de ter escolhido o pensamento de Furtado como pano de fundo para este artigo de hoje. A visão prospectiva com que nos brinda Furtado deveria nos alertar para os riscos que correremos se permanecermos nesta dicotomia, nessa incapacidade de perceber que a solução para os problemas econômicos e sociais do Brasil - mas não apenas dele - não se encontra em fórmulas de um passado que não deu certo e sim na compreensão de que os tempos de hoje exigem soluções solidárias.

Durante trinta anos, o neoliberalismo, e sua parceira globalização, procuraram esvaziar o desenvolvimento econômico de seu componente mais sensível, o desenvolvimento humano. Desde os anos 80, governos de países ocidentais acreditaram que apenas com a remoção das proteções ao emprego, aos sindicatos, das leis anticompetição se poderia chegar ao crescimento do "bolo", cuja hipotética divisão beneficiaria a todos.

O resultado da eliminação dos controles governamentais liberou o espírito do lucro a qualquer preço e levou a fenômenos políticos hoje estudados como anomalias em crescente expansão.
Obviamente, a maior preocupação ocorre com o trumpismo a se transformar num quase culto à regressão política de mistura com uma efervescência religiosa muito pouco cristã.

No Brasil, há quem se esqueça de que o neoliberalismo parece ser uma nova forma de ópio a anestesiar nosso civismo em prol de um Brasil finalmente liberto e definitivamente sintonizado com a justiça social que perseguimos desde sempre.

Mais do que nunca, o divisionismo político chega às raias do cinismo e do deboche a impor uma reflexão sobre o que queremos realmente fazer deste país. Somos até hoje possuidores de recursos naturais e minerais que nos permitem um salto tecnológico para um futuro de prosperidade. O atraso não é nossa herança. Nossos erros do passado são talvez parte essencial para neles não reincidir por ódio ou ignorância.

Enquanto tivermos nossa Constituição de 1988 como parâmetro civilizacional, enquanto tivermos o voto como manifestação de nossa soberania, enquanto aceitarmos o que é de Deus sem confundir com o que é de Cesar, não há nada que nos possa desviar de nosso destino de povo amante da paz, solidário com o futuro de nossos semelhantes sejam quais forem nossas diferenças de cor, sexo e religião.
A felicidade é uma construção coletiva.

* Embaixador aposentado

Fonte: https://www.jb.com.br/brasil/opiniao/artigos/2024/04/1049681-o-risco-do-cansaco-civico.html 

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