Judith Butler, autora de 'Quem Tem Medo do
Gênero?', em Paris Elliott Verdier - 17.mar.24/The New York Times
Filósofa
afirma que questões identitárias são parte de luta por justiça e critica apoio
incondicional de Biden a Israel
[RESUMO] Em
entrevista a respeito de seu livro mais recente, Judith Butler diz que ataques
que sofreu no Brasil em 2017 a inspiraram a estudar o discurso conservador que
equipara o gênero a uma ideologia demoníaca contra as famílias. A filósofa
americana também critica parcelas da esquerda que descartam os debates sobre
identidade sexual, raça e meio ambiente por considerá-los meramente
identitários, pois, a seu ver, eles integram a ampla luta por igualdade,
liberdade e justiça que beneficia toda a sociedade.
Judith Butler, uma das principais referências dos
estudos de gênero, não entendeu por que grupos pediram sua expulsão do Brasil quando esteve no país
em 2017. Seu nome era associado ao demônio, à destruição da família
e à pedofilia, mentiras que motivaram ameaças de agressão em São Paulo.
"Eu me perguntava o que isso tem a ver com gênero", diz em entrevista
por videochamada à Folha.
Seu interesse em entender o que organizava
esses ataques desembocou em "Quem Tem Medo do Gênero?", seu primeiro
livro não acadêmico. Butler, que se consagrou com a ideia de gênero como
performance há mais de três décadas, agora tenta descortinar o
discurso conservador que vê seu trabalho como uma ameaça.
Judith Butler, autora de 'Quem Tem Medo do Gênero?', em Paris - Elliott
Verdier - 17.mar.24/The New York Times
A pesquisadora define a ideia de gênero por
trás desses ataques como um fantasma ancorado em teorias conspiratórias que
difundem que um modo de vida corre perigo.
"Quando esses líderes produzem medo sobre
gênero, pessoas transexuais, imigrantes, estudos raciais, eles procuram
instalar novamente uma ideia sentimental de hierarquia, exclusão e supremacia.
Mas ninguém está tirando a identidade sexual de ninguém", afirma.
"Queremos que todos sejam livres para encontrar seu modo de vida."
A filósofa defende, diante de ataques à
democracia, que a esquerda crie um imaginário convincente para a população.
"Temos que apelar às paixões da esquerda feminista, queer e progressista,
não às da esquerda que pensa que feministas, queers e transexuais são somente
identitários", diz. "Somos parte de uma luta por justiça, liberdade e
igualdade."
Butler diz ainda que o presidente americano, Joe Biden, candidato à
reeleição contra Donald Trump, se enfraqueceu ao apoiar Israel na guerra contra o Hamas. "[O apoio de Biden]
tem sido chocante para jovens e pessoas de esquerda, incluindo os judeus. Acho
que muitas pessoas o veem como cúmplice do genocídio."
A pesquisa para "Quem Tem Medo do
Gênero?" começou depois da sua vinda ao Brasil. O que desse episódio a
levou ao livro? Sabia antes de ir ao Brasil que havia debates
sobre gênero no país e que várias comunidades conservadoras, católicas e
evangélicas, estavam preocupadas com gênero. Mas me chocou saber que meu nome
estava associado a isso e que eu era considerada uma espécie de demônio, uma
força maligna.
Também me surpreendi com o fato de as pessoas
me acusarem, e quem trabalha com o conceito de gênero, de ser cúmplice de
pedofilia ou de prejudicar crianças. Vi que elas achavam ter razão ao pedir que
eu fosse agredida e expulsa do país. Isso era novo para mim. Eu me perguntava o
que isso tem a ver com gênero.
Queria, então, entender quais eram as paixões
envolvidas e como elas foram organizadas pela mídia de direita, pela igreja e
por congressos internacionais para construir uma ideia de gênero como se fosse
uma ideologia demoníaca.
Essa ideia de gênero é caracterizada no seu
livro como um fantasma. Como esse caráter ilusório do que é gênero foi criado? Vejo muitos líderes autoritários, entre eles Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, que foram eleitos
democraticamente.
Quando as pessoas votam nessas figuras,
geralmente são atraídas pela ideia de restaurar uma ordem anterior. Quando
esses líderes produzem medo sobre gênero, pessoas transexuais, imigrantes,
estudos raciais, eles procuram instalar novamente uma ideia sentimental de
hierarquia, exclusão e supremacia.
Mas ninguém está tirando a identidade sexual
de ninguém. Ninguém está dizendo que você não pode ser mãe ou pai ou que você
não pode ser heterossexual. Ninguém está tentando doutrinar crianças. Queremos
que todos sejam livres para encontrar seu modo de vida.
Precisamos tornar nossos ideais e nossa
imaginação mais vívidos, porque a direita é capaz de incutir medos muito
fortes. Precisamos imaginar com mais coragem e publicamente tudo o que
queremos, para que a nossa visão se mostre mais convincente que a deles.
Por que o gênero, especificamente, se tornou
uma peça central para líderes autoritários? Tenho duas
respostas para isso. A primeira é que o gênero aborda questões muito íntimas.
Sexo, identidade sexual, orientação sexual são fundamentais para várias
pessoas. Sentir que isso pode mudar ou que outros não estão vivendo dessa mesma
maneira pode parecer desestabilizador.
Se isso está na base da sua ideia de
casamento, de família, parece que tudo —a doutrina da igreja, a família, sua
sexualidade— está sendo posto em questão. Porém, na verdade, tudo o que está
sendo dito é: existem outras formas de pensar. Até mesmo dentro da igreja.
A segunda resposta é que o gênero é hoje usado
para desviar a atenção de outros medos que as pessoas sentem. Em vez de nomear
essas fontes de destruição, há um desvio, uma projeção.
Seu livro mostra que esses grupos também
atacam estudos raciais. Como esses campos, gênero e raça, se cruzam? É uma ideia de nação que está em jogo. Quando Orbán se opõe à miscigenação, ele não quer que os
húngaros brancos se misturem com imigrantes do norte da África ou do Oriente
Médio. Ele quer manter a suposta pureza da nação, ou seja, a presunção da
supremacia branca. Juntamente com Vladimir Putin, ele entende que a ideia de
família apoia a segurança e a identidade nacionais.
Quando pensamos no assassinato cruel de Marielle Franco, podemos ver
como raça, gênero, sexualidade e socialismo se unem. Ao matá-la, eles estão
tentando dizer que o Brasil não será representado por alguém assim. Quem
representa a luta pela justiça racial, pelos direitos das pessoas lésbicas e
gays, pelas aspirações feministas faz parte de uma esquerda que será
erradicada.
Parte da população teve contato com gênero
nesse sentido negativo, não do jeito propositivo e libertador explicado no seu
livro. Isso é resultado de uma falha política da esquerda e de movimentos
progressistas? O problema é que a direita não está só
descrevendo o gênero de uma forma falsa ou negativa. Ao apelar para um medo
profundo, ela indica que há algo destruindo nosso modo de vida —e isso pode se
chamar gênero, mas também raça, migração, socialismo.
A direita conseguiu, com sucesso, apelar a
temores que as pessoas estão vivendo e fazer uma promessa de que vai aliviá-los
se elas se subscreverem a certas agendas autoritárias.
Temos que apelar às paixões da esquerda —da
esquerda feminista, queer e progressista, não a da esquerda que pensa que
feministas, queers e transexuais são somente identitários. Não. Somos parte de
uma luta por justiça, liberdade e igualdade. Não nos preocupamos somente com
nossas identidades, estamos lutando por um mundo melhor.
Muitas pessoas temem a liberdade dos outros.
Como você convence essas pessoas? Não é apenas apontando os motivos. Precisamos
apelar ao desejo de viver em um mundo melhor. Sabemos que a esquerda sempre vai
votar contra o autoritarismo. Mas e quem está no meio? Como fazê-las mudar de
ideia? Estou interessada nisso.
Críticos do movimento "woke"
defendem que a esquerda deveria estar lutando por ideais universais
e que focar identidade, raça e gênero afasta quem não se vê nessas ideias. Qual
sua resposta a isso? A esquerda deveria estar pensando em outras questões? A identidade é importante, mas críticos dessa esquerda patriarcal
tendem a descartar uma ampla gama de questões como sendo identitárias. O movimento Black Lives Matter não é apenas sobre
identidade, mas também sobre justiça.
Não aceito o capitalismo como uma opressão
primária e raça, gênero ou desastre ecológico como secundários. Temos que
conectar todas essas alianças contra a violência estatal e a ameaça à
democracia. Sou socialista, mas não vou classificar as opressões.
'Pássaro Floral' (2023), obra do coletivo Assume Vivid Astro Focus ou
Avaf que ilustra a edição impressa da entrevista - Filipe Berndt/Reprodução
Como apresentar o que são os estudos de gênero
para um público amplo? Se olharmos para quem é
pobre, analfabeto, desabrigado ou não tem assistência médica, por exemplo, e
fizermos uma análise de gênero sobre isso, estamos tentando descobrir quantas
dessas pessoas são mulheres ou não têm conformidade de gênero, o que inclui
pessoas transexuais e não binárias.
É uma lente que permite pensar diferenças de
poder. Geralmente, e de forma importante, está ligada à análise racial e de
classe. Precisamos de um conjunto complexo de lentes trabalhando juntas para
entendermos a sociedade. O gênero é uma delas.
Ao mesmo tempo, falamos de gênero como parte
da identidade de cada um: como você se identifica? Qual é o seu gênero? Fazemos
a distinção entre o sexo que lhe foi atribuído e como você dá sentido a esse
sexo, se ele é confortável para você e como você se nomeia. Isso é um ato de
liberdade.
Uma ideia central do livro é que contestar a
direita autoritária é importante, mas não suficiente para derrotar o
"fantasma de gênero". Trump, que usa esse tipo de discurso, disputa
de novo a Presidência. Como vê esse cenário? O que deve ser feito? Infelizmente, acho que Joe Biden se enfraqueceu ao continuar as
políticas de Trump na fronteira sul do país e impedir que as pessoas possam
solicitar legalmente entrada nos Estados Unidos, detendo-as na fronteira em
condições desumanas.
Acredito que seu apoio incondicional a Israel
até muito recentemente também tem sido chocante para jovens e pessoas de
esquerda, incluindo os judeus de esquerda. Acho que muitas pessoas agora o veem
como cúmplice do genocídio.
Também acho que Trump tem uma capacidade de
emocionar as pessoas. Às vezes ele usa gênero, às vezes a questão transexual,
às vezes o discurso anti-imigrante, cada vez mais cheio de ódio e violência.
Isso entusiasma as pessoas pelos motivos errados.
Precisamos comunicar a Biden que ele precisa
se mover para a esquerda vencer. Ele nos considera um voto dado, mas vimos nas primárias do estado de Michigan que a população
árabe-americana estava decidida a não votar nele.
O discurso antigênero mobiliza medos —de
desigualdades, guerras, crise climática—, e essas crises não estão perto de
serem superadas. O que os estudos de gênero podem oferecer a quem quer
respostas nesse cenário? É interessante ver como o
gênero é organizado em diferentes países e que, como termo, ele não funciona em
certos idiomas. Existem outras maneiras de descrever relacionamentos,
diferentes formas de organizar o parentesco, a família, de viver um corpo ou mesmo
de se entender na sociedade.
Por que não pensamos mais sobre a imposição
colonial da família nuclear heterossexual em várias partes do hemisfério Sul,
onde outros tipos de arranjos de parentesco eram possíveis antes?
Talvez possamos aproveitar mais as
complicações linguísticas em torno do gênero. Talvez possamos tornar a
antropologia mais popular. Acho que muitos de nós na academia precisamos
começar a pensar com públicos mais amplos.
Judith
Butler, 68
Professora titular da Universidade da
Califórnia em Berkeley, é uma das pesquisadoras mais influentes no campo de
estudos de gênero e sexualidade e teve seus livros traduzidos para mais de 25
línguas. Autora, entre outras obras, de "Caminhos Divergentes: Judaicidade
e Crítica do Sionismo", "Desfazendo Gênero", "Problemas de
Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade" e "Quem Tem Medo do
Gênero?".
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